De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Tiago Moreira dos Santos, 2010.

Munduruku

Autodenominação
Wuyjuyu
Onde estão Quantos são
AM, PA 17997 (Siasi/Sesai, 2020)
Família linguística
Munduruku

Povo de tradição guerreira, os Munduruku dominavam culturalmente a região do Vale do Tapajós, que nos primeiros tempos de contato e durante o século XIX era conhecida como Mundurukânia. Hoje, suas guerras contemporâneas estão voltadas para garantir a integridade de seu território, ameaçado pelas pressões das atividades ilegais dos garimpos de ouro, pelos projetos hidrelétricos e a construção de uma grande hidrovia no Tapajós.

Leia a Carta dos Munduruku ao Governo onde explicitam seu histórico, conhecimentos e lugares ancestrais que consideram ameaçados pela barragem de São Luiz do Tapajós

Nome e língua

Aldeia Munduruku no rio Canumã. Foto: Ezequias Heringer Filho, 1982.
Aldeia Munduruku no rio Canumã. Foto: Ezequias Heringer Filho, 1982.

Esse povo indígena é pertencente à família lingüística Munduruku, do tronco Tupi. Sua autodenominação é Wuy jugu e, segundo os saberes difundidos oralmente entre alguns anciãos, a designação Munduruku, como são conhecidos desde fins do século XVIII, era o modo como estes eram denominados pelos Parintintins, povo rival que estava localizado na região entre a margem direita do rio Tapajós e o rio Madeira. Esta denominação teria como significado “formigas vermelhas”, em alusão aos guerreiros Munduruku que atacavam em massa os territórios rivais.

A situação sociolingüística dos munduruku é bastante diversificada, em decorrência de diferentes momentos da história de contato com as frentes de colonização, e pelo fato da dispersão em diferentes espaços geográficos ocupados por este povo. A população localizada nas pequenas aldeias às margens do Tapajós em sua maioria é bilíngüe. Na aldeia Sai Cinza, aldeias dos rios Cururu, Kabitutu e outros afluentes do Tapajós, as crianças, mulheres e idosos falam na maioria das vezes unicamente a língua materna. Ocorrem também casos em que a língua Munduruku passa por processo de desuso, com domínio quase exclusivo do Português, com crianças e jovens que não falam plenamente o Munduruku, a exemplo das aldeias do Mangue e Praia do Índio, localizadas na periferia da cidade de Itaituba, e nas comunidades da Terra Indígena Coatá-Laranjal, no Amazonas.

Localização e população

Aldeia Munduruku. Foto: Protassio Frikel, década de 1950.
Aldeia Munduruku. Foto: Protassio Frikel, década de 1950.

Os Munduruku estão situados em regiões e territórios diferentes nos estados do Pará (sudoeste, calha e afluentes do rio Tapajós, nos municípios de Santarém, Itaituba, Jacareacanga), Amazonas (leste, rio Canumã, município de Nova Olinda; e próximo a Transamazônica, município de Borba), Mato Grosso (Norte, região do rio dos Peixes, município e Juara). Habitam geralmente regiões de florestas, às margens de rios navegáveis, sendo que as aldeias tradicionais da região de origem ficam nos chamados “campos do Tapajós” , classificados entre as ocorrências de savana no interior da floresta amazônica.

A população munduruku concentra-se majoritariamente na Terra Indígena de mesmo nome, com a maioria das aldeias localizadas no rio Cururu, afluente do Tapajós. Dados mais recentes sobre sua distribuição populacional e a situação das terras podem ser encontrados ao lado em "Terras habitadas".

História do contato

Forró na aldeia do Laranjal, no rio Mary-Mary. Foto: Acervo Museu do Índio, 1928.
Forró na aldeia do Laranjal, no rio Mary-Mary. Foto: Acervo Museu do Índio, 1928.

Os Munduruku têm como seu território mais tradicional os campos interiores do alto Tapajós. No mito de origem, Karosakaybo criou os Munduruku na aldeia Wakopadi, situada nos campos centrais, próxima às cabeceiras do rio Krepori, local hoje situado nas proximidades do limite leste da terra demarcada em 2001.

