De Povos Indígenas no Brasil
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     <li>A orientação positiva e ativa do grupo face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante do grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural associados à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não são necessariamente aqueles específicos da área cultural (no sentido histórico-etnológico) onde se acha hoje a comunidade;</li>
 
     <li>A orientação positiva e ativa do grupo face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante do grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural associados à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não são necessariamente aqueles específicos da área cultural (no sentido histórico-etnológico) onde se acha hoje a comunidade;</li>
 
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'''Outras Leituras'''
 
Em abril de 2006, o antropólogo '''Eduardo Viveiros de Castro''' falou à equipe de edição da Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. Leia <htmltag tagname="a" target="_blank" href="/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf">No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é</htmltag>
 
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     <li>A decisão, seja ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recrutamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a sociedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodução simbólica e material.</li>
 
     <li>A decisão, seja ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recrutamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a sociedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodução simbólica e material.</li>
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Em abril de 2006, o antropólogo '''Eduardo Viveiros de Castro''' falou à equipe de edição da Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. Leia <htmltag tagname="a" target="_blank" href="/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf">No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é</htmltag>
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Edição das 17h14min de 11 de setembro de 2017

Povos Indígenas

Foto: diversos autores, veja aqui  

     

Em pleno século XXI a grande maioria dos brasileiros ignora a imensa diversidade de povos indígenas que vivem no país. Estima-se que, na época da chegada dos europeus, fossem mais de 1.000 povos, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente encontramos no território brasileiro 271 povos, falantes de mais de 150 línguas diferentes.

Os povos indígenas somam, segundo o Censo IBGE 2010, 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país.

A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no interior de Terras Indígenas, de norte a sul do território nacional.

 Falar, hoje, em povos indígenas no Brasil significa reconhecer, basicamente, seis coisas:

  • Nestas terras colonizadas por portugueses, onde viria a se formar um país chamado Brasil, já havia populações humanas que ocupavam territórios específicos;
  • Não sabemos exatamente de onde vieram; dizemos que são "originárias" ou "nativas" porque estavam por aqui antes da ocupação européia;
  • Certos grupos de pessoas que vivem atualmente no território brasileiro estão historicamente vinculados a esses primeiros povos;
  • Os índios que estão hoje no Brasil têm uma longa história, que começou a se diferenciar daquela da civilização ocidental ainda na chamada "pré-história" (com fluxos migratórios do "Velho Mundo" para a América ocorridos há dezenas de milhares de anos); a história "deles" voltou a se aproximar da "nossa" há cerca de, apenas, 500 anos (com a chegada dos portugueses);
  • Como todo grupo humano, os povos indígenas têm culturas que resultam da história de relações que se dão entre os próprios homens e entre estes e o meio ambiente; uma história que, no seu caso, foi (e continua sendo) drasticamente alterada pela realidade da colonização;
  • A divisão territorial em países (Brasil, Venezuela, Bolívia etc.) não coincide, necessariamente, com a ocupação indígena do espaço; em muitos casos, os povos que hoje vivem em uma região de fronteiras internacionais já ocupavam essa área antes da criação das divisões entre os países; é por isso que faz mais sentido dizer povos indígenas no Brasil do que do Brasil.

A expressão genérica povos indígenas refere-se a grupos humanos espalhados por todo o mundo, e que são bastante diferentes entre si. É apenas o uso corrente da linguagem que faz com que, em nosso país e em outros, fale-se em povos indígenas, ao passo que, na Austrália, por exemplo, a forma genérica para designá-los seja aborígines. 

Indígena ou aborígine, como ensina o dicionário, quer dizer "originário de determinado país, região ou localidade; nativo". Aliás, nativos e autóctones são outras expressões usadas, ao redor do mundo, para denominar esses povos.

O que todos os povos indígenas têm em comum? Antes de tudo, o fato de cada qual se identificar como uma coletividade específica, distinta de outras com as quais convive e, principalmente, do conjunto da sociedade nacional na qual está inserida.

Índios, Ameríndios

Genericamente, os povos indígenas que vivem não apenas em nosso país, mas em todo o continente americano, são também chamados de índios. Essa palavra é fruto do equívoco histórico dos primeiros colonizadores que, tendo chegado às Américas, julgaram estar na Índia.

Apesar do erro, o uso continuado - até mesmo por parte dos próprios índios - faz da palavra, no Brasil de hoje, um sinônimo de indivíduo indígena.

Como há certas semelhanças que unem os índios das Américas do Norte, Central e do Sul, há quem prefira chamá-los, todos, de ameríndios. Os índios ou ameríndios são, então, os povos indígenas das Américas.

Em décadas passadas, uma outra palavra era bastante usada no Brasil para designar genericamente os índios: silvícolas ("quem nasce ou vive nas selvas"). O termo é totalmente inadequado, porque o que faz de alguém indígena não é o fato de viver ou ter nascido na "selva".

Quem é índio?

Por Eduardo Viveiros de Castro, pesquisador e professor de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) e sócio-fundador do ISA

  • "Índio" é qualquer membro de uma comunidade indígena, reconhecido por ela como tal.
  • "Comunidade indígena" é toda comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas.

As relações de parentesco ou vizinhança constitutivas da comunidade incluem as relações de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso, e, mais geralmente, definem-se nos termos da concepção dos vínculos interpessoais fundamentais própria da comunidade em questão.

Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas, culturais e sociopolíticas, a saber:

  • A continuidade da presente implantação territorial da comunidade em relação à situação existente no período pré-colombiano. Tal continuidade inclui, em particular, a derivação da situação presente a partir de determinações ou contingências impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações forçadas, descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação e oclusão étnicas;  
  • A orientação positiva e ativa do grupo face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante do grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural associados à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não são necessariamente aqueles específicos da área cultural (no sentido histórico-etnológico) onde se acha hoje a comunidade;
  • A decisão, seja ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recrutamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a sociedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodução simbólica e material.

 

 [Maio, 2005]== Sobre o nome dos povos ==

Por não possuírem escrita alfabética nos tempos da "atração e pacificação", os povos indígenas foram (e continuam sendo) "batizados" por escrito pelos não-índios, em um processo que deu (e ainda dá) margem a muitas confusões em termos de grafias e significados.

É importante destacar que, nas últimas décadas, com o desenvolvimento de projetos na área de educação escolar indígena, alguns povos estão aprendendo a escrever na sua própria língua, e assim começam a criar, junto com os assessores lingüistas, uma grafia própria.

Grafias

Há uma grande variabilidade na maneira de grafar os nomes dos povos indígenas. Convivem padrões diferentes, às vezes criados por funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai), outras por antropólogos e, mais recentemente, até mesmo por Manuais de Redação de grandes órgãos da imprensa brasileira. Um grupo que hoje habita áreas no estado do Acre, os Kaxinawá, por exemplo, tem sua designação escrita de pelo menos quatro maneiras diferentes: caxinauá, cashinauá, kaxinawá e kaxináua.

"Atrair e pacificar" os índios, impondo-lhes arbitrariamente denominações, tem a ver historicamente com práticas coloniais de controle social: concentração espacial da população (com a conseqüente contaminação por doenças e a depopulação pós-contato), implantação de sistemas paternalistas e precários de assistência social, confinamento territorial e exploração dos recursos naturais disponíveis. Tudo em nome da "integração dos índios à comunhão nacional".

 

Ao contrário, reconhecer e valorizar suas identidades específicas, compreender suas línguas e suas formas tradicionais de organização social, de ocupação da terra e uso dos recursos naturais, tem a ver com gestos diplomáticos de intercâmbio cultural e respeito a direitos coletivos especiais.

A razão básica pela qual os antropólogos grafam o nome de uma determinada maneira tem a ver com a adoção de um alfabeto com o qual vão escrever as palavras da língua deste povo. Como as línguas indígenas têm sons que não encontram representação direta nas letras do alfabeto brasileiro, os antropólogos são obrigados a recorrer a outras letras e combinações de letras. Buscam, então, usar letras cuja interpretação sonora se aproxime do alfabeto fonético internacional, usado pelos lingüistas de todo o mundo, e não do alfabeto brasileiro.

Aliás, o que justificaria a redução fonética de nomes indígenas à forma brasileira, se há diversos povos que não vivem exclusivamente no Brasil? Lembremos que as fronteiras entre os Estados nacionais na América do Sul se sobrepuseram às áreas ocupadas pelos povos indígenas, de tal forma que alguns deles vivem hoje sob a jurisdição político-administrativa de dois, três e até quatro países diferentes.

As discordâncias ortográficas sobre os nomes de povos indígenas costumam opor antropólogos a Manuais de Redação de grandes jornais. Mas, nesse assunto, não há consenso nem mesmo entre os próprios antropólogos. As maiores polêmicas dizem respeito ao uso (ou não) de maiúsculas iniciais e da forma plural para os nomes das etnias.

