Línguas
Introdução
Atualmente, mais de 150 línguas e dialetos são falados pelos povos indígenas no Brasil. Elas integram o acervo de quase sete mil línguas faladas no mundo contemporâneo (SIL International, 2009). Antes da chegada dos portugueses, contudo, só no Brasil esse número devia ser próximo de mil.
No processo de colonização, a língua Tupinambá, por ser a mais falada ao longo da costa atlântica, foi incorporada por grande parte dos colonos e missionários, sendo ensinada aos índios nas missões e reconhecida como Língua Geral ou Nheengatu. Até hoje, muitas palavras de origem Tupi fazem parte do vocabulário dos brasileiros.
Da mesma forma que o Tupi influenciou o português falado no Brasil, o contato entre povos faz com que suas línguas estejam em constante modificação. Além de influências mútuas, as línguas guardam entre si origens comuns, integrando famílias linguísticas, que, por sua vez, podem fazer parte de divisões mais englobantes - os troncos linguísticos. Se as línguas não são isoladas, seus falantes tampouco. Há muitos povos e indivíduos indígenas que falam e/ou entendem mais de uma língua; e, não raro, dentro de uma mesma aldeia fala-se várias línguas - fenômeno conhecido como multilinguismo.
Em meio a essa diversidade, apenas 25 povos têm mais de cinco mil falantes de línguas indígenas: Apurinã, Ashaninka, Baniwa, Baré , Chiquitano, Guajajara, Guarani( Ñandeva, Kaiowá, Mbya), Galibi do Oiapoque, Ingarikó, Huni Kuin, Kubeo, Kulina, Kaingang, Mebêngôkre, Macuxi, Munduruku, Sateré Mawé, Taurepang, Terena, Ticuna, Timbira, Tukano, Wapichana, Xavante, Yanomami, e Ye'kwana.
Conhecer esse extenso repertório tem sido um desafio para os linguistas, assim como mantê-lo vivo e atuante tem sido o objetivo de muitos projetos de educação escolar indígena.
Troncos e famílias
Dentre as cerca de 150 línguas indígenas que existem hoje no Brasil, umas são mais semelhantes entre si do que outras, revelando origens comuns e processos de diversificação ocorridos ao longo do tempo.
Os especialistas no conhecimento das línguas (lingüistas) expressam as semelhanças e as diferenças entre elas através da idéia de troncos e famílias lingüísticas. Quando se fala em tronco, têm-se em mente línguas cuja origem comum está situada há milhares de anos, as semelhanças entre elas sendo muito sutis. Entre línguas de uma mesma família, as semelhanças são maiores, resultado de separações ocorridas há menos tempo.
Veja o exemplo do português:
No que diz respeito às línguas indígenas no Brasil, por sua vez, há dois grandes troncos - Tupi e Macro-Jê - e 19 famílias lingüísticas que não apresentam graus de semelhanças suficientes para que possam ser agrupadas em troncos. Há, também, famílias de apenas uma língua, às vezes denominadas “línguas isoladas”, por não se revelarem parecidas com nenhuma outra língua conhecida.
É importante lembrar que poucas línguas indígenas no Brasil foram estudadas em profundidade. Portanto, o conhecimento sobre elas está permanentemente em revisão.
Conheça as línguas indígenas brasileiras, agrupadas em famílias e troncos, de acordo com a classificação do professor Ayron Dall’Igna Rodrigues. Trata-se de uma revisão especial para o ISA (setembro/1997) das informações que constam de seu livro Línguas brasileiras – para o conhecimento das línguas indígenas (São Paulo, Edições Loyola, 1986, 134 p.).
Tronco Tupi
Tronco Macro-jê
Outras famílias
Multilinguismo
Texto adaptado de Aryon Dall´Igna Rodrigues – Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. Edições Loyola, São Paulo, 1986
Os povos indígenas sempre conviveram com situações de multilingüismo. Isso quer dizer que o número de línguas usadas por um indivíduo pode ser bastante variado. Há aqueles que falam e entendem mais de uma língua ou que entendem muitas línguas, mas só falam uma ou algumas delas.
Assim, não é raro encontrar sociedades ou indivíduos indígenas em situação de bilingüismo, trilingüismo ou mesmo multilingüismo.
