“O rio Xingu antigamente era fundo... está ficando raso”
por Awajatu Aweti, publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2006-2010 (ISA)
Antigamente, no nosso porto, havia seres que cuidavam do rio, como a sereia, que fazia o rio ficar fundo. Kat morava lá, tinha ta’e watu, panela-mostruosa e kaminu’umyt, que é um menino pequeno todo enfeitado de colares de caramujo. Eles eram os donos daqui. A água corria por ali, e o nosso banho não ficava com essa água suja que tem hoje. Hoje em dia o pessoal usa muito sabão, é por isso que a água fica suja. Por causa do sabão, os donos ficaram bravos e foram embora, aí o mato cresceu e fechou a passagem da água.
Tem a lagoa onde está o aguapé. Por que a lagoa não seca? Por que o aguapé não acaba? Porque tem os seres vivos que cuidam, ali é a casa deles.
A gente diz que são os seres vivos que fazem o fundo dos rios. O rio Xingu antigamente era fundo. Com a chegada do branco, com tudo o que eles fizeram nas margens, o rio está ficando raso, pois os donos do rio estão indo embora. É muito importante falar disso.
Vou falar do mato. Antigamente quando a gente queimava roça, o mato era úmido, não pegava fogo fácil. Hoje você brinca na hora de tocar fogo. Os seres vivos da natureza também estão desaparecendo. Antigamente você escutava os donos do mato. Meu bisavô sempre escutava ka’a itat, a dona do mato. Hoje você quase não ouve eles gritando.
Os donos estão indo embora
por Marina Vanzolini Figueiredo, antropóloga e pesquisadora associada ao Museu Nacional/RJ
Awajatu Aweti é professor indígena e atual chefe da aldeia Tazu’jyt, principal grupo local Aweti (Tupi do Alto Xingu). Os habitantes de Tazu’jyt têm seu porto mais importante na margem esquerda do rio Curisevo, mas a aldeia fica situada a poucos minutos do Tuatuari, um rio sinuoso de águas transparentes cercado de buritizais. É num braço desse rio que eles se banham.
Antigamente, dizem os Aweti, uma circulação constante garantia que a água do banho estivesse sempre fresca e limpa. Muitas pessoas da aldeia explicam essa mudança – o fechamento da passagem por onde a água escoava – como um efeito da saída dos kat, ou espíritos, que ali habitavam. Eles descrevem assim uma dupla conexão entre o sabão e a sujeira da água: por um lado, a água está suja de sabão, este é já imediatamente um problema; por outro, a poluição da água incomoda aos espíritos protetores do lugar, e a ausência destes é que explica o agravamento da poluição, caso em que o sabão tem um papel intermediário. De todo modo, a alteração de seu modo de vida devida ao contato com o mundo e os bens do branco provoca uma alteração dos Aweti com seu meio ambiente. Mas esse meio não é natureza inerte, sendo composto de relações com os espíritos que cuidam, ou não, dos lugares em que as pessoas circulam. Há perdas e ganhos nessa relação com os brancos – e os Aweti parecem estar bastante alertas para as implicações “ambientais” disso.
Depoimento de Awajatu Aweti reconstruído a partir de uma conversa com Marina Vanzolini Figueiredo, meio em português, meio em aweti, em novembro de 2010, no Parque Indígena do Xingu.