Para muitos, quando a denominação de um povo aparece com função de adjetivo, não haveria porque não escrevê-la com minúscula (língua guarani, por exemplo). Já quando aparece como substantivo gentílico, seria mais adequado mantê-la com maiúscula, porque, se é verdade que essas etnias não têm países (como os franceses, a França), também é certo que seus nomes são designativos de uma coletividade única, de uma sociedade, de um povo, e não apenas de uma somatória de pessoas. Assim, temos, por exemplo, os Kaingang.

Aqueles que defendem a não-flexão do plural ancoram-se na justificativa de que, na maioria dos casos, sendo os nomes palavras em língua indígena, acrescentar um s resultaria em hibridismo. Além do mais, há a possibilidade de as palavras já estarem no plural, ou, ainda, de que a própria forma plural não exista nas línguas indígenas correspondentes.

Os Manuais de Redação, por outro lado, têm imposto um aportuguesamento da grafia dos nomes dos grupos indígenas, proibindo o uso de letras como w, y, k (!) e certos grupos de letras não existentes em português, como sh. Esse critério não tem consistência, assim como grafar os nomes sempre em minúsculas ou flexionar o número (singular/ plural), mas não o gênero (masculino/ feminino). Por exemplo, se krahô se deve escrever craô, então Kubitscheck deveria ser escrito Cubicheque, Geisel, Gáisel. Por que o mesmo manual que recomenda grafar ianomâmi e os ianomâmis, veta a flexão por gênero, quando a palavra tem função de adjetivo ("mulheres ianomâmis" e não "mulheres ianomamas"), resultando num aportuguesamento pela metade?

 

Significados

A confusão fica ainda maior quando entram em cena as autodenominações, isto é, as formas verbais através das quais um determinado povo refere-se a si mesmo. Em muitos casos, pesquisas de antropólogos e lingüistas ensinam que as autodenominações não têm nada a ver com os nomes aplicados aos grupos indígenas pelos não-índios. Boa parte dos nomes utilizados, tanto hoje como no passado, para designar os povos indígenas no Brasil não são autodenominações. Muitos deles foram atribuídos por outros povos, freqüentemente inimigos e, por isso mesmo, carregam conotações pejorativas.

É o caso, por exemplo, dos Araweté, assim nomeados pela primeira vez por um sertanista da Funai que julgava compreender a sua língua, logo após os "primeiros contatos"estabelecidos em meados da década de 70. Tal designação, grafada pela primeira vez por um funcionário do governo federal num relatório, acabou permanecendo como identidade pública oficial desse povo. Mas um antropólogo que estudou os Araweté alguns anos depois e aprendeu a sua língua descobriu que esses índios não se denominam originalmente por um substantivo,"os Araweté", mas fazem uso da palavra bïdé (um pronome que quer dizer “nós, os seres humanos”) para se referir ao coletivo do qual fazem parte.

A palavra não remete a uma substância (como brasileiros, por exemplo, remete ao Brasil), mas a uma perspectiva (humana, que se opõe à animal, à divina, à inimiga...). Dependendo do contexto em que é enunciada, a palavra bïdé pode se referir a coletividades humanas mais ou menos abrangentes: aos próprios Araweté (em oposição a outros grupos, inimigos); a todos os índios (em oposição aos não-índios); a todos os seres humanos (em oposição aos animais e deuses)...

 

Os membros de Estados-Nações, como nós não-índios, têm o preconceito de que toda sociedade tem que ter nome próprio. E, como ilustra o caso araweté, trata-se de uma idéia equivocada. Pois, se é certo que os Araweté utilizam a palavra bïdé para referir-se a si mesmos, não é verdade que ela seja um "nome próprio" e nem que o "nós" a que se refere seja sempre o mesmo.

 

Em outros casos, as conotações dos nomes atribuídos às etnias indígenas chegam a ser depreciativas. Kayapó, por exemplo, é uma designação genérica que foi dada a esses índios por povos, de língua Tupi, com os quais guerrearam até recentemente e quer dizer "semelhante a macaco". Outros nomes foram dados por sertanistas do antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) ou da Funai (Fundação Nacional do Índio), muitas vezes logo após os primeiros contatos promovidos pelas chamadas "expedições de atração". Nesse contexto, sem entender a língua nativa, os equívocos são freqüentes, e determinados povos acabam sendo conhecidos por nomes que lhes são atribuídos por razões absolutamente aleatórias.

Na época dos primeiros contatos, na qual a comunicação com "etnias desconhecidas" era precária, alguns povos passaram a ser denominados pelo nome de algum dos seus indivíduos ou frações. Há ainda casos de nomes impostos em português, como, por exemplo, os Beiço-de-Pau (para se referir aos Tapayuna, do Mato Grosso) ou os Cinta-Larga, assim chamados por sertanistas da Funai simplesmente porque usavam largas cintas de entrecasca de árvore quando foram contatados no final da década de 60, em Rondônia.


 

 

Outras Leituras

Para saber mais sobre grafias de nomes de povos indígenas, consultar:

 

ABA (Associação Brasileira de Antropologia) Convenção para a grafia dos nomes tribais. Revista de antropologia, São Paulo: USP, ano 2, número 2, 1954.

 

Julio Cezar Melatti Como escrever palavras indígenas. Revista de atualidade indígena, Brasília: Funai, ano 3, número 16, 1979.

Nomes de tribos. Ciência hoje, Rio de Janeiro: SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), volume 10, número 56, 1989.

 

Folha de S. Paulo Novo manual de redação, São Paulo, verbete "indígena/ índio", página 81.

 

Eduardo Lopes Martins Filho Manual de redação e estilo de O Estado de S. Paulo. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1997, 3ª. edição, revista e ampliada, verbete "Índios", página 145.

== Contato com não-índios ==

Muitos povos reúnem, em seu cotidiano, modos de viver herdados de seus antepassados, além  de produtos, instituições e relações sociais adquiridas após a intensificação do contato com os "brancos". Nesse ponto, não diferem muito de "nós", brasileiros não-índios, afinal vivemos em uma sociedade continuamente influenciada por outras tradições culturais. Por exemplo, este site da Internet, onde agora nos encontramos, ou as cadeias de fast-food espalhadas pelas cidades de nosso país são pequenas provas de que nossa língua e nossa cultura também sofrem influências de outras. 

 

Mudanças no modo de viver

O contato com a nossa sociedade certamente trouxe muitas mudanças no modo de viver dos povos indígenas. Em relação a esse assunto, é preciso ter em mente pelo menos dois pontos.

  • As culturas indígenas não são estáticas. Ao contrário, elas são, como qualquer outra cultura, dinâmicas. Assim transformam-se ao longo do tempo, mesmo sem uma influência estrangeira. Por outro lado, é inegável que as mudanças decorrentes do contato com a nossa sociedade podem, muitas vezes, alcançar escalas preocupantes. Esse é o caso, por exemplo, de povos que perderam suas línguas maternas e, hoje, só falam o português.  
  • É preciso dizer que por trás das mudanças, cujo ritmo e natureza são diferentes em cada caso, há um aspecto fundamental: mesmo travando relações com os não-índios, os povos indígenas mantêm suas identidades e se afirmam como grupos étnicos diferenciados, portadores de tradições próprias. E isso vale também para os povos que vivem em situações de contato mais intenso.

 

 

A identidade étnica, isto é, a consciência de pertencer a uma determinada etnia, resulta de um complexo jogo entre o "tradicional" e o "novo", entre o "próprio" e o "estrangeiro", que surge sempre quando diferentes populações estão em contato. É importante levar em conta todas essas considerações antes de dizer que alguém "já não é mais índio" porque usa roupas, vai à missa, assiste televisão, opera computadores, joga futebol ou dirige um carro.

 

Diferentes experiências de contato

Além da diversidade que existe entre os índios por causa de suas línguas, culturas, modos de viver e pensar tão distintos, há uma outra que se refere às diferentes formas de contato que eles mantiveram e/ou mantêm com os não-índios: se razoavelmente pacífico ou violento, se antigo ou recente, se direto com a população regional (fazendeiros, posseiros, madeireiros, garimpeiros, pescadores etc.) ou mediado por alguma instituição, governamental ou não-governamental, laica ou religiosa. Muitos povos foram vítimas de violência na época de seus primeiros contatos com a população não-indígena.

É o caso dos Rikbaktsa, que vivem no estado do Mato Grosso. Da década de 1950 até o início de 1960, eles sofreram oposição armada de seringalistas da região, além de madeireiros, mineradores e fazendeiros, o que resultou na dizimação de 75% da sua população. Em contraste, outros povos guardam na memória uma imagem até mesmo amistosa dos primeiros contatos. Os Kadiwéu, por exemplo, recordam-se com insistência e orgulho da sua participação ao lado dos brasileiros na Guerra do Paraguai, marco importante na sua história de contato com a sociedade nacional.