As primeiras notícias sobre o contato das frentes colonizadoras com os Munduruku datam da segunda metade do século XVIII, sendo a primeira referência escrita feita pelo vigário José Monteiro de Noronha, em 1768, que os denominou “Maturucu”, quando foram avistados às margens do rio Maués, tributário do rio Madeira, antiga Capitania do Rio Negro – atual Estado do Amazonas –, onde atualmente existem comunidades desta etnia cuja história de contato e relações com a sociedade nacional apresenta aspectos distintos das comunidades Munduruku situadas na região do alto Tapajós. Hoje, a maioria da população Munduruku da bacia do Madeira habita a Terra Indígena Coatá-Laranjal, que teve os trabalhos de demarcação física concluídos também em 2001. Há registro também de comunidades fora dos territórios demarcados, ao longo da rodovia Transamazônica, próximas ao município de Humaitá, no Amazonas.

Na região do baixo rio Tapajós, próximo a Santarém, nos últimos anos algumas comunidades em processo de afirmação de identidade étnica afirmam que são Munduruku.

A expansão territorial deste povo indígena ocasionou diferentes histórias de contato, e é melhor compreendida na abordagem feita na historiografia quando os Munduruku são apresentados como uma nação audaciosamente guerreira, que realizava grandes excursões do Madeira ao Tocantins, com a finalidade, entre outras, de obter troféus de cabeças de inimigos que eram mumificadas e as quais se atribuíam poderes mágicos. Os Munduruku dominaram bélica e culturalmente o Vale do Tapajós desde o final do séc. XVIII, região conhecida secularmente como Mundurukânia, onde permanecem até os dias de hoje, seja em terras reconhecidas oficialmente, seja vivendo em pequenas comunidades ribeirinhas a exemplo de Mamãeanã, São Luís e Pimental, estas últimas situadas a apenas uma hora de motor de popa do município de Itaituba.

Os Munduruku só foram vencidos pelos colonizadores após o envio de várias expedições e tropas de resgate organizadas pelos portugueses, em retaliação à resistência que os indígenas faziam através de ataques aos povoados, que finalizou com a adoção de uma relação supostamente amistosa que alguns estudiosos caracterizaram como “acordos de paz” entre chefes Munduruku e autoridades coloniais do interflúvio da região do baixo Madeira/Tapajós, ao final do século XVIII, a exemplo do apaziguamento das relações com os moradores da Vila de Santarém. A partir de então foram colocados em aldeamentos missionários, inseridos na exploração das chamadas “drogas do sertão” (cumaru, cacau etc.), sendo que alguns grupos continuaram guerreando contra etnias rivais, de certa forma favorecendo a ação dos colonizadores na ocupação da região.

Em decorrência das vastas áreas que ocupavam e em que perambulavam, os contatos dos Munduruku com as frentes de expansão variaram de acordo com a proximidade e facilidades de acesso aos seus territórios, fatos que resultaram no surgimento de aspectos diferenciados da cultura entre os indígenas localizados nas margens do rio Tapajós, rio Madeira, Cururú e na área de cerrado conhecida como Campos do Tapajós, região onde encontram-se as aldeias mais tradicionais, e que é cenário de boa parte da mitologia deste povo.

Ciclo da borracha

A partir da segunda metade do século XIX, a expansão da economia extrativista consolidou a exploração do caucho (castilloa elastica) e da seringueira (hevea brasiliensis), dando origem ao chamado ciclo da borracha, inserindo a Amazônia no mercado capitalista internacional. Este fato acelera o processo de ocupação não-indígena no alto Tapajós e demais áreas de concentração das chamadas gomas elásticas, especialmente a partir do final do século, com o deslocamento de milhares de trabalhadores da região Nordeste do Brasil, que foram submetidos como mão de obra compulsória na exploração da borracha, dentro do sistema conhecido como barracão, controlado pelos donos dos seringais. Este quadro econômico provocou a invasão de territórios indígenas, obrigando o constante deslocamento das sociedades nativas em toda região amazônica.

Para os Munduruku, esses acontecimentos, aliados ao primeiro aldeamento missionário a se estabelecer na parte alta das cachoeiras do Tapajós, marcam um ciclo na sua história por representar a presença contínua de não-indígenas em uma região anteriormente sob seu controle. O primeiro aldeamento nesta região, conhecido como Missão Bacabal, foi estabelecido em 1872, abaixo da foz do rio Crepuri, sob controle de padres franciscanos. Mesmo assim, as aldeias tradicionais situadas em locais de difícil acesso, ou seja, nos campos, permaneceram autônomas durante muito tempo, existindo registros de viajantes e cronistas que passaram pela região sobre incursões guerreiras dos Munduruku até os primórdios do século XX.

