Wapichana
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- RR 11309 (Siasi/Sesai, 2020)
- Guiana 6000 (Forte, 1990)
- Venezuela 37 (XIV Censo Nacional de Poblacion y Viviendas, 2011)
- Família linguística
- Aruak
Além do vale do rio Uraricoera, os Wapichana ocupam tradicionalmente o vale do rio Tacutu, ao lado dos Macuxi, os quais habitam também a região de serras mais a leste de Roraima. Atualmente, os Wapichana são uma população total de cerca de 13 mil indivíduos, habitando o interflúvio dos rios Branco e Rupununi, na fronteira entre o Brasil e a Guiana, e constituem a maior população de falantes de Aruak no norte-amazônico.
Contato direto
Nomes
No que é hoje o território wapichana, distribuídos entre o vale do rio Branco (no Brasil) e o vale do Rupununi (na Guiana), distinguiam-se, até os anos trinta e quarenta do século XX, os seguintes grupos: Vapidiana-Verdadeiro, Karapivi, Paravilhana, Tipikeari, Atoradi (também grafado Aturaiú ou Atorai), Amariba, Mapidian (Mapidiana, Maopityan) e Taruma (Farabee, 1918; Herrmann, 1946).
Segundo Herrmann (1946), com base no registro do missionário beneditino M. Wirth, os Vapidiana-Verdadeiro localizavam-se desde a serra Urocaima, entre os rios Parimé e Surumu; os Karapivi, nos rios Surumu, cotingo e Xumina; os Paravilhana, no rio Amajari; os Tipikeari, entre os rios Uraricoera, Mocajaí e Cauamé; e os Atoradi, na serra da Lua. Os Amariba, Mapidiana e Taruma, etnônimos registrados por Farabee, localizar-se-iam principalmente no vale do rio Rupununi.
Nas fontes coloniais, tais etnônimos são dados por povos ou “nações” distintas. Farabee afirma que, historicamente, os Wapichana teriam se expandido em direção ao leste, e neste processo teriam incorporado estes grupos, próximos lingüística e culturalmente, que beiravam a extinção, em virtude de epidemias advindas do contato com os brancos.
Tal hipótese é sustentada por autores posteriores como Butt-Colson (1962) e Migliazza (1980). Não há, porém, comprovação documental de uma expansão dos Wapichana em direção ao leste, tendo por epicentro o vale do rio Uraricoera, sequer da ocorrência de epidemias que tenham vindo a dizimar estas populações entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX, como sugere Farabee.
Mais plausível parece ser a hipótese de Janette Forte e L. Pierre (1990) de que, ao mesmo tempo em que tais etnônimos, designando sub-grupos dialetais, teriam caído em desuso, o etnônimo Wapichana teria se alargado de modo a abranger todos os sub-grupos, entre os quais ainda se verifica ligeira variação dialetal. Tal hipótese condiz mais com a imagem projetada pelos próprios Wapichana, que hoje vêem uma única distinção, posta em termos de variação dialetal, entre os habitantes do vale do rio Uraricoera e aqueles do Tacutu/Rupununi.
Língua
Do ponto de vista da classificação genética, a língua Wapichana é considerada como pertencente à família Aruak (ou Arawak) (Rodrigues, 1986). O termo Arawakan corresponde ao emprego mais geral da denominação da língua Arawak ou Lokono falada na Venezuela, na Guiana, no Suriname, na Guiana Francesa e em algumas ilhas antilhanas. Outro termo usado para designar a família Aruak é Maipuran.
Especialmente para os Wapichana que vivem no lado brasileiro, nos arredores dos centros urbanos, o zelo pela língua materna é bastante significativo, pois, como atesta o levantamento sociolingüístico elaborado por Franchetto (1988), há duas realidades no que concerne ao uso da língua nativa pelos Wapichana.
Aqueles que habitam as proximidades dos centros urbanos convivem com uma situação de bilingüismo envolvendo o português e o Wapichana, com uma crescente predominância da língua portuguesa, especialmente, entre as gerações mais jovens. Diferentemente, para aqueles que vivem em malocas mais distantes das cidades e mantém contatos constantes com os parentes na Guiana, a língua materna se mantém numa situação quase plena de monolingüismo.
Segundo Migliazza (1980), mais de 80% dos Wapishana podem falar a língua nacional com a qual estão em contato, ou português no Brasil ou o inglês na Guiana, e 30% deles podem também falar Makuxi ou Taurepang, ambas línguas pertencentes à família Karíb.
Na realidade, considerando a facilidade de se ultrapassar a divisa entre os dois países, é comum encontrar, no lado brasileiro, pessoas que falem, além de sua língua materna, o português e o inglês. Há, por outro lado, pessoas mais velhas que moram em malocas distantes e de difícil acesso e que falam apenas sua própria língua. Na época da pesquisa de Migliazza (1985), o número de falantes do Wapishana girava em torno de 60% da população. Segundo os dados do Núcleo Insikiran de Formação Indígena, em 2003 esse percentual encontrava-se reduzido para apenas 40%.
Localização
A região de campos (ou do lavrado) compreende a área que vai do rio Branco ao rio Rupununi, região de divisão das águas das bacias do rio Amazonas e do rio Essequibo. Configuração singular circundada por floresta e montanha, pertence geologicamente ao escudo cristalino das Guianas que margeia a planície amazônica e, mais alta do que esta última, encontra-se de 91 mil a 152 mil metros acima do nível do mar. Ao norte e a oeste, os campos são limitados abruptamente pela cordilheira da Pacaraima; ao leste e ao sul, a transição para a floresta amazônica se faz de modo mais lento, adensando a vegetação e amiudando as montanhas.