Muitas vezes, uma relação inicial entre índios e não-índios, marcada pelo enfrentamento hostil, pode dar lugar a relações razoavelmente pacíficas e até mesmo desejáveis. Atualmente, diversos povos indígenas têm desenvolvido parcerias com organizações de apoio da sociedade civil brasileira. Os vários povos que vivem no Parque Indígena do Xingu, por exemplo, contam com projetos na área de saúde, encabeçados pela Unifesp (antiga Escola Paulista de Medicina), de educação, de alternativas econômicas, de fiscalização e vigilância, promovidos pelo ISA.

São comuns os casos de convivência com missões católicas ou protestantes, como pode ser observado, respectivamente, entre os Makuxi e os Taurepang, ambos localizados na região do lavrado, no estado de Roraima. É importante notar também que a relação entre índios e missionários possui formas diversas em todo o Brasil, sobretudo no que diz respeito às propostas de transmissão dos valores cristãos.

A maneira como cada povo se insere na sociedade brasileira é bastante variada. Há povos cujos membros trabalham no mercado regional e são assalariados, como os Guarani Kaiowá, envolvidos em atividades de corte de cana-de-açúcar para as destilarias de álcool do estado do Mato Grosso do Sul. Há aqueles que vivem em centros urbanos, como as famílias de Sateré-Mawé na periferia de Manaus e os Pankararu, migrantes do estado de Pernambuco e que hoje habitam a favela Real Parque na cidade de São Paulo.

Um fato notável é o crescimento do número de indígenas no cenário político brasileiro. Somente em 2000, foram eleitos, entre vereadores, vice-prefeitos e um prefeito, 80 índios.

No pólo oposto daqueles que participam intensamente de várias esferas da sociedade brasileira, estão aqueles grupos ou indivíduos que recusam o contato com a população não-indígena. Dentre eles, destacam-se grupos que habitam a  Terra Indígena Vale do Javari.  == Índios isolados ==

Sabe-se muito pouco sobre os chamados índios isolados - também conhecidos como povos em situação de isolamento voluntário, povos ocultos, povos não-contatados, entre outros. São assim chamados aqueles grupos com os quais a Funai não estabeleceu contato. As informações sobre eles são heterogêneas, transmitidas por outros índios ou por regionais, além de indigenistas e pesquisadores.

A Funai, instituição responsável pela política indigenista do Estado brasileiro, tem um órgão responsável para proteger a região onde são indicadas as referências a esses grupos sem contato: é a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), que confirmou a existência de 28 desses grupos. Em toda a América Latina, o Brasil é o único país a ter um órgão específico para desenvolver políticas de proteção aos isolados. A CGIIRC está organizada em doze Frentes de Proteção Etnoambiental (Juruena, Awa-Guajá, Cuminapanema, Vale do Javari, Envira, Guaporé, Madeira, Madeirinha, Purus, Médio Xingu, Uru-Eu-Wau-Wau e Yanomami), que atuam na Amazônia brasileira, em regiões onde houve confirmação da presença de índios isolados e também onde vivem povos de recente contato.

De acordo com os dados do ISA e de seus colaboradores, há na Amazônia brasileira mais de 70 evidências de índios isolados, mas não se sabe ao certo quem são, onde estão, quantos são e que línguas falam. Entre esses grupos dos quais se tem evidências, apenas um, os Avá-Canoeiro, encontra-se fora da Amazônia Legal. Dos Avá-Canoeiro fala-se que são quatro pessoas, em fuga permanente, evitando o contato, pelo norte de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Além desse pequeno grupo, outros indivíduos Avá-Canoeiro vivem na TI homônima e mais algumas pessoas desse grupo e seus descendentes vivem no Parque Indígena do Araguaia.

O que se sabe é que a maior parte dessas referências encontram-se em Terras Indígenas já demarcadas ou com algum grau de reconhecimento pelos órgãos federais. Também há evidências de grupos isolados dentro de dois Parques Nacionais e de duas Florestas Nacionais (Flonas). No caso dos parques, os grupos estão protegidos da ocupação desordenada de seu habitat, já no caso das Flonas, que apesar de serem federais e protegidas, são áreas destinadas à exploração florestal por empresas, de forma que não há garantia de que os índios serão protegidos e terão seu futuro assegurado.

As informações sobre esses povos são escassas. Por vezes, vestígios como tapiris, flechas e outros objetos encontrados nas áreas por onde passaram são fotografados. Os relatos verbais de existência desses grupos são geralmente fornecidos por outros índios e regionais mais próximos, que narram encontros fortuitos, ou que simplesmente reproduzem informações de terceiros.

Um caso que exemplifica bem a definição de grupos isolados, onde as informações dos vizinhos confirmam sua existência e a relação de contato que tiveram com eles, mostra que o isolamento é relativo: os Hi-Merimã, que hoje vivem isolados, já foram estimados em 1000 pessoas em 1943. Eram considerados um dos maiores grupos da região do rio Purus, no estado do Amazonas, mas voltaram ao isolamento. Eram conhecidos também como Marimã ou Merimã, segundo informação da antropóloga Luciene Pohl, em seu trabalho de identificação da TI Hi-Merimã. Pohl coletou as informações sobre eles com seus vizinhos Jamamadi, cujas terras demarcadas são contínuas à terra dos isolados e cuja língua é da família Arawá.

 

Os Jamamadi dizem que tiveram contato com eles no passado, mas houve problemas de entendimento entre as partes, o que resultou em conflito com mortes. Os Banawa, também da família lingüística Arawá, dizem entender parcialmente a língua falada pelos Hi-Merimã e afirmam que mantiveram relações com eles, podendo descrever características do modo de ser desses índios que voltaram ao isolamento. Os índios Zuruahã, da mesma família lingüística e seus vizinhos a oeste, relatam histórias de hostilidades com eles.

 

Isolados ou contatados?

A partir desses relatos, pode-se perceber que a idéia de que há índios isolados desde a chegada dos portugueses ou sociedades mantidas à margem de todas as transformações ocorridas desde então, é enganadora. Os grupos considerados isolados travaram, muitas vezes, relações de longa data com segmentos da sociedade nacional, tendo posteriormente optado pelo isolamento. Os Apiaká do Matrinxã, por exemplo, tiveram contatos com a sociedade regional, sofreram muito e resolveram fugir e isolar-se de novos contatos. A mesma história é atribuída aos Katawixi. Assim, o isolamento representa, em muitos casos, uma opção do grupo, que pode estar pautada pelas suas relações com outros grupos, pela história das frentes de ocupação na região onde vivem e também pelos condicionantes geográficos que propiciam essa situação. A noção de isolados, portanto, diz respeito ao contato regular, principalmente com a Funai.

O que tem ocorrido com alguma freqüência é a tentativa da Funai de realizar o contato com grupos que se encontram em situações de risco, porém muitos recusam essa aproximação.

Um caso de opção pelo isolamento também pode ser observado na região do Tanaru, sul do estado de Rondônia. Trata-se não de uma sociedade, mas de um único homem sobrevivente. Tudo leva a crer que o seu povo desapareceu devido à violência e à ganância dos pecuaristas que ocuparam a região. Desde 1996, a Funai vem tentando lhe oferecer assistência, mas todas as vezes que seu acampamento foi identificado, ele o abandonava. Mostrou-se absolutamente avesso ao contato, apesar de aceitar alguns presentes dos sertanistas, como panelas e facões.== Isolados: histórico ==

1986 > ONGs discutem a situação dos isolados

A preocupação com a situação de risco desses grupos fez com que, em outubro de 1986, fosse organizado pelo Conselho Indigenista Missionário - CIMI e pela Operação Anchieta - Opan (hoje Operação Amazônia Nativa), um encontro sobre Índios Isolados e de contato recente. Participaram também várias ONGs, entre elas a UNI, o Cedi, o CTI, a CPI-SP e outras, além da Funai, num total de 23 participantes.

O comunicado final divulgado no fim do encontro dizia que "a gravidade da situação motivou um encontro de indigenistas, antropólogos, missionários, advogados e representantes da União das Nações Indígenas (UNI) na tentativa de estabelecer formas de atuação na defesa da sobrevivência física e cultural desses povos ameaçados". O documento fala ainda da abertura das estradas a partir de 1970, e de outros projetos de infra-estrutura, alem da mineração e exploração mineral, fatores que levaram esses grupos ao sofrimento e à depopulação decorrente do contato com essas frentes de expansão.

Vários povos com a população reduzida drasticamente por doenças foram transferidos de suas terras, como os Tapayuna, levados do rio Arinos para o rio Xingu e os Panará do rio Peixoto Azevedo, contatados em 1973 para permitir a construção da BR-163. Os remanescentes desses últimos – 87, de uma população de 400 – foram levados para o Parque Indígena do Xingu. Os Cinta-Larga, no Mato Grosso e Rondônia, eram cerca de 5 mil ainda nos anos 60, mas na época do Encontro não passavam de mil indivíduos. Os Waimiri Atroari, forçados ao contato com a abertura da BR-174, que cortava suas terras, tiveram uma redução de cerca de 3 mil para apenas 500 indivíduos.

