Tapuio
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- GO, CE, RN, PI 369 (Siasi/Sesai, 2020)
- Família linguística
O passado de cunho mitológico dos tapuios não remonta aos tempos imemoriais de seus ancestrais que dominavam um território vastíssimo, correspondente a uma boa parcela do atual estado de Goiás. O passado dos tapuios coincide com o da fundação da aldeia do Carretão, no século XVIII, quando partes de diferentes povos indígenas da região são ali assentadas e perdem sua autonomia tribal. A rainha Dona Maria I, o imperador Dom Pedro II, o presidente Getúlio Vargas, o interventor Pedro Ludovico, o inspetor Mandacaru são personagens benfeitores que revalidaram a posse do Carretão em diversas ocasiões.
Apresentação
No estado de Goiás, na região compreendida pelos municípios de Rubiataba e Nova América, precisamente entre o Ribeirão Carretão e a Serra Dourada, vive um grupo de pessoas conhecidas pelo nome de tapuio. Sua origem coincide com os primeiros séculos de formação de Goiás, a descoberta do ouro, a chegada de colonos e seus escravos africanos, o surgimento de arraiais garimpeiros e, naturalmente, a resistência dos índios a todo esse movimento. Os tapuios são o resultado da mescla desses povos e trajetórias de vida. Descendem de diversas etnias indígenas que fizeram hostilidades à colonização e foram aldeadas naquela região, como igualmente procedem dos demais outros agrupamentos humanos que para lá afluíram, isto é, dos negros fugidos da escravidão nas minas de ouro e, mais tarde, já no início do século XX, das populações migrantes oriundas do próprio Goiás e estados vizinhos.
Tapuio não é expressão designativa de uma etnia. É muito mais expressão de identificação por outros moradores da região do que uma auto-identificação, pois tanto os registros históricos quanto a tradição oral asseveram uma procedência étnica de índios Xavante, Xerente, Javaé e Karajá que foram para lá conduzidos a partir do último quartel do século XVIII. Pode-se, contudo, concordar que este convívio prolongado em torno e em termos desta precisa forma de relacionamento possa ter incutido e cristalizado nos que são chamados tapuios a aceitação desta identidade genérica.
Gente, lugar, história
Quem trafega pela rodovia BR-153 pode apreciar as elevações formadas pela Serra Dourada, as fazendas agropecuárias e as pequenas cidades que se multiplicaram a partir de 1940, com a criação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG) e a construção das capitais Goiânia (1942) e Brasília (1960). Não fossem uma e outra edificação de aspecto antigo à beira da estrada, muito pouco se poderia verificar como marcas históricas deixadas pela intensa atividade de mineração e povoamento ali desenvolvida principalmente no século XVIII. Justamente nesta região — antes entremeada apenas por arraiais garimpeiros como Pilar, Crixás, Tesouras, Ouro Fino, Antas, Santa Rita e hoje inteiramente alterada pela presença das cidades de Rubiataba, Valdelândia, Cruzelândia, Ceres e Rialma — vive uma comunidade de pessoas vinculadas a uma mesma origem indígena e a um passado que remonta aos tempos da colonização.
Os que chegam ou passam desavisados, sem conhecimento prévio da história da região, dificilmente farão diferença entre essas pessoas e os demais moradores que vivem nas mesmas condições de vida sertaneja como lavradores, peões de fazenda, sendo católicos ou evangélicos e quase sempre com pouca ou nenhuma instrução. Todavia, a permanência no lugar vai permitindo desembaciar essa visão inicial e verificar quão significativa é a expressão tapuio como efeito delimitador e identificador de um conjunto de famílias entrelaçadas por constantes casamentos de parentes relacionados entre si como descendentes dos últimos índios que viveram na histórica aldeia do Carretão. Tratar dos tapuios do Carretão é voltar-se para a história dessa aldeia e da formação do estado de Goiás.