Em território brasileiro, na porção nordeste de Roraima, as aldeias wapichana localizam-se predominantemente na região conhecida por Serra da Lua, entre o rio Branco e o rio Tacutu, afluente do primeiro. No baixo rio Uraricoera, outro formador do rio Branco, as aldeias são, em sua maioria, de população mista, Wapichana e Makuxi. Aldeias mistas, Wapichana e Makuxi ou Wapichana e Taurepang, ocorrem igualmente nos rios Surumu e Amajari.
A extensão contínua do território wapichana, no Brasil, foi abusivamente retalhada para fins de demarcação oficial, ao final dos anos oitenta. Àquela época, foram recortadas pequenas áreas indígenas, em que os Wapichana viviam uma verdadeira situação de confinamento, em terras cercadas e, em sua maioria, invadidas por fazendas de gado. Vivem em diversas Terras Indígenas, muitas das quais são compartilhadas com outros povos, como os Makuxi, os Taurepang, os Ingarikó e os Patamona.
Para conhecer o longo processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ver o especial preparado pelo ISA,
Na Guiana, as aldeias wapichana concentram-se entre os rios Tacutu, Rupununi, e Kwitaro, limitando ao norte, nas montanhas Kanuku, com o território Makuxi; ao sul, sua ocupação se estende à vizinhança do território Wai-Wai.
População
Em 1997 os Wapichana eram uma população estimada entre 10 mil e 11 mil indivíduos. Em área brasileira, estimava-se cerca de 3 mil a 4 mil indivíduos em aldeias, e em torno de mil pessoas em cidades e fazendas. Segundo dados da Funasa de 2008 a população total wapichana é de 7 mil indivíduos. Para a Guiana, a estimativa mais recente é a de Forte (1990): em torno de 6 mil.
Afastando-se do modelo etnográfico para as Guianas (Rivière, 1984), o padrão aldeão wapichana apresenta, em primeiro lugar, uma grande estabilidade, - aldeias como Malacacheta e Canauanim já são mencionadas pelo viajante Henri Coudreau, que as visitou na década de 1880, com a mesma localização atual - e ainda, alta densidade demográfica: as aldeias wapichana no Brasil apresentam uma população média de 150 habitantes. Mais altas são as cifras apresentadas para as aldeias em área guianense, em torno de 500 habitantes (Forte, 1990).
Histórico do contato
Habitantes de uma fronteira, fruto de partilha colonial, os povos indígenas dos campos e serras do médio e alto rio Branco - entre eles, os Wapichana - vivenciaram um duplo processo colonizatório a partir de meados do século XVIII. Vindos do vale amazônico, os portugueses inicialmente atingiram a população indígena no rio Branco por meio de expedições para apresamento de escravos e, em fins do século, ali estabeleceram aldeamentos.
Já os holandeses, por sua vez, alcançaram a região através de uma extensa rede de troca de manufaturados por escravos índios. Após a cessão da Guiana aos ingleses, no bojo das guerras napoleônicas, o interior da colônia permaneceria, por longo tempo, intocado: sua organização administrativa viria a ocorrer apenas ao final do século XIX, a ocupação consolidando-se já no século XX.
Ao longo do século XIX, a colônia inglesa, centrada na produção de açúcar na região costeira, empenhou-se na importação maciça de trabalho indígena, em substituição ao trabalho escravo africano. Assim, a pecuária nos campos do rio Rupununi, apoiada em mão-de-obra indígena, teria início na década de 90 do século XIX, em pequena escala, atingindo moldes empresariais apenas na década de 30 do século XX.
Para o vale do rio Branco, pode-se igualmente dizer que, apesar desta primeira fase de escravização e aldeamento no século XVIII, o contato se intensifica com a ocupação fundiária, que se inicia com a chegada de colonos civis na segunda metade do século XIX. Com efeito, a colonização civil, que consolida a economia pecuária da região, inaugura a espoliação de territórios indígenas.
A ocupação de terras nesta região fez-se acompanhar de mecanismos de arregimentação da população indígena para as camadas mais baixas da sociedade regional que então se formava.
Segundo o cronista Lobo D´Almada (1861 [1787]), os Paravilhanos, Aturahis e Amaribás localizavam-se entre as cabeceiras do rio Tacutu e o Rupununi. Os Wapichana, por sua vez, ocupavam as serras vertentes do rio Mau até as do rio Parimé.
O relato do viajante R. H. Schomburgk (1903 [1836-9]), que explora a região entre os anos 30 e 40 do século XIX, fornece pistas importantes sobre as trajetórias seguidas pelos povos no rio Branco em período imediatamente posterior ao século XVIII. Depreende-se de seu relato que, nas primeiras décadas do século, os povos habitantes da área oeste do rio Branco estavam em refluxo para áreas ainda mais a oeste, em direção à bacia do rio Orinoco, e passavam por processos de absorção entre etnias, o que talvez possa responder pela desaparição de alguns etnônimos em fontes posteriores.
No leste do vale, Schomburgk igualmente observa um processo de refluxo territorial: os Wapichana e outros povos habitantes entre as serras da Lua e Carumá, tais como os Atorai e Amariba, teriam migrado para o extremo leste.