O comunicado criticava também a atitude da Funai, pelo abandono desses índios: "não é de se estranhar, portanto, que a Funai esteja anunciando seu Plano Especial para atração dos últimos grupos indígenas isolados, o que nos parece ser o objetivo de facilitar a implantação dos novos planos governamentais (PDA, Calha Norte etc). Manifestamos, por isso, nossa legítima preocupação pelo destino dos povos indígenas que ainda resistem bravamente na Amazônia". Nesse encontro, foi feito o mapeamento dos grupos isolados no Brasil e elaborada uma pauta com as conclusões do Encontro para ser veiculada entre as entidades indigenistas. 

1987 > Sertanistas da Funai se reúnem e criam a Coordenadoria de Índios Isolados

Em junho de 1987, ocorreu o Primeiro Encontro Nacional de Sertanistas, promovido pela Funai e organizado pelo sertanista Sidney Possuelo, para discutir a questão dos índios isolados. Os participantes debateram e avaliaram a difícil situação dos povos contatados e decidiram que a nova política da Funai seria de contatá-los apenas se estivessem em risco e não mais para liberar a área para projetos de infra-estrutura, como ocorria até então.

Para desenvolver essa política, foi criado um órgão específico dentro da Funai: a Coordenadoria de Índios Isolados (CII), ou Coordenadoria Geral de Índios Isolados (CGII) com Sydney Possuelo à frente, liderando a mudança de política de contato. Em vez das antigas frentes de atração, que contatavam os índios para liberar a área para passagem de estradas, hidrelétricas etc., a CII foi organizada por frentes de proteção etnoambiental, cujo objetivo era proteger o entorno da região habitada pelos isolados e monitorar os acontecimentos e ameaças, além de viabilizar os estudos de identificação e demarcação dessas terras para esses índios, realizados pela Diretoria Fundiária da Funai.

No final da década de 1990, a CGII/Funai assinou um convênio com a ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI) para trabalharem em conjunto na política de proteção aos isolados do Vale do Javari, com recursos da União Européia, que viabilizou a continuidade das atividades na TI Vale do Javari, área que sofre muita pressão de madeireiros.

Esse órgão da Funai foi dirigido por Sydney Possuelo, com alguns intervalos, até o início de 2006, quando Possuelo foi demitido do cargo pelo presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes. A partir de então, a CGII passou a ser coordenada pelo sertanista Marcelo Santos, que já tinha feito parte do órgão. Foi depois coordenada por Elias Biggio e atualmente é coordenada por Carlos Travassos.

Esta coordenação atende também, desde dezembro de 2009, os povos recém contatatos e por isso é denominada hoje de Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC). A CGIIRC conta com doze Frentes de Proteção Etnoambiental: Vale do Javari (AM), Purus (AM), Juruena (AM, PA, MT), Envira (AC), Yanomami (RR), Madeira (AM, RO), Guaporé (RO), Uru-Eu-Wau-Wau (RO), Cuminapanema (PA, AP), Médio Xingu (PA), Madeirinha (MT) e Awa-Guajá (MA).== Onde estão os isolados ==

As informações apresentadas a seguir são parte do trabalho de Monitoramento das Terras Indígenas que o Instituto Socioambiental realiza desde 1983. Essa pesquisa possibilitou organizar a relação das terras reconhecidas para ocupação dos isolados, e também as terras que, embora demarcadas e homologadas para outros povos, abrigam grupos isolados, assim como as referências de índios isolados nas diversas regiões da Amazônia e sobre um pequeno grupo na região de Goiás/Noroeste de Minas Gerais. Estas informações são provenientes da relação elaborada no Encontro de 1986, atualizada permanentemente por pesquisadores e confrontadas com a lista elaborada pela Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC-Funai).

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Isolados em TIs reconhecidas para eles

Terras Indígenas Estado Situação Jurídica
Alto Tarauacá obs: Xinane e Igarapé D'ouro AC       Homologada Registrada
<span>Cabeceiras dos Rios Muru e Boiaçu</span> AC Em identificação
Hi Merimã AM Homologada
Igarapé Taboca do Alto Tarauacá AC Com restrição de uso
Ituna/Itatá PA Com restrição de uso
Jacareuba/Katawixi obs.: quase integralmente dentro do Parque Nacional Mapinguari e com uma pequena parte dentro da Resex Ituxi AM Com restrição de uso
Kawahiva do Rio Pardo MT Declarada
Massaco RO Homologada registrada
Piripkura obs.: chamados de Piripicura pelos índios Gavião da TI Igarapé Lourdes, esses índios se localizam na área entre os rios Branco e Madeirinha, afluentes do Roosevelt/MT. Já foram contatados dois índios, e parece existir mais um grupo sem contato de cerca 17 pessoas. MT Com restrição de uso
Pirititi RR Com restrição de uso
Riozinho do Alto Envira AC Declarada
Tanaru RO Com restrição de uso

 

 

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TIs reconhecidas para outros índios, também habitadas por índios isolados

Terras indígenas Isolados Estado Situação Jurídica
Apiaká do Pontal e Isolados (Apiaká) Em 1984, o antropólogo Eugenio Wenzel, que viveu mais de 15 anos com os índios Apiaká , informou que havia notícias sobre a existência de um grupo de Apiaká que, depois de viver em contato com a sociedade regional e sofrer massacres no período da borracha no início do século 20, fugiu, afastando-se das margens dos rios maiores. Localiza-se na região dos rios Ximari e Matrinxã, entre os rio Teles Pires e Juruena, no município de Apiacás/MT e Apui/AM.  MT e AM Identificada e aprovada pela Funai
Alto Turiaçu (Ka'apor e Tembé) Guajá isolados, no igarapé Jararaca  MA Homologada e registrada
Arara do Rio Branco    MT Homologada e registrada
Araribóia (Guajajara) Guajá isolados  MA Homologada e registrada
Aripuanã   (Cinta Larga)    MT/RO Homologada e registrada
Caru (Guajajara) Isolados Guajá no Oeste da TI  MA Homologada e registrada
Kampa e Isolados do Rio Envira (Ashaninka) No Igarapé Xinane e Imbuia  AC Homologada
Kaxinawá do Rio Humaitá    AC Homologada e registrada
Kayapó Isolados Pituiaro, do grupo Kayapó  PA Homologada e registrada
Kaxuyana-Tunayana 3 referências de isolados  AM/PA Identificada e aprovada pela Funai
Koatinemo   (Asurini) Isolados  PA Homologada e registrada
Menkragnoti Isolados Mengra Mrari, grupo kayapó, que se separou dos Gorotire em 1938.  PA Homologada e registrada
Mamoadate (Yaminawa e Manchineri) Isolados Masko, no verão circulam entre os rios Mamoadate e cabeceiras do Rio Purus. São chamados de Masho-Piro, no Peru.  AC Homologada e registrada
Rio Paru d'Este Wayana e Aparai PA Homologada e registrada
Rio Tea Isolados Maku AM Homologada e registrada
Tenharim/Marmelos (Tenharim) Os Tenharim dizem que existem parentes seus  isolados nas cabeceiras do Rio Marmelos, no extremo sul da área. AM Homologada e registrada
Trombetas/Mapuera (Wai Wai) Isolados Karafawyana RR/AM/PA Homologada
Tumucumaque (Tiriyó, Katxuyana, Wayana e Apalai)   PA/AP Homologada e registrada
Uru Eu Wau Wau Há pelo menos três grupos isolados. RO Homologada e registrada
Vale do Javari  Vários grupos isolados: no Igarapé Nauá, Ig. Alerta, Ig. Urucubaca, Ig. Inferno, Ig. Lambança, Ig. São Salvador, Ig. Cravo, Rio Itaquaí e Rio Ituí. AM Homologada e registrada
Waimiri Atroari Isolados Piriutiti dentro e fora da TI. RR/PA Homologada
Xikrin do Catete (Xikrin) Segundo a antropóloga Isabelle Giannini, os Xikrin dizem que ao norte da TI, na região do Rio Cinzento, vivem índios iguais aos que encontraram em 1987 em suas terras, um grupo de Araweté isolados.  PA Homologada e registrada
Yanomami (Yanomami) Moxi hatëtëma thëpë, nome atribuído por alguns Yanomami a esses isolados.  AM/RR Homologada e registrada

 

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 Referências de índios isolados fora de TIs reconhecidas