É possível nos depararmos, numa mesma aldeia, com indivíduos que só falam a língua indígena, com outros que só falam a língua portuguesa e outros ainda que são bilíngües ou multilíngües. A diferença lingüística não é, geralmente, impedimento para que os povos indígenas se relacionem e casem entre si, troquem coisas, façam festas ou tenham aulas juntos. Um bom exemplo disso se encontra entre os índios da família lingüística Tukano, localizados em grande parte ao longo do rio Uaupés, um dos grandes formadores do rio Negro, numa extensão que vai da Colômbia ao Brasil.
Entre esses povos habitantes do rio Negro, os homens costumam falar de três a cinco línguas, ou mesmo mais, havendo poliglotas que dominam de oito a dez idiomas. Além disso, as línguas representam, para eles, elementos para a constituição da identidade pessoal. Um homem, por exemplo, deve falar a mesma língua que seu pai, ou seja, partilhar com ele o mesmo “grupo lingüístico”. No entanto, deve se casar com uma mulher que fale uma língua diferente, ou seja, que pertença a um outro “grupo lingüístico”.
Os povos Tukano são, assim, tipicamente multilíngües. Eles demonstram como o ser humano tem capacidade para aprender em diferentes idades e dominar com perfeição numerosas línguas, independente do grau de diferença entre elas, e mantê-las conscientemente bem distintas, apenas com uma boa motivação social para fazê-lo.
O multilingüismo dos índios do Uaupés não inclui somente línguas da família Tukano. Envolve também, em muitos casos, idiomas das famílias Aruak e Maku, assim como a Língua Geral Amazônica ou Nheengatu, o Português e o Espanhol.
Às vezes, nesses contextos, uma das línguas torna-se o meio de comunicação mais usado (o que os especialistas chamam de língua-franca), passando a ser utilizada por todos, quando estão juntos, para superar as barreiras da compreensão. Por exemplo, a língua Tukano, que pertence à família Tukano, tem uma posição social privilegiada entre as demais línguas orientais dessa família, visto que se converteu em língua geral ou língua franca da área do Uaupés, servindo de veículo de comunicação entre falantes de línguas diferentes. Ela suplantou algumas outras línguas (completamente, no caso Arapaço, ou quase completamente, no caso Tariana).
Há casos em que é o Português que funciona como língua franca. Em algumas regiões da Amazônia, por exemplo, há situações em que diferentes povos indígenas e a população ribeirinha falam o Nheengatu, língua geral amazônica, quando conversam entre si.
Línguas gerais
Nos primeiros tempos da colonização portuguesa no Brasil, a língua dos índios Tupinambá (tronco Tupi) era falada em uma enorme extensão ao longo da costa atlântica. Já no século XVI, ela passou a ser aprendida pelos portugueses, que de início eram minoria diante da população indígena. Aos poucos, o uso dessa língua, chamada de Brasílica, intensificou-se e generalizou-se de tal forma que passou a ser falada por quase toda a população que integrava o sistema colonial brasileiro.
Grande parte dos colonos vinha da Europa sem mulheres e acabavam tendo filhos com índias, de modo que a Língua Brasílica era a língua materna dos seus filhos. Além disso, as missões jesuítas incorporaram essa língua como instrumento de catequização indígena. O padre José de Anchieta publicou uma gramática, em 1595, intitulada Arte de Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil. Em 1618, publicou-se o primeiro Catecismo na Língua Brasílica. Um manuscrito de 1621 contém o dicionário dos jesuítas, Vocabulário na Língua Brasílica.
A partir da segunda metade do século XVII, essa língua, já bastante modificada pelo uso corrente de índios missionados e não-índios, passou a ser conhecida pelo nome Língua Geral. Mas é preciso distinguir duas Línguas Gerais no Brasil-Colônia: a paulista e a amazônica. Foi a primeira delas que deixou fortes marcas no vocabulário popular brasileiro ainda hoje usado (nomes de coisas, lugares, animais, alimentos etc.) e que leva muita gente a imaginar que "a língua dos índios é (apenas) o Tupi".
Língua geral paulista
A Língua Geral paulista teve sua origem na língua dos índios Tupi de São Vicente e do alto rio Tietê, a qual diferia um pouco da dos Tupinambá. No século XVII, era falada pelos exploradores dos sertões conhecidos como bandeirantes. Por intermédio deles, a Língua Geral paulista penetrou em áreas jamais alcançadas pelos índios tupi-guarani, influenciando a linguagem corriqueira de brasileiros.