A aldeia do Carretão foi criada pela administração colonial de Goiás para receber índios Xavante. A iniciativa buscava refrear suas constantes incursões aos arraiais garimpeiros que progressivamente vinham invadindo seu território. O acordo de paz deu-se no contexto de uma política colonial menos agressiva, que propunha substituir a guerra e escravização de índios hostis à colonização pela convivência com brancos em aldeamentos construídos à semelhança de aldeias européias. Estavam em vigor o Alvará de 6 de junho de 1755, que garantia liberdade a todos os índios do Brasil, e o Diretório dos Índios, que regulamentava esta nova condição jurídica, organizando as povoações indígenas segundo padrões da civilização cristã européia.
A aldeia foi construída nas encostas da Serra Dourada junto ao Ribeirão Carretão ou São Patrício, a pouco mais de vinte léguas de Goiás, a antiga capital do estado. Foi fundada durante o reinado de Dona Maria I, entre 1784 e 1788, chamando-se inicialmente Pedro III do Carretão, em homenagem ao príncipe consorte.
Ali teriam sido aldeadas apenas duas frações de uma população presumivelmente numerosa. Inicialmente fixaram-se no local cerca de 38 pessoas de um grupo Xavante contatado no sertão de Amaro Leite. A esta população inicial somaram-se os dois mil e duzentos outros índios da mesma etnia trazidos de regiões vizinhas ao arraial de Pontal. Historiadores afirmam que esta população logo alcança o número surpreendente (talvez irreal) de cinco mil indivíduos. Nas primeiras décadas do século XIX, aquela população já tinha sido drasticamente reduzida a poucas centenas de sobreviventes devido aos surtos epidêmicos e às grandes fugas motivadas pela inadequação ao modo de vida e ao regime de trabalho no Carretão. Para contrabalançar essas perdas populacionais, seriam trazidos índios genericamente denominados Kayapó provenientes de aldeias em pleno declínio e já em processo de extinção, que foram as de São José de Mossâmedes e Maria I, também em Goiás. Relatórios provinciais também registram a presença de índios Javaé, Xerente e Karajá, o que reforça a convicção de que o convívio de etnias, muitas vezes incompatíveis entre si, foi um dos fatores motivadores das constantes retiradas e decréscimos populacionais.
Relatos deixados por viajantes que estiveram no Carretão fazem referência ao aspecto físico da aldeia. As moradas destinadas aos índios foram construídas enfileiradas uma ao lado da outra, formando uma rua. A casa maior destinava-se aos diretores de aldeia e autoridades em passagem pelo lugar. A capela, localizada dentro da casa do capelão da aldeia, o paiol de mantimentos, o moinho de milho, o engenho de açúcar, um sistema de canalização e uma estrada passando em frente à aldeia em direção a Pilar compunham as demais construções, dando-lhe aspecto de povoação emergente.
A aldeia foi fundada no tempo em que o Diretório dos Índios estava em vigor (1757-1798). Conforme a orientação daquele regimento, o governo da aldeia devia ser composto por um diretor, um pároco ou capelão, um capitão-mor indígena e uma guarnição de soldados. Os índios deviam repartir suas horas e dias de trabalho entre tarefas relacionadas com os interesses gerais da aldeia — e, conseqüentemente, do governo de Goiás — e as que se destinavam ao consumo próprio e de suas famílias. Eventualmente eram requisitados por terceiros para cumprirem tarefas diversas, como a de remeiros, carregadores e guias de viagem.
Viajantes que estiveram com alguma demora na aldeia do Carretão puderam observar a continuidade dessa organização, mesmo quando já tinha sido abolido o Diretório. Os poderes atribuídos ao diretor de aldeia por aquele regimento, o isolamento do lugar e distância dos centros urbanos faziam a população indígena aldeada correr o risco de ser transformada em mão-de-obra escrava, a despeito de uma legislação que garantia liberdade a todos os índios indistintamente. Isso também explica porque as evasões foram freqüentes na história da aldeia do Carretão.
