De Povos Indígenas no Brasil

Povos indígenas e os direitos humanos

por Érika M. Yamada, advogada do Instituto Socioambiental (ISA)

O que são direitos humanos?

Direitos humanos são os direitos fundamentais inerentes a todos os seres humanos independentemente de sua nacionalidade, sexo, origem étnica ou nacional, cor, religião, ou qualquer outro status.

As definições dos direitos humanos estão sempre em constante construção, por isso são chamados de direitos históricos, uma vez que correspondem a valores que vão se tornando fundamentais ao longo do tempo. Normalmente, seu reconhecimento é fruto de muita luta e reivindicação de setores que se organizam para obter esta conquista.

Dada a relevância e universalidade dos direitos humanos, eles são mencionados com frequência e garantidos por leis na forma de tratados, direito costumeiro internacional, princípios e outras fontes de direito internacional. Assim, o Direito Internacional dos Direitos Humanos estabelece deveres aos Estados para agirem de maneira a respeitar, promover e proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais de indivíduos e coletividades. Todos somos detentores de direitos humanos sem distinção. São chamados de direitos humanos aqueles direitos voltados à garantia da dignidade humana. Esses direitos são universais, inalienáveis, interdependentes e indivisíveis. Isso significa que, por exemplo, todos os seres humanos no mundo têm direito à vida, à segurança social e à educação. E não é possível conferir um desses direitos sem o outro, muito menos fracioná-los. A garantia e melhora de um direito faz avançar os demais, e a privação de um direito afeta e viola todo o conjunto dos direitos humanos.

Povos Indígenas e Direitos Humanos

No caso dos povos indígenas, como em qualquer outro, a interdependência e a indivisibilidade entre os diretos fundamentais se mantêm. Por exemplo, não é possível garantir o desenvolvimento dos povos indígenas sem lhes garantir o direito à autodeterminação ou o direito à manutenção de suas culturas e tradições. Embora o reconhecimento aos direitos indígenas sejam competência dos Estados-Nação, um discreto conjunto de leis e padrões internacionais relativos aos direitos humanos têm se desenvolvido rapidamente nos últimos tempos oferecendo um novo norte ao tratamento dos direitos dos povos indígenas.

Na verdade, o Direito Internacional, desde sua fundação, sempre esteve voltado à normatização das relações entre diferentes povos. Inicialmente com viés colonialista, para legitimar a tomada de terras dos habitantes originais pelos colonizadores, o Direito Internacional evoluiu e hoje atende também às demandas dos povos indígenas. Essa evolução se deu principalmente a partir do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do princípio da não-discriminação. Assim, a proteção aos indivíduos, suas culturas e modos de vida, assim como a proteção às terras indígenas tradicionais e o auto-governo indígena, dentro do modelo político dos Estados soberanos, foram incorporadas como proteções de direitos humanos.

Esta sessão tem por objetivo apresentar os principais avanços internacionais e de direito comparado em matéria de direitos indígenas, com a esperança de que o Estado brasileiro possa continuar em sua posição de vanguarda em relação às suas leis em defesa dos direitos humanos com o desafio da implementação desses direitos. Para tanto, é fundamental que os povos indígenas e suas organizações conheçam seus direitos.

Os Direitos Humanos e o Estado Brasileiro

Como reflexo de sua Constituição democrática e do importante papel que assume na política internacional com o compromisso de direitos humanos, o Estado Brasileiro reconhece os principais instrumentos internacionais de direitos humanos. Entre estes, destacamos: a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção pela Eliminação de Todos os Tipos de Discriminação Racial; e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Cada instrumento ratificado estabelece obrigações de direito internacional ao Estado brasileiro para garantir os direitos declarados e reconhecidos, sem usurpar os dispositivos e obrigações do direito doméstico. Estes deveres e obrigações internacionais pertencem aos Estados e se direcionam a todos os níveis de governo: federal, estadual e municipal; e a todas as esferas de Poderes: executivo, judiciário e legislativo.

Ao ratificar tratados multilaterais de direitos humanos, o Estado reconhece seus princípios humanitários e se compromete a implementar e proteger o rol de direitos fundamentais ali dispostos. Os instrumentos internacionais de direitos humanos servem de ferramentas de interpretação da lei nacional e, detêm status constitucional, de acordo com a Emenda Constitucional 45, quando passam a incorporar o ordenamento jurídico doméstico, como é o caso da Convenção OIT 169, recepcionada pelo Decreto 5.051/2004.

