Narrativas indígenas
Pandemia e território sob o olhar indígena
Ao longo dos últimos seis anos, quatro deles governados por Bolsonaro e dois sobrepostos a uma intensa crise pandêmica, os povos indígenas resistiram sistematicamente ao método genocida aplicado por um governo anti-indígena. O aparelho do Estado foi utilizado contra os territórios e os corpos originários em nome de uma ordem e um progresso assassinos.
Por isso, convidamos sete lideranças de diferentes regiões para ecoar suas vozes de resistência. Elas estiveram atuando na defesa de seus territórios durante um dos períodos mais cruéis para os Povos Indígenas no Brasil na contemporaneidade. Escolhemos o Acampamento Terra Livre (ATL) de 2022 para coletar sete dos depoimentos que aqui estão impressos, por considerar um momento ímpar na história indígena do país e de grande efervescência política do movimento indígena – que demarcou a capital federal durante dez intensos dias de abril, com discussões a partir da provocação temática “Retomando o Brasil: demarcar territórios e aldear a política”.
O ATL reuniu 8 mil lideranças de 200 povos indígenas de quase todas as partes do Brasil, que mostraram ao país e ao mundo que não vão ceder ao projeto de extermínio e tampouco aceitarão empreendimentos devastadores em seus territórios – como mineração, hidrelétricas, produção de monoculturas com uso ostensivo de veneno etc. Diante de tantas demandas e da necessidade urgente de reconstrução do Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) anunciou durante o acampamento que, pela primeira vez na história, apoiaria candidaturas às eleições de 2022, a fim de eleger a primeira “Bancada do Cocar” no Congresso Nacional.
Entre as candidaturas federais lançadas pelo movimento estão: Vanda Witoto, pelo Amazonas; Eunice Kerexu, por Santa Catarina; e Maial Paiakan, pelo Pará. Seus depoimentos foram registrados nesta publicação, juntamente com os depoimentos de: Maurício Ye’kwana, atual diretor da Hutukara Associação Yanomami (AM); João Victor Pankararu, jovem liderança que vive no Sertão de Pernambuco; Angela Kaxuyana, vice-coordenadora da Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coiab); Francy Baniwa, do Alto Rio Negro, doutoranda em Antropologia Social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), parte da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn); e Japira Pataxó, liderança e educadora pataxó, além de zeladora dos saberes tradicionais e pajé na aldeia Novos Guerreiros (BA). Os depoimentos que compõem esta edição mostram a força e resistência dos indígenas de ponta a ponta deste país.
Quem puxa a fila de depoimentos deste “Palavras Indígenas” é Vanda Witoto, a primeira mulher indígena a ser vacinada no Amazonas. Ela, que atuou na linha de frente do atendimento de saúde durante a pandemia de covid-19, decidiu nesse período que era preciso disputar o espaço político da criação de políticas públicas realmente democráticas e inclusivas. Apesar de estar cuidando da saúde de centenas de pessoas naquele momento, ela sabia que o Estado não cuidava devidamente dela e de seus parentes – por viverem fora de Terras Indígenas reconhecidas – e, por isso, suas palavras eram ouvidas somente em seu espaço caseiro: “Não me deixe morrer sem que saibam que eu sou Witoto”, pedia.
Esperamos que as palavras indígenas desta edição, que mais se assemelham a palavras de sangue, possam ser mais uma lição do protagonismo indígena num país que, em nome do progresso, mais uma vez aplicou – se é que cessou – uma política de morte e dor aos povos originários. A resposta dos povos indígenas ao genocídio que se impôs a eles nesse período foi contundente: retomada de um futuro ancestral do Brasil, de aldeamento político, bem como de respeito à diversidade cultural e econômica.
Parte dos depoimentos coletados também podem ser acessados no documentário Povos Indígenas no Brasil. Sonhamos e queremos que estas e outras palavras indígenas sensibilizem mais pessoas e ocupem cada vez mais espaços. Como Kerexu nos ensinou aqui, as palavras indígenas semeiam o desejo de um país onde “sombra e água fresca sejam para todo mundo”.
Por Fany Ricardo, antropóloga do ISA, e Tainá Aragão, jornalista do ISA. Texto originalmente publicado no livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022.