Mas nem sempre a aldeia contou com o funcionamento pleno dessa estrutura de poder e organização do trabalho. Cronistas, naturalistas e autoridades do governo de Goiás que estiveram no Carretão não deixaram de observar, na ausência eventual de uma ou outra ou mesmo de todas as representações de autoridade, a explicação para a estagnação econômica e para um estado quase permanente de miséria da população indígena. Mesmo assim, não deixariam de registrar a boa qualidade do solo, a produção de alho, as grandes plantações de café e a condição do lugar se firmando cada vez mais como pouso de viajantes para suprirem-se de víveres e de remeiros e guias índios.
Teria sido esta condição o motivo pelo qual a aldeia do Carretão não foi extinta pelas autoridades governamentais de Goiás, como seriam as do Duro, São José de Mossâmedes e Maria I. Argumentando o declínio das atividades produtivas, a falta de recursos financeiros, a ociosidade da população indígena e mesmo a evasão ou ausência absoluta de índios no lugar, foram extintos aqueles aldeamentos criados nos séculos XVII e XVIII. Desta vez, já no século XIX, as atenções do governo de Goiás se dirigiam para a implantação da navegação dos rios Araguaia e Tocantins e para o povoamento e criação de atividades agropecuárias nessa nova região.
Os antigos aldeamentos, então localizados em áreas já colonizadas, seriam motivo de cobiça e disputa fundiária por pessoas interessadas em se apossar de terrenos doados em tempos passados aos primeiros índios ali aldeados. Para tanto, a lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850, editada com o intuito de organizar a estrutura agrária do país, prevendo em alguns artigos a possibilidade de se adquirir terrenos de extintas aldeias, favoreceu a pura e simples invasão, seja pelo recurso de declaração falsa de que não havia mais índios no lugar, seja pela perseguição e violenta expulsão dos que ainda insistiam em lá permanecer.
O Carretão escapou a essas especulações fundiárias que levaram à extinção desses aldeamentos ainda no correr do século XIX seguramente devido a sua posição geográfica estratégica para as expedições exploratórias que partiam da cidade de Goiás em direção ao norte, precisamente a região dos rios Araguaia e Tocantins. Haverá também quem argumente nos relatórios provinciais o “parentesco” dos índios aldeados no Carretão com os que então voltavam a atemorizar, com seus ataques, as povoações e fazendas, o que é condizente com o testemunho de um naturalista, ao presenciar na mesma aldeia “índios selvagens” em visita aos seus. O Carretão manteve-se nesta condição de ponto de referência para os viajantes e, possivelmente, sem contar com recursos materiais e com a presença permanente de diretores e religiosos até o fim do século XIX. Um dos últimos relatórios provinciais, de 1879, ainda faz referência à presença de duas índias remanescentes da numerosa população Xavante aldeada no Carretão. Daí para frente, um missionário em visita ao lugar em 1888 também confirma a existência de duas índias, mas registra a presença de um índio entre elas e de caboclos descendentes de índias casadas com negros, vivendo em moradas esparsas por toda extensão do antigo terreno do aldeamento.
As muitas faces de uma identidade étnica
Eram estas as informações oficiais sobre a aldeia do Carretão quando uma mulher, identificando-se como índia Javaé, procura em 1979 a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para reclamar das arbitrariedades que vinham sendo cometidas com sua gente que vivia nas proximidades da região onde havia decorrido toda história da aldeia. Parecia aos funcionários antropólogos dessa instituição indigenista estar diante de mais um caso de revivalismo étnico, como muitos que estavam a ocorrer no Nordeste e Leste do Brasil (veja "Etnogênes indígenas" e "A situação no nordeste"): por um lado, um litígio fundiário, abuso de chefes locais acobertados por políticos, mas, por outro, ali estava a sobrevivência étnica, quase heróica, de um grupo fragilmente unido à custa das próprias discriminações a que estão sujeitos como descendentes indígenas, sem contar com a proteção oficial dada pelo governo brasileiro aos índios reconhecidos como tais, vivendo nas mesmas condições de qualquer lavrador pobre, com a distinção de serem identificados como herdeiros de uma terra doada aos seus ancestrais, que era indistintamente cobiçada por todos, humildes e poderosos.