Os estudos de história e antropologia atribuem ao comércio que era realizado pelos regatões - comerciantes que percorriam os rios vendendo produtos (açúcar, tecidos, sal, cachaça etc.) a partir do final do século XIX - uma influência preponderante sobre o deslocamento dos Munduruku das aldeias tradicionais do campo para as margens dos rios navegáveis da região, particularmente o Tapajós e o Cururu. Segundo esta versão, os Munduruku das aldeias do campo passaram a se deslocar na estação da seca para as margens do Tapajós com a finalidade de efetuar a troca de borracha e produtos da floresta por bens industrializados, e desta forma foram fixando-se nas margens dos rios.

Porém, na tradição oral deste povo as explicações são outras. Mesmo narrando os deslocamentos sazonais para o Tapajós e posteriormente para o rio Cururu, outros fatores foram decisivos para a fixação nas margens dos rios, a exemplo de uma grande epidemia de sarampo ocorrida no início da década de 1940, quando parte significativa da população foi dizimada inclusive ocorrendo a morte de chefes de grandes aldeias tradicionais dos campos.

Essa tendência de deslocamento, mesmo nas primeiras décadas após o estabelecimento da Missão São Francisco no rio Cururu, em 1911, mantinha um caráter sazonal, isto é, as idas dos Munduruku para as margens do Tapajós e Cururu ocorriam no período da estiagem. Mais tarde, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) chega à região, criando em 1940 o Posto de Atração Kayabi, no Rio São Manoel, e em 1942 o Posto Indígena de Atração Munduruku, no rio Cururu, contribuindo, ao lado da Missão Franciscana, para o aceleramento e consolidação do processo de deslocamento dos Munduruku, como também dos Kayabi e Apiaká. Ambas instituições exerceram papéis importantes na solidificação do trabalho de extração de caucho e borracha entre os indígenas, atraindo o deslocamento de grande parte da população dos campos para o rio Cururu.

É fato também, que tanto a Missão São Francisco como o SPI contribuíram para a manutenção do espaço territorial dos Munduruku face ao assédio da frente de expansão de caráter extrativista, que foi marcada por dois períodos de maior intensidade: o primeiro de cerca de 1880 a 1920, quando floresceu a economia e a cultura gomífera em toda Amazônia, cujo declínio ocorreu em conseqüência da concorrência dos seringais ingleses cultivados na Malásia; e o segundo ciclo no período da 2ª Guerra Mundial e a década pós-guerra, devido à suspensão das relações econômicas com o Extremo Oriente, quando, com o apoio do governo americano, o Brasil adotou uma expressiva política de incentivo à produção da borracha, criando linhas de financiamento para as atividades e estimulando o deslocamento de nordestinos para trabalharem como seringueiros, denominados oficialmente de "soldados da borracha".

Presença missionária

A Missão católica, além de ter exercido influência na concentração da população nas margens do rio Cururu, difundiu princípios do catolicismo, como o batismo do recém-nascido como obrigatório e o casamento religioso. No entanto, em relação ao mundo da religião indígena, mesmo considerando que as práticas de conversão não diferem em essência das praticadas no período colonial, com a condenação dos rituais de pajelança, os avanços em termos de conversão católica podem ser considerados modestos tendo em vista que os Munduruku são extremamente ligados ao mundo de sua religião tradicional.

A Missão exerce ainda hoje atribuições importantes no campo da educação e da saúde. Nos últimos tempos, mesmo discordando das crenças indígenas, a Igreja tem buscado contribuir no processo de organização e preparação dos Munduruku visando a demarcação e proteção da terra e apoiando reivindicações de direitos.

Vale lembrar também que na aldeia Sai Cinza, no rio Tapajós, há mais de 30 anos está localizada a Missão da Congregação Batista, que exerce dentro de seus objetivos uma atividade religiosa de eficiência considerável, paralela à resistência da tradição cultural munduruku. A Missão Batista, como a Católica, teve uma atribuição importante na educação escolar, contribuindo para difundir a escrita na língua munduruku entre os jovens. Hoje, apesar de não abdicar do papel de evangelizador, busca se integrar às questões e problemas atuais enfrentados pela população, apoiando a luta dos Munduruku.