Instrumentos internacionais refletem em si a manifestação da soberania e liberdade nacional de cada país no cenário internacional. Cada país pode escolher ou não ratificar um tratado (seja de direito comercial ou de direitos humanos) e incorporá-lo como lei doméstica e vinculante. Cada país também tem a liberdade para votar favoravelmente ou contra uma Declaração de direitos humanos, arcando com as consequências morais e políticas de seu posicionamento internacional.

O Brasil optou por votar favoravelmente à Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas, mantendo a coerência de seu posicionamento nacional e internacional em matéria de direitos humanos e povos indígenas. No plano nacional, estes instrumentos internacionais têm sido interpretados e aplicados para proteger os direitos dos povos indígenas às suas terras e aos recursos naturais nelas encontrados, tal como dispõe o artigo 231 da Constituição Federal Brasileira.

No entanto, na prática, a verificação dos direitos humanos dos povos indígenas ainda enfrenta inúmeros obstáculos de ordem política, social e econômica. Por isso, quando comunidades indígenas, por meio de suas organizações ou organizações parceiras, acessam o sistema internacional de direitos humanos para fazer valer seus direitos fundamentais (inclusive os aqueles reconhecidos pela Constituição Federal), elas também estão contribuindo para que o país se auto-examine e reconheça seus limites para daí então poder avançar.

Deste modo, ao contrário de constituir uma intromissão estrangeira ao Estado-Nação, as reclamações internacionais de direitos humanos ajudam a fortalecer as políticas de direitos humanos e os mecanismos nacionais de proteção aos seus cidadãos. Em assunto indígena, reclamações internacionais de direitos humanos evidenciam o entendimento de que as comunidades indígenas reclamantes vêem o Brasil como seu Estado, e por essa razão reclamam por igualdade de tratamento e de direitos enquanto cidadãos brasileiros.

Os Direitos Humanos e as Cortes Nacionais

A dificuldade de implementar domesticamente os direitos fundamentais reconhecidos em leis nacionais e tratados internacionais é identificada como um dos principais desafios de direitos humanos para os Estados. Embora essa desconexão da lei com a prática atinja a todas as pessoas e grupos, ela acaba por impactar especialmente os povos indígenas e seus direitos territoriais, em grande parte devido à histórica invisibilidade de suas demandas e das violações cometidas contra seus interesses.

O sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen, primeiro relator da ONU sobre direitos fundamentais e liberdades indígenas, notou que os problemas e desafios enfrentados pelos indígenas derivam de processos históricos e causas estruturais que não podem ser simplesmente atacadas com a adoção de novas leis e a criação de novas instituições públicas, apesar de estas serem ferramentas fundamentais para a defesa dos direitos indígenas. Para o relator é necessário haver uma abordagem multidimensional, vontade política, ativa participação dos povos indígenas com base no respeito à diferença e na sensibilidade intercultural, bem como pleno envolvimento dos governos e de toda a comunidade nacional e internacional.

A preocupação com a permanente e até mesmo crescente desconexão entre lei e prática de proteção de direitos humanos faz com que uma parte da atenção e boa dose de esperança se voltem para as cortes nacionais. A Suprema Corte de Belize reconheceu o direito do povo Maya às suas terras em 2007, a Suprema Corte de Botswana em 2006 decidiu pelo retorno dos indígenas Basarwa às suas terras tradicionais, a Suprema Corte do Kenia reconheceu o direito dos Ilchamus a terem representação no parlamento, a Suprema Corte da África do Sul reconheceu a propriedade costumeira da comunidade Richtersvel às suas terras tradicionais com direitos inclusive sobre os recursos de subsolo, uma corte federal australiana decidiu pelo reconhecimento da ocupação tradicional dos indígenas Noonger sobre uma área tradicional. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal foi positivamente mencionado pelo Relator da ONU devido ao julgamento em agosto de 2006 que condenou ao crime de genocídio os quatro indivíduos responsáveis pela morte de 12 Yanomami em 1993.

Entretanto, a inconsistência entre as legislações indígenas e de outros setores (como por exemplo de exploração de recursos naturais), e a existência de legislação seguida de não-implementação geram ampla insegurança jurídica e crescente conflito social que merecem especial atenção. O relator Stavenhagen identificou que em países como Cambodja, Chile, México e Filipinas os conflitos de direitos tendem a ser resolvidos de forma a contrariar os interesses indígenas formalmente protegidos.