As primeiras viagens da FUNAI (1979 e 1980) aos arredores da sede da antiga aldeia permitiram confirmar a semelhança da situação com a de outros grupos indígenas que viviam em antigas áreas de colonização e que detinham em sua bagagem histórica diversas experiências civilizadoras realizadas com seus ancestrais. A aldeia do Carretão, no entanto, parecia configurar um caso-limite, uma vez que a sua população remanescente já não detinha nada da cultura ancestral; seus traços físicos não os distinguiam de outros sertanejos e, em termos organizacionais, tudo parecia indicar uma iminente fragmentação da comunidade em pequenas famílias e indivíduos isolados, bem como a sua dispersão geográfica por fazendas e centros urbanos. A própria história confirmava essa sentença inexorável, começando pela fundação da aldeia no tempo de uma política que propunha exatamente a assimilação total dos índios pelo uso exclusivo da língua portuguesa, a adoção de hábitos e crenças da civilização cristã européia e seu adestramento a serviço da colonização.
A rebeldia e fugas freqüentes demonstram quão penoso deve ter sido esse processo. Os índios que permaneceram reproduziram-se nas condições impostas. Seus descendentes nasceram e se criaram sem conhecer a situação anterior. Como esperar que, passados duzentos anos de pressões assimiladoras, continuassem eles a ser como seus ancestrais?
A resposta não parece simples e breve. Uma representante deles esteve na FUNAI chamando a si e aos demais através de seus referenciais étnicos mais antigos: não foi como tapuia que ela se identificou (embora tenha chamado o lugar onde vivem de Terra dos Tapuios) e sim Javaé, numa referência direta a uma das etnias que estiveram presentes na aldeia do Carretão. Tapuio, tapuia, são nomes atribuídos a eles pelos moradores da região, vizinhos, fazendeiros, arrendatários, pessoas com quem conviviam e muitas vezes se confrontavam na luta diária pela permanência nas terras doadas aos seus ancestrais. Se indagadas essas pessoas sobre o que queriam dizer quando os chamavam de tapuios — visto alguns moradores mais antigos reconhecerem neles certa descendência Xerente ou Xavante — respondiam que não eram exatamente índios e sim aquela gente específica. Indagados novamente sobre os motivos de somente aqueles serem chamados tapuios, respondiam ora classificando-os mediante noções idealizadas do que sejam e fazem os índios, isto é, que gostam de pescar, caçar, cultivam roças irregulares, não têm ambição, não guardam mantimentos etc., ora definindo-os no contexto das contendas diárias como pessoas traiçoeiras, que armam tocaias.
Tapuio era expressão fiel de uma sucessão de discriminações e desajustamentos sociais que nem os situavam na condição de índios, nem tampouco de não-índios, uma ambivalência que suscitava a irônica descrença por parte de quem os ameaçava quanto ao real merecimento de uma assistência e proteção oficial. Na ausência de sinais que evidenciassem uma bagagem cultural indígena, os tapuios credenciavam-se diante da FUNAI através de sua história, uma trajetória de luta pela terra, narrando cada um à sua maneira a história de suas vidas, a perda da terra, as arbitrariedades cometidas contra eles, a coragem solitária de alguns parentes servindo às gerações seguintes, a exemplo daquela mulher que esteve em Brasília a fazer denúncias e a pedir proteção
A história oral de luta pela terra
No início dos anos 80 havia ainda tapuios idosos que representavam o elo de ligação entre as gerações contemporâneas e os parentes que viveram na histórica aldeia do Carretão. O mais velho deles, Manuel Simão Borges de Aguiar, afirmando possuir 97 anos em 1980, começa a tecer as mais remotas lembranças a partir de umas “tapuias velhas”, possivelmente as duas índias referidas nos últimos relatórios provinciais, casadas com negros vindos das minas de Pilar, que deram origem às famílias atuais. Ele não possuía referenciais negativos quanto à atuação de diretores e religiosos.
