Línguas silenciadas, novas línguas
por Bruna Franchetto, Linguista, Museu Nacional (UFRJ). Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.
Eufrásia Ferreira, indígena Guató, na cozinha de sua casa, escuta registro da língua de seu povo, município de Corumbá, Mato Grosso do Sul. Foto: Gustavo Godoy, 2016.
Cerca de 160 línguas ameríndias sobrevivem no brasil, mesmo silenciadas pelo estado, pelas missões, meios de comunicação e escolas. mas iniciativas indígenas de revitalização têm povoado essa paisagem de perda e subtração com novas línguas.
No final do século passado, a previsão era de que, das cerca de 5000/6000 línguas existentes no mundo, 90% estariam em risco de extinção neste século. Os críticos do catastrofismo linguístico dizem que línguas sempre morrem ou se transformam, no passado e hoje, e que novas línguas surgem do encontro entre povos, mas é inegável que uma perda vertiginosa da diversidade linguística, nada natural, caracteriza a era da conquista europeia dos novos e velhos mundos, sobretudo nos últimos 500 anos e, ainda mais, nos últimos 200 anos.
O Brasil é, ainda, multilíngue: além das línguas trazidas por imigrantes, das variedades regionais do português brasileiro e dos falares afrodescendentes, estima-se que no Brasil ainda sobrevivem, em graus variados de vitalidade, em torno de 160 línguas ameríndias, distribuídas em 40 famílias, duas macrofamílias ( troncos) e uma dezena de línguas isoladas. Esta diversidade linguística continua sendo silenciada, com estratégias variadas, pelo Estado, por missões, meios de comunicação, escolas, em todos os níveis do chamado "sistema educacional". A soberania de uma única língua, a dos conquistadores que conformaram a 'nação', é mantida de todas as maneiras.
Tendo como base o último Censo (2010) divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 37,4% dos 896.917 que se declararam “indígenas” falam sua língua nativa, a dos seus pais ou avós, e somente 17,5% desconhecem o português. O censo também revelou que 42,3% dos “indígenas” já não vivem em áreas indígenas e que 36% se estabeleceram em cidades, sendo esta porcentagem em rápido crescimento. Dos que não estão mais em Terras Indígenas, apenas 12,7% falavam a(s) língua(s) dos seus pais ou avós. O português era falado por 605,2 mil indivíduos (76,9% dos “indígenas”) e por praticamente todos os que vivem fora de suas terras (96,5%). A proporção entre 5 e 14 anos que falava uma língua indígena era de 45,9%, 59,1% dentro de Terras Indígenas e 16,2% fora delas. Nas Terras Indígenas, boa parte dos falantes de língua indígena não falavam português, sendo o maior percentual o dos indivíduos com mais de 50 anos (97,3%), enquanto que, fora das terras, nessa mesma faixa etária, o Censo revelou um percentual bem menor (40,7% de falantes somente de língua indígena). O quadro é claro: a transmissão esperada entre gerações é interrompida.
Segundo estimativas, já desatualizadas, o panorama não é animador: a média é de 250 falantes por língua; muitas línguas são usadas apenas em domínios restritos ou podem ser consideradas "inativas"; outras definham para o status de "línguas adormecidas", um eufemismo politicamente correto, já que se supõe que elas sempre possam ser "acordadas". Algumas línguas contam com menos de 10 falantes, outras com semifalantes sem comunicação entre si, outras ainda manifestam sinais de declínio, como o abandono de artes verbais, de partes do léxico culturalmente cruciais, o uso do português como língua-franca, o crescente bilinguismo (língua(s) indígena(s)/português). As línguas "ameaçadas" são a maioria absoluta, muito mais do que as oficialmente declaradas como tais, se adotarmos o critério internacional que define como "línguas em perigo" as que têm menos de mil falantes.
Sabemos ainda pouco sobre essas línguas, apesar dos avanços importantes e crescentes dos estudos e pesquisas nos últimos vinte anos. Os recursos humanos formados ou em formação para a investigação de línguas ameríndias – e seus campos de aplicação – continuam muito aquém do necessário, incluindo em destaque, aqui, a formação de pesquisadores indígenas.