Povo Localidade
Arama/Inauini   Os Jamamadi do Purus e uma familia katukina que mora no igarapé Kanamari deram informações sobre a presença de um grupo isolado na região do Inauini. Em outubro de 1985, alguns desses índios teriam aparecido no outro lado do igarapé, em frente à moradia da família katukina, no município de Pauini/AM.
Isolados Avá-Canoeiro Na região do Noroeste de Goiás.
Isolados Awá-Guajá Fala-se da existência de pequenos grupos nas serras que formam o rio Farinha e Lageado (oeste do Maranhão). Em 1998, o sertanista Wellington Figueiredo fez o resgate de uma família awá no limite da Terra Indígena Awá e a reserva Biológica do Gurupi (região do Igarapé Mão de Onça). Em 2006, na estada do sertanista no PIN Juriti, o homem que faz parte do grupo que ele mesmo resgatou veio lhe cobrar que fossem buscar seu irmão que lá teria permanecido (dados de agosto de 2006).
Isolados na Cabeceira do rio Cuniá A Funai criou um GT com objetivo de realizar expedições de localização e monitoramento de índios isolados na cabeceira do rio Cuniá, no Amazonas no período de 09/07/2013 a 22/08/2013   (DOU, 18/07/2013)
Isolados do rio Liberdade Há anos os Metuktire dizem que existem Kaiapó "brabo" na região do Rio Liberdade, onde encontraram vestígios desses índios. Parece ser o mesmo grupo que foi visto pelos Metuktire na Cachoeira Von Martius, poucas horas do rio Liberdade. Foram vistos três índios de cabelos compridos que flecharam os Metuktire, com uma flecha igual a dos Kaiapó (dia 25/10/1990). Nos municípios de Luciara e Vila Rica/MT e talvez em São Felix do Xingu. Segundo o antropólogo Gustaaf Verswijver, que tem trabalhado com os Kayapó, hoje perambulam entre a região do rio Liberdade que cada dia tem sofrido mais desmatamento e a TI Mekragnoti (dados de novembro de 2005).
Isolados do Rio Muqui A Rio Muqui teve restrição de uso da Funai até o ano 2000 e, com a ocupação e desmatamento desta área, provavelmente os índios encontram-se na TI Uru-Eu-Wau-Wau.
Isolados do Igarapé Muriru e Pacutinga   Localizados entre os rios Juruena e Aripuanã, no município de Aripuanã/MT. Os índios Rikbaktsa dizem que já tiveram contato com esse grupo que denominam Yakara Waktá (moradores do mato). São 20 a 30 índios que se deslocam para o Aripuanã na época seca. Pelos vestígios (alimentação) poderiam ser um subgrupo apiaká. Em 1985, o jesuíta Balduino Loebens, em sobrevôo, localizou suas roças. Esse mesmo missionário disse que, em 1984, um picadeiro da colonizadora Cotriguaçu encontrou esses índios. Segundo o antropólogo Rinaldo Arruda, o grupo foi visto na TI Escondido, habitado pelos Rikbaktsa.
Isolados do rio Tapirapé Esses índios vivem nas cabeceiras do rio Tapirapé, afluente da margem esquerda do rio Itacaunas, no município de Senador José Porfírio/PA. Poderia ser o mesmo grupo a que os Xikrin do Cateté se referem ao norte do limite da TI do Cateté, na região da Flona Itacaiunas e Flona Tapirapé.
Isolados Kayapó Pituiaro (Rio Meruré) Esse grupo kaiapó tem o nome do homem mais velho que o conduziu separadamente quando, em 1950, os Kuben Kran Kren se dispersaram em meio a um ataque dos Kokraimoro. Este grupo perambula entre a região do rio Merure e a área Kuben Kran Ken, município de Altamira/PA. Em agosto de 1977, o antropólogo Gustaaf Verswijver, ao sair da aldeia, num vôo para Santana do Araguaia, avistou uma aldeia dos Pituiaro à margem do rio Merure – um círculo de cinco a seis casas do tipo tradicional kaiapó, encravado numa serra. Verswijver disse, em novembro de 2005, ser impossível a presença desses índios na região do rio Meruré, pois está muito desmatada. Ele acredita que eles podem ter se refugiado na TI Kayapó, no sudeste do Gorotire ou ao sul do Kuben-Kran-Kren.
Isolados Kayapó Pu´ro   

Esse grupo se formou em 1940, quando 25 índios partidários do chefe Tapiete deixaram a aldeia Mekragnoti, nunca mais retornando. Os Megranoti atuais se referem a esse grupo como os Pu´ro. Segundo o antropólogo Gustaaf Verswijver, em novembro de 2005, eles não se encontram mais na região que está muito desmatada. Verswijver soube pelos Mekrãgnoti da aldeia Pukanu, que dizem ter ouvido de kubens (brancos) que, há uns dois ou três anos, quatro homens desse grupo foram mortos, (provavelmente por madeireiros). Esta é uma notícia preocupante, principalmente porque deve ser um grupo pequeno. Esses sobreviventes parecem estar nos limites norte da TI Mekragnoti.

Em 2005 foi criada nesta região a Estação Ecológica Terra do Meio.

Isolados do Karipuninha Rieli Franciscato, indigenista da Funai, disse na década de 1990, que moradores da região do rio Karipuninha não têm coragem de subir o rio no rumo de suas cabeceiras, devido aos inúmeros vestígios de índios "brabos" que lá encontram. O rio Karipuninha é afluente da margem esquerda do rio Madeira, a aproximadamente 100 km rio acima a partir de Porto Velho, e suas cabeceiras ficam próximas à divisa de Rondônia e o estado do Amazonas.
Isolados do Bararati  Referência sobre a existência de índios isolados no rio Bararati e margem esquerda do rio Juruena, próximo do limite com o Mato Grosso (municípios de Apuí e Sucurundi/AM - informação da CGII-Funai).
Flona Bom Futuro (Rio Candeias)  A informação sobre a existência de um grupo de isolados motivou uma expedição da equipe da Frente de Contato Guaporé em meados de 1998. A equipe percorreu 90 km na margem direita deste rio, sem resultados concretos. Não foram encontrados vestígios de ocupação indígena na área vistoriada. Porém, ainda falta uma grande área a ser pesquisada. Segundo Gilberto Azanha/CTI, esse grupo está dentro do perímetro da Flona Bom Futuro.
Wajãpi isolados do Alto Amapari A antropóloga Dominique Gallois informou em 1990 que, desde 1987, garimpeiros da Perimetral Norte informam terem encontrado, repetias vezes, vestígios da presença de um grupo isolado na região dos formadores do rio Amapari. De acordo com os Wajãpi do Amapari trata-se dos remanescente do subgrupo "Amapari Wan", que se separou dos demais há cerca de 50 anos. Membros desse mesmo grupo vivem na aldeia Mariry e na aldeia Camopi (Guiana Francesa). A região dos isolados fica dentro do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque e às vezes esses índios se deslocam para a Guiana Francesa. Em 2003, os Wajãpi do Camopi acharam uma roça desses índios no rio Muturá.
Wajãpi isolados do Ipitinga   Segundo a antropóloga Dominique Gallois, os índios que vivem no Parque Indígena do Tumucumaque, falam desses índios Wajãpi que vivem próximos do Parque, no município de Almeirim, no Pará.

 == Contatados e protegidos ==

Depois de serem contatados, os povos indígenas ficavam sob a proteção da Funai, que não dispunha, no entanto, de uma política especial voltada para eles. Assim, com frequência, esses povos acabavam sofrendo com epidemias e invasões em suas terras, além dos inúmeros problemas decorrentes da intensificação do contato e da sedentarização.

A partir da avaliação da situação de extrema fragilidade a que os grupos recém contatados estavam sujeitos, a então Coordenadoria Geral de Índios isolados (CGII) da Funai passou a dispensar assistência diferenciada aos Zo’é, no Pará; aos Kanoê e aos Akuntsu de Rondônia, contatados há mais de 10 anos; e a um pequeno grupo Korubo, localizado no Vale do Javari (AM).

Os Zo’é, grupo tupi-guarani localizado na bacia do Cuminapanema (PA), foram contatados pela Funai em 1989, mas já estabeleciam relações com missionários protestantes norte-americanos  desde 1982. Os Zo'é entraram para a história como um dos últimos povos "intactos" na Amazônia. Os contatos com os não indígenas foram largamente noticiados pela mídia, que, em 1989, divulgou as primeiras imagens deste povo tupi, que até então vivia em situação de isolamento.


Os primeiros contatos da Funai com os Kanoê também possibilitaram o encontro com outro povo, os Akuntsu. Em 1985 foi instituída oficialmente a frente de atração responsável pelo contato com povos desconhecidos que circulavam pela região de Corumbiara, no sudeste de Rondônia. Embora essas informações já fossem de conhecimento da Funai desde a década de 1970, relatos de 1984 reiteraram a presença de grupos isolados nas matas das reservas legais de fazendas na região, que vinham sendo desmatadas para a comercialização de madeira e a implantação de pecuária. Em 1986 foi desinterditada à área destinada aos contatos com estes grupos.