A representação tutelar que detinha era uma construção idealmente positiva, associada a agrados, brindes, proteção e vida regular. Contou que os antigos trabalhavam coletivamente sob as vistas de um fiscal em “roças reúnas”, certamente as grandes plantações registradas pelos cronistas viajantes. Deviam remeter a produção para a cidade de Goiás, onde havia um diretor geral, uma informação que se coaduna com a lei n.º426, de 24 de julho de 1845, que organizou o trabalho junto aos índios prevendo uma estrutura hierárquica de representações tutelares nas aldeias e nas capitais de cada província. Referiu-se à existência da aldeia do Carretão onde hoje é uma fazenda. Como a descreveu e puderam os funcionários da FUNAI verificar, a aldeia ficava próxima ao ribeirão Carretão, havendo ainda ruínas de um curral de pedras, um rego d’água, peças do moinho ou engenho e indicações do local que fora um cemitério. Simão conta que chegou a assistir a última grande retirada de índios da aldeia do Carretão, uma “parenteza” que se dirigiu sem voltas a Leopoldina (atual Aruanã, GO) à procura de novas paragens.
Daí para frente focaliza a família imediata, irmãos, irmãs e primas, todos descendentes das índias Raimunda Borges, de origem Xavante e Javaé, e Maria do Rosário Ramos Machado, descendente Kayapó e de seus pais negros, Manuel Felipe de Aguiar e Ivo Lopes, escravos fugidos das minas de Pilar ou talvez recém-libertos pela lei Áurea de 1888. Viviam todos no Retiro, próximo ao lugar onde fora a aldeia. O casamento de Simão com a criada de um forasteiro havia permitido a entrada deste na localidade onde fora a sede da aldeia, como se ele houvesse adquirido um direito de posse. Este indivíduo vende o direito de posse a um segundo, que o requer para titulação, em 1923, conforme os procedimentos que estavam em vigor desde a Lei Agrária n.º 601, de 1850, e que haviam conduzido à extinção muitos aldeamentos. Felizmente, em 1930, uma delegação de índios do Carretão recorre à Inspetoria criada em Goiás pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1911, para demonstrar que a aldeia não estava despovoada e extinta.
Alguns anos depois, esse mesmo direito de posse é vendido a um terceiro, que volta a requerer título definitivo. O momento é carregado de tensão. Este requerente, através de seu advogado, procura comprovar a inexistência de índios, alegando evasão dos mais puros e miscigenação dos que permaneceram. Um advogado prontifica-se a fazer a defesa dos índios, como também alguns servidores da Inspetoria de Goiás chegam a dedicar-se à questão, mas foram todos derrotados pelo requerente, que detinha parentesco e amizade com Antônio Ramos Caiado, chefe político local, proprietário de extensas pastagens e sucessivas vezes senador e governador de Goiás. A perda do terreno do Carretão foi seguida por perseguições violentas, a expulsão de famílias que ousaram resistir, o confisco de seus bens, a derrubada da capela, prisões arbitrárias, desarmamento e a própria morte do requerente por um tapuio em nome da honra ferida.
Em 1942, Simão e familiares, em viagem com intuito inicial de chegar ao Rio de Janeiro, são interceptados em Anápolis e de lá conduzidos ao interventor de Goiás, Pedro Ludovico Teixeira, que resolve a contenda assegurando-lhes duas glebas de terras. O texto da Lei estadual n.º 188, de 19 de outubro de 1948, que concede estas terras, refere-se a “descendentes de índios Xavante”, citando o nome de cada um e não deixando dúvidas quanto à legitimidade da posse por Simão, irmão, irmãs e prima que estiveram nessa viagem. Segundo a tradição oral, eram apenas frações do que foi um terreno de quatro léguas em quadra.