Primeira Marcha das Mulheres Indígenas (2019)
Poderia ser um sábado normal. Mas, naquele dia ensolarado, quem passava pelo gramado do prédio da Funarte, em Brasília, presenciava um encontro diferente. Aos poucos iam chegando ônibus cheios, vindos dos quatro cantos do Brasil, e as barracas foram lentamente preenchendo o espaço vazio entre as árvores. O som dos carros na capital do país, por alguns dias, foi interrompido por um grito de luta que ecoou trazendo uma mensagem forte de resistência. Entre os dias 9 e 14 de agosto de 2019, Brasília foi presenteada com a primeira marcha das mulheres indígenas da história do país. Durante estes dias, ficou colorida e musicalizada pela diversidade das guerreiras que vieram de muito longe para defender aquilo em que acreditam, e se posicionar contra os ataques que seus povos vêm sofrendo. Mulheres de mais de 130 povos indígenas reuniram-se para debater, compartilhar experiências e marchar em prol de seus direitos.
Esta primeira marcha foi marcada pelo tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”, que segundo muitas delas, não poderia ser mais representativo de sua luta. “O que acontece se perdemos o território?” Para essa questão as mulheres indígenas responderam:
- “A terra é o sustento, a identidade, a história e a cultura!”
- “Perder o território é um desrespeito aos nossos ancestrais, que morreram pela terra!”
- “Sensação de que não temos raízes, vamos secar e morrer!”
- “É colocar as mulheres direto na violência!”
- “Território representa a sustentação da humanidade!”
Depoimentos individuais também transparecem sua vivência e conexão com seus territórios, sem os quais não se reconhecem. Célia Xakriabá, a primeira de seu povo a concluir um mestrado, durante o encontro, deu seu lindo depoimento sobre o tema da Marcha:
‘’"Território: nosso corpo, nosso espírito! As pessoas perguntam por que nós mulheres indígenas lutamos tanto pelo território, por que nós mulheres indígenas damos tanto a nossa vida pela terra? Porque o dia que continuar sangrando a mãe terra, o dia que continuar sangrando o nosso território também vai sangrar o útero da mulher indígena. [...] Quem tem território, tem lugar pra onde voltar. Quem tem território, tem lugar pra onde acolher. Quem tem território, tem colo e quem tem colo, tem cura. Porque hoje a presença das mulheres indígenas aqui em Brasília significa um profundo movimento de cura!"’’
Em uma emocionante fala, Concita Gavião Kykatejê, no dia 13 de agosto, na Esplanada dos Ministérios, define o que é território para os povos indígenas: “território é a essência de tudo”. E conta que:
“...como mãe e como mulher, eu estou aqui para pedir para vocês, para vocês que estão aqui, porque vocês também quando vão no supermercado, vocês compram comida com sangue de índio, compram carne das grandes fazendas do Mato Grosso Sul, que tem matado meu povo, que tem levado ao suicídio daquele povo. Porque não tem mais prazer, porque não tem mais sentido à vida. Porque para o índio o território é a essência de tudo: é no território que se faz educação indígena; é no território que se constrói saúde indígena; é no território que se transmite os conhecimentos. Não ajude a tirar o território do meu povo. Ajude-nos porque essa luta é uma luta de todos nós....Demarcação das terras indígenas não é uma obrigação, é um direito do povo, da nação indígena desse país!!!”
Cris Pankararu, uma das coordenadoras da Marcha, ressalta que “O Corpo é nosso! A gente decide quem entra e quem sai!”.
Um dos pontos de discussão e construção ao longo do evento foi acerca do corpo, especificamente, do corpo das mulheres indígenas. Nesse ponto, foi discutida a temática do empoderamento das mulheres indígenas. A questão iniciadora foi "Onde a palavra empoderamento torna-se válida, visto que em todas as línguas dos povos presentes no grupo de discussão a palavra não encontrava-se presente?"