Organização social

Mulher munduruku com orifício labial. Foto: Protassio Frikel, década de 1950.
Mulher munduruku com orifício labial. Foto: Protassio Frikel, década de 1950.

A sociedade Munduruku dispõe de uma organização social baseada na existência de duas metades exogâmicas, que são identificadas como a metade vermelha e a metade branca. Atualmente existem cerca de 38 clãs mais conhecidos, que estão divididos entre as duas metades, de onde se originam não apenas as relações de parentesco, como também diversos significados na relação com o cotidiano da aldeia, com o mundo da natureza e do sagrado.

Na organização da sociedade munduruku, a descendência é patrilinear, isto é, os filhos herdam o clã do pai, sendo que a regra de moradia é matrilocal, condicionando o rapaz recém casado a passar a morar na casa do sogro, a quem deve prestar sua colaboração nas tarefas de fazer roças, pescar, caçar e todas as demais atividades relacionadas à manutenção da casa, incluindo acompanhar a família nos trabalhos de extração e coleta nos seringais e castanhais. Geralmente este período de moradia corresponde aos primeiros anos de casamento, até o nascimento do segundo filho; depois desta fase o marido providencia a construção da casa para sua família.

Nos últimos anos, em algumas famílias e aldeias, entre as atividades produtivas se inclui o trabalho nos garimpos de ouro, realizado geralmente na região dos rios Kaburuá e Tropas, com a exploração de pequenas grotas e baixões. Mas essa necessidade tem sido amenizada pela inclusão dos anciãos indígenas no recebimento dos benefícios sociais do INSS. Isso ocasionou algumas mudanças no papel de provedor e na fonte de renda dentro das famílias. Os benefícios recebidos geralmente são socializados, com especial atenção para os netos, sendo que na maioria das vezes contribuem para aquisição de produtos que antes só eram acessíveis através do trabalho de extração de borracha e outras atividades de exploração de recursos naturais.

Sendo clãs exogâmicos, uma pessoa pertencente a uma determinada metade só pode contrair casamento com uma pessoa da metade oposta. Assim, uma pessoa do clã Bõrõ, um dos muitos clãs da metade branca, só poderá casar-se com alguém de um clã pertencente à metade vermelha, como Karo. As possibilidades são variadas, sendo que entre os da metade branca estão: Kirixi, Akai, Saw e outros; na metade vermelha: Kabá, Tawé, Wako e outros. Os nomes dos clãs correspondem a diferentes elementos da natureza, como árvores, pássaros e mamíferos, que fazem parte da rica cosmologia dos Munduruku, estando muitas vezes presentes nas narrações e canções tradicionais que explicam o mundo e as relações dos homens dentro dele.

O casamento preferencial é realizado com primos cruzados, o que significa que o rapaz ou a moça tendem a casar com a filha do irmão da mãe ou o filho da irmã do pai, respectivamente. Pelas informações que obtive, o casamento entre os Munduruku nunca foi objeto de grandes rituais, apesar de apresentar regras claras e precisas de namoro, pedido, aproximação e consolidação. É permitida a separação. O casamento é uma esfera das relações sociais muito importante no equilíbrio da sociedade, essencial para o bom relacionamento das famílias, para relações de troca e solidariedade e para a organização política da comunidade.

Aspectos culturais

Aldeia Coatá, no rio Canumã. Foto: Ezequias Heringer Filho, 1982.
Aldeia Coatá, no rio Canumã. Foto: Ezequias Heringer Filho, 1982.

A partir do contato com as frentes econômicas e as instituições não indígenas (missão e SPI), vários aspectos da vida cultural dos Munduruku sofreram mudanças. Sendo um povo guerreiro, várias expressões culturais significativas estavam relacionadas às atividades de guerra, que tinham um caráter simbólico marcante para constituição do homem e da sociedade Munduruku.. Os deslocamentos das aldeias tradicionais para o estabelecimento nas margens dos rios, formando pequenos núcleos populacionais, por certo contribuiu também para o desaparecimento da casa dos homens, unidade importante na aldeia tradicional e na permanência de alguns rituais de caráter coletivo que estavam relacionados às atividades de provisão de alimentos, divididas entre a estação da seca (abril a setembro) e a estação das chuvas (outubro a março). Entre estes rituais estava o da “mãe do mato”, realizado no início do período das chuvas, visando obter permissão para as atividades de caça, proteção nas incursões pela floresta e bons resultados na caçada. Alguns elementos desta atividade ainda estão presentes, ou foram recriados com novos significados, especialmente na relação de respeito com os animais caçados, nas práticas do cotidiano do homem caçador para obter caça e nas regras alimentares.

