De Povos Indígenas no Brasil

O Imperador era índio

Por Alfredo Barbosa - Ponta Alegre, rio Andirá (AM), 1996

A primeira pessoa que nasceu foi tapuya, depois foi o karaiwa. Por isso que os tapuya-in ficaram como donos da mata na´apy kaiwat, eles moram na própria terra mesmo. Depois apareceu uma pessoa, o "Imperador" que disse que era para eles não ficarem na mata e sim para irem para yarupap ["lugar onde estão/encostam os barcos"].

O Imperador falou: “Vamos embora para abaixo, para fora". Lá foram eles, foram andando, mas encontraram fruteiras e ficaram entretidos e deixaram de caminhar. O Imperador foi na frente e chegou no barco e esperou lá muito tempo. Mas como o povo não chegava, ele convidou a nação waçaria [“Sapos”, um dos numerosos clãs - ywaniaria - que constituíram o povo Sateré-Mawé] para remar para ele. Na época não existia motor. E se foram para ywysasare [expressão antiga, traduzida como "para fora"]. O Imperador era índio. Ele deu a educação we´eghap [conhecimento, saber]. Ele disse: "Vocês aprenderão fazer muita coisa". Os que foram remando, a nação sapo [waça], ficou na cidade [tawa wato: aldeia grande] e nós ficamos aqui no mato. Eles deram origem aos brancos como vocês, aos japoneses, americanos, são todos magka´i, aquele sapinho branco. Lá ele deu inteligência para fazer avião, rádio, televisão. Ele achou que era bom que tapuya ficasse cuidando de tanta riqueza que tinha nos matos e disse que um dia ele mandava alguém trazer espingarda, machado, terçado, máquina, machado novo, para trocar por produto. São os regatões. Ele disse que um dia ia contribuir com essas coisas que hoje estão nas cidades e que o regatão traz. Morekuaria mit po'oro koi, isto é o que as autoridades mandam.

Toran

O Imperador dos Sateré-Mawé

por Alba Lucy Giraldo Figueroa

Relatos antigos [sehay poot´i] colhidos em diversas localidades da Área Indígena Andirá-Marau referem-se à epopéia de um deus mítico que os Sateré-Mawé reconhecem como seu ancestral. Numa dessas versões, o nome atribuído ao demiurgo pelos narradores é o de Imperador. O termo Imperador foi utilizado no contexto da língua sateré-mawé, sendo Imperador a única palavra em português do relato original, que tanto para o narrador quanto para os demais ouvintes, todos homens adultos, era considerada uma palavra de sua própria língua. Acrescentaram que o seu nome completo era "Imperador Dom Pedro". Em outros contextos, ocorre a utilização do apelativo morekuat, nome genérico para "chefe", hoje reservado principalmente aos funcionários públicos.

O relato, em suas diversas versões, é fundamental para a compreensão de como se configuram diversos temas entre os Sateré-Mawé, tais como o da identidade étnica, o lugar e o papel atribuído à categoria social dos brancos (karaiwa) na suas representações sobre o mundo e naquelas referentes às relações de poder com as instituições do Estado brasileiro. Fundamentam, por outro lado, o sentimento religioso embutido no senso de territorialidade e na prática política dos Sateré-Mawé. Um ponto comum a todas as versões do relato é o consentimento explicitado pelo Imperador diante da opção da parte dos índios de ficarem nas suas terras.

Os brancos são associados a dois tipos de sapos esbranquiçados: um chamado kaingkaing [não identificado] e outro manka'i [Hyla venulosa - cunauaru]. Também são feitas outras associações: uma com o macaco wahue: "caiarara" [Cebus albitrons unicolor], por ser ele "todo branco e sem-vergonha". A outra é com o tiapu ou tiapii [Cacicus cela], "japiin", [pássaro da família dos Icterideos, Psarocolius]. Neste último caso, o traço destacado é aparentemente, o hábito de habitação coletiva e numerosa, bem como a grande versatilidade canora demonstrada por esse pássaro. Alguns narradores apontam para justificar essa associação a característica multi-instrumental da música ocidental.

Os brancos são, assim, representados como descendentes daqueles que seguiram o Imperador e os Sateré-Mawé como descendentes dos que ficaram. A palavra toran, pronunciada com ênfase pelos narradores depois de uma pausa final, cada vez que narram um mito, demarca uma seqüência temporal durante a qual espera-se que a atitude dos presentes seja de reverente silêncio diante das sehay pot'i: palavras antigas, tidas pelos homens idosos como palavras de bem e de beleza.