De Povos Indígenas no Brasil
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"Eu sempre sonho com a aldeia"

por Fátima Iauanique e Denise Ianairu. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

Fátima Iauanique e Denise Ianairu. Foto: Valéria Macedo, 2016.
Fátima Iauanique e Denise Ianairu. Foto: Valéria Macedo, 2016.


Fátima Iauanique — Eu mesmo não sabia, mas meu pai é descendente de Nahukua e Kuikuro, e minha bisavó era Kayabi. Eu sou também um pouco Xerente, um pouco Xavante, por parte de meu avô, pai da minha mãe. Ele chegou a conhecer o Marechal Rondon, trabalhou com ele na época em que o xavante era mais bravo. Então não sou só Bakairi...

Quando eu tinha 14 anos, um senhor que tinha casa na aldeia e na cidade perguntou se eu podia ir pra Cuiabá pra cuidar da neta dele, porque ele não confiava nos brancos. Eu fui pra cidade e morei com eles um ano. Cuidava da menina até meio-dia, aí a mãe chegava e eu ia para a escola. Sofri no começo porque não conhecia quase ninguém, aí fui pegando umas amizades. Só que a senhora não me deixava sair. Aí fui para a aldeia nas férias e disse que não queria mais ficar lá. Mas também não queria ficar mais na aldeia...

Eu tinha uma tia que trabalhava de doméstica em Cuiabá e fui com ela procurar alguém para trabalhar. Fiquei com ela uma semana e depois a patroa dela disse que tinha o sobrinho e a esposa que precisavam de alguém pra ficar com as crianças. A mais velha tinha 14 anos, a do meio 8 e a caçula 6. A casa que eles moravam era bem pequeninha. Eu dormia com as filhas deles, no beliche com a caçula.

Então fiquei grávida. O rapaz era vizinho. Estudei com as irmãs dele e a gente ia junto pra aula. Ele gostou de mim e eu gostei dele. Mas... e a coragem pra contar pra minha patroa? Disse que se ela quisesse eu ia embora. Mas pediram pra eu ficar. Me ajudaram na gravidez e depois que minha filha nasceu também, como me apoiam até hoje. Minha filha quase não vê o pai. Ela chama meu patrão de pai, e diz que tem duas mães e dois pais.

Eu terminei meu estudo e fiz um curso técnico de agente de saúde. Percebi que muitas coisas que a gente vê não é do jeito que a gente pensa. Fiz aula de laboratório e vi o corpo tudo divido, cortado. Fomos aprendendo como são as coisas, coração, rim, tudo aberto. Quando terminei, fiz concurso e fiquei em terceiro lugar, mas chamaram só uma pessoa.

Faz 22 anos que estou fora da aldeia, mas não esqueço minha língua. Minha irmã e minha mãe me ligam e a gente fala só na língua. Já minha filha não fala, mas entende uma coisinhas. E ela tem orgulho de ser índia. Na escola todas as amigas sabem que ela é índia e me conhecem.

Eu nunca cheguei de conviver com uma pessoa como marido, então eu acho que não consigo... Mas eu tenho namorado, só que ele nem mora na cidade. Faz seis meses que a gente não se vê, desde que eu vim pra cá. Mas ele falou que sente que são anos! Pedi pra ele levar matrinxã pra eu comer quando voltar pra Cuiabá. Ele falou assim: “Achei que você ia me querer e você quer é peixe...!!!”.

Denise Ianairu — Já gostei de um rapaz que era mais novo que eu, mas era meu tio. O pai dele é irmão da nossa vó. A mãe dele não aceitou porque era parente próximo. Agora eu tenho um namorado que conheci aqui na CASAI. Ele é xavante e só sei o nome em português. Eu gostei dele. Mas nem sei a doença dele, não pergunto essas coisas. Acho que ele volta em janeiro, mas eu mesma acho que só vou voltar em março.

Fátima Iauanique — O Xavante foi atrás dela. Estava só eu e Denise no quarto, deitadas, conversando. Aí ele e o irmão entraram lá. Primeiro o pessoal espantou ele. Mas depois fomos acostumando. Ficava ele e Denise lá embaixo conversando, mas ninguém deixava eles em paz, todo mundo perguntando. Ele é tímido, ficava com vergonha. Ele foi embora antes que a gente, mas liga pra Denise direto. Ele liga no meu celular pra falar com ela. Eu já falei: “Ó, se você quiser ela, você vai viver na minha aldeia, porque minha irmã não vai na sua aldeia não!”. Até o pai dele ligou pra ela!

Denise Ianairu — Esses dias sonhei que estava chegando na aldeia, falando com meu pai e minha mãe. Eu sempre sonho com a aldeia aqui em São Paulo!

Caminhos que se encontram, nas aldeias e nas cidades

por Valéria Macedo, Antropóloga, professora na Unifesp

Registrei esse depoimento de Fátima e Denise em 8 de setembro de 2016, no Parque do Ipiranga, em São Paulo. Nos cerca de seis meses em que estiveram na cidade, elas foram muitas vezes passear ali, por ser próximo à Casa de Saúde Indígena (Casai), onde ficaram hospedadas durante o tratamento de saúde de Denise. Nos conhecemos na Casai, instituição que frequento há quase dois anos e onde participo de exibições semanais de cinema indígena.

As duas são irmãs por parte de mãe e nasceram na Terra Indígena Bakairi, no estado do Mato Grosso. Fátima foi viver em Cuiabá há duas décadas, onde trabalha na casa de uma família e onde criou sua filha. Ela nunca deixou, porém, de estar ligada à sua família e todos os anos passa algumas semanas na aldeia no período de férias. Quando a irmã Denise precisou vir à São Paulo para tratamento de saúde, Fátima veio como sua acompanhante e ali puderam voltar a viver muito próximas cotidianamente.

Na Casai também fizeram outras amizades. Cada uma de seu jeito, Fátima mais extrovertida e Denise mais tímida, ambas são fonte de alegria e companheirismo para muitos na Casai que enfrentam os desafios de estar numa cidade como São Paulo, onde pode ser muito difícil viver quando não se domina a língua portuguesa, ou não se sabe ler e escrever, ou ainda se as dificuldades do adoecimento são agravadas pela vulnerabilidade dos corpos pela distância dos parentes, das comidas e das atividades que garantem a força de existir. O quarto em que estão essas irmãs bakairi estava sempre cheio de pessoas de diferentes povos, idades e gêneros, para quem elas foram importantes companheiras nessa difícil viagem.

Em nossa conversa aqui editada, elas escolheram contar sobre a preparação do corpo de mulher quando o sangue desce na primeira menstruação. A moça é protegida e preparada por suas parentes mais velhas, para então poder ser festejada por todos. Também contam do corpo com o sangue enfraquecido por outros e dos caminhos incertos para seu fortalecimento, tanto na aldeia quanto nas cidades. Nas cidades ainda falam de encontros e desencontros que viveram, das saudades dos parentes e de comer peixe matrinxã!