Em 1995, a partir da análise de imagens de satélite, os indigenistas Marcelo dos Santos e Altair Algayer conseguiram identificar a área de ocupação dos Kanoê e entrar em contato com eles. Durante as primeiras conversas, os Kanoê informaram aos indigenistas que próximo dali havia um outro grupo indígena que chamavam de Akuntsu. Em seguida, uma outra expedição alcançou as pequenas malocas dos Akuntsu, que somavam então sete pessoas.


Os Korubo se tornaram famosos na mídia nacional e internacional quando uma parcela de sua população foi contatada, em 1996, por uma expedição promovida pela Funai, e coordenada pelo sertanista Sydney Possuelo. A expedição foi acompanhada por repórteres da revista National Geographic, que transmitiu o evento ao vivo e online para todo o mundo. Conhecidos como "índios caceteiros", por não usarem arcos, os Korubo travam, há décadas, uma guerra contida com a população regional, apesar de tentativas mútuas de aproximação. Este pequeno grupo  contatado contava em 2007 com 26 pessoas e separou-se do grupo original, que permanece isolado.

Em julho de 2006, foi criada a Coordenadoria Geral de Índios Recém Contatados, subordinada à Diretoria de Assistência da Funai e coordenada pelo antropólogo Artur Nobre Mendes. Seu objetivo era a “proteção dos grupos e povos indígenas contatados no passado recente e que vivem em relativo estado de autonomia político-cultural e, ao mesmo tempo, sem o completo domínio das forças sociais dominantes que os circundam”. Compreendia-se, nesse contexto, como recém-contatados, os grupos que estabeleceram contatos permanentes com a sociedade nacional após a criação da Funai, em 1967. Entre outros motivos que levaram à criação dessa coordenação,  estava o fato de que os inúmeros contatos realizados na década de 1970 e meados de 1980 ocorreram em situações de extrema vulnerabilidade desses grupos, particularmente por causa da pressão das frentes de expansão econômica. Como não havia políticas específicas para essas populações, cujas realidades sociais eram bastantes distintas, a vulnerabilidade continuou. Além disso a participação de grupos recém contatados nos programas do governo e nas ações da Funai ficava comprometida frente a melhor articulação de outros povos.

Esta Coordenadoria, entretanto, não foi implementada na época. Foi somente a partir de dezembro de 2009, com a reestruturação da Funai, que o órgão indigenista incluiu no campo de ação da CGII as populações de recente contato. Dessa forma, este órgão passou a ser chamado de Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC).== Aliança internacional para a proteção dos isolados ==

Em novembro de 2005, foi realizado em Belém (PA) o Primeiro Encontro Internacional sobre Índios Isolados que vivem em países Amazônicos e no Gran Chaco, organizado pela Coordenação Geral de Índios Isolados/Funai (CGII), e pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI). O evento contou com a participação de mais de sessenta pessoas. Além dos representantes do Brasil, compareceram delegações do Peru, Colômbia, Equador, Bolívia e Paraguai – cujos casos foram apresentados e discutidos com participantes que representavam 36 instituições_  e países como a Noruega, Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, França e Nova Zelândia.

Como resultado final das apresentações e análise dos casos e das sugestões, foi elaborado um documento final, exigindo que os governos dos países onde se encontram esses índios tomem medidas para proteger seus habitats, seus direitos e o respeito à decisão pelo não-contato com os órgãos oficiais, se assim desejarem.

O indigenista Sydney Possuelo – que na época coordenava a CGII – reafirmou sua política de apenas contatar os isolados em caso de grande risco e também a necessidade de respeitar a autonomia e isolamento desses povos. Para justificar a escolha, Possuelo fez um balanço geral da situação de vários povos que foram contatados e se encontram em situações muito difíceis, com seu futuro seriamente ameaçado.

Outras leituras

Para ler o documento final do encontro, veja a matéria ''Proteção e reconhecimento dos índios isolados''

 == Índios emergentes ==

Nos últimos anos, aumenta o número de populações que passam a reivindicar pública e oficialmente a condição de indígenas no Brasil. Trata-se de famílias que, miscigenadas e territorialmente espoliadas ao longo do tempo, reencontram, no presente, contextos políticos e históricos favoráveis à retomada de suas identidades coletivas indígenas.

O processo não é exclusividade do Brasil; casos semelhantes são conhecidos em outros Estados nacionais contemporâneos como, por exemplo, na Bolívia e na Índia.

Em nosso país, esse fenômeno surge de modo mais evidente nas últimas décadas, quando as histórias regionais passam a ser reestudadas; os direitos indígenas, mais reconhecidos e respeitados; e as organizações de apoio aos índios se consolidam de forma mais efetiva e passam a ser agentes importantes da causa indígena.

 == Etnogêneses Indígenas ==

José Maurício Arruti, historiador (UFF), antropólogo (Museu Nacional) e pesquisador associado do Cebrap, faz uma análise dos processos de etnogêneses indígenas que ganharam força no Brasil a partir da década de 1970.

 

Para entender o fenômeno

Desde os anos de 1970, mas em especial nos últimos cinco anos, tais etnogêneses vêm se multiplicando de forma surpreendente para qualquer observador, leigo ou especialista. Em um levantamento inicial e, sem dúvida, precário, pudemos localizar o registro de mais de 50 grupos novos com demandas pelo seu reconhecimento como indígenas. Estão distribuídos por 15 estados da Federação, de norte a sul, mas especialmente concentrados no Nordeste (22 no Ceará e cinco em Alagoas) e Norte (sete no Pará), dos quais sabe-se muito pouco além das próprias demandas.

O que é Etnogênese?

A tradição legalista e o forte senso comum sobre o que deve ser um índio (naturalidade e imemorialidade) têm funcionado como sérios obstáculos à implementação de avanços teóricos e jurídicos no reconhecimento de povos indígenas resistentes.

 

As “emergências”, “ressurgimentos”, ou “viagens da volta” são designações alternativas, cada uma com suas vantagens e desvantagens, para o que, de forma mais clássica e estabelecida, a antropologia designa por etnogêneses. Esse é o termo, ainda assim conceitualmente controvertido, usado para descrever a constituição de novos grupos étnicos.

Mas é importante enfatizar que, ao falarmos de etnogêneses, estamos nos referindo a um processo social e não a um tipo específico e diferenciado de grupos indígenas. Depois de reconhecidos e plenamente estabelecidos diante do movimento indígena, da sociedade regional e dos órgãos públicos oficiais, tais grupos devem deixar de ser contabilizados nas listas de grupos emergentes, justamente por terem percorrido o mais ou menos longo, dependendo de cada situação, processo de etnogênese. A tendência a classificá-los em separado, como grupos “emergentes”, “ressurgentes”, “ressurgidos”, ou mesmo “remanescentes” tem, portanto, o inconveniente de converter categorias criadas para descrever processos sociais e históricos em categorias de identificação, que assim perdem seu dinamismo e sua historicidade, para denotarem uma qualidade ou uma substância.

O passo seguinte e segundo inconveniente seria considerar que tal qualidade diferenciada os colocaria em uma segunda categoria de índios, justamente de índios de segunda categoria, índios que seriam menos índios. Isso acontece porque o senso comum toma “grupo étnico” como simples derivação de “etnia”, remetendo esta, em função de sua acepção mais comum (“grupo de pessoas de mesma raça ou nacionalidade que apresentam uma cultura comum e distinta”), tanto a conteúdos culturais (nacionais), quanto naturais (raciais). O resultado é que o uso mais comum da expressão acaba dissolvendo as frágeis fronteiras semânticas entre todos esses termos para figurar como um simples eufemismo de raça, em especial quando esta é tomada como expressão política das diferenças.

Na acepção antropológica, ao contrário, os grupos étnicos não são definidos por qualquer conteúdo (cultural ou não), mas como unidades sociais que emergem de mecanismos sociais de diferenciação estrutural entre grupos em interação. Isto é, seus modos particulares de construir oposições e classificar pessoas, o que coloca no centro da definição as “fronteiras” que delimitam e separam os grupos e não mais os conteúdos compreendidos nelas. É nesse sentido que a cultura não necessariamente desaparece da análise, mas deixa de ser teoricamente relevante para a definição dos grupos étnicos, já que ela se torna uma variável e não a constante da definição: já não mais explica, mas é explicada pelos mecanismos e razões que delimitam e definem os grupos.