Julgava ainda, embora equivocadamente, que os Paraviana houvessem migrado em direção ao Amazonas. A menção à suposta migração dos Paraviana é, no entanto, importante pelo que atesta de sua desaparição àquela altura do século XIX, embora fossem tidos como um dos povos mais numerosos no rio Branco no século XVIII (Ribeiro de Sampaio, 1872 [1777]).
Pode-se supor que, brutalmente atingidos pela escravidão e pelo aldeamento empreendidos pelos portugueses no século XVIII, como o foram, os Paraviana cedo hajam se incorporado aos Wapichana. Tal processo parece ter ocorrido lentamente, ao longo do século XIX e início do XX, entre os povos que Schomburgk então considerava “aparentados” aos Wapichana, ou seja, Atorai e Amariba, bem como os Tapicari e Parauana, pois que, nos anos 30 do século XX, o lingüista e missionário beneditino M. Wirth a todos relacionaria como grupos dialetais dentre os Wapichana.
As epidemias, que se sucederam desde o período colonial, decerto contribuíram para uma depopulação. Sabe-se que uma epidemia de varíola, iniciada no rio Negro, na década de 80 do século XIX, provavelmente se disseminou no rio Branco, trazida pelos índios que fugiam dos batelões em quarentena. Outra epidemia, dessa vez a gripe, de grandes proporções, veio a grassar na Guiana, atingindo sobretudo a população Atorai e Wapichana, ao final dos anos 20 do século XX.
Durante o século XIX, o recrutamento forçado de mão-de-obra indígena não cessou no rio Branco, canalizado, nas primeiras décadas do século, para as povoações no rio Negro. Tal demanda tendeu a crescer exponencialmente com a exploração do caucho e da balata no baixo rio Branco, a partir dos anos 50 do século XIX.
Já ao final dos anos 80, o viajante francês H. Coudreau (1887) veio a descrever, em tons fortes, uma economia regional que dependia inteiramente da mão-de-obra indígena. A utilização dessa mão-de-obra persiste no quadro da economia pecuarista que se instala nas últimas décadas do século.
Entre fins do século XIX e início do XX, a colonização civil, tanto nos campos do Rio Branco quanto nos do Rupununi (já sob domínio inglês) , trouxe em seu bojo a ocupação do território wapichana, bem como o recrutamento sistemático de sua mão-de-obra para o trabalho nas fazendas brasileiras e inglesas. Avassaladora, a ocupação fundiária encurralou aldeias e provocou fugas em massa da população, sobretudo, naquela altura, da área brasileira para a colônia inglesa. Fluxo inverso se registrou mais recentemente, nos anos 1970.
A ocupação do território wapichana na primeira década do século XX coincidiu ainda com o início da atuação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e, de modo muito mais intensivo, de missionários beneditinos. Muito embora as aldeias wapichana distassem do centro missionário beneditino no Rio Surumu, foram alvo de constantes viagens de desobriga, além da escolarização ministrada por irmãs beneditinas nas aldeias mais próximas ao núcleo urbano de Boa Vista e, por fim, do recrutamento sistemático de crianças para educação no internato mantido pelos missionários no rio Surumu. Quadro análogo se desenha na vizinha Guiana, onde a evangelização dos Wapichana foi iniciada pelos jesuítas à mesma época.
Quadro mais recente
As aldeias wapichana ainda são afetadas pelo recrutamento da mão-de-obra, tanto para o trabalho doméstico quanto para as fazendas que recortam seu território. Dos anos setenta ao início dos noventa, a exploração da mão-de-obra wapichana recaiu sobretudo na população proveniente de aldeias em território guianense que, perseguida politicamente pelo regime de Forbes Burham, tendia a submeter-se ao salário vil e às condições mais adversas de trabalho no Brasil.
As aldeias são ainda objeto de intenso assédio pelos partidos políticos em períodos de campanha eleitoral. Sem escapar às práticas correntes no país, no que tange às populações carentes, a compra de votos ali se faz homem a homem, no caso de candidatos operando individualmente, em distribuição de cobiçadas latas de óleo ou sardinha, ou então, quando o partido controla a máquina governamental, os presentes atingem toda a aldeia: desde a campanha eleitoral de 1994, quase todas as aldeias wapichana, do Uraricoera ao Tacutu, passaram a ostentar não só tratores, mas também antenas parabólicas oportunamente doadas pelo governo do Estado de Roraima.
Além disso, há o sistema escolar. A escolarização indígena foi iniciada em Roraima pelos missionários católicos na primeira década do século XX. Não se pode dizer, porém, que a escolarização religiosa tenha tido incidência significativa nas aldeias wapichana, pois que, dentre os adultos mais idosos hoje, aqueles escolarizados no período constituem raras exceções. A escolarização sistemática passou a ocorrer, com efeito, a partir do período militar, quando foram implantadas escolas nas aldeias. No final dos anos 90, todas as aldeias contavam com escolas primárias; o ensino secundário era fornecido na aldeia Malacacheta, bem como na cidade de Boa Vista.
Aldeia e suas relações
Espalhadas pelo campo, as casas compõem, à primeira vista, um desenho aleatório. Ligam-nas umas às outras estreitas trilhas, imperceptíveis ao olhar menos treinado, secundárias em relação ao caminho largo que leva ao pátio do centro religioso e da escola e deste, à saída da área. Focalizadas mais de perto, as trilhas finas, quase perdidas entre as casas mais afastadas, se adensam entre casas mais próximas, e apontam para conjuntos sociológicos, quais sejam, as parentelas.