Para elas, reconhecer o corpo como sendo um corpo indígena feminino, é empoderamento. Fortalecer-se como resistência indígena em todos os cantos, não só em âmbito político, mas também como âmbito de resistência nas aldeias, também é empoderamento. A mulher indígena deve ser vista como sujeito e não como objeto. O empoderamento deve vir de base por todos, desde o reconhecimento da importância e do valor de todas as mulheres indígenas em todos os âmbitos: nas aldeias, na construção política, na construção acadêmica e da construção social e humana de todos.
O território para os povos indígenas não pode ser dissociado de sua experiência, seu entendimento de justiça, pertencimento e vida. No documento oficial, produzido coletivamente durante a Marcha, as indígenas também expressam a importância e relação do território com a vida de todas as pessoas “Quando cuidamos de nossos territórios, o que naturalmente já é parte de nossa cultura, estamos garantindo o bem de todo o planeta, pois cuidamos das florestas, do ar, das águas, dos solos. A maior parte da biodiversidade do mundo está sob os cuidados dos povos indígenas e, assim, contribuímos para sustentar a vida na Terra.”
Guerreiras de muitas conquistas
A 1ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, concebida e coordenada coletivamente pelas mulheres indígenas, é fruto da história de mulheres indígenas que há muito tempo, lutam pelos direitos dos povos indígenas. As Coordenadoras da Marcha fizeram questão de dar visibilidade para a luta incansável dessas mulheres e, com muita emoção, foram lembradas:
- Quitéria Binga, Pankararu', que contribui muito para o alcance dos direitos indígenas no movimento da Constituinte;
- Nara Baré', primeira mulher a ser eleita Coordenadora-geral da Coiab (Coordenação das Organizações Indígena da Amazônia Brasileira);
- Maninha Xucuru', contribuiu a criação da APOINME (Articulação do Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo);
- Tuíra Kayapó, lutou contra a hidrelétrica de Belo Monte, empreendimento da Eletronorte;
- Nancy Potyguara (Iracy Cassiano), primeira prefeita de Baia de Traição (AL), eleita na década de 1990;
- Maria das Dores Pankararu, primeira mulher indígena do Brasil que concluiu o Doutorado, sua tese foi sobre a língua indígena do povo Ofayé (MS);
- Sonia Guajajara, primeira mulher na Coordenação da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e primeira mulher indígena candidata a Vice Presidência do Brasil;
- Joênia Wapichana, primeira mulher indígena a pisar na tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF) para defender seu território Raposa Serra do Sol e primeira Deputada Federal indígena;
- Chirley Pankará, eleita primeira Co Deputada Estadual indígena em São Paulo em mandato coletivo pela Bancada Ativista PSOL na Assembleia Legislativa de São Paulo;
- Telma Taurepang, primeira candidata indígena de Roraima a senadora e coordenadora da UMIAB - União das Mulheres Indígena da Amazônia Brasileira;
- Érika Nambiquara, com 18 anos foi eleita vereadora em Comodoro (MT);
- Rosane Mattos Kaingang, falecida em 2016, foi uma das principais líderes indígenas do Sul do país, uma das primeiras mulheres indígenas a morar em Brasília e assumir a luta nacional dos povos indígenas, pertencia à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e à Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul).
A proposta é reescrever a história da participação das mulheres indígenas na defesa e conquista dos direitos dos povos indígenas, para além dessas mulheres lembradas, as coordenadoras da Marcha, convocaram as presentes a lembrarem de outras lideranças importantes no movimento indígena que não foram citadas naquele momento, a história de luta continua.
Novas narrativas, velhas ameaças
As lutas Guarani pela terra
Comunicadores indígenas
Uma foto, uma história
Entre a aldeia, a cidade e o cosmos
Os cincos líderes indígenas – Yanomami, Baniwa, Kaiabi, Guarani e Marubo – que falaram ao ISA têm em comum o desafio de promover condições adequadas para a interlocução com a sociedade nacional e o mundo globalizado. É assim que eles se revelam como tradutores ou mesmo intérpretes: buscam encontrar sentido local para práticas e instituições dos brancos ao mesmo tempo em que lutam para dar visibilidade, num plano mais amplo, a reivindicações, potencialidades e saberes de seus povos.