Acompanhando essa inflexão interpretativa, o termo etnogênese deveria dirigir nossa atenção não para a “invenção das tradições” em si mesmas, como em geral acontece, mas para os mecanismos sociais que permitem um determinado grupo social estabelecer o descontínuo onde aparentemente só existia a continuidade. Como na definição de grupo étnico, a “invenção cultural” não é desimportante para a análise da etnogênese, só não é o teoricamente mais relevante. No seu lugar, importa compreender as razões, os meios e os processos que permitem um determinado agregado qualquer se instituir como grupo, ao reivindicar para si o reconhecimento de uma diferença em meio à indiferença, ao instituir uma fronteira onde antes só se postulava contigüidade e homogeneidade. Se o etnocídio é o extermínio sistemático de um estilo de vida, a etnogênese, em oposição a ele, é a construção de uma autoconsciência e de uma identidade coletiva contra uma ação de desrespeito (em geral produzida pelo Estado nacional), com vistas ao reconhecimento e à conquista de objetivos coletivos.  

 == A situação no Nordeste ==

José Maurício Arruti, historiador (UFF), antropólogo (Museu Nacional) e pesquisador associado do Cebrap, faz uma análise dos processos de etnogêneses indígenas que ganharam força no Brasil a partir da década de 1970. Extraído de "Etnogêneses Indígenas", texto publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2001/2005.

Ainda que não seja a única onde ocorre o fenômeno, a região Nordeste concentrou as primeiras e maiores atenções relativas aos processos de etnogêneses. Não apenas por ser a região de colonização mais antiga e por ter tido todos os seus aldeamentos indígenas oficialmente extintos em um período de menos de 10 anos, entre as décadas de 1860 e 70, mas também porque foi nela que se registraram os primeiros grupos de caboclos reivindicando serem reconhecidos como indígenas.

Tais reivindicações se iniciaram nos anos de 1920, prolongando-se por duas décadas, quando foram interrompidas por um longo período, até serem retomadas nos anos 70. Essa cronologia conforma o que eu sugiro percebermos como dois ciclos, com características próprias, que passarei a descrever de forma muito simplificada a seguir.

 

Primeiro ciclo: décadas de 1920 a 1940

No século XVIII, a região contava com mais de 60 aldeamentos, ocupados por cerca de 27 nações indígenas, oficialmente extintas até às vésperas de 1880. Apesar da violência e antiguidade do processo de expropriação de tais grupos, esse último golpe, que marca a sua extinção oficial, foi fundamentalmente de caráter classificatório e jurídico. Por força de um conhecimento técnico (1) que postulou a sua reclassificação de índios para caboclos, eles deixaram de ter a prerrogativa legal de estar sob a administração de missionários e de dispor de terras de uso comum dos aldeamentos.

Convertidos em população comum, de trabalhadores nacionais, suas terras foram incorporadas aos “próprios nacionais”, parceladas e comercializadas. Enquanto os próprios aldeados foram dispersos ou acuados em pequenos trechos de seus antigos territórios, passando a ser proibidos de exercer algumas das práticas que os distinguiam. Entre essas, em especial o Toré, que – como também ocorreu com as práticas religiosas africanas – foi criminalizada e perseguida. Pouco menos de meio século depois, tempo longo, mas que foi vivido por uma mesma geração, tais grupos começaram a reivindicar o seu reconhecimento oficial como indígenas, tendo por principal objetivo a reconquista das terras dos antigos aldeamentos. Isso representou uma inversão não só das expectativas criadas por uma visão evolucionista do processo de civilização dos sertões, como também das práticas e estratégias do órgão indigenista.

Em meados dos anos de 1920, o órgão indigenista oficial passou a atuar no Nordeste por força do reconhecimento, pensado como excepcional, dos índios Carnijó de Águas Bellas (PE), rebatizados como Fulni-ô e apresentados, então, como o único grupo na região que mantinha evidentes sinais diacríticos com relação aos regionais: falavam o Iatê, tinham rituais proibidos aos de fora e mantinham regras restritivas para casamentos interétnicos. Essa excepcionalidade era o que justificava que o órgão se desviasse de seu objetivo manifesto, de abertura das fronteiras ao norte e oeste do país, para prestar assistência e “proteção” a grupos de uma região de colonização tão antiga.

A principal característica desse primeiro ciclo de etnogêneses está em ele ter se configurado com base em uma rede de relações previamente existente entre os grupos de "caboclos", tramada com base no calendário de festas religiosas e rituais indígenas, que têm como eixo o rio São Francisco e como precedente as viagens entre antigos aldeamentos.

Foi com base nessa rede que os agentes externos, sucessivamente, da Igreja, da academia e do Estado, entraram em contato com tais grupos. Primeiro, foi por meio de suas visitas aos Fulni-ô (AL), realizadas a convite do Padre Damaso, que o antropólogo Carlos Estevão entrou em contato com os Pankararu (PE) e com os Xukuru-Kariri (AL). Os Pankararu, por sua vez, mediaram por conta própria o contato do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) com os Kambiwá (Serra Negra - PE, local de refúgio das "guerras justas") e com os "índios rodelas" (reconhecidos como Tuxá - BA), que, em seguida, fariam eles mesmos a ponte entre o órgão indigenista e os Trucá (PE).

A "proteção oficial", nesse caso, implicou na interrupção das violências sofridas pelo grupo por parte de grileiros, assim como o acesso a bens materiais, como ferramentas, sementes e benfeitorias. Tais intervenções repercutiram sobre toda a região, despertando o interesse de uma série de outras comunidades de “caboclos” que viviam situação semelhante à dos Fulni-ô e que mantinham como eles relações rituais e de parentesco. Com isso, deflagrou-se o primeiro ciclo de etnogêneses da região. Um número crescente de comunidades descendentes de antigas populações aldeadas passou a apresentar suas próprias demandas pelo reconhecimento oficial como indígenas, a fim de alcançarem a mesma “proteção”. Como resultado disso, nos anos 30, o órgão indigenista reconheceria outros três grupos de “remanescentes indígenas” e, na década seguinte, outros oito.

Na década seguinte, foi novamente por intermédio daquele padre que o SPI se estabeleceu em Porto Real do Colégio (AL), reunindo nele os remanescentes do aldeamento da Ilha de São Pedro de Porto da Folha (SE), que haviam migrado para o antigo aldeamento Cariri, assim como os remanescentes deste aldeamento, que ocupavam precariamente parte das antigas terras da missão, dando origem à etnia mista dos Kariri-Xocó (AL). Todas essas passagens do órgão indigenista de um grupo ao outro, foram viabilizadas pelas relações previamente existentes entre suas populações.

As etnogêneses operam, assim, uma espécie de sobrecodificação daqueles circuitos e redes sociais. Talvez justamente por isso, esse primeiro ciclo se esgota no início da década de 1940, como se a rede das etnogêneses tivesse coberto todas as relações desenhadas pelo circuito de trocas anteriores que lhe dava sustentação.

 

Segundo ciclo: pós-1970

A partir da metade dos anos 70, levanta-se uma nova onda de etnogêneses indígenas. Entre 1977 e 1979, surgem cinco grupos reivindicando a identificação oficial como remanescentes indígenas, entre 1980 e 1989, surgem mais dez e entre 1990 e 1998, mais nove, existindo ainda informações sobre um grande número de demandas no estado do Ceará.

Nessa reedição do fenômeno, quase três décadas depois do primeiro ciclo, não só o volume e o ritmo dessas etnogêneses são alterados. O próprio padrão por elas desenhado é outro. Não estão mais ligadas necessariamente às terras de antigos aldeamentos, nem operam como a sobrecodificação de uma rede anterior de trocas rituais e de parentesco. Ao contrário, parecem estar ligadas à constituição de um campo indigenista no Brasil, que reverbera sobre a região Nordeste e que tem como um dos seus principais atores a igreja católica.

A Declaração de Barbados (1971) teve forte repercussão no interior da Igreja Católica, levando a uma atenção diferenciada das dioceses sobre o tema, à criação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e à realização das diversas Assembléias Indígenas que marcam o período, que serviram de base a um trabalho de formação política de lideranças indígenas. Os anos 70 (de institucionalização da disciplina antropológica no Brasil) também assistiram a uma nova sensibilidade com relação à questão indígena. É desse período a criação de entidades indigenistas não-governamentais e não-confessionais, como a Associação de Apoio ao Índio (Anai) e a Comissão Pró-Índio (CPI), respectivamente nos anos de 1977 e 1978, como entidades de representação nacional, operando em vários estados.

Se no primeiro ciclo as reivindicações todas baseavam-se na continuidade memorial e territorial com grupos aldeados em missões ou associados a regiões historicamente associadas à perambulação e refúgio de grupos fugidos, dos treze grupos mais recentes no Nordeste para os quais possuímos informações, apenas dois repetem esse padrão. Os outros podem ser divididos em três tipos, conforme a fonte de legitimidade de suas demandas.