Foto: Luis Fernando Sadek, 1982
Foto: Luis Fernando Sadek, 1982

Os Munduruku mantêm algumas práticas culturais relacionadas à pesca, atividade de maior intensidade no verão, entre as quais estão as brincadeiras que antecedem a pescaria com timbó, uma raiz que após ser triturada é usada nos rios para facilitar a captura dos peixes. Geralmente no dia anterior à “tingüejada”, a raiz do timbó é triturada sobre troncos, onde é batida de forma ritmada com pedaços de paus pelos homens. As mulheres, especialmente as jovens, apanham urucu ou a seiva em forma de goma branca de um arbusto chamado sorva, e passam a perseguir os homens com a finalidade de passar estes produtos no rosto e nos cabelos dos mesmos; estes fogem e configura-se um jogo por toda a aldeia. Para os Munduruku esta é uma forma de alegrar os peixes e obter fartura na pescaria do dia seguinte.

Atualmente, em algumas aldeias ainda são tocadas periodicamente as flautas parasuy, instrumentos importantes na mitologia Munduruku. Mas os tocadores são homens velhos, o que compromete a continuidade da tradição. No entanto, têm surgido por parte dos jovens, especialmente professores e novas lideranças, iniciativas visando a preservação das canções e músicas tradicionais.

A riqueza da cultura Munduruku é extraordinária, incluindo um repertório de canções tradicionais de musicalidade e poesia incomum, que versa sobre relações do cotidiano, frutos, animais etc. A cosmologia apresenta narrativas que inclui conhecimentos dos astros, constelações e da Via Láctea, chamada kabikodepu, em que são identificadas as estrelas que a compõe.

Religiosidade

Nas práticas religiosas os pajés exercem um papel primordial de cura através de manipulação de ervas, atos de defumação e contato com o mundo dos espíritos. A religiosidade tradicional é muito presente entre os Munduruku, mesmo com as mudanças sofridas com a colonização. A religiosidade está presente em todos os aspectos da vida cotidiana, regendo as relações com a natureza, as práticas do mundo do trabalho e as relações sociais.

Foto: Luis Fernando Sadek, 1989
Foto: Luis Fernando Sadek, 1989

Há a presença de duas missões religiosas. A Missão São Francisco, localizada na aldeia Missão, no rio Cururu, instalada em 1911; e a Missão Batista, que iniciou suas atividades em fins da década de 1960, estando situada na aldeia Sai Cinza, no rio Tapajós, com uma distância de cerca de 40 minutos de lancha da pequena cidade de Jacareacanga. Como falei anteriormente, as interferências na vida cultural e religiosa dos Munduruku estão presentes devido à atuação das duas instituições religiosas, porém, os Munduruku em sua maioria, apesar de participarem dos rituais católicos e protestantes, dificilmente podem ser considerados como plenamente convertidos. Atualmente não há mais uma objeção aberta por parte das Missões às práticas de pajelança. E ao que parece os Munduruku não atribuem grande importância às condenações feitas pelas religiões cristãs à sua religiosidade tradicional. A presença de missões de diferentes religiões não causou entre os Munduruku rivalidades ou disputas deste cunho, fato que pode significar que eles atribuem soluções e interpretações próprias no que diz respeito a religião.

Cultura material

Na cultura material se destacam as cestarias e os trançados, que são atividades masculinas, cabendo ao homem a confecção do Iço – cesto com o qual as mulheres carregam os frutos e produtos da roça –, as peneiras e demais utensílios de uso doméstico feitos com talas e fibras naturais.

Nos cestos Munduruku são grafados com urucu desenhos que identificam o clã do marido. Assim, por exemplo, as tipóias para carregar as crianças que são confeccionadas pelas mulheres com a fibra extraída de uma árvore, identificam, com a cor natural vermelha ou branca, a metade exogâmica à qual a criança pertence.