Imersos num trânsito constante por entre mundos, eles jamais deixam de lado a prudência quando se põem a meditar sobre o futuro: a convivência com os brancos pode ser positiva desde que não se perca de vista a qualidade e a singularidade inscritas nas formas de ocupação do território, na transmissão de conhecimentos e no xamanismo.
O abandono do cotidiano nas aldeias para tentar a sorte nas cidades é motivo de lamento nas falas da maior parte desses líderes. Lauro Marubo, atual chefe da aldeia Alegria e pajé rezador, adverte aos jovens que morar na cidade é perigoso, pois lá abundam espíritos maléficos que causam doenças e morte. Além do mais, morrer na cidade, não é aconselhável para os Marubo, pois suas almas não conseguiriam encontrar o caminho de volta.
André Baniwa, embora tenha se instalado há alguns anos com sua família em São Gabriel da Cachoeira (AM), onde atua como vice-presidente da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), diz ter saudades da vida na comunidade do alto Içana. Para ele, viver na cidade e ocupar uma posição de liderança – falar em nome de índios de diferentes origens e assumir uma agenda apertada de viagens e reuniões – representam apenas um momento provisório de sua vida. Mais importante é garantir que seus filhos continuem a falar a língua paterna e a seguir as regras de conduta baniwa, de modo que, no futuro, possam voltar a viver na aldeia.
Já Mairawê Kaiabi, falando para aqueles que permanecem na aldeia, lamenta o fato de os jovens estarem se distanciando de práticas como o cultivo, a caça e a pesca para consumirem cada vez mais produtos vindos das cidades. Para ele, esse fato, que pode levar a um estado de subnutrição das crianças, não pode ser dissociado do desmatamento das cabeceiras do rio Xingu e, por conseguinte, da má qualidade das águas dos rios.
Timóteo Verá Popyguá construiu sua própria aldeia, Tenondé Porã, nos limites de uma grande metrópole, São Paulo. O seu maior problema tornou-se então garantir ali um espaço para viver, o que exige o envolvimento na luta pela preservação ambiental ameaçada pelo processo de expansão urbana. Timóteo pensa que o futuro dos Guarani nas redondezas de São Paulo passa, ademais, pela afirmação e divulgação de sua singularidade cultural. Isso justifica seus esforços de divulgar em CDs e espetáculos os cantos guarani, além de estimular os mais velhos a rememorá-los e ensiná-los aos mais jovens.
Esforço algo semelhante é o de André Baniwa, que tem buscado um diálogo entre velhos pajés e líderes religiosos e os mais jovens. Segundo ele, para além da escola diferenciada e dos projetos de piscicultura, é preciso incluir projetos para discutir a cultura e a religião baniwa. Isso implicaria um movimento de recuperação de certas narrativas, rituais e práticas, então “demonizadas” pelos missionários protestantes.
A necessidade de fazer com que os jovens voltem a se interessar pelo que dizem os velhos xamãs aparece fortemente nas falas de Lauro Marubo e Davi Yanomani, ainda que ambos não atribuam ao xamanismo o rótulo “cultura”.
Diante da sedução dos objetos da cidade, Lauro Marubo alega que todos eles têm doenças; os relógios causam febre e o papel provoca tontura. Ora, quem criou tudo isso não foram os brancos, mas sim os antigos pajés, que até hoje podem identificar a potência predatória das coisas e convencer os mais jovens a permanecerem nas aldeias.
Davi Yanomami, de sua parte, incita os jovens a se interessarem mais pelo xamanismo, pois só assim lhes será possível defender a floresta e garantir uma boa saúde para todos. Isso significa interagir com os espíritos xapiripë por meio da inalação de uma substância alucinógena, o yãkoana. Ao se distanciarem dos xapiripë, os jovens tornam o seu pensamento obstruído, esquecem dos ensinamentos dos antigos. Ao se interessarem em demasia pelas coisas dos brancos, perdem o acesso não apenas a um modo singular de viver, mas sobretudo a um modo singular de ver o mundo.