Com os episódios violentos da capela, perderam para sempre a realização da festa do Rosário, que congregava devotos e romeiros de regiões vizinhas numa manifestação de plena acomodação desses descendentes indígenas ao modo de vida e às tradições sertanejas, especialmente as que ex-escravos cristianizados organizavam em torno de irmandades religiosas. Entretanto, os contatos com outros índios não cessaram. Simão conta a vez em que receberam uma comitiva de índios Xerente que ia para o Rio de Janeiro com a intenção de ver “papai grande”, o então presidente Getúlio Vargas. Um desses Xerente daria informação sobre o paradeiro dos Xavantes que saíram do Carretão, contando a Simão que havia estado na expedição de Francisco Meireles, que foi o sertanista responsável pelo reinício dos contatos com este grupo após século e meio de aguerrida recusa ao convívio com os brancos. Outras visitas foram relatadas e demonstram que a posição do Carretão, a meio caminho das regiões do Araguaia e Tocantins, havia se mantido como ponto de referência para viajantes índios, ciganos e comerciantes ambulantes que ainda faziam esse percurso a pé ou em lombo de burro.
Foi mantida a posse das duas glebas, especialmente a maior, onde Simão instalou-se, atraindo posteriormente seus sobrinhos e sobrinhas após a morte das irmãs, que viviam no Retiro em área abrangida ou limítrofe com a segunda gleba assegurada pelo governo de Goiás e totalmente invadida desde os anos 40. Se forem situadas num mapa regional todas as moradas dos tapuios desde que deixaram a aldeia do Carretão, instalando-se no Retiro e depois na gleba maior onde correm os córregos Macaco, Carretãozinho e Passarinho, poder-se-á verificar que houve um recuo em favor dos fazendeiros e uma perda progressiva e sem voltas do antigo terreno.
Paralelamente outras perdas sucedem. Enquanto Simão esteve forte, chefiou seus parentes na produção de roças. Repartiu entre ele, seus filhos e sobrinhos, lotes de terras onde faziam suas moradas e roças menores à medida que estes foram constituindo famílias, então acrescidas da presença de emigrantes atraídos à região pelos movimentos populacionais desencadeados pela CANG e pelo surgimento de núcleos urbanos diversos. Simão envelhece e com ele as expectativas de conservarem as mesmas formas cooperativas de trabalho e as tradições religiosas e recreativas do início do século XX, que tanto haviam propiciado autoconfiança e união dos parentes. O casamento com emigrantes foi um fator que levou à transferência gradativa da posse dos terrenos, que passaram a ser arrendados, alugados ou vendidos para se transformarem em pastagens. A mulher que esteve pela primeira vez na FUNAI contara exatamente em poucas palavras os duzentos anos da trajetória de transformação paulatina de índios Xavante, Javaé, Kayapó, Karajá, Xerente, que passam a ser tapuios e progressivamente também vão perdendo sua autonomia tribal, sua herança cultural, suas terras.
Mas o passado de cunho mitológico dos tapuios não remonta aos tempos imemoriais de seus ancestrais que dominavam um território vastíssimo, correspondente a uma boa parcela do atual estado de Goiás. O passado dos tapuios coincide com o da fundação da aldeia do Carretão, quando perdem sua autonomia tribal e são incorporados às atividades colonizadoras que contribuíram para a formação do estado de Goiás. A rainha Dona Maria I, o imperador Dom Pedro II, o presidente Getúlio Vargas, o interventor Pedro Ludovico, o inspetor Mandacaru são personagens benfeitores que revalidaram a posse do Carretão em diversas ocasiões. A ação de ir à procura de um órgão governamental que trata especificamente dos índios estava coerente com essa tradição oral que os conduziu para o único caminho que conheciam e poderiam tomar antes que viesse acontecer o seu desaparecimento total como etnia, em razão da fusão de distintos grupos indígenas que viveram intensa experiência transformadora em sua essência original.
Nota sobre as fontes
Estudar o Carretão é uma forma de estudar a própria história da formação de Goiás. Sobre os primeiros anos de criação da capitania, vale consultar a coletânea de “Cartas dos Governadores de Goiás” (do período de 1756 a 1806). Duas leituras clássicas são ponto de partida para qualquer pesquisa sobre Goiás: “Descobrimento da Capitania de Goiás”, de Silva e Souza, e “Os Anais da Província de Goiás”, de Alencastre. Ainda correndo os olhos sobre aspectos históricos, geográficos, políticos e sociológicos de Goiás, mas com seguras possibilidades de encontrar notas específicas sobre a aldeia e os índios do Carretão, temos os viajantes, naturalistas, funcionários civis e militares, e missionários religiosos:, Viagem ao Interior do Brasil, de Emanuel Pohl, que esteve no Carretão em 1819; Corografia Histórica da Província de Goiás, de Cunha Matos; Expedição às Regiões Centrais da América do Sul, de Francis de Castelneau; O Selvagem, de Couto de Magalhães; e O Apóstolo do Araguaia, de Gallais, sobre a vida de Frei Gil Vilanova, que visitou o Carretão em 1888.