Alguns homens e especialmente as mulheres são exímios na confecção de colares com figuras zoomorfas (peixes, tracajás, gato do mato, jacaré etc.) esculpidos com sementes de inajá e tucumã.

A cerâmica, atividade feminina por excelência, encontra-se quase desaparecida, tendo algumas mulheres na aldeias Kaburuá e Katõ que ainda dominam as técnicas tradicionais. Há informações de que entre os Munduruku da terra indígena Coatá, no estado do Amazonas, esta prática está mais presente.

A tecelagem, principalmente de redes de algodão, também está em desuso, apesar de contar com um número considerável de mulheres adultas e idosas que têm conhecimento da técnica e por vezes confeccionam para venda como artesanato.

Sistema produtivo

Os meios de vida relacionados à produção e obtenção de alimentos entre os Munduruku constituem de forma preponderante o campo da economia tradicional, apesar da inclusão de alguns produtos não indígenas nos hábitos alimentares, que precisam ser comprados regularmente, dos quais os mais presentes são o sal, o café e o açúcar.

A agricultura é praticada conforme os conhecimentos imemoriais, em terra firme, com pleno aproveitamento dos espaços e o plantio consorciado de culturas. Os cultivos mais presentes são os diferentes tipos de mandioca, bananas, batatas, cana e cará. As frutíferas são plantadas na maioria das vezes nos caminhos para roça.

Na divisão social do trabalho, cabe ao homem fazer a broca e derrubada da mata onde será aberta a roça de toco. A coivara, limpeza após a queimada, normalmente é feita por toda família. O plantio de mandioca é feito com a participação do homem e da mulher; outros cultivos como as batatas, cará, abacaxi e pimentas são realizados apenas pelas mulheres. Normalmente as atividades de capina das roças e as colheitas são feitas pelas mulheres.

Crianças Munduruku voltam da pesca. Foto: Protassio Frikel, década de 1950.
Crianças Munduruku voltam da pesca. Foto: Protassio Frikel, década de 1950.

Atividades como a pesca, caça e coleta têm relevância na obtenção de alimentos e se organizam de acordo com as estações do ano. A pesca por certo constitui atualmente a principal forma de obter proteína animal, sendo realizada cotidianamente na estação seca com bons resultados, e menos praticada no período das chuvas, quando os rios enchem formando igapós e dificultando a atividade.

A coleta de frutas é realizada em diferentes períodos do ano de acordo com a safra de cada frutífera (açaí, patauá, bacaba, uxi, jubá, pupunha, murici, ingá, castanha etc.). Os densos sucos, chamados na região de vinhos, têm papel importante na alimentação, especialmente no período chuvoso, quando o peixe se torna escasso, e compõem, ao lado da farinha e da carne de caça, a base da alimentação no inverno.

Quanto aos meios para obtenção de rendimentos que possibilitem aquisição de produtos (sal, açúcar, sabão, roupas, sandálias, combustíveis etc.), os Munduruku atualmente desenvolvem atividades de produção de farinha em algumas comunidades do rio Tapajós, coleta de castanha em muitas comunidades dos diferentes rios e produção de borracha - esta, diga-se de passagem, cada vez menor pelos baixos preços oferecidos. Como abordado no item “História do Contato”, os Munduruku serviram de mão-de-obra nos períodos áureos do extrativismo da borracha, de forma que esta atividade acabou sendo incorporada no seu universo cultural.

Ouro no Tapajós

Após a queda dos preços da borracha, a região do Tapajós foi descoberta ao final da década de 50 como grande produtora de ouro. Este movimento se intensificou após a construção da rodovia Transamazônica, em 1972, e teve seu auge no período de 1975 a 90. Os Munduruku passaram a participar dos trabalhos de exploração aurífera com maior intensidade a partir da década de 80, seja fazendo “reco” (trabalho com bateia nos locais já explorados por máquinas de garimpo, na tentativa de encontrar fagulhas de ouro) no período de intensa exploração dos garimpos de balsa nos rios Tapajós e São Manoel, seja visitando as explorações dos não-índios nos garimpos de baixão (nome dado ao local de trabalho de garimpo, formado por escavações retangulares nas margens dos rios feitas com uso de ferramentas e máquinas). Por esta época, por iniciativa própria, deram início aos garimpos no lado leste da terra indígena, entre os rios Cabitutu, Kaburuá e Tropas. Muitos lugares de exploração foram abandonados pelo baixo rendimento, porém a produção de ouro em pequenas quantidades ainda garante rendimentos para muitos jovens pais de família.