Por Renato Sztutman, antropólogo. Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo/NHII-USP e colaborador do ISA. Texto publicado originalmente no livro ''Povos Indígenas no Brasil 2001-2005''
A cosmopolítica das mudanças (climáticas e outras)
Populações indígenas têm ouvido dos brancos sobre o aquecimento crescente da terra e suas possíveis consequências, podendo vir a derreter geleiras, submergir cidades e desertificar florestas. Para muitas dessas populações, tais prognósticos, mesmo que preocupantes, não trazem grande novidade, seja porque o uso predatório dos recursos pelos brancos não poderia dar em outro resultado, seja porque a terra já foi destruída e renovada outras vezes. Os depoimentos que se seguem expressam percepções, reflexões e receios em relação a mudanças no regime de chuvas e rios, no ciclo reprodutivo de plantas e animais, dentre outras alterações que, longe de estarem circunscritas ao domínio do que os brancos chamam de “Natureza”, participam de uma cosmopolítica agenciada por humanos e não humanos, ou extra-humanos.
Donos (extra-humanos) de diferentes seres e lugares são reconhecidos como protagonistas de mudanças em vários desses depoimentos, não raro como reação ao uso abusivo de seu domínio. Segundo conta Awajatu Aweti, por exemplo, os donos do braço de rio próximo de sua aldeia eram ta’e watu, uma panela-monstruosa, e kaminu’umyt, um menino pequeno todo enfeitado de colares de caramujo. Eles ficaram desgostosos com a poluição das águas e foram embora, fazendo com que o braço de rio secasse. Outro exemplo está presente no relato de Davi Yanomami, segundo o qual as chuvas estão começando a cair de um modo estranho em represália do demiurgo Omama a xawara, a fumaça-epidemia que sai das máquinas dos brancos. Ainda, podemos citar as falas de Seremete e Muru Wajãpi, que se perguntam por que o tempo de hoje se transformou, a chuva não para e é difícil queimar o terreno para a roça. Sua hipótese é que o dono da terra e o dono das árvores estejam furiosos porque os não índios estão acabando com a floresta. Nessa direção, o relato de Osmarino Corrêa, do Baixo Arapiuns, menciona um espírito que é a mãe do lugar onde vive e que passou a atacar após a proliferação de fumaça de pneu, novos barulhos e derrubada de mata.
Florestas, animais, águas, pedras e outros seres e lugares são assim criações/materializações/extensões desses donos, fazendo com que o manejo de seus recursos implique uma tradução do que dizem e o que querem por meio de suas ações (chuvas, secas, escassez ou abundância de caça, pesca, frutos do mato, infortúnios, encontros etc.). Esse exercício de tradução também se faz necessário nas relações com os brancos. O que chamam de “mudança climática”, a exemplo do que disse Davi Yanomami, “não vem do nosso rastro”. Mas, em alguma medida, as mudanças climáticas vêm promovendo mudanças de pensamento nos brancos, mostrando que o que chamam de “Natureza” não é inerte e está reagindo aos seus abusos.
Pessoas, lugares e coisas estão enredados uns nos outros como uma “internet espiritual”, na expressão de Maximiliano Makuna. Sua preocupação é que essa rede esteja se esgarçando, sendo as mudanças climáticas apenas uma de suas manifestações. Os sabedores são os nós dessa rede, e o avanço dos brancos tem feito definhar não só os chamados recursos naturais, mas os conhecimentos e os conhecedores. Em seu depoimento, Osmarino Corrêa também comenta que antes os velhos curavam mais, no tempo em que não existia plástico, fumaça de pneu nem comércio, quando os remédios vinham do mato e as doenças tinham outros nomes.
O manejo do mundo é também o manejo do conhecimento, segundo Maximiliano Makuna. Nesse mesmo sentido, Carlos Guarani, ou Papa Poty Miri, comenta a escassez de taquara onde vive porque o clima da terra está mudando muito e houve extração abusiva para fazer artesanato no período em que as sementes se espalhariam. Os jovens de hoje ignoram o ciclo reprodutivo da taquara, ou o desconsideram em razão das demandas do comércio. E já na Primeira Terra, Takua, uma das filhas do demiurgo, foi transformada em palha de taquara pelos abusos de seu esposo e sua desconsideração ao sogro.