Num primeiro conjunto, encontramos grupos que não constituem inicialmente etnogêneses, mas partogêneses. Tendo suas terras inundadas nos anos 40 pela Usina Hidrelétrica (UHE) de Itaparica e só sendo contemplados parcialmente em suas necessidades territoriais no momento do reassentamento, os Tuxá originais se partiram em outros dois grupos, distribuídos por regiões muito distintas. Se, por um lado, os três núcleos assim formados continuaram a se reconhecer como parte de uma mesma etnia, sua fragmentação teve conseqüências políticas (fragmentação das autoridades fundadas sobre recortes internos ao grupo original) e rituais (criação de variações sobre o exercício de sua tradição), que acabaram conformando a constituição de grupos étnicos autônomos.

Ainda nesse primeiro tipo, pelo menos outros três desses novos grupos surgiram de rupturas faccionais (dois deles por meio de transferências patrocinadas pela própria Funai). Tais fracionamentos levaram à constituição de novas unidades socio-políticas para as quais passam a existir novas demandas territoriais e uma nova estrutura oficial, com novas lideranças reconhecidas pelo órgão, novo Posto Indígena e recursos específicos, ainda que cada vez menos originários da Funai. É importante observar que nesses casos o ponto crítico das rupturas faccionais passa pelas limitações às negociações internas decorrentes de seus processos de territorialização. A moldura territorial das áreas indígenas, ligada à exigência de uma unidade político-administrativa, à qual se acopla uma extensão do aparelho burocrático do órgão tutelar, principal canal de acesso a recursos externos, leva a que os recortes de natureza familiar e ritual assumam uma dimensão territorial e política que não seriam possíveis fora desse contexto.

Num segundo conjunto, há a situação vivida por grupos cuja emergência não passa pela reivindicação de uma originalidade e distintividade ligada a vínculos territoriais com grupos históricos redescobertos, mas por uma continuidade genealógica e ritual como grupos já existentes e plenamente legitimados. Nesses casos há a reivindicação de uma identidade e de um etnônimo próprios, mas que são pensados como parte desgarrada e autonomizada de unidades mais amplas, por efeito das migrações em busca de novas terras ou de água, tão comum entre as populações indígenas históricas do sertão. Essa situação é vivida por pelo menos 10 dos 33 grupos surgidos no período entre 1970 e 95, todos ligados aos Pankararu.

O terceiro grupo é formado por aqueles que, não dispondo das características identificadas nos dois grupos anteriores, buscarem legitimar suas demandas, reportam-se, primeiro, ao apossamento tradicional de um determinado território coletivo, mas também e principalmente, ao compartilhamento de uma série de traços substantivos que os podem enquadrar como indígenas. Recorrem aos “índices de indianidade” (2), por assim dizer, dentre os quais destaca-se o Toré, identificado pelo indigenismo oficial como dança-religião-ritual-festa indígena por excelência do Nordeste.

O estado do Ceará é, depois do ano de 2000, o que maior destaque tem no campo das etnogêneses. Em um encontro (22/01/2006) de representantes de povos indígenas do estado, foi definida uma lista com mais de 20 grupos indígenas, dos quais apenas quatro são oficialmente reconhecidos pela Funai e seis têm processo de reconhecimento iniciado. Nesse contexto, ganham destaque também as implicações recíprocas desse fenômeno com a organização do campo indigenista no estado, em especial o de origem ou base cristã.

 

2002 - Um novo marco legal

A partir do ano de 2002, as mudanças introduzidas no ordenamento jurídico nacional, decorrentes da ratificação pelo governo brasileiro da Convenção nº 169 sobre “Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes”, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989, trouxeram mudanças importantes para as dinâmicas sociais envolvidas nos processos de etnogênese. Como a maior parte desses processos tiveram e ainda têm em vista o acesso a recursos, e uma parte importante desses recursos tem origem estatal ou são regulados por leis, políticas ou órgãos estatais, um momento importante desses processos passa pelo reconhecimento de tais grupos por parte do Estado brasileiro, de acordo com os rótulos ou etnônimos que eles se auto-atribuem.

Desde os primeiros momentos, no entanto, o Estado brasileiro procurou impor restrições a tal reconhecimento. Primeiro, por meio de uma rotina interna ao próprio órgão indigenista, pautada em um determinado saber prático sobre o que são os grupos indígenas (que resultou na importância historicamente atribuída ao Toré no Nordeste), mas depois dos anos 70, pelo recurso formal aos conhecidos laudos periciais antropológicos. Como detentores de um saber formal e legítimo sobre os grupos indígenas, os antropólogos se viram freqüentemente solicitados a realizar trabalhos que tinham como pauta, a demanda oficial pela verificação das identidades indígenas.

Mas com a ratificação da Convenção 169 da OIT, o Estado brasileiro finalmente abdicou formal e teoricamente dessa sua prerrogativa com relação ao poder de classificar sua população. A Convenção abre “reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos estados onde moram”. E estabelece (artigo 1º, parágrafo 2º) que a “consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”. A partir de então, os mecanismos de legitimação das etnogêneses deixam de ser determinados pelo Estado, passando a estar submetidos a uma dinâmica social mais complexa.

A primeira resposta a essa mudança veio no ano seguinte à ratificação. Em maio de 2003, realizou-se em Olinda (PE), o I Encontro Nacional dos Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial, com a presença de 90 representantes de 47 povos indígenas, 26 deles auto-intitulados indígenas recentemente e ainda sem o reconhecimento oficial de sua etnicidade. Na lista da Funai constam apenas 36 nessa mesma situação.

Uma das reivindicações que constam do documento final do encontro, além da inevitável demanda pela demarcação, regularização e desintrusão das áreas, foi justamente extinguir “a exigência de laudos para identificação étnica, reconhecendo a afirmação de nossa identidade étnica e territorial conforme a Convenção 169 da OIT” (3). Como dizem, os grupos ali reunidos chegaram “a conclusão de que devemos ser reconhecidos por nossa história de resistência e não mais por nossa suposta ressurgência ou emergência”. Daí exigirem ser designados não por uma dessas formas, mas como “índios resistentes”. Retornamos aqui, portanto, ao mesmo tempo à dificuldade e à aparente necessidade de designar de forma diferenciada tais grupos da qual falamos no início deste texto. Agora, enfrentada por eles mesmos, a solução para tal necessidade passou pela tentativa de inverter o efeito substancializador e estigmatizante que poderiam conter as designações anteriores, assumindo um outro, no qual buscam inverter tal estigma.

Assim, como se observa em outros Estados latino-americanos, a Convenção tem tido influência significativa na definição das políticas e programas nacionais, além (ou em função) de pautar a formulação de diretrizes e políticas de várias agências multilaterais de desenvolvimento. A sua aplicabilidade prática, no entanto, ainda encontra inúmeros obstáculos. Por toda a América Latina são constantes as queixas dos movimentos indígenas e especialistas dos países signatários do Convênio, relativas ao desconhecimento ou oposição real das autoridades judiciais e administrativas à sua aplicação. A tradição legalista e formalista, e em especial colonialista de tais funcionários, associada a um forte senso comum sobre o que deve ser um índio (naturalidade e imemorialidade), tem funcionado como sério obstáculo à implementação de tais avanços teóricos e jurídicos. De qualquer forma, se a disposição do Estado brasileiro em aplicar tal preceito por meio da prática do seu órgão indigenista se consolidar, estamos diante de um novo momento desses processos de etnogêneses. (Julho de 2006)

 

 

 

 

Notas

(1)Em decorrência da Lei de Terras de 1850, os estados da federação foram incumbidos de fazer o cadastramento de todas as terras devolutas existentes em seus territórios. Para isso foram instituídas Comissões de Medição e Demarcação, constituídas por engenheiros e cartógrafos, que içaram com a responsabilidade de avaliar, a partir de um conjunto restrito de itens (a incorporação no mercado de trabalho local, a existência de casamentos com brancos e a profissão da fé cristã), se os aldeados ainda eram indígenas se já se haviam civilizado. A resposta das Comissões foi, invariavelmente, a constatação da civilidade dos aldeados.

(2) “Indianidade” aqui designa uma determinada forma de ser e de conceber-se “índio”, no sentido genérico do termo, construída na interação com o órgão tutelar, a partir de uma determinada imagem do que deve ser um “índio”. Assim, a “indianidade” é uma representação e um tipo de comportamento, gerado pela interação de povos indígenas com os aparelhos de Estado e seus procedimentos estandartizados, que impõem à grande diversidade de culturas e organizações sociais um modelo, que acaba sendo assumido efetivamente por aqueles povos.

(3) Representantes da Funai presentes ao encontro confirmaram a mesma interpretação relativa à Convenção 169 da OIT e garantiram que a presidência do órgão já havia decidido pelo fim da prática dos “laudos de identificação étnica”.


Outras leituras

''Quem é índio?'' por Eduardo Viveiros de Castro, pesquisador e professor de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) e sócio-fundador do ISA

Para o assunto em nível internacional, o ISA recomenda os seguintes sites:


Outras Leituras Em abril de 2006, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro falou à equipe de edição da Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. Leia No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é