Nos últimos anos, com o declínio da exploração aurífera em toda região e a consciência dos danos sócio-culturais e de saúde causados por estas atividades à população, algumas comunidades indígenas voltaram a se interessarem novamente pelas atividades florestais renováveis, tentando encontrar alternativas de beneficiamento para agregar valor aos produtos como borracha, castanha e copaíba. Este processo ainda encontra-se em fase embrionária, necessitando da elaboração de projetos específicos visando a obtenção de recursos que financiem as atividades. De todo modo, o tema está vinculado às discussões que os Munduruku têm mantido nos últimos anos, voltadas para a questão da defesa do território e a preservação dos recursos naturais e da cultura.

Organizações indígenas

Os Munduruku participaram da segunda Assembléia de Chefes Indígenas realizada no Brasil, que aconteceu em maio de 1975, na aldeia Missão Cururu, com a presença de lideranças de várias etnias (a primeira Assembléia ocorreu na sede da Missão Anchieta, em abril de 74, e não contou com representantes Munduruku). As primeiras Assembléias por iniciativa das lideranças e com a participação de caciques e representantes da maioria das aldeias Munduruku ocorreram nos anos de 1985/86, e tinham como tema principal a questão da demarcação da terra, além de discutir os problemas relacionados à educação, saúde, meio ambiente e projetos voltados para economia das comunidades. Mas os encontros só passaram a ser registrados a partir da realização da I Assembléia Geral do Povo Munduruku, em 1989. Com o passar dos anos a organização foi amadurecendo, a participação foi crescendo e as discussões ampliaram-se.

Como meio de organização formal, os Munduruku do alto rio Tapajós criaram em 1991 a Associação Indígena Pusuru, por iniciativa de algumas lideranças e com o objetivo de organizar as reivindicações voltadas para a demarcação da terra, bem como desenvolver ações referentes à defesa do meio ambiente, educação, saúde e outros problemas enfrentados pela população. No mesmo ano, as lideranças entenderam que era necessário uma forma de organização que exercesse um papel político mais direto, orientando as discussões e que possibilitasse a participação ampla de representantes de várias comunidades Munduruku. Surgiu então o Conselho Indígena Munduruku do Alto Tapajós (CIMAT).

Em 2002 foi realizada a XIV Assembléia Geral, a primeira após a conclusão dos trabalhos de demarcação da terra, pela qual muitas lideranças junto com suas comunidades lutaram.

Porém, os desafios são muitos. A difícil localização, entre outros fatores, desestimula relações de intercâmbio mais constantes com outras entidades indígenas, o conhecimento de outras experiências e a busca de aliados para enfrentar os problemas contemporâneos. A organização dos Munduruku, como de resto a de muitos povos indígenas no Brasil, vive uma situação de quase isolamento que dificulta um amadurecimento político maior, ficando sujeita muitas vezes a interlocução desfavorável com agentes locais que não têm compromisso com os direitos indígenas.

Mesmo com esta situação, as duas entidades atuam juntas e vêm realizando várias ações importantes para o fortalecimento do povo Munduruku. Apresentaram, em 1998, um projeto que foi aprovado pelo PPTAL, quando foi implantada a rede de radiofonia coordenado pela Pusuru e o CIMAT, estabelecendo a comunicação entre 10 aldeias localizadas em pontos importantes para a proteção do território, e para a articulação das atividades, fato que contribuiu para melhorar a comunicação e o intercâmbio, consolidando a organização.

Em 2001, as entidades executaram, com o apoio do PPTAL, o Projeto de Acompanhamento da Demarcação da Terra Indígena Munduruku, sendo que em 2002 foi executado o Projeto de Fiscalização da referida terra indígena, renovado recentemente. A Pusuru e o CIMAT coordenam as atividades de mobilização dos Munduruku, encaminham reivindicações de direitos e são interlocutoras nas relações com as instituições públicas. Para atender esses objetivos, foi instalada uma sede na cidade de Jacareacanga.