Raimunda Tapajós também destaca o desrespeito que vem do desconhecimento de muitos jovens de hoje. Ela conta que no Baixo Arapiuns tem uma traíra que é a mãe do igarapé, e as moças passam lá sem respeitar os resguardos do período menstrual ou da menarca. Então ficam doentes, se transformam. Já no depoimento de Wautomoaba Xavante, a preocupação com o definhamento dos saberes é expressa quando ela conta que as pessoas antes conheciam mais as frutas do cerrado, pois faziam expedições para lugares que hoje são cidades, num tempo em que se andava mais e se aprendia mais.
Um mundo sem conhecedores é um mundo sem tradutores, dificultando a política cósmica entre agentes providos de diferentes corpos, linguagens, interesses e efeitos. É um mundo em que as pessoas estão cada vez mais sujeitas a transformações e cada vez menos são sujeitos das transformações. O prognóstico de Seremete Wajãpi é que Janejarã (Nosso Dono) vai trocar a terra, acabando com esta na água ou no fogo. Para Doralice Kunhã Tatá, do povo Mbya Guarani, Nhanderu (Nosso pai) considera que o mundo já está muito velho e quer limpar a terra, destruindo tudo com barro de fogo e depois limpando com água. “Aí pode começar de novo”. No rastro de suas palavras e dos outros autores nos depoimentos que se seguem, podemos, quem sabe, buscar um recomeço antes desse fim.
Valéria Macedo – Antropóloga, professora na Unifesp e pesquisadora associada ao NHII-USP
A chegada dos brancos
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (sócio-fundador do ISA) apresenta e analisa as narrativas Krenak, Yanomami, Sateré-Mawé, Tupinambá, Kuikuro, Desana, Zo'é, Baré e Wapixana.
A história em outros termos
As narrativas indígenas aqui publicadas dispensariam qualquer apresentação - quanto mais uma assinada por um branco -, não fosse o fato de que seu destinatário somos precisamente nós, os brancos. É apenas por isso que não me parece impróprio introduzi-las, fazendo votos de que elas nos possam abrir os ouvidos, e reavivar a memória. Escutemos pois o que dizem os Desana, os Baré, os Mawé, todos esses que viemos a chamar, por esquecimento, “índios”, como quem diz os outros, quando fomos nós que nos tornamos outros. Os que foram esquecidos não esqueceram.
O que se lê aqui é a história destes quinhentos anos, uma história que pensamos conhecer - mas contada em outros termos. Não é, para começar, uma história (dos índios) contada pelos brancos, mas uma história (dos brancos) contada pelos índios. Uma história, ou melhor dizendo, várias. Pois estas histórias impressionam pela diversidade: diversidade das posições enunciativas, dos contextos discursivos, dos gêneros de fala, dos recursos semânticos, dos registros epistêmicos, dos processos de textualização. Fala-se aqui do passado “imemorial”, mas também do ontem e do amanhã; falam vozes muito distantes, outras muito próximas; falam povos com experiência secular dos brancos, outros cujo “contato” conosco é coextensivo ao tempo de vida do narrador; contam-se o que chamaríamos 'mitos', como se contam memórias pessoais, inscrevem-se fragmentos de conversas, e depoimentos formais, e entrevistas, e conferências; diz-se o que se diz há muito, e diz-se o que nunca foi dito; conta-se muito do que contamos, mas de modo bem diferente. Conta-se, em suma; mas também explica-se, critica-se, lamenta-se, justifica-se, reivindica-se, pergunta-se. Há muito o que dizer.
Tal impressão de heterogeneidade emerge não apenas da relação entre as narrativas, mas de muitas delas em si mesmas, em particular daquelas que buscam o fio que liga o presente ou o passado recente às condições gerais de possibilidade do mundo. Os personagens “históricos” (isto é, que figuram em nossos mitos históricos) coexistem sem solução de continuidade ontológica com personagens “míticos”; temas clássicos da tradição indígena pan-americana refletem, absorvem e transformam motivos igualmente clássicos da mitologia do Velho Mundo; juízos etnográficos profundos sobre a sociedade dos brancos buscam sua justificação em amplas caracterizações antropológicas e cosmológicas. Há, dir-se-ia, de tudo. Exatamente como na história que conhecemos, aliás, cuja heterogeneidade é apenas menos sensível a nossos olhos e ouvidos, acostumados que estão às nossas próprias convenções narrativas, onde coabitam escalas temporais incomensuráveis, e aos nossos saltos “naturais” entre múltiplos registros discursivos.