A leitura de todos os Relatórios da Província de Goiás, de 1835 a 1888, principalmente os itens “incursões”, “aldeamentos” e “catequese”, fornece informações pontuais muito curiosas a respeito da população índia aldeada, condições de vida, problemas de ocasião, representantes tutelares, recursos financeiros, necessidades materiais, projetos relativos ao destino da aldeia do Carretão, entre outros temas recorrentes. Há microfilmes de todos os relatórios provinciais na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Ainda na Biblioteca Nacional encontra-se o documento intitulado Relação da Conquista do Gentio Xavante, 1790, que traz uma narrativa detalhada das primeiros contatos e acordos firmados com os índios Xavante aldeados no Carretão no século XVIII. No Arquivo Histórico de Goiás, em Goiânia, há um valioso documento relativo à fundação da aldeia do Carretão. Trata-se da Carta de José Pinto da Fonseca ao Governador Tristão da Cunha Menezes anunciando a chegada de 2.200 índios Xavante no dia 13 de janeiro de 1788. No Museu do Índio, no Rio de Janeiro, e no Arquivo Histórico Clara Galvão do Departamento de Documentação da FUNAI, em Brasília, encontram-se microfilmes relativos à Inspetoria de Goiás, e especificamente telegramas e dois preciosos relatórios sobre a aldeia do Carretão referentes aos episódios violentos que culminaram na perda quase total do terreno do aldeamento no início do século XX (microfilmes números 273, 277, 293, 323, 324, 341).
Referências fundamentais para quem estuda a história dos índios Xavante e da política indigenista em Goiás são: Os Xavantes e a Civilização, de Lincoln Souza; Os Aldeamentos Indígenas na Capitania de Goiás, de Marivone Chaim; a tese de doutorado A Experiência Xavante com o Mundo dos Brancos, de Oswaldo Ravagnani; e Os Índios e a Civilização, de Darcy Ribeiro, especialmente a parte que trata do litígio fundiário no Carretão (pp. 65-66). A dissertação de mestrado de Neide Esterci, O Mito da Democracia no País das Bandeiras, traz excelente enfoque sobre a criação da CANG. Vale consultar os estudos contemporâneos a essa situação histórica realizados pelo geógrafo Leo Waibel, Capítulos de Geografia Tropical e do Brasil. Exame detido da lei agrária 601 de 1850 encontra-se na dissertação de mestrado de Maria Amélia Luz Estrutura Fundiária de Goiás.Estudo específico sobre a identidade étnica, história oral e política indigenista tendo como referência o caso do Carretão encontra-se na dissertação de mestrado de Rita Heloísa Almeida Lazarin, O Aldeamento do Carretão: Duas Histórias. Nos arquivos da Diretoria Fundiária da FUNAI existem três caixas contendo relatórios, fotos, mapas produzidos durante os estudos de identificação e regularização fundiária das terras do Carretão (processos números FUNAI/BSB/2015/80; “P/F/GYN/0133/87” GYN/00130/88; 0042/92; Informação n. 28/DPI/28.06.95 e n. 38/DPI/16.09.97). Atualmente há pesquisadores do Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia da Universidade Católica de Goiás e do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília realizando estudos no Carretão. Da Universidade de Brasília, Christhian Teófilo da Silva produziu uma série de trabalhos universitários muito rica em novos questionamentos, entre eles, sua dissertação de graduação Parados, Bobos, Murchos e Tristes ou 'Caçadores de Onça?'.
Fontes de informação
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