De Povos Indígenas no Brasil

“Mãe, se eu morrer, não deixe que eu morra sem ser Witoto. Grite que eu sou Witoto!”

por Vanda Witoto

Para o meu povo, saúde é reflexo de abundância na roça. Se você tem um lugar para plantar, você consegue ter saúde mental, espiritual e física para continuar existindo. Ao ter um território seguro, garantimos a segurança e a saúde dessa população. Então, ela não pode estar separada. O rio precisa estar limpo para que se possa tomar água. O rio não pode estar contaminado com mercúrio, porque essa saúde vai ser afetada; então esse território precisa estar com saúde para que meu corpo esteja com saúde. Não se pode separar, não existe essa saúde sem a saúde do território para o nosso povo.

Eu sou uma profissional de saúde, formada dentro de uma academia, de um conhecimento que não é indígena, mas vivenciando e observando essas relações de território, de corpo, de comunidade, de saúde, a gente percebe que nossa saúde está diretamente ligada aos nossos territórios. Então pensar saúde indígena, pensar saúde para um corpo indígena, está ligado intrinsecamente a esse território.

Hoje vivo em Manaus, na grande capital do Amazonas, dentro de uma comunidade reconhecida como primeiro bairro indígena em contexto urbano do nosso país. Lá vivem setecentas famílias de trinta e cinco etnias, são faladas 14 línguas indígenas. Nós estamos lá há sete anos, tentando fazer com que o Estado reconheça nossos corpos nesses espaços. Não apenas reconhecer nosso corpo, mas garantir os direitos que essa população já conquistou ao longo desses cinco séculos de invasão dos nossos territórios.

O Parque das Tribos vem de uma luta de várias lideranças, como a cacica Lutana Kokama, a professora Claudia Baré, o cacique Joilson Karapana e o cacique Messias Kokama. Essas lideranças iniciaram essa retomada por entenderem a necessidade de termos um lugar digno para viver, para podermos nos reconhecer enquanto indígenas. Na área urbana nós não conseguimos nos reconhecer enquanto indígena, porque a violência e o preconceito são tão grandes que precisamos nos esconder de quem somos, do que somos. E essas lideranças, em 2014, se organizaram, porque nós, indígenas, quando estamos nesses espaços da cidade, nós vivemos literalmente à margem das políticas públicas, e à margem dos igarapés que cercam nossa Manaus.

Essa marginalidade faz com que essas populações vivam numa vulnerabilidade social, econômica e cultural gigantescas. Sem território, nós não conseguimos falar a nossa língua; não conseguimos dialogar na nossa língua, num apartamento, numa quitinete, numa periferia que nos invisibiliza. Dentro de uma quitinete, você não consegue dançar ou cantar. E os nossos parentes, essas lideranças, se organizaram para retomar o Território do Tarumã-Açu, porque ali são territórios ancestrais, onde viviam os nossos: o pai da Lutana, a mãe da Lutana, os avós da Lutana. E eles compreenderam que era necessário retomar ali para que nós tivéssemos dignidade.

Quando começamos a vivenciar o período caótico da pandemia, iniciei um trabalho a partir do conhecimento de técnica de enfermagem que tenho, diante da ausência do Estado, quando a gente começou a sentir os sintomas do vírus na nossa comunidade, quando a gente precisou. Teve um caso mais grave na nossa comunidade de uma parente Tuyuka. Ela não conseguia respirar. Eu fiquei com muito medo, porque eu estava cuidando de casos mais leves, de febre, de tosse, mas ainda não tinha recebido nenhum caso grave. Diante do meu desespero e do desespero da minha família, que não quis que eu fosse lá e a levasse para o hospital, meu pai, com medo também do risco de eu ser contaminada, não me deixou voltar para socorrê-la. Disse: “Não! Vamos ligar para o Samu. O Samu vai dar mais segurança para a gente levar ela para uma unidade”. Porque eu não tinha nada ali, eu tinha apenas um oxímetro, um termômetro e um esfigmomanômetro para aferir pressão. Quando eu liguei para o Samu, o serviço identificou a paciente como indígena, identificou a idade, dei os parâmetros dela. Ao identificarem a comunidade como indígena para liberarem a ambulância, a atendente simplesmente falou: “Quem cuida de índio é a Sesai! Vocês têm que ir buscar a Sesai, porque a gente não atende indígena”.

Nosso território é distante da cidade, não está cercado de shoppings. É a mata, é o rio que nos cerca. É uma ocupação, não aparece no mapa porque nós estamos fora dos mapas. Nossas comunidades indígenas estão fora do centro, estão à margem, então não aparece no mapa e não tinha um ponto de referência que aparecesse no mapa para que ela liberasse a ambulância para o território. Desde as sete horas da noite eu estava negociando. Deu oito horas da noite e não conseguiram liberar a ambulância, porque não tinha um ponto de referência.

Então eu desobedeci a meu pai, a meu marido, a minha mãe, que estavam com medo de que eu fosse levar a parente. “Eu não vou deixar minha parente morrer! Nós temos um carro, eu sei dirigir, se vocês não querem ir comigo eu vou sozinha.” Minha mãe ficou desesperada com essa minha decisão. Eu estava apenas com uma máscara de TNT que minha mãe estava costurando. Mas eu falei: “Mãe, eu não vou deixar nossa parente morrer, a gente tem uma UPA bem aqui perto, eu vou levá-la, eu sei dirigir eu tenho uma carteira de motorista”.

Apesar disso, diante de tudo o que o Parque das Tribos vivenciou, a gente avalia como algo positivo o fato de a tragédia não ter sido maior dentro do nosso território. Por conta dos cuidados, dos vídeos, das orientações, mas também do uso das nossas medicinas tradicionais, que a gente começou a mobilizar dentro da comunidade. Foram todas ações nossas.

O que mais me doía, ao pensar na minha morte, era morrer naquelas valas comuns, como parda, como muito dos nossos morreram, sabe? Eu falava para minha mãe: “Mãe, se eu morrer, não deixe que eu morra sem ser Witoto. Grite que eu sou Witoto!” Falei isso para ela, porque foi muito doloroso ver nossos parentes serem enterrados como pardos, sem nenhuma assistência, naquelas valas comuns. Nem na nossa morte a gente tem dignidade! Como os Yanomami, que foram do hospital direto para serem enterrados, sem suas mães poderem se despedir! Isso me doía bastante!

Depoimento registrado por Tainá Aragão em abril de 2022, durante o 18º Acampamento Terra Livre

A luta pelo cuidado integral

por Tainá Aragão (jornalista do ISA)

Vanda Witoto, indígena do estado do Amazonas, professora e técnica de enfermagem. Também é professora da língua Bue, língua do povo Witoto que está sendo resgatada. Tem um trabalho com as mulheres indígenas no Parque das Tribos, em um ateliê de costura, em Manaus. Foi a primeira mulher indígena vacinada no Amazonas, quando a vacina chegou ao estado. Esse ato de ter sido a primeira mulher indígena vacinada foi um ato de coragem, de resistência, porque os povos indígenas, naquele momento e em contexto de cidade, não tinham prioridade para a vacina. Vanda foi candidata à deputada federal pelo estado Amazonas nas eleições de 2022.