Não é difícil perceber, entretanto, a presença de um grande tema que atravessa muitos dos textos a seguir. Pois a diversidade aparente reflete, ou antes, refrata uma convicção fundamental. Esta diz: os índios são anteriores aos brancos, na ordem do parentesco e na ordem do território. Os brancos não chegaram aqui, eles saíram daqui; não descobriram os índios, mas encobriram a si mesmos, até voltarem para o que pensaram ser um encontro com o desconhecido, mas que não foi senão um reencontro com o olvidado. Somos, recordam-nos os Desana, seus irmãos mais moços. Abandonamos nossos maiores no princípio dos tempos, e muito mais tarde (apenas quinhentos anos atrás), acreditamos tê-los descoberto. Os que vieram a ser chamados índios são aquele fragmento da humanidade originária que decidiu, para o melhor ou para o pior, não seguir conosco. O retorno dos brancos era esperado - estava previsto -, mas se esperava, talvez, um pouco mais deles: que se comportassem como parentes que retornam, não como algozes; que partilhassem o que haviam aprendido lá aonde foram morar, não que voltassem para tomar o pouco que aos índios coubera; que seu engenho não tivesse sido adquirido às custas da sabedoria, que sua arte não lhes houvesse embaralhado o entendimento, que sua escrita não fosse usada para calar a voz dos que ficaram.
O que dizem, então, estas narrativas, é que a relação com os brancos sempre existiu. Não houve nem há “contato” que não fosse ou seja uma atualização - por mais que desastrosa - de uma virtualidade traçada no discurso das origens. Ailton Krenak observa agudamente que "o encontro e o contato entre nossas culturas e nossos povos, ele nem começou ainda e às vezes parece que ele já terminou". Mas vale também, e pelas mesmas razões, o inverso: ele jamais começou, pois ele estava lá antes do começo. No começo foi o desencontro, e este ainda não terminou, quinhentos anos passados. Mas quinhentos anos não é nada, conclui Ailton. É verdade. Sobretudo para quem tem boa memória, para aqueles cujo pensamento não está, como fulmina Davi Kopenawa, cheio de vertigem e de esquecimento. Possamos ao menos lembrar daqui para a frente, nós que somos verdadeiramente “muito esquecidos”.
[Outubro, 2000]
"Nós, mulheres indígenas"
Ao longo das últimas três edições da série Povos Indígenas no Brasil, esta seção apresentou, sob a forma de depoimentos temáticos comentados por antropólogos, pensamentos de 25 lideranças indígenas de diferentes povos: Kaiabi, Baniwa, Marubo, Yanomami, Krenak, Wapichana, Tupinambá, entre outros. Nesses 17 anos, entretanto, apenas quatro mulheres tiveram suas palavras destacadas aqui: Dona Maria Trindade Lopes, do povo Sateré Mawé; Wautomoaba Xavante; Raimunda Tapajós, do povo Arapiuns; e Kunhã Tatá, a Doralice Fernandes, do povo Guarani Mbya.
Nesta edição decidimos inverter a balança convidando dez antropólogas para apresentar os pensamentos de doze mulheres indígenas. Esse movimento foi iniciado em abril de 2016, quando conectamos propositalmente oito mulheres indígenas por meio de um aplicativo de mensagens instantâneas e, a partir das audiocartas e diálogos travados por elas, preparamos o site "Conexões Mulheres Indígenas".
Entre lideranças e xamãs, professoras e universitárias, idosas e jovens, este novo conjunto de depoimentos reúne mulheres dos povos Guarani, Wajãpi, Xavante, Ticuna, Bakairi, Tukano, Paumari, Ikpeng e Kawaiwete. Trata-se de solucionar um problema de representatividade e também de tornar conhecidas as trajetórias, memórias e perspectivas de algumas mulheres indígenas e, por meio delas, entrever as formas como povos e comunidades diferentes produzem conhecimentos, corpos, arte, alimento, política, diversidade.