Em visita ao Brasil em agosto de 2009, o professor James Anaya, relator da ONU sobre direitos fundamentais e liberdades indígenas, cumprimentou o país pelos seu comprometimento com o avanço dos direitos dos povos indígenas. Segundo ele, a proteção legal e constitucional aos povos indígenas no Brasil está entre as mais avançadas do mundo. No entanto, o relator observou que ainda há muito o que se melhorar para que as proteções constitucionais e as normas internacionais sejam efetivamente implementadas na prática.

O relator ressaltou a necessidade de assegurar a plena auto-determinação dos povos indígenas em um sistema de Estado que esteja integralmente aberto ao respeito à diversidade. Também destacou que é evidente que os povos indígenas frequentemente não controlam as decisões que afetam suas vidas e suas terras por causa de invasões e exploração de recursos naturais por terceiros, mesmo quando estas tenham sido oficialmente demarcadas e homologadas.

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos

A Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) também realiza importantes trabalhos de reconhecimento dos povos indígenas enquanto sujeitos especiais de direitos na ordem internacional. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos enfatiza os direitos territoriais indígenas e o caráter coletivo de suas formas de posse.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ratificada pelo Brasil em 1992) e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem são os principais instrumentos vigentes no Sistema Interamericana dos Direitos Humanos. Embora nenhum desses instrumentos faça menção específica aos povos indígenas e seus direitos, ambos tratam dos direitos humanos de maneira genérica, o que serve à proteção dos povos indígenas e seu direito à terra. Por exemplo, o direito de propriedade é protegido e interpretado pelo sistema regional de direitos humanos como conectado aos regimes de propriedade que derivam das tradições, costumes e sistemas indígenas de detenção de terras.

Os direitos ao bem-estar e à integridade cultural dos povos indígenas são interpretados como a conexão entre o direito à terra e aos recursos naturais e as relações sociais de comunidades indígenas culturalmente diferenciadas.

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos oferece proteção às Terras Indígenas e seus recursos naturais, estabelecendo obrigações legais aos Estados. A proteção do direito à terra dos índios está fundada nos direitos de propriedade, bem-estar físico e integridade cultural reconhecidos na Declaração e na Convenção Americana, e estendidos aos povos indígenas por meio do princípio da não-discriminação.

Os dispositivos do Sistema Interamericano impulsionaram Estados como Nicarágua, Belize e Paraguai a adequarem suas legislações sobre direitos indígenas e influenciaram as Cortes Nacionais a adotarem um posicionamento progressista em relação às disputas por territórios ocupados por povos culturalmente distintos. Nesse sentido, em outubro de 2007 a Suprema Corte de Belize proferiu sentença histórica com menção à recém aprovada Declaração da ONU para reconhecer o direito do povo Maya do distrito de Toledo sobre suas terras. A despeito da falta de legislação doméstica reconhecendo o direito dos povos indígenas a suas terras tradicionais e recursos naturais, a Suprema Corte de Belize declarou que tais direitos estavam reconhecidos na Constituição do país, interpretada à luz do direito internacional. Com base nestes princípios e decisões, o Brasil tem a chance de dar um passo adiante nos casos que aguardam decisão do Supremo Tribunal Federal.

O caso Awas Tingni vs. Nicarágua foi o primeiro a ser levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com base no artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte reconheceu o caráter coletivo do direito à terra dos índios do povo Awas Tingni, bem como a intrínseca relação entre a terra, a cultura e a espiritualidade daquele povo. A Corte afirmou em sua decisão que os povos indígenas têm o direito coletivo à propriedade das terras que tradicionalmente usam e ocupam, e que esse direito à propriedade se fundamenta no direito costumeiro dos próprios povos indígenas existindo, portanto, independentemente do reconhecimento através de títulos do governo sobre tais terras.

Estes direitos, dispostos na Convenção, têm sido reiteradamente reafirmados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em outros casos que tratam de terras e recursos naturais de povos indígenas. A jurisprudência da Corte abrange a todos os países que tenham concordado a serem regidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, inclusive o Brasil. Também neste sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos têm afirmado constantemente que a integridade das culturas indígenas inclui aspectos de sua organização social e produtiva, como por exemplo o uso comunitário das terras ancestrais. Além disso, têm destacado também a necessidade de os Estados providenciarem “medidas especiais legais de proteção” às Terras Indígenas para a preservação de suas identidades culturais.

