“O significado da terra é algo mais de sentir”
por João Victor Pankararu
Terra é atemporal, espiritual, cultural e tradicional. A terra é tradicional dos povos indígenas, a gente surgiu da terra e a gente está na terra, assim como a terra está para nós, mas há esse processo também de cuidado com a terra, de defesa pela terra. A terra é nossa mãe! A gente não bate na nossa mãe, a gente não mata a nossa mãe, a gente não violenta a nossa mãe. E a gente luta, defendendo essa nossa mãe tanto para a gente quanto para outras pessoas, para outros agentes da sociedade e para que todos sejamos guardiães dessa Mãe Terra. Eu não consigo responder para você o que é a terra, mas consigo te passar o que sinto pela terra. É esse sentimento que a gente devolve para outras pessoas, para que elas possam internalizar também.
A gente começou essa luta – eu falo a gente enquanto indígena, enquanto Pankararu –, é uma luta que vem sendo construída ao longo do tempo e, na medida em que nossas gerações a conduzem, outras gerações vão usufruir do resultado dessa luta.
Minha geração já pegou um território demarcado, homologado, mas a geração dos meus avós não vivenciou isso. Pode parecer que a gente, jovem, não entende esse processo de luta pela terra, mas nossas lideranças são muito cuidadosas em repassar tudo o que acontece, como foi construído tudo aquilo, para a gente conseguir ter acesso ao nosso território. E isso não é um processo robotizado de uma sala de aula. Isso é naturalizado, é numa roda de conversa, é quando a gente vai acender o nosso campiô para fumar, para fazer nossa conexão com a natureza, com nossos encantados; aí é que eles vão relembrando as lutas, as histórias de como foi para conseguir aquele território. E ali a gente vai conseguindo sentir como foi aquela época, quão difícil foi, ao mesmo tempo que a gente também assume esse compromisso e essa responsabilidade de conduzir essa luta para outras gerações poderem usufruir também.
Meu território foi parcialmente demarcado em 1987, antes do movimento da Constituinte. Em 2007, a gente conseguiu a ampliação do nosso território, que era o Território Pankararu, e com essa ampliação veio a ser o Território Entre Serras Pankararu, que fica na Região das Serras. A gente conseguiu 15 mil hectares, mas ainda há partes do nosso território que ficaram fora dessa demarcação. Os acessos aos rios São Francisco e Moxotó, por exemplo, não foram incluídos dentro da nossa geografia. E aí a gente tem o cuidado de conhecer todo o nosso território, de conhecer cada pedaço, cada serra que o compõe, para que a gente não sofra ameaças.
Agora a gente passou por um processo muito violento, que foi o processo de desintrusão. Por mais que o nosso território fosse demarcado e homologado, ele não havia sido desintrusado. Havia famílias não indígenas que moravam dentro do nosso território, e isso gerava um processo de ameaça às nossas vidas. Hoje eu entendo que em boa parte isso também foi promovido pelo Estado, em função da morosidade para em conduzir esses processos demarcatórios, esses processos de regulação fundiária, que acirram os conflitos sociais e fundiários.
Todo mundo quer terra, todo mundo tem direito a viver, todo mundo tem direito a ter seu pedaço para viver, morar, plantar. E o Estado nos coloca em situações de disputa por território, coloca indígenas contra não indígenas, que eram famílias camponesas e que também queriam viver. E, assim, na disputa entre quem merece mais, quem vai ficar com qual parte, ocorriam as ameaças – principal e unicamente das famílias não indígenas para em relação às indígenas. E assim a gente não podia acessar determinados espaços do nosso território, que eram os melhores espaços para o plantio, para a criação, para a preservação inclusive de matas.
Nossas matas sagradas, que é como a gente chama as matas virgens, são espaços espirituais. Pessoas não indígenas não têm essa dimensão e esse entendimento, pois ara eles tudo se resume a desmatar, plantar e produzir – produção de monocultura, agricultura de abastecimento e distribuição de grande porte, que não é a nossa agricultura indígena familiar. Então a gente lutou muito até conseguir essa parte do nosso território em 2018 e 2019, mas a muito custo, a custo de lideranças ameaçadas, lideranças entrando no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, as casas sendo monitoradas o tempo todo, e a Polícia Federal a todo instante no território para proteger essas famílias de lideranças que estavam sendo ameaçadas.
Quando uma liderança é ameaçada, todo o povo é ameaçado. A gente não tem como saber até onde vai a mente e o plano de alguém que quer atentar contra a vida do outro. A gente imagina de tudo, pensa que podem pegar uma jovem, uma mulher jovem, uma menina, e usá-la para se vingar de uma liderança etc. Então foi um processo muito extenso, muito difícil, muito tenso, mas a gente conseguiu, graças à nossa ancestralidade e às nossas antigas lideranças.
Depoimento registrado por Tainá Aragão em abril de 2022, durante o 18º Acampamento Terra Livre
Jovem no front da resistência
por Tainá Aragão (jornalista do ISA)
João Victor é do povo Pankararu, povo que fica localizado no sertão de Pernambuco. Tem 24 anos, é universitário e acadêmico do curso de Farmácia na Universidade Federal de Sergipe. Faz parte de várias organizações a nível local, estadual e regional. A nível local, atua como coordenador do grupo Movimento Jovem Indígena Pankararu. É um grupo que vem atuando há cerca de nove anos no Território Pankararu, lidando com a juventude, suas perspectivas e suas visões. A nível estadual, faz parte da Comissão de Juventude Indígena de Pernambuco (Cojipe), comissão que reúne 13 povos através dessa juventude, lidando com as diferentes realidades desses povos e conduzindo a pauta a nível estadual. A nível regional, participa da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), uma organização de base que compõe a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), junto com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Aty Guasu, Articulação dos Povos Indígenas (Arpin) do Sudeste, ArpinSul, Comissão Guarani Yvyrupa e Conselho Terena.