Desde muito aprendemos com os povos indígenas que chefia - ou liderança - não é uma prerrogativa masculina. Exemplo disso está nas palavras de Wisió Kawaiwete, uma das mais prestigiosas lideranças do Território Indígena do Xingu (MT), que nos fala da caminhada pioneira, ao lado de seu esposo, nos espaços da política xinguana e das relações com os brancos. Catarina Tukano aborda outros espaços e relações, não menos importantes: ao descrever diferentes etapas do preparo dos alimentos, entre a roça, a casa-cozinha, a preparação das festas, ela mostra como as mulheres, em seus domínios, trabalham junto com os homens para a produção da pessoa tukano.
Transformações tematizam quase todas as falas. Estela Vera, a rezadora ava-guarani que puxa essa rede de mulheres, indica que o desaparecimento das rezas/cantos, pela alteração do tempo e pela falta de interesse dos mais jovens em se tornarem também rezadores, coloca em risco esta terra. A perspectiva sobre o fim do mundo que ela nos apresenta tem eco no depoimento de Wisió Kawaiwete sobre o tempo em que a terra "era aberta" e sobre as transformações que evidenciam não só um problema territorial, mas também o distanciamento entre as mulheres mais velhas e suas filhas e netas.
Aracy Xavante compartilha a angústia de não saber como as jovens vão perpetuar os conhecimentos das mulheres xavante, e ressalta que aprendeu tudo o que sabe - da coleta de alimentos a como enfrentar as dores do parto - com sua mãe e suas tias. Já Ajãreaty Wajãpi lembra dos ensinamentos dos antigos Wajãpi para revelar que a proximidade com o modo de vida dos karai kõ [não indígenas], seus alimentos e roupas têm tido muitos efeitos sobre os corpos dos jovens. É preciso falar com as plantas e seus donos, como ensinaram os antigos, para ter bons cultivos e boa comida, lembra ela.
"Os não indígenas já têm espaços demais entre nós, em nossas aldeias", testemunha Fátima Paumari, falecida em outubro de 2016. Ela, que se alegrava em ouvir sua língua ser falada pelos jovens e queria fazer viver os cantos paumari, era uma das grandes apoiadoras de iniciativas de valorização cultural e linguística. É também de iniciativas de valorização que nos falam as experiências de Koré e Magaró Ikpeng, duas das mais de 40 mulheres coletoras de sementes deste povo. Ser yarang, elas nos contam, é ter sensibilidade para conhecer e cuidar das sementes - segundo elas, uma qualidade cultivada pelas mulheres.
O aparente descompasso entre gerações que algumas falas reforçam é balanceado por depoimentos de jovens, como Fátima Iauanique e Denise Ianairu, do povo Bakairi - que falam de seus próprios corpos e do que aprenderam no convívio com as mulheres mais velhas, mesmo passando longas temporadas longe de suas aldeias.
De forma parecida, Josiane Tutchiauna e sua mãe Orcinda Ïpüna enfatizam as ferramentas de luta pelos seus direitos, nos lembrando de que a conquista de novos espaços pelas mulheres indígenas não ocorre em prejuízo dos conhecimentos específicos que elas manejam e possuem. Entre os novos espaços estão, por exemplo, as associações de mulheres indígenas, que cresceram em número no último período. Ïpüna reitera: "Nós, mulheres ticuna, somos uma autoridade; só precisamos de mais oportunidades para mostrarmos isso".
Falando de si mesmas, não raro algumas delas remetem, como Ïpüna, aos coletivos de mulheres de seu povo e de outras mulheres indígenas, uma forma, talvez, de reconhecer os problemas comuns enfrentados em seus territórios, de lembrar a importância e vitalidade de seus conhecimentos, e de compartilhar, umas com as outras, a luta contra o preconceito e a violência. Esperamos que essas falas feitas em papel deixem rastro para novos laços de poder entre mulheres indígenas - e entre mulheres indígenas e não indígenas.
Marília Senlle – Cientista social, ISA
Tatiane Klein – Antropóloga, ISA, doutoranda no PPGAS/USP