De Povos Indígenas no Brasil

"Nós temos muito valor e conhecimento"

por Orcinda Ïpüna. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

Orcinda Ïpüna. Foto: Patrícia C. Rosa, 2016.
Orcinda Ïpüna. Foto: Patrícia C. Rosa, 2016.

Muitas vezes, os brancos acham as mulheres indígenas francas. O ensinamento que eles passam para gente é apenas um complemento para melhorar a nossa escrita, para falarmos de nossos direitos como mulher. Esse conhecimento serve para que possamos nos defender; a fala da língua portuguesa é uma defesa para nós nos defendermos das ofensas que fazem sobre nós mulheres indígenas. Os brancos, pelo fato de sermos mulheres indígenas, nos desvalorizam, nos desqualificam, nos desrespeitam e brincam com nossos sentimentos porque não entendemos bem o português. Mas isso não quer dizer que não somos pessoas inteligentes. Nós, mulheres ticuna, temos muito valor e conhecimento para mudar isso; temos que debater sobre nosso conhecimento tradicional, mostrando que ninguém é melhor do que ninguém. Isso se chama força das mulheres indígenas. Nós, mulheres, temos que nos espelhar uma na outra, assim, como se fôssemos professoras umas para as outras, que recebem e passam ensinamentos, que encorajam as parentes em suas comunidades. Nós, mulheres ticuna, somos uma autoridade, só precisamos de mais oportunidades para mostrarmos isso. Um conselho para as parentes indígenas é não deixar de fazer o que fazemos no nosso dia a dia, fortalecer os vínculos, ser mulher indígena na comunidade ensinando e passando seu conhecimento para as crianças e para os jovens para que eles coloquem em prática tudo que herdamos de nossa própria cultura. Meu pensamento é esse, grande e forte.

Somar lutas e somar saberes entre as mulheres por Patrícia C. Rosa, Antropóloga, professora da UFPR e doutora em Antropologia Social pela Unicamp

Josiane Tutchiauna é mulher ticuna, de 36 anos, mãe, pertencente ao clã de pássaro japó, é liderança, militante no movimento indígena, especialmente no âmbito de políticas educacionais de ensino superior e problemáticas que envolvem temas de relações de gênero e sexualidade. Orcinda Ïpüna, de 66 anos, mãe de Tutchiauna, é artesã e pertencente ao clã avaí. Ambas vivem em Bom Jardim, comunidade ticuna em processo de reconhecimento territorial, no município de Benjamin Constant, no Amazonas.

Esses depoimentos nasceram de uma conversa em conjunto realizada na casa de Ïpüna, quando reunidas em torno de seus artefatos tecidos em tucum e outras fibras que utiliza para compor seus cestos, redes e bolsas, estas duas mulheres ticuna enunciavam seus pontos de vistas. Os eixos norteadores de seus depoimentos foram os saberes construídos em conjunto, marcados geracionalmente por trajetos de vida diferenciados que, ao entrecruzarem-se, desvelaram ensejos encorajadores às continuidades das lutas por espaços políticos já conquistados por elas e suas parentas.

Tutchiauna, graduanda em Antropologia Social, iniciou sua trajetória política aos doze anos, quando passou a acompanhar, ao lado de seus pais, o movimento indígena. Momento este em que, ela e sua mãe Ïpïna relembram, que as mulheres indígenas não ocupavam espaços de voz ativa no âmbito dos debates da política indigenista local tampouco assumiam a posição de interlocutoras em pesquisas e projetos que envolviam seus parentes. Ïpüna destaca que um dos espaços de luta conquistados pelas mulheres ticuna são as associações de mulheres, arena em que conquistaram “autonomia”, expressando, assim, sua “força e trabalho”. Já Tutchiauna conta-nos que nesse “longo e difícil trajeto de aprendizado sobre política indigenista”, percebeu que o seu povo precisava de pessoas que se envolvessem com as políticas públicas e as situações vividas pelas mulheres, um dos motivos que a incentivou a participar e seguir engajada no movimento.

Ela e sua mãe falam sobre os desafios de ser mulher indígena no Alto Solimões, cenário que historicamente produziu tensas e violentas relações com os indígenas, e revelam como, pouco a pouco, conseguiram quebrar tabus e se inserir nas lutas ticuna com suas ações entre mulheres.

Os depoimentos foram recolhidos e transcritos em julho de 2016. O depoimento de Ïpüna foi traduzido por Patrícia C. Rosa em conjunto com Tutchiauna.