O Sistema de Direitos Humanos da ONU

Além do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no âmbito da OEA, o Brasil está sujeito a compromissos e obrigações de direitos humanos na Organização das Nações Unidas, tanto pelos Pactos de Direitos Humanos, Convenção 169 da OIT e Convenção CERD, entre outros. Alguns desses instrumentos prevêem mecanismos de denuncia de violações de direitos, que podem ser apresentadas por individuos e organizações. A seguir destacamos os principais instrumentos internacionais para a defesa de direitos indígenas.

Convenção para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD)

Desde 1969 o Brasil é signatário da Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD). Em 2002 reconheceu a competência do Comitê CERD para considerar denúncias individuais. Este Comitê recomendou aos Estados que tomem todas as medidas necessárias para combater e eliminar a discriminação racial perpetrada contra os povos indígenas e que se enquadram no escopo da Convenção CERD. Particularmente, o Comitê CERD chama a atenção dos Estados para que reconheçam e assegurem os seguintes aspectos:

  • o respeito às culturas, histórias, línguas e modos de vida indígenas como forma de enriquecer a identidade cultural dos Estados e promover sua preservação;
  • que os membros dos povos indígenas sejam livres e iguais em dignidade e direitos e estejam livres de qualquer discriminação, em especial da discriminação fundada na sua origem ou identidade indígena;
  • a garantia aos povos indígenas das condições que permitam o desenvolvimento econômico e social sustentável e compatível com suas características culturais;
  • que os membros dos povos indígenas tenham direitos iguais no tocante à efetiva participação na vida pública e que nenhuma decisão relacionada a seus direitos e interesses seja tomada sem o seu consentimento informado;
  • que as comunidades indígenas exercitem seu direito de praticar e revitalizar suas tradições culturais e costumes, e preservem e usem suas línguas.

O Comitê CERD reitera que, em razão do direito à não-discriminação, os povos indígenas têm os direitos de “possuir, desenvolver, proteger e utilizar as terras, territórios e recursos coletivos e, nos casos em que tenham sido privados das terras e territórios que tradicionalmente são donos ou que tenham ocupado ou utilizado sem o consentimento livre e informado desses povos, que se adotem medidas para que tais terras sejam restituídas.”8 No contexto dessa afirmação o Comitê recomendou ao Brasil que concluísse a retirada dos ocupantes não índios da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Pacto Internacional de Direitos Civis e Político

O Artigo 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ratificado pelo Brasil em 1992) define que:

Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não devem ser privadas do direito de ter, em comum com os outros membros do seu grupo, a sua própria vida cultural, de professar e de praticar a sua própria religião ou de empregar a sua própria língua".

O Comitê de Direitos Humanos, órgão estabelecido no Artigo 1º do Protocolo Adicional I ao Pacto DCP, interpreta o direito à vida cultural no seu mais amplo sentido, como um direito da minoria ou dos povos indígenas existirem como tal. O Comitê observa também que a cultura se manifesta de muitas maneiras, inclusive num modo particular de vida relacionada ao uso da terra e dos recursos naturais. Assim, casos que versam sobre povos indígenas e seu direito à terra têm sido levados ao Comitê, sob a proteção do artigo 27 do Pacto DCP, visando a proteção de direitos econômicos, sociais e culturais indígenas.

Apesar dos direitos elencados no Pacto DCP serem de titularidade individual, o artigo 27 do mesmo tratado menciona direitos de grupos e coletividades. Direitos culturais de povos indígenas têm sido discutidos pelo Comitê como direitos inerentes ao direito coletivo de existir como povos culturalmente distintos. Assim, a interpretação e aplicação do artigo 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU faz daquele instrumento o mais expressivo mecanismo legal de proteção ao direito indígena à terra como proteção de seus direitos coletivos econômicos, sociais e culturais frente ao Sistema de Direitos Humano da ONU.

No Comentário Geral do Artigo 27, o Comitê afirma a necessidade de medidas afirmativas dos Estados visando a proteção da identidade de minorias e povos indígenas no gozo e desenvolvimento de sua cultura, que como reforça, é um direito de caráter coletivo. Inicialmente entendidas como medidas legislativas e administrativas de reconhecimento e proteção das áreas, hoje identifica-se a necessidade da afirmação da justiciabilidade de tais direitos frente a cortes nacionais, para dar assim a segurança jurídica necessária à implementação dos direitos na prática.