Filhas casadas preferem, quando possível, construir suas casa na proximidade da casa materna. Junto à mãe, criam seus filhos, com ela partilham do trabalho e do alimento. Os caminhos que ligam suas casas falam, assim, de trocas cotidianas: da carne que, caçada pelo marido, a filha ciosamente ofertará à mãe e às irmãs; da ajuda no parto e nas doenças; do caminho às roças que todas perfazem juntas pela manhã; das tardes passadas ao fiar o algodão ou ralar a mandioca, enquanto as crianças brincam no terreiro da avó. A circulação do caxiri, bebida de mandioca, ainda que, para fins cerimoniais, envolva um maior número de parentelas não necessariamente chega a envolver toda a aldeia; o caxiri “doce” – isto é, de baixo teor alcoólico-, feito para o consumo cotidiano, é produzido e partilhado aqui, neste circuito íntimo de mãe e filhas.
Atividades produtivas
Os Wapichana obtêm recursos para a sobrevivência essencialmente na agricultura, que é realizada mediante a técnica tradicional, isto é, a coivara. Normalmente, as famílias possuem suas próprias roças, mas isso não impede que umas realizem mutirões coletivos nas roças das outras.
O processo se dá da seguinte maneira: a família proprietária da roça solicita o trabalho dos demais membros da maloca nos períodos de necessidade, tais como: nas épocas de limpa, de colheita etc. e, durante o período em que realizam o trabalho conjunto, a família beneficiada oferece a todos a alimentação necessária e sua bebida típica - o caxiri. Esse processo se repete para todas as famílias que precisem do trabalho do grupo.
Dentre os produtos cultivados destacam-se o feijão, o milho e, em especial, a mandioca. A utilidade do feijão e do milho assemelham-se ao uso empregado por não-índios; ou seja, o feijão faz parte do prato cotidiano, enquanto o milho tanto é consumido na sua forma natural quanto em seus derivados, tais como, a canjica, a pamonha etc. A mandioca, entretanto, é o alimento básico e mais tradicional deles. É consumida na forma natural e em alimentos derivados, tais como, o beiju, a farinha e a tapioca, mas, sobretudo, é utilizada na produção de bebidas especiais, como pajuaru, saboruá e caxiri, servidas tanto cotidianamente (muitas vezes como alimentação) como por ocasião de solenidades.
Também buscam recursos na caça e na pesca, que cada vez mais são realizadas com instrumentos da cultura não-indígena, como anzóis, redes de pesca, armas de fogo etc. Todavia, sobretudo nas malocas mais distantes dos centros urbanos como o Pium, por exemplo, ainda fazem uso da flecha e da lança para a realização dessas atividades. São igualmente importantes as atividades de coleta e extrativismo de produtos vegetais, tais como bacaba, buriti, açaí, dentre outros.
Outra atividade relevante é a pecuária, particularmente, a criação coletiva de gado, a qual é administrada pelo tuxaua de cada maloca e que visa prover a comunidade de recursos. São também comuns as criações de ovinos e suínos, as quais são administradas por cada núcleo familiar.
Cosmologias
Cosmogonia e a força criativa da fala
No começo, dizem os Wapichana, “quando o céu era perto, tudo falava, era puri”, magia. Céu e terra eram então indiferenciados, bem como indiferenciados eram os seres que os habitavam, porque sua fala era uma só.
Era sobretudo plástico aquele mundo original, e a força de o moldar encontrava-se na palavra: “Antes falava e mudava as coisas. Tudo agora já está feito”. Eficaz, criativa, a palavra provocava transformações contínuas, que deram ao mundo a feição que ele ainda hoje guarda: cachoeiras, rios, montanhas assim se criaram, em batalhas verbais entre os demiurgos.
O tempo de antes está, porém, irremediavelmente perdido. O mundo, tal como o conhecemos hoje, apresenta-se como o reverso da plasticidade original; o mundo está pronto e é “duro”, resiste à intervenção humana. Isto porque, explicam os Wapichana, a fala perdeu sua força produtiva - propriedade, originalmente, de toda fala. Sua magia hoje só se manifesta no interior do discurso ritual.
O mundo de hoje é, assim, resultado da ruptura de uma ordem primordial, ruptura que diferenciou o tempo e o espaço e provocou a especiação [diferenciação entre as espécies]. A especiação, por seu turno, repousou sobre uma distribuição desigual da fala: perderam-na muitas espécies, motivo básico pelo qual se tornaram outras espécies - ou, como gostam de dizer os Wapichana, qualidades -, fazendo com que a fala articulada seja hoje atributo quase exclusivo da humanidade, que a distingue dos outros entes que povoam o mundo. Assim, a fala articulada é, aos olhos dos Wapichana, o que os faz humanos.
Udorona, o princípio vital
Udorona é princípio vital que se encontra na fala, no sangue, na respiração; prova disso, dizem os Wapichana, é que quando morremos ficamos brancos e frios.
À diferença da respiração e da fala, o sangue é componente da pessoa transmitido e partilhado. Para os Wapichana, o sangue, com efeito, é obtido por transmissão: recebemo-lo de pai e mãe, em partes igualmente distribuídas. É, além disso, partilhado: irmãos, pais e filhos de um indivíduo possuem o mesmo sangue. Os limites da consangüinidade estão dados neste grupo, limites estes que são ditos sõtokon, “minhas pontas”: “ponta é como planta, o que nasce do mesmo pé”.
A respiração é componente pessoal da alma: no ventre materno não a possuímos; apenas a obtemos quando, pela primeira vez, inspiramos. A respiração, em certa medida, acompanha o valor da fala, questão que se apreende com maior nitidez no contexto da magia: soprar e falar são atos homólogos, que surtem o mesmo efeito encantatório, por serem ambos alma.