Língua geral amazônica
Essa segunda Língua Geral desenvolveu-se inicialmente no Maranhão e no Pará, a partir do Tupinambá, nos séculos XVII e XVIII. Até o século XIX, ela foi veículo da catequese e da ação social e política portuguesa e luso-brasileira. Desde o final do século XIX, a Língua Geral amazônica passou a ser conhecida, também, pelo nome Nheengatu (ie’engatú = “língua boa”).
Apesar de suas muitas transformações, o Nheengatu continua sendo falado nos dias de hoje, especialmente na bacia do rio Negro (rios Uaupés e Içana). Além de ser a língua materna da população cabocla, mantém o caráter de língua de comunicação entre índios e não-índios, ou entre índios de diferentes línguas. Constitui, ainda, um instrumento de afirmação étnica dos povos que perderam suas línguas, como os Baré, os Arapaço e outros.
Ver também
Escola, escrita e valorização das línguas
Línguas silenciadas, novas línguas
Os primeiros dados
por Bruna Franchetto (antropóloga e lingüista do Museu Nacional/ UFRJ)
O século XVI viu a Europa se expandir para além de suas fronteiras. As conquistas fizeram os sábios europeus, encabeçados por muitos missionários e alguns viajantes, mergulharem na diversidade. Ampliaram-se os horizontes lingüísticos, começaram a se acumular conhecimentos registrados em listas de palavras, esboços gramaticais, escritas de falas e discursos. Nos novos mundos, se iniciavam investigações que alimentavam teorias e tipologias, inspiradas ora nos esquemas evolucionistas que vigoraram até o final do século XIX, ora no universalismo dos gramáticos filósofos racionalistas que floresceram sobretudo no século XVII.
Enquanto os espanhóis registravam quase que obsessivamente as línguas encontradas nos territórios que iam conquistando em trajetórias de penetração do litoral para o interior, os portugueses se concentraram nas línguas da costa, onde dominava o Tupi-Guarani. Os documentos dos primeiros três séculos da colonização do Brasil que a nós chegaram, são gramáticas e catecismos de três línguas indígenas que desapareceram no mesmo período: Tupinambá, Kariri e Manau. O Tupi Antigo disfarçava-se nas Línguas Gerais – Paulista e Amazônica –, das quais se conservou uma considerável memória escrita e, também, missionária.
As gramáticas jesuíticas tupi até hoje são objeto de admiração e repulsa. De um lado, admira-se clareza e detalhamento das observações que nos permitem apreciar ainda os sistemas e processos fonológicos e morfossintáticos do Tupinambá e do Tupi Antigo. Do outro lado, e ao mesmo tempo, critica-se a roupagem expositiva que traduz e classifica os fatos registrados através das categorias da tradição gramatical greco-latina. A língua indígena, de qualquer maneira, era consumida e transfigurada, enfim, conquistada, pelo empreendimento missionário, na escrita, nos catecismos, nos autos e peças teatrais pedagógicas, onde o combate cristão bilíngüe (tupi/português) entre o bem e o mal deveria engajar índios e brancos, pecadores das aldeias e das vilas, na luta contra o demônio do paganismo e na elevação para o reino divino pregado pelos conquistadores. Mais tarde, o romantismo tupi na construção da nacionalidade brasileira apresentaria a face profana dessa tradição missionária, erguendo-se com seus lirismos sobre morte, massacre, sacrifício de povos inteiros. E é uma língua tupi transfigurada (e desfigurada) pela literatura que foi traduzindo para o imaginário nacional brasileiro um índio genérico que continua povoando o senso comum, a história escolar, filmes e novelas.
As descobertas nos novos mundos pavimentaram o caminho da lingüística que se apresentaria como ciência na segunda metade do século XIX, comparando e classificando as línguas conhecidas das terras conhecidas, reconstruindo suas histórias. O território brasileiro começou a se povoar, aos poucos, por dezenas de povos e línguas nos mapas desenhados pelas frentes de colonização penetrando o interior. Ao missionário sucedia, ou melhor, se acrescentava, o estudioso viajante, que acompanhava, direta ou indiretamente, as novas expedições de conquista: Koch-Grünberg, Steinen, Capistrano de Abreu, Curt Nimuendajú, para mencionar os mais importantes. As observações gramaticais, mais ou menos sistemáticas, eram acompanhadas ou ilustradas por coletâneas de textos, transcrições alfabéticas de peças das tradições orais de diversos povos indígenas. Começava a se constituir um corpus, na sua maioria composto de narrativas, que seriam transfiguradas, novamente, para alimentar um folclore nacional com suas personagens emblemáticas, como Macunaíma, o herói trickster dos povos karib do norte amazônico.
Evangelização e pesquisa
O zelo evangelizador tem sido, de qualquer maneira, a base do interesse lingüístico missionário; continua sendo ainda hoje, para o trabalho lingüístico de muitas missões de fé, encabeçadas pela norte-americana Summer Institute of Linguistics, hoje Sociedade Internacional de Lingüística (SIL), como a Novas Tribos, a MEVA (Missão Evangélica da Amazônia), a JOCUM (Jovens com Uma Missão), a ALEM (Associação Lingüística Evangélica Missionária). Essas missões e seus lingüistas, portadores de um trágico binômio "aniquilar culturas, salvar línguas", após demorado trabalho de estudo, esvaziam palavras e enunciados de línguas indígenas para torná-los recipientes de outros conteúdos, bíblias e evangelhos, novas semânticas para povos subjugados e passivizados sob o rolo compressor da conversão civilizatória. O SIL, dublê de missão militantemente evangelizadora e instituição de pesquisa, foi personagem importante na implementação da pesquisa em lingüística "indígena" no Brasil entre o final dos anos 50 e o dos anos 70, bem como teve, até não muito tempo atrás, primazia na cena da lingüística internacional (tendo recursos próprios para publicar e publicando em inglês).
A lingüística laica, não obstante, foi se desvencilhando, mesmo que penosamente, do marco missionário, procurando documentar o que resta dessa diversidade, desdobrando-se entre o desenvolvimento de seus modelos descritivos e explicativos e a aplicação de seus saberes em prol de projetos políticos que possibilitem a sobrevida digna das línguas indígenas diante do fascínio e poder da língua dos brancos na mídia, nos papéis, nas máquinas, nas escolas.
Levantamento feito por Storto e Moore em 1991 mostrava que de 80 a 100 línguas tinham recebido algum tipo de descrição; quase metade estava sem nenhuma documentação. Os autores consideravam que 10% das línguas contavam com uma descrição gramatical satisfatória. Havia somente 12 doutores no Brasil dedicando-se ao estudo dessas línguas, somente oito universidades com a presença das línguas indígenas em programas de pós-graduação. O SIL trabalhava com 40 línguas, não tendo contribuído à formação de nenhum pesquisador brasileiro. Cinqüenta e nove estavam sendo investigadas por lingüistas não-missionários; entre 1985(1) e 1991, um aumento de 36%; entre 1987 e 1991, o Programa de Pesquisas Científica das Línguas Indígenas Brasileiras (PPCLIB) do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) deu apoio a bolsas, pesquisas de campo e cursos intensivos. Os resultados de levantamento por mim realizado em 1995 mostravam a existência de cerca de 120 pesquisadores (80% ativos; uma dezena de pesquisadores missionários com vínculos acadêmicos em instituições brasileiras). Observava-se o aumento da participação de graduandos e pós-graduandos; as atividades do SIL pareciam estacionárias. O número de pesquisadores estrangeiros representava cerca de 10% desse total: norte-americanos, franceses, holandeses, alemães, sem contar os ligados às missões evangélicas, onde os norte-americanos são a maioria. Entre 1991 e 1995, houve aparentemente um aumento de cerca de 40% em termos do número de línguas estudadas.
Naquele momento, eu observava que pouco mais de 30 delas tinham uma documentação ou descrição satisfatória (algo como uma gramática de referência com textos e, possivelmente, um léxico), 114 tendo algum tipo de descrição sobre aspectos da fonologia e/ou da sintaxe, o restante continuando no limbo do desconhecido. Nesse cálculo, aproximado e provisório, incluía os frutos visíveis, ou seja, em poder de instituições brasileiras ou publicados, da atuação do SIL.
Nesse sentido, uma classificação tripartida em línguas sem nenhuma documentação, com pouca (ou alguma documentação), bem documentadas, é obviamente simplificadora. Nos levantamentos da produção de conhecimentos na área da chamada "lingüística indígena", geralmente não está em jogo a qualidade, nem absoluta nem relativa, dos trabalhos ou das análises, mas a sua mera existência. A qualidade da documentação ou da descrição lingüística é questão que só recentemente começou a ser discutida com seriedade, inclusive graças ao acúmulo de novos conhecimentos e novos dados, a uma maior atenção às teorias que estão na base de modelos descritivos, ao aumento de pesquisadores envolvidos, a uma maior circulação e divulgação das pesquisas e ao desenvolvimento de metodologias e tecnologias para o armazenamento e processamento de dados.
Notas
(1) Rodrigues, Aryon D. - Línguas Brasileiras, São Paulo: Edições Loyola, 1986.Agosto de 2008
A escola e a preservação lingüística
por Bruna Franchetto (antropóloga e lingüista do Museu Nacional/ UFRJ)
Depois da hegemonia do estruturalismo distribucionalista norte-americano importado pelo SIL, nos anos 90, assistimos, então, decididamente, a um desenvolvimento gradual e progressivo da área, com uma interessante diversificação de linhas teóricas; convivem (e competem) diferentes paradigmas, num saudável pluralismo científico; amadurece a discussão entre pesquisa descritiva e pesquisa teórica, cujo objetivo é a de inserir os dados de línguas indígenas nos debates e embates da teoria lingüística atual. Foi retomada a investigação histórica e comparativa.
Assim, por exemplo, começam a ser divulgados os resultados importantes do projeto "Tupi Comparativo" em andamento no Museu Goeldi, dos encontros de lingüistas especialistas em línguas Tupi-Guarani, das pesquisas sobre línguas da família Pano (UNICAMP, Setor de Lingüística do Museu Nacional/UFRJ), dos estudos de línguas arawak, das línguas karib meridionais (UNICAMP e Museu Nacional-UFRJ), do noroeste e do nordeste amazônicos (Museu Goeldi, Museu Nacional/UFRJ). O diálogo entre etnologia, arqueologia e lingüística está se reconstituindo com base em hipóteses, teorias e metodologias modernas e pesquisas empíricas. Fortalecem-se centros de pesquisa tradicionais e outros despontam.
Segundo relatório de Lucy Seki(1), em 1998 subia para cerca de 80 o número de línguas objeto de algum tipo de estudo por parte de não-missionários. Percebia-se um leve declínio das atividades do SIL (30 línguas em estudo e oito projetos considerados concluídos).
É interessante observar o aumento do número de línguas já investigadas por missionários e retomadas por lingüistas brasileiros. Graças ao levantamento feito por Seki de dissertações, teses, publicações e inéditos, podemos avaliar, pelo menos quantitativamente, o incremento da produção por parte de pesquisadores brasileiros. Uma série de extensas e cuidadosas gramáticas de referência chegou ao público, como as gramáticas Kamayurá(2) e ainda Tiriyó, Trumai, Karo, Apurinã, Kadiweu, Karitiana, Wanano, Bororo, entre outras. Outras estão prestes a serem divulgadas.
O quadro institucional, infelizmente, não melhorou como se esperava. Ainda segundo Seki, no final dos anos 90, dos 66 programas de pós-graduação em Letras e Lingüística, apenas 12 desenvolviam pesquisas sobre línguas indígenas. Não obstante, aumentou, sem dúvida, a presença de trabalhos sobre línguas indígenas em eventos científicos nacionais e, nos internacionais. Os missionários/lingüistas não dominavam mais a cena. Inaugurou-se ou cresceu a participação de brasileiros nos universos eletrônicos especializados, como listas de discussões, como a Etnolinguistica. A isso acrescentamos que, pela primeira vez, informações ricas e razoavelmente fidedignas começaram a aparecer em sites oficiais e não-oficiais e em veículos governamentais e de divulgação científica.
A situação no final desta primeira década do século XXI mostra um quadro mais promissor, mas ainda aquém do desejado. Quanto aos conhecimentos produzidos sobre as línguas indígenas, o trabalho de Moore(3) nos permite constatar que:
- Apenas 15 línguas têm uma descrição ou documentação satisfatória (uma gramática descritiva, dicionário, coletâneas de textos);
- 35 línguas, pelomenos, permanecem amplamente ignoradas;
- 114 foram objeto de algum tipo de descrição de aspectos da fonológica e/ou da sintáxe.
Nota-se um claro desenvolvimento de grupos de pesquisa (Museu Goeldi, UNICAMP, Museu Nacional/UFRJ, USP, apenas para mencionar os mais organizados e produtivos). Novidade digna de destaque é o desenvolvimento de projetos de documentação nos últimos dez anos e com o apoio de programas internacionais (DOBES, ELDP, principalmente). Estes projetos incluem, até o momento, 20 línguas. Programas dessa natureza estão agora em fase de implementação no Brasil e com financiamento brasileiro. A moderna documentação visa não apenas a produção de gramáticas, dicionários e coletâneas de ‘textos’, mas a isso acrescenta uma tarefa fundamental, a construção de acervos digitais, usando métodos e tecnologias de ponta, que possam preservar amostras, as mais exaustivas possíveis, de eventos e gêneros de fala, artes verbais, conhecimentos e tradições orais.
Em suma, muito está sendo feito no Brasil fora da redoma missionária, se pensarmos na penúria de uns 20 anos atrás. Há, ainda, muito mais a ser feito. Há um excedente de trabalhos descritivos parciais e escassez de gramáticas de referência. Nos domínios dos gêneros de discurso, da arte verbal, da coleta de tradições orais, da elaboração de dicionários, as lacunas são imensas, como nos estudos sociolingüísticos, estes últimos indispensáveis quando se trata de entender as muitas e complexas situações de bilingüismo, multilingüismo e perda lingüística.
A escola e a preservação lingüística
No campo das línguas indígenas, o lingüista é uma figura de identidade dupla: é pesquisador e assessor de programas educacionais, fonólogo e fazedor-de-escritas-de-línguas-de-tradição-oral, professor e redator de material didático em língua indígena. Recebe demandas de organizações não-governamentais, do Estado e dos índios.
O envolvimento em projetos de educação (escolar) não significa apenas um exercício de aplicação de conhecimentos científicos, mas deve, hoje, se basear numa capacidade de revisão crítica do modelo dominante da chamada "educação bilíngüe", ainda, em muitos casos, atrelado, apesar de suas diversas versões, a uma matriz missionária ideologicamente civilizadora e integracionista (de novo, o legado do SIL, que monopolizou, até uns 20 anos atrás, a chamada educação bilíngüe também no Brasil).
Por outro lado, já há grupos indígenas que percebem "o perigo" que suas línguas correm e, por conseqüência, estão interessados em sua revitalização; em situações desse tipo, são os índios que procuram interagir com lingüistas que possam dedicar-se à documentação de sua língua. Diante de uma tarefa desse tipo – documentar uma língua num projeto conjunto com os índios e propor um trabalho de preservação ou resgate –, começamos somente agora a desenvolver e consolidar instrumentos conceituais e políticos.
Como diz Grinevald (4) este lingüista de campo é como uma orquestra de um homem só: deve dominar todos os campos da lingüística descritiva, conhecer as principais teorias que podem guiar suas interpretações e explicações, saber o bastante de uma específica lingüística aplicada para se enveredar em projetos de alfabetização ou de revitalização lingüística sem cair na armadilha de achar que os problemas se resolvem na escola, conseguir fazer pesquisa sobre a língua com os índios, ser sensível e esperto, saber que fazer lingüística numa aldeia não é um passeio de algumas semanas.
Os índios certamente agradeceriam todos os esforços e iniciativas que facilitassem o aparecimento desse novo pesquisador; a lingüística "indígena" deixaria para trás, definitivamente, amadorismo e subalternidade; a sociedade em geral aprenderia mais sobre um assunto que diz respeito diretamente à salvaguarda de uma riqueza que está em seu seio e que, ou desconhece, ou sepulta, no senso comum dos estereótipos.
Notas
(1) Seki, Lucy - A Lingüística Indígena no Brasil, dissertação de mestrado, Unicamp, 1999.
(2) Seki, Lucy - Gramática Kamayurá, Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
(3) Moore, Denny. Línguas Indígenas. 2008. ms
(4) Grinevald, Colette – “Language endangerment in South America: a programmatic approach”. In: Endangered Languages - Language loss and community response (editado por Lenore A. Grenoble e J. Whaley Lindsay), Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
Agosto de 2008
Comparando palavras diferentes
Veja exemplos de como os lingüistas descobrem línguas "aparentadas":
Palavras | Awetí (família Awetí) | Munduruku (família Munduruku) | Karitiana (família Arikém) | Tupari (família Tupari) | Gavião (família Mondé) |
---|---|---|---|---|---|
mão | po | by | py | po | pabe |
pé | py | i | pi | tsito | pi |
caminho | me | e | pa | ape | be |
eu | atit, ito | on | yn | on | õot |
você | en | en | na | en | eet |
mãe | ty | xi | ti | tsi | ti |
pesado | potyi | poxi | pyti | potsi | patii |
marido | men | itop | mana | men | met |
onça | ta'wat | wida | omaky | ameko | neko |
árvore | 'yp | 'ip | 'ep | kyp | 'iip |
cair | 'at | 'at | 'ot | kat | 'al- |
Palavras | Guarani Mbyá | Tapirapé | Parintintin | Waiampí | Língua Geral do Alto Rio Negro |
---|---|---|---|---|---|
pedra | itá | itã | itá | takúru | itá |
fogo | tatá | tãtã | tatá | táta | tatá |
jacaré | djakaré | txãkãré | djakaré | iakáre | iakaré |
pássaro | gwyrá | wyrã | gwyrá | wýra | wirá |
onça | djagwareté | txãwãrã | dja´gwára | iáwa | iawareté |
ele morreu | omanõ | amãnõ | omanõ | ománo | umanú |
"mão dele" | ipó | ipá | ipó | ípo | ipú |
Palavras |
Canela |
Apinayé |
Kayapó |
Xavante |
Xerente |
Kaingang |
pé |
par |
par |
par |
paara |
pra |
pen |
perna |
tè | tè | te | te | zda | fa |
olho |
tò | nò | nò | tò | tò | kane |
chuva |
taa | na | na | tã | tã | ta |
sol |
pyt | myt | myt | bââdâ | bdâ | rã |
cabeça |
khrã | krã | krã | 'rã | krã | kri |
pedra |
khèn | kèn | kèèn | 'eene | kne | pò |
asa, pena |
haaraa | 'ara | 'ara | djèèrè | sdarbi | fer |
semente |
hyy | 'y | 'y | djâ | zâ | fy |
esposa |
prõ | prõ | prõ | mrõ | mrõ | prõ |
Palavras |
Galibí |
Apalaí |
Wayâna |
Hixkaryâna |
Taulipáng |
lua | nuno | nuno | nunuy | nuno | kapyi |
sol | wéiu | xixi | xixi | kamymy | wéi |
água |
tuna | tuna | tuna | tuna | tuna, paru |
chuva |
konopo | konopo | kopo | tuna | kono' |
céu |
kapu | kapu | kapu | kahe | ka' |
pedra |
topu | topu | tepu | tohu | ty' |
flecha |
pyrywa | pyróu | pyréu | waiwy | pyrýu |
cobra |
okóiu | âkóia | ykýia | okóie | ykýi |
peixe |
wuoto | kana | kaa | kana | moro' |
onça |
kaituxi | kaikuxi | kaikui | kamara | kaikuse |
Palavras |
Karutana |
Warekena |
Tariana |
Baré |
Palikur |
Wapixana |
Apurinã |
Waurá |
Yawalapití |
língua | inene | inene | enene | nene | nene | nenuba | nene | nei | niati |
água | uni | one | uni | uni | une | wene | weni | une | u |
sol |
kamui | kamoi | kamoi | kamuhu | kamoi | kamoo | atukatxi | kamy | kame |
mão |
kapi | kapi | kapi | kabi | iwakti | kae | piu | kapi | kapi |
pedra |
hipa | ipa | hipada | tiba | tipa | keba | kai | typa | teba |
anta |
hema |
ema | hema | tema | aludpikli | kudoi | kema | teme | tsema |
Outras leituras
http://www.unb.br/il/lablind/lingerais.htm
A LÍNGUA QUE SOMOS, por José Ribamar Bessa Freire, 25/08/2013 - Diário do Amazonas
Saiba mais
Projeto de Documentação de Línguas Indígenas - Museu do Índio
Línguas Indígenas | Portal da Linguística - Museu Paraense Emílio Goeldi