No entanto, a interferência dos poderes políticos locais nas questões que dizem respeito à vida dos Munduruku tem sido cada vez mais presente. Este fato aliado à omissão e desinteresse da Funai regional nas questões que dizem respeito as suas atribuições tem representado uma séria ameaça ao processo de consolidação da organização dos Munduruku de forma autônoma e independente.

Escola

Um outro aspecto que merece registro no processo de organização dos Munduruku é o interesse que eles sempre tiveram na melhoria da educação escolar. Muitas das escolas existentes surgiram por iniciativa das comunidades, sendo que vários professores indígenas atuaram durante anos como voluntários, contribuindo para alfabetização e o sentimento de compromisso de muitos jovens que se encontram hoje participando das ações de interesse comunitário. Os trabalhos de capacitação dos primeiros professores foram iniciados a partir da metade da década de 1970, com apoio do SIL (Sociedade Internacional de Lingüística) e da Missão São Francisco.

Depois de longo intervalo, as atividades escolares foram retomadas com novo formato e novos princípios em fins da década de 80, algumas por iniciativa do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e outras da Funai. Atualmente encontra-se em vigor o Projeto de Formação de Magistério Indígena Munduruku, sob a coordenação da Funai e em parceria com a Seção de Educação Indígena da SEDUC-PA (Secretaria de Educação do Pará), contando também com o apoio das entidades Munduruku e da Missão Batista e Missão Cururu. O curso, de caráter modular e iniciado em 1998, está em processo de reconhecimento pelo Conselho Estadual de Educação do Pará.

Saúde

Entre os problemas contemporâneos enfrentados pelo Munduruku, especialmente os localizados nas comunidades da região do rio Tapajós, não pode deixar de ser registrada a situação de precariedade da assistência de saúde. A atenção à saúde indígena na região é coordenada pela FUNASA através de convênio com a Prefeitura de Jacareacanga.

Os problemas de saúde se avolumam com o passar do tempo, apesar de alguns aspectos terem sido objeto de estudos realizados há alguns anos, como a contaminação por mercúrio citada anteriormente, e a grande incidência de hepatite B, apontada pelos estudos do Instituto Evandro Chagas desde o início da década de 90. Paralelamente a estas enfermidades, os números referentes a casos de tuberculose, malária e infecções respiratórias, ocasionando muitos óbitos, continua sendo preocupante. A participação e o controle social na política de saúde são ainda muito fracos, não tendo articulação suficiente para fiscalizar, cobrar direitos, sendo assim ignorada por uma execução que não atende de forma minimamente satisfatória as necessidades de saúde do povo munduruku.

Outro problema que tem interferido na saúde dos munduruku, diz respeito às relações estabelecidas com freqüência cada vez maior com a cidade de Jacareacanga, município implantado em 1993, incluindo casos de êxodo de famílias inteiras. Têm sido cada vez mais freqüentes os casos de doenças sexualmente transmissíveis, e os prejuízos sociais causados pela assiduidade com que os jovens se deslocam até a referida cidade.

Nas outras localidades

Os Munduruku que estão nas outras áreas também têm trilhado caminhos semelhantes na luta pelos seus direitos e na consolidação de suas organizações. Na Praia do Índio e no Mangue, terras pequenas na cidade de Itaituba, existe a Associação Pari’rip e um projeto de revitalização da língua e da cultura iniciado pela Escola Indígena que a comunidade mantém com o apoio de uma organização não governamental e da Funai.

Na Terra Indígena Coatá-Laranjal, no Amazonas, a demarcação também foi acompanhada pela Associação indígena existente através de projeto financiado pelo PPTAL (Projeto Integrado de Proteção às Terras e às Populações Indígenas da Amazônia Legal Brasileira). Atualmente existe na comunidade um projeto de produção de melaço de cana e rapadura financiado pela Funai através da Administração Regional de Manaus.

Nos últimos anos, os Munduruku destas diferentes áreas têm procurado formas de aproximar-se e manter contatos mais regulares com o objetivo de trocar experiências e partilhar aspectos da cultura. Este é um desejo que, apesar das dificuldades, caso realizado poderá gerar conhecimentos e alternativas inéditas para o caminhar e enfrentar os novos desafios.

Fontes de informação

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