Sopro, fala, o atributo fundamental da alma é a leveza. A alma - sopro e fala conjugados na magia - é o que, no homem, pode ainda restaurar a criatividade da fala original, seu poder de transformar o mundo.
Por sua vez, a fala, do ponto de vista wapichana, é índice exponencial da alma. Sua existência no homem é o que o singulariza, o que não o deixa diluir-se entre as coisas do mundo. Índice também da vida humana, comprova-o o murmúrio rouco e inaudível dos mortos, cuja inteligibilidade é sinônimo de morte.
A fala é, ainda, um princípio eminente da razão. Crianças pequenas são ditas madoronan, termo cuja tradução literal é “sem alma”, porque ainda não falam. De modo correlato, querem com isso dizer os Wapichana que crianças não têm discernimento - “criança não tem juízo” -, motivo pelo qual se lhes deve perdoar as tolices que cometem.
Ambos, fala e discernimento, desenvolver-se-ão concomitantemente no processo de socialização do indivíduo, culminando em plena sociabilidade. Assim, em seu auge, a faculdade de falar perfaz o homem, aquele que é capaz de dialogar com seus semelhantes. Nesta linha, diz-se ainda madoronan com referência àqueles que estão fora de si, por estarem seja bêbados, seja tomados por sentimentos violentos, como a raiva, o ressentimento, a paixão: estes agem erraticamente e não falam, recusam o diálogo.
A fala é princípio estritamente pessoal: “Para formar uma criança, os pais ajudam com o sangue; o sopro e a fala são dela mesmo. A gente ensina a falar, mas a udorona da gente não pode fazer o outro falar”.
O potencial de fala precisa ser desenvolvido socialmente: às crianças, evidentemente, se ensinam a falar. Este fato, que poderia passar por corriqueiro aos nossos olhos, para os Wapichana se reveste de alto valor simbólico, dada a equivalência entre a fala e a alma: ensinar a falar é processo de humanização, que só ocorre no interior de plena sociabilidade.
Além de pessoal, a fala é princípio cumulativo, que só encontra sua plenitude na velhice, quando, para os Wapichana, somos mais alma do que corpo. Nesta concepção imbrica-se o conhecimento, necessariamente envolto na competência oratória; falar bem é o corolário da sabedoria, que só existe na proporção da alma.
Em suma, correlato da alma, a fala é, da perspectiva dos Wapichana, valor central na definição do humano.
Pensadores refinados, os Wapichana não postulam que a alma habite suporte ou recipiente corporal, nem que se localize - imagem a que estamos habituados - em uma parte específica do corpo, seja coração ou cabeça. Udorona é o princípio vital propriamente dito, força que, por si, nos movimenta e anima. Indissociável do corpo, udorona é o princípio dinâmico que lhe confere movimento, autonomia e vontade. Sua realidade é ainda apreendida na sombra forte que projetamos ao sol.
Morte
A morte se atesta pela total cessação da respiração, da pulsação e da fala, o que pode ocorrer sem ser em definitivo, nos desmaios, no coma alcoólico e demais lapsos da consciência, eventos todos designados pelo mesmo verbo, maokan, morrer. Na morte, diz-se udorona 'umakon naa, “a alma se vai”, ou, de forma mais eloqüente, diz-se que “alguém se calou”, umashadan.
O destino após a morte não é objeto de alta elaboração; ao contrário, diante da questão, os Wapichana apenas reiteram que “ninguém sabe para onde vai udorona”. A morte não representa o fim da udorona, mas o fim de sua existência individuada; na morte, o que não perdura é a pessoalidade. Ainda que alguns creiam que udorona possua uma existência após a vida terrena, esta é uma existência sem identidade, para a qual opera o paulatino estranhamento dos mortos.
Destino diverso, note-se, seguem apenas os xamãs após a morte: permanecem em uma árvore chamada Toronai, que existe no alto, no céu ou no topo das serras mais altas e inacessíveis, onde se casam novamente e podem ter filhos.
Esvaindo-se a udorona, a morte produz dois outros aspectos que, embora distintos entre si, são ambos designados, eufemisticamente, porawaru, o vento. Udikini, ao contrário da força vital constituída na udorona, é a sombra mais fraca que projetamos ao sol. São ditos udikini os retratos e as imagens da televisão; tal como estes, udikini não passa de uma sombra pálida que, ocasionalmente, aparece aos vivos: "você reconhece, mas ela não está mais, ela já morreu". Inócua aos vivos, udikini pode apenas produzir barulhos nos locais que um dia freqüentou. Às vezes, esconde-se nos redemoinhos, mas, via de regra, pode ser percebida na casa em que habitava, pois procura estar junto a seus antigos pertences terrenos.
Poder-se-ia sugerir que udikini, definida pelos Wapichana como sombra, é a lembrança que o morto carrega de seus pertences em vida, mas, reversamente, lembrança do morto evocada pelos objetos que um dia foram seus. Lembrança que vai pouco a pouco cedendo, ao entrarem os objetos em novo uso e nova posse: em seis meses, mais ou menos, dizem os Wapichana, udikini desaparece.
Outra coisa é desfazer-se a lembrança de alguém, um rosto e uma história: isto constitui o ma'chai, termo que se refere tanto ao cadáver quanto ao seu espectro. “Udorona - dizem os Wapichana - ninguém sabe para onde vai; quem volta é ma'chai”.
Ma´chai, o cadáver e o espectro que este libera, é ente extremamente perigoso e letal, que tem o terrível poder de tudo apodrecer. A dor do luto e a memória dos mortos tornam os viventes vulneráveis aos ataques de ma´chai. Para evitá-los, o esquecimento é um imperativo. Ninguém o vê, ninguém o escuta, ninguém, em suma, o reconhece. O apagamento de sua memória é o requisito para a continuidade da vida. Como explicam os Wapichana, recorrendo sempre à comparação com o mundo vegetal: “veja o algodão, nunca lembra o pé de onde foi arrancado”. Em coletivo, libertos de sua feição individual, os mortos acedem à condição de antigos e, na distância que o esquecimento produz, já não representam ameaça ao tempo dos vivos.
Práticas funerárias
O enterro e demais disposições do luto dizem respeito à parentela do morto, muito embora não haja uma divisão estrita de papéis entre afins e consangüíneos; a seu pedido, mesmo os vizinhos não aparentados podem colaborar.
O tempo de tomar tais providências corresponde ao de se velar o corpo. Este, no mais das vezes, permanece no telheiro exterior à casa, enrolado em sua rede ou totalmente coberto por um lençol.
Não há demonstrações ostensivas de emoção; ao contrário, o lamento dos parentes é grave e comedido. Os demais moradores da aldeia acorrem facultativamente a “espiar o corpo”, comentam em voz baixa a causa da morte. Crianças, mães de bebês de colo e doentes não participam do velório.
Em tempos passados, o corpo era enterrado em sua própria casa que era abandonada pelos parentes, mas esta prática caiu em desuso, hoje há um cemitério nas proximidades da aldeia.
Nos dias que seguem, a ameaça do ma´chai paira sobre toda a aldeia: é preciso não estar só, é preciso deixar a lamparina acesa durante toda a noite; luz e convívio que se oponham frontalmente ao escuro solitário de uma cova.
As crianças, mais vulneráveis do que os adultos à proximidade do ma´chai, devem ser protegidas: assistir enterros, seguir cortejos fúnebres, ou mesmo pisar involuntariamente no rastro de féretros lhes provocam disenteria, seu ventre incha, e a disenteria assinala um processo de decomposição análogo àquele por que passa o cadáver.
Os que mais facilmente se deixam levar pelo ma´chai são os consangüíneos. Vários são os casos de mortes que se seguiram à morte de pais, filhos ou cônjuges. Porém, mais do que sujeitos, os consangüíneos são, eles próprios, veículo de contágio, desde que se considera que, no luto, entram em um estado dito dipshan, “estado de putrefação”. A putrefação do cadáver igualmente os atinge: “é um mistério, esse, porque a gente ainda não morreu, e já está podre”.
Os consangüíneos devem tomar banhos preparados com uma mistura de ervas aromáticas, venenos de pesca e folhas secas de maniva, que, de modo análogo ao processo de purificação da casa, vêm neutralizar o odor dipshan que carregam, cortando suas ligações com o ma´chai. Expressão maior do luto, os banhos podem cessar depois de cerca de um mês, quando, do cadáver, só restam os ossos, que nada exalam e, por este motivo, não são perigosos
Xamanismo
O xamã é denominado marinao e seus cantos, marinaokanu. Os cantos xamânicos são qualificados pela expressão upurz karawaru, que os Wapichana traduzem por “corrente do marinao”. Tais cantos o xamã entoa, acompanhado pelo ritmo de um molho de folhas de ingá ou pau-tipiti, para “subir”, ou seja, deixar o corpo e permitir que outros entes – em especial xamãs já mortos – se manifestem por meio do seu corpo, enquanto sua alma – udorona – visita os habitantes invisíveis das serras e outros locais. O princípio vital do marinao permanece ligado a seu corpo por meio deste canto-corrente e, por esse motivo, em guerras xamânicas, um marinao tentará cortar a corrente de seu adversário.
Um marinao que não possui um repertório upurz karawaru, ou seja, sua corrente, é dito chanaminuru, um xamã voltado para o mal, que se utiliza do arco-íris para sua subida. Em uma sessão xamânica, os cantos upurz karawaru são intercalados a diálogos, eventualmente estabelecidos entre os entes que se manifestam através do xamã e seus assistentes. Muitas vezes, estes entes expressam-se em línguas estrangeiras, trazendo ao discurso do xamanismo um certo grau de esoteria.
O ponto fundamental da iniciação de um xamã consiste da incorporação, através da ingestão pelas narinas e boca, de certa categoria de plantas – wapananinao – que, mágicas, possuem, estas sim, o dom do canto. Marinaokanu são, portanto, cantos de plantas wapananinao que o xamã guarda em si e que já se mesclaram à sua própria natureza.
Em uma sessão de cura, o canto dirige-se à alma do doente, bem como ao ente que a aprisiona, motivo da doença, operando persuasivamente sua recondução ao corpo. Os cantos não descrevem a batalha pela alma, antes consistem eles próprios em batalha.
Encantações
Os Wapichana glosam puri como “oração” ou “remédio”. São encantações - fórmulas - que têm o poder sobre o mundo tangível e intangível. São assim usadas para o tratamento de doenças - que invariavelmente decorrem da agressão de seres sobrenaturais -, bem como para garantir sucesso na caça, na pesca, na agricultura e quase todas as outras atividades cotidianas, femininas e masculinas. Utiliza-se igualmente puri para cancelar eventuais efeitos nefastos provenientes da inobservância rigorosa do resguardo do luto, do parto e da menstruação, ou ainda, para tornar comestíveis a caça e a pesca, apaziguando seu princípio, os “avós” de cada espécie. Puri é utilizado ainda para atuar sobre a vontade de outrem, em particular na atração amorosa e na vingança.
O conhecimento e utilização de fórmulas puri é, em princípio, acessível a todos. Repertórios, no entanto, variam em extensão: os mais vastos são reconhecidos como atributos de especialistas, os popazo, “rezadores”, muito embora sua aquisição não dependa de qualquer outro requisito além do interesse pessoal neste aprendizado. Adultos plenos, via de regra, possuem um repertório, ainda que restrito, para o tratamento doméstico das doenças dos netos.
A fórmula puri possui uma estrutura fixa, que não permite variações: fórmula curta, que se vale freqüentemente de paralelismo, sua eficácia repousa, em tese, na memorização e na repetição palavra por palavra.
As encantações são a linguagem dos entes que originalmente povoaram o mundo, quando a linguagem exercia um poder criador. Com a ruptura da ordem original, afirmam os Wapichana, aqueles seres transformaram-se em puri. Eis seu paradoxo: aprisionada na encantação, a palavra de todos aqueles entes só se manifesta, hoje, pela voz humana.
Efetuada em fala e sopro, a encantação é entendida como a alma em ato. Assim explicam os Wapichana: “quando a gente usa puri, sopra porque está chamando pela boca, o vento da gente está soprando, é a fala da gente. Está chamando udorona, assim como deus”. Desta propriedade lhe advém força para criar ou modificar realidades.
Acesso ao conhecimento
Aona puaitapan amazada - “você não conhece o mundo” - é a resposta que escutam invariavelmente os mais jovens quando tentam opinar sobre assuntos considerados graves ou que, no mínimo, escapam à sua alçada. A frase bem resume o modo pelo qual os Wapichana concebem a aquisição do conhecimento. Amazada, o mundo, é noção que enfeixa espaço e tempo e, assim, a frase tem duplo sentido: de um lado, significa que alguém que ainda não correu o mundo não o conhece; de outro, significa que alguém ainda não viveu tempo suficiente para conhecê-lo.
Conhecer espaços mais amplos do que a própria aldeia de origem constitui fator respeitável de conhecimento. É de praxe que rapazes solteiros viajem pelas outras aldeias no Brasil ou na Guiana, ou a trabalho, em fazendas e garimpos que se espalham pelo território wapichana; comumente trazem de volta a esposa e o conhecimento de curas espetaculares, bem como um repertório expressivo de narrativas aprendidas à noite em volta das fogueiras.
No entanto, para os Wapichana, o acesso ao conhecimento, à sabedoria, encontra-se sobretudo associado ao tempo, à idade: os mais velhos são os que necessariamente acumularam o conhecimento pela experiência.
A associação do conhecimento à idade não significa que os mais jovens não possuam repertórios de narrativas; ao contrário, meninas e meninos impúberes, que permanecem, quase sempre, discretos e silenciosos durante a narrativa dos mais velhos, depois são capazes de repeti-la ou mesmo variá-la. Ocorre que, ainda que dominem um determinado repertório, os jovens não se sentem autorizados a veiculá-lo, pois esta autoridade é socialmente reconhecida como atributo da idade.
Os mais velhos, “aqueles que sabem as histórias”, são chamados kwad pazo, termo que os Wapichana letrados traduzem por historiadores; no contexto do culto católico, é dito kwad pazo aquele que interpreta a leitura bíblica. Outros, ainda por associação à letra, usam a metáfora “bibliotecas das aldeias” para se referirem a eles, reconhecendo-os, assim, como detentores de um conhecimento especializado.
Há que marcar uma diferença crucial em relação a outras sociedades amazônicas: o conhecimento entre os Wapichana, associado à idade, é um canal aberto e, em tese, acessível a todos, posto que a velhice é um processo inescapável, que chega inexoravelmente a cada um de nós. Concebendo o conhecimento como um processo necessariamente cumulativo, os Wapichana consideram que um adulto pleno pode ser um kwad pazo, o que não significa que todos o sejam; os mais velhos possuem o potencial, mas não é normativo desenvolvê-lo.
Em suma, o kwad pazo é um sábio, e a sabedoria é um derivativo necessário da experiência de vida. Os kwad pazo, por vezes, são chamados, bem como se auto-intitulam, jocosamente, “restos de kotuanao” [antigos], porque, além de narradores, são igualmente co-participantes de um passado cuja memória os mais jovens não partilham por experiência própria.
Para os Wapichana, o conhecimento em demasia envelhece e, por este motivo, os jovens não devem tentar adquiri-lo, sob pena de encanecer, ou, em caso extremo, enlouquecer. O envelhecimento precoce e a loucura são os motivos mais freqüentemente alegados pelos mais moços para preferirem não dominar as práticas discursivas não coloquiais.
Colorário da velhice, o conhecimento avança à medida que declina o vigor físico, em particular a atividade sexual e reprodutiva. Tal se explica pelo fato de que, para os Wapichana, a aquisição do conhecimento, afeto à esfera da alma, encontra-se na razão inversa da reprodução dos corpos. Entre jovens, as mulheres são mais afetas à esfera do corpo se comparadas aos velhos. No acesso ao conhecimento, assim, o critério idade decididamente subsume o do sexo: a velhice iguala homens e mulheres em seu afastamento do corpo, faz deles mais alma do que corpo.
Fases da vida
Os Wapichana não exibem grupos etários, nem demarcam rigidamente ritos de passagem. Evidentemente, muito embora não recebam maior institucionalização, se reconhecem fases socialmente relevantes na trajetória de um indivíduo.
Indiscriminadas, as crianças são referidas por um só termo, koraidaona. Na puberdade, “quando muda a voz”, um rapazinho passa a ser designado pelo termo tominaru, condição a ser superada apenas com o casamento, quando então acede à condição de daionaoara, termo que significa ao mesmo, tempo homem e marido. O nascimento dos filhos virá a consolidar esta condição adulta. Porém, apenas o tornar-se sogro, com o casamento dos filhos, constitui efetivamente o momento de acesso à idade madura e à respeitabilidade e, em um crescendo, o nascimento dos netos traz a idade adulta em sua plenitude.
O mesmo se aplica às mulheres, com a diferença de que a puberdade feminina se distingue por fases intermediárias que realçam, mais do que na esfera masculina, a entrada na vida sexual e reprodutiva: no despontar dos seios, a menina é dita kadineib'i, tornando-se kashinaru por ocasião da primeira menstruação; no auge da puberdade é dita mawisse, o que designa a mulher jovem e bela. Assim ela será considerada até o nascimento dos filhos, porque mawisse é a mulher que ainda não enfrentou um parto. A partir de então, a determinação pelos filhos torna a trajetória feminina análoga à masculina.
Nota sobre as fontes
O discurso etnográfico sobre os Wapichana se funda com Henri Coudreau (1887-1888) na década de oitenta do século XIX, época em que o viajante francês explorou o leste do rio Branco, os vales dos rios Tacutu e Rupununi e alcançou o rio Trombetas. Visitava, portanto, os territórios wapichana e atorai na serra da Lua e de seus vizinhos Taruma e Wai-Wai, até o território Pianakoto. Gravemente acometido de febres, Coudreau deteve-se na aldeia de Malacacheta por onze meses, adquirindo uma familiaridade até então impensável com a língua e a vida cotidiana dos Wapichana. A Coudreau cabe, portanto, o primeiro retrato desses índios e de seu território.
Em 1918, o etnógrafo americano William Curtiss Farabee publicou The Central Arawaks, resultado de uma expedição de um ano ao distrito do Rupununi (na então Guiana Inglesa), sob o patrocínio do Museu da Universidade da Pensilvânia. A obra, seguindo um padrão da época, organizava-se em tópicos relativos à mitologia, à organização social, à cultura material e à língua dos povos Arawak na região, isto é, os Wapichana, Atoradi e Mapidiana. A monografia foi objeto de ácida crítica por parte de Walter Roth, então considerado um dos mais distintos estudiosos dos povos indígenas da colônia. Roth, funcionário colonial, vinha dedicando anos ao levantamento de dados etnográficos dos povos guianenses.
Já nos anos quarenta, a antropóloga Lucila Hermmann (1946) veio a empreender um estudo dos Wapichana em área brasileira: baseava-se em dados coletados pelo beneditino D. Mauro Wirth, que missionou entre os Wapichana ao longo da década de trinta. Abordava o parentesco, o ritual e o sistema político, este último sob a ótica das mudanças introduzidas pelo contato.
Após os estudos de L. Herrmann, seguem-se apenas artigos breves de E. Soares Diniz (1967) e de Orlando Sampaio Silva (1980; 1985), datados já dos anos sessenta, que guardam, invariante, a temática das relações de contato.
A antropóloga norte-americana Nancy Fried realizou pesquisa de campo entre os Wapichana nos anos oitenta. No entanto, a divulgação de seus resultados, ao que tudo indica, resume-se a um artigo sobre identidade étnica Wapichana (1985).
No período de 1988 a 1994, a antropóloga Nádia Farage realizou a pesquisa documental e o trabalho de campo entre os Wapichana. Seu trabalho cujo tema são as práticas retóricas wapichana, resultou em uma tese defendida na Universidade de São Paulo em 1997 e em alguns artigos sobre a ética da palavra e os gêneros discursivos entre os Wapichana. A tese desta autora continua sendo a descrição etnográfica atual sobre esse povo.
Dentre os trabalhos mais recentes, estão a dissertação de mestrado de Giovana Acácia Tempesta (2004) sobre as práticas de resguardo entre os Wapichana e os Makuxi; a tese de doutorado de Carlos Alberto Borges da Silva (2005) sobre a Revolta do Rupununi, ocorrida em 1969, no sul da Guiana; e o doutorado do lingüista Manuel Gomes dos Santos que resultou em uma gramática do Wapichana.
Na Guiana, foram realizados os estudos de T. McCann (1972) e, mais recentemente, de Janette Forte e L. Pierre (1990). O estudo de McCann, relatório inédito dirigido às agências de fomento, ocupava-se teórica e praticamente da questão da integração dos Wapichana à sociedade nacional. Realizado pouco tempo depois da assim chamada “revolta do Rupununi” em 1969 – em que os Wapichana, apoiando os fazendeiros brancos locais, insurgiram-se contra o governo central -, o estudo focalizava, com efeito, aquilo que seria a prioridade do governo para aqueles anos: o controle político dos Wapichana através da co-partilha imposta de uma nacionalidade.
O breve ensaio de J. Forte e L. Pierre (1990), fruto de um levantamento da situação sociológica do distrito do Rupununi em 1989, segue as linhas gerais acima apontadas, buscando aferir o grau de integração dos Wapichana, duas décadas depois da revolta, considerada um divisor de águas para as relações inter-étnicas na região.
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