Quantas línguas indígenas?
De fato, não há nenhum levantamento atualizado e os números são aproximativos (150? 160?); muito menos sabemos sobre a diversidade dialetal interna a cada língua. Uma língua sem diversidade interna é uma ficção: qualquer língua varia no tempo e no espaço (geográfico e social) e de uma situação comunicativa para outra. Não temos com relação às línguas indígenas a mesma atenção destinada à variedade interna do português; elas são quase sempre apresentadas como "objetos" homogêneos. Destaca-se e faz pensar o número de línguas indígenas que consta do Censo de 2010: 274. Nessa dança dos números de objetos (línguas) supostamente contáveis, cabe uma pergunta: afinal, o que é uma língua? Trata-se de um construto ideológico, que resultou, no Brasil, por exemplo, na perpetuação torturante da distinção entre, de um lado, língua nacional (uma nação, uma só língua) e línguas de civilização com suas literaturas (as que têm assento nos departamentos universitários) e, do outro lado, aquelas que até hoje custam a ser chamadas de "línguas", talvez "idiomas", ou dialetos e "gírias", sendo estes dois últimos termos claramente estigmatizantes.
O número de 274 línguas indígenas que consta do Censo gerou alarme entre os linguistas por colidir com as suas estimativas, mesmo as mais generosas. O "equívoco" do Censo deve ser interpretado e leva a conclusões instigantes, já que ele não expressa tanto um número por si só, mas traduções, apropriações, representações – com força e valor políticos – por parte dos alvos da operação censitária. Diante das opções "raciais", os que se autodeclararam "indígenas" acessavam perguntas a respeito de seu "idioma" ou "língua", uma inovação introduzida com o propósito de avaliar quantitativamente e qualitativamente a existência e vitalidade das línguas indígenas no Brasil.
O Censo produziu dados extremamente valiosos a esse respeito, mas o número fatídico tanto "escandalizou" linguistas quanto deixou perplexo ou excitado o público em geral. Foram realizados seminários e discussões abertos em torno dos resultados do Censo, mas, que eu saiba, não sobre a questão das "línguas indígenas", o que revela as dificuldades de compreender o que é "língua", chegar a uma definição que convença falantes, supostos não falantes que se definem decididamente falantes de línguas consideradas "extintas" ou "adormecidas", linguistas e não linguistas, agentes do Estado responsáveis por "patrimonializar línguas" etc.
Muitas vezes, os que se autodeclararam para o Censo como falantes de uma língua considerada "extinta" pertencem a grupos que conseguiram ressurgir da invisibilidade e do silêncio. Em sua luta para o reconhecimento de sua existência e resistência, bem como de seus direitos territoriais, se declarar falantes de uma "língua" é um corolário lógico e uma urgência política. Algumas dessas comunidades não ficam apenas na retórica política, mas estão, no momento, empenhados em se apropriar de uma língua, seja junto a vizinhos falantes de variedade ou "língua" aparentada (geneticamente e/ou historicamente), seja através de uma recriação por meio da mesma engenharia sociolinguística, genial, que está gerando, por exemplo, o ''Patxohã'', a “língua dos guerreiros” Pataxó.
Novas vidas e novas línguas voltam a povoar uma paisagem de perda e subtração, em iniciativas espontâneas de revitalização, sacudindo a omissão e à revelia das tímidas e fragmentadas políticas linguísticas do Estado. Em suma, é a noção de "língua" como construto político que interessa daqui em diante: "língua" declarada para existir, resistir, reagir.
Documentação, patrimonialização
É uma estratégia desastrosa esperar até que os falares ameríndios se tornem tão frágeis e raros, antes de começar a pensar em investir na sua sobrevivência ou no seu resgate. Não há no Brasil nenhuma política linguística clara e, muito menos, consolidada que inclua o respeito ativo das línguas minoritárias, sobretudo as dos povos originários. Diferentes comunidades formulam demandas de apoio a processos de revitalização, alguns dos quais já iniciados por vontade política própria.
Se desconsiderarmos os espaços da academia e da pesquisa – onde se mantém, ou até cresce, aquém do necessário, o que se faz com ou para as línguas minoritárias, em particular indígenas –, a tímida e incipiente política brasileira de defesa dos direitos linguísticos das minorias tem tomado alguma forma em três frentes: (i) a transformação de falares de tradição oral em línguas escritas no contexto da escolarização, num primeiro momento nas mãos de instituições missionárias evangelizadoras, em seguida, através de uma passagem quase imperceptível que não representou uma ruptura, nas mãos do estado e de seu sistema educacional (público); (ii) a implementação de programas de documentação; (iii) a patrimonialização de imateriais sonoros, “línguas”, como bens de um capital simbólico que agrega valor a boas ações oficiais.
A documentação das chamadas "línguas ameaçadas" se tornou um considerável mercado de financiamentos, por programas internacionais, para projeto destinados à construção de amplos corpora multimídia digitais, através do registro, em campo, de todos os dados e eventos de fala passíveis de registro.
Os projetos de documentação realizados no Brasil, assim como em outros países da América Latina, têm sido caracterizados por uma concepção e práticas fortemente colaborativas, com formação de pesquisadores indígenas que queiram dominar as novas tecnologias da documentação e, assim, realizar "autonomamente" seus projetos. Amadureceu, também, uma demanda qualificada vinda dos próprios índios: ter de volta materiais de pesquisa, compartilhar resultados, mobilizar uma assessoria que compense as falhas da formação oficial de professores e de outros agentes e mediadores.
Em 2009, foi instituído por decreto presidencial o Programa Brasileiro de Documentação de Línguas Indígenas (ProDoclin) junto ao Museu do Índio (Funai, RJ). O razoável sucesso dos treze projetos do ProDoclin motivou a criação de programas de documentação de "musicalidades indígenas" (ProDocsom) e de gramáticas pedagógicas, baseadas, estas, em teorias e metodologias do bilinguismo e do ensino-aprendizagem de línguas de herança como segunda língua.
Foram alcançados mais de trinta grupos indígenas, com o envolvimento de cerca de cinquenta pesquisadores indígenas aos quais foram destinados equipamentos para a condução autônoma de suas próprias iniciativas. Além disso, quase todos os projetos de documentação têm possibilitado finalizar teses e dissertações. Foram produzidos acervos digitais, dicionários, gramáticas descritivas básicas e treze livros monolíngues (em língua indígena) ou bilíngues baseados na documentação de narrativas, cantos e rituais ou destinados ao letramento. À experiência do ProDoclin se acompanha a dos linguistas do Museu Paraense Emílio Goeldi: é estreita a colaboração entre as duas iniciativas, com seus arquivos digitais estruturados em paralelo e mutuamente accessíveis.
Ainda mais recente é a implementação, no Brasil, de uma política governamental de patrimonialização de línguas. Seu alcance e seus resultados têm sido, até o momento, limitados; o problema maior está no equívoco e no impasse insuperável da própria noção de "língua(s) como patrimônio". O Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) é um órgão interministerial, criado e implementado em 2010 e gerido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do Ministério da Cultura. Através de uma espécie de censo nacional, acompanhado por diagnósticos sociolinguísticos e documentação, o INDL pretende identificar as línguas minoritárias tendo em vista o seu “reconhecimento como referências culturais brasileiras”. Decretado tal “reconhecimento” – algo muito distinto de uma qualquer "oficialização" – seriam postas as condições suficientes para propostas de salvaguarda e revitalização. O INDL se encontra, no momento, num impasse financeiro, político e de gestão cuja superação é ainda imprevisível.
Educação para a diversidade?
Não são muitas as escolas indígenas que contam com programas de educação bilíngue ou que oferecem o ensino de língua indígena como segunda língua, de acordo com a realidade sociolinguística de cada grupo. Pouco sabemos das situações de bilinguismo ou de multilinguismo no Brasil indígena, dos processos de transformação e de obsolescência linguísticas. Há uma imensa ignorância a este respeito; a pesquisa sociolinguística é titubeante.
A definição da "educação escolar indígena" como bilíngue, intercultural, diferenciada e específica esconde um fracasso institucional, didático e pedagógico por trás da retórica oficial, que reverbera, vazia e insidiosa, de alto a baixo, dos ministérios, às secretarias estaduais e municipais de educação, às escolas indígenas. A atuação das ONGs e de iniciativas para-acadêmicas, nesse campo, com raras exceções, não é menos falha. Professores, pesquisadores e jovens indígenas despertam do tédio dos cursos de formação do qual são alvos (e vítimas) quando se deparam com a riqueza das formas e estruturas de suas línguas, um exercício altamente intelectual, que repercute de imediato e positivamente sobre atitudes e valores, mas muito pouco realizado.
A lei 11.645, de 10 de março 2008, que “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena"”, significativamente não menciona "línguas", que, supõe-se, estariam subsumidas por "culturas" e que continuam silenciadas. As universidades abriram brechas para incluir num só sentido, sem ousar se abrir para experimentar transformações ao serem adentradas por alunos indígenas. As línguas que não são de "civilização" não são toleradas para escrever monografias ou teses ou além de sua fossilização escrita para estudos e gramáticas, nem induziram serviços de tradução qualificada nos raríssimos casos de cooficialização em nível municipal.
O Brasil de muitas línguas está cada vez mais ameaçado por uma escolarização medíocre, pela mídia monolíngue, pelo imorredouro fantasma da "segurança nacional" que mantém a falta crônica de qualquer política linguística.
Há um outro lado, todavia, sempre. A língua oficial nacional (no caso, o português) domina as línguas nativas através da escrita, da escolarização, das mídias, e se insinua em cada uma com palavras, morfemas gramaticais, marcadores discursivos, expressões inteiras, dando origem às línguas "misturadas" faladas pelos mais jovens. Línguas morrem e novas línguas surgem dos interstícios, nas fronteiras, num constante processo de criatividade expressiva, em novas variedades tanto orais como escritas. Por exemplo, o "internetês misturado", português/língua indígena, usado nas comunicações via e-mail, Facebook, Twitter, etc. Línguas morrem e são enterradas em funerais apressados (que lástima! Não foi possível salvá-las...); línguas sobrevivem em variedades inesperadas, fenômeno ignorado, pelo menos no Brasil. Jovens indígenas pulam capítulos inteiros da história da escrita alfabética ocidental, passando de uma forma de oralidade (a "tradicional") para outra (vídeos, televisão, filmes, música, desenho etc.), inventando incessantemente novas poéticas, novos "textos", novas ironias, novas metáforas, novos xingamentos, em suas línguas "misturadas"... estamos em pleno "glocal", a explosão do local no coração do global. Os índios sempre foram bilíngues e multilíngues, mesmo antes dos brancos chegarem.
O veto da presidência da República ao PL 5954/2013, que inseria na LDB a possibilidade de critérios diferenciados de avaliação para escolas indígenas e ampliava o uso de línguas indígenas para os Ensinos Médio, Profissionalizante e Superior, revelou a real política linguística oficial. A diversidade linguística é considerada um obstáculo e não uma riqueza a ser defendida, preservada, promovida. Nisso, os governos não se diferenciam entre si: são todos assimilacionistas, colonialistas e estupidamente desenvolvimentistas. Foi uma agressão aos direitos linguísticos de toda e qualquer minoria, sobretudo das populações indígenas.
Cada vez mais, jovens indígenas têm acesso aos níveis de ensino além do básico; para muitos deles o português é a segunda ou terceira ou quarta língua. Os índios são, desde sempre, bilíngues, trilíngues, multilíngues. Sabemos que o monolinguismo é empobrecedor, cognitivamente e culturalmente. E todas as línguas têm o mesmo valor e a mesma natureza.
As línguas indígenas, todas ameaçadas, enfraquecidas, devem ter seu lugar, sua voz, em todos os níveis de ensino, não somente para garantir os direitos dos já muitos alunos indígenas além do ensino básico, mas também para abrir as cabeças dos alunos não indígenