De Povos Indígenas no Brasil

“Nosso território, nossa vida, é um movimento”

por Kerexu Yxapyry

Eu, mulher guarani, estou aqui no meio da cidade hoje falando sobre leis, sobre garantias de território, sobre saúde. Fazendo esse enfrentamento, por um espaço digno, em um espaço que não é meu, dormindo num espaço que não é adequado para mim, falando uma língua que não é minha; estou me alimentando mal e já saí de toda a minha rotina. Mas isso também existe para nós e nós somos consagradas para viver isso quando sacrificamos nossas vidas pelo nosso povo.

As lideranças se entregam para fazer essa luta, para garantir um pouquinho de sossego para os mais velhos e para as crianças. Nós estamos vivendo agora esse momento presente de ação, mas a gente precisa valorizar os mais velhos. E as crianças receberão esse ensinamento para o futuro, então nós estamos aqui em sacrifício – estamos sendo sacrificados, ou estamos nos oferecendo em sacrifício – para conseguirmos manter nosso povo na luta.

Tem um discurso usado por pessoas anti-indígenas que diz que o indígena não gosta de trabalhar, que é vagabundo, que “é muita terra para pouco índio”, que o índio “quer viver de sombra e água fresca”. Então, quando a gente se reúne para falar sobre saúde, a gente fala que precisa de “sombra e água fresca”, e é por essa luta que nós estamos aqui.

Por precisarmos de sombra e água fresca é que a gente luta pela demarcação das nossas terras, pela preservação da floresta, dos rios, e não o contrário: a exploração. Então, se há outro tipo de luta que não seja lutar por sombra e água fresca, a gente desconhece e nem quer. Essa sombra e água fresca que a gente busca é para o bem-estar, para o bem comum da comunidade, para que a comunidade seja saudável, viva uma vida muito saudável. E a gente consiga viver mais tempo, com mais conforto dentro dos nossos territórios, que é diferente do que existe aqui fora.

Nós estamos vivendo um processo de transição hoje, tanto dentro dos povos indígenas quanto fora, na sociedade que está fora. E nós temos uma resistência a que as pessoas larguem disso: nós, povos indígenas, falamos que nosso território, nossa vida, é um movimento.

Nosso território é um corpo e ele precisa estar se movimentando o tempo todo. Um corpo que não se movimenta ou é um corpo doente ou é um corpo morto, isso para todos os seres vivos. E, quando esse sistema chega e coloca esse papel de capacitar as pessoas – que “você tem que ser alguém na vida” –, ele limita a pessoa, ele fecha a grade, e as pessoas têm que seguir só nessa função. Esse sistema é parado, é quadrado, é morto, não tem esse movimento.

Eu vejo que essa nova geração está vindo muito mais informada das coisas. A sociedade não indígena viveu um engano desde 1500, com a história do descobrimento do Brasil. Ela viveu e vive até hoje, pois em muitos lugares ainda insistem em falar que o Brasil foi descoberto em 1500. Mas hoje os povos indígenas vêm com essa informação real de como foi; hoje, a gente coloca a informação real: “Não! Foi muita morte, muito roubo, muita devastação!”

Marco Temporal

Nossa terra, a Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos, fica no município de Palhoça, na região da grande Florianópolis. Em 2010, houve a demarcação física da terra, então hoje estamos num processo de esperar a homologação pelo presidente. E, em Santa Catarina, nós tivemos, ao longo do tempo, muita perseguição do Estado, em várias questões que estão colocadas diante da Justiça.

Uma delas é que Morro dos Cavalos não seria território guarani, e que os indígenas que moram ali são indígenas que foram trazidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), pelos órgãos do Paraguai. Então, nós fomos tratados – e somos ainda – como um povo paraguaio que está morando ali. Com isso, o que acontece? Aconteceram vários ataques, desde o corte de mangueiras que nos abastecem com água até incitação de violência em audiências públicas promovidas pela Câmara Municipal contra a TI.

Em 2014, o procurador do Estado entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), conhecida como Ação Cível Originária (ACO) nº 2.323, fazendo alguns questionamentos nessa ação. Uma das questões era relacionada ao marco temporal (segundo o qual nós, indígenas, não estávamos ali em 1988); outra era sobre a BR-101, em torno da ideia de que os índios que ali estão não deixam o progresso crescer, porque não aceitam a duplicação da BR-101 etc.

Outra questão era sobre a existência de uma sobreposição da TI com o Parque Estadual (PES) Serra do Tabuleiro. Então também foi usado como argumento no questionamento ao STF que havia conflito dos indígenas com o parque e que nós iríamos desmatar essa área.

Durante esse período, a gente conseguiu trazer para o STF todas as respostas. Mesmo eu, particularmente, achando que nem deveria responder, porque é um absurdo tudo isso que foi colocado. Todos esses questionamentos, para mim, são absurdos enormes, que a gente nem deveria estar respondendo. Mas, enfim, são documentos, são papéis, e é assim que eles entendem, então a gente trouxe todas as respostas.

Morro dos Cavalos é um território originário sagrado para o povo Guarani que mora ali e outras pessoas que passaram e que virão, porque, no passado, quando se fazia a mobilidade Guarani, ele era um ponto de encontro de quem vinha do Sul e do Norte. Ali era o lugar onde a gente se reunia e fazia nossos rituais.

Dentro da nossa cosmovisão, esse espaço é um dos lugares que nós, povos indígenas, povo Guarani principalmente, quando chegava nesse período do ara pyau (que é “o tempo novo”, tempo de se renovar), era onde a gente conseguia alcançar a “terra sem males”, que é a nossa mobilidade. Então é isso que colocamos em defesa do nosso território.

Depoimento registrado por Tainá Aragão em abril de 2022, durante o 18º Acampamento Terra Livre

Demarcação de terras já!

por Tainá Aragão (jornalista do ISA)

Eunice Antunes Kerexu Yxapyry, da Aldeia Morro dos Cavalos, de Palhoça, é coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Kerexu foi cacique na aldeia em Palhoça de 2011 a 2016, período em que sofreu perseguições e recebeu várias ameaças de morte. Na luta pela garantia e busca de demarcação das Terras Indígenas, foi processada e levada à justiça. Em 2019, Kerexu fez parte de um grupo de 45 líderes indígenas catarinenses que buscou na Justiça Federal o direito de participar da ação legal no STF destinada a reduzir a TI Morro dos Cavalos e duplicar a rodovia BR-101 sem licenciamento. Em 2018 e 2022, ela concorreu a um assento no parlamento estadual e federal, respectivamente. Também atua na coordenação da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), que é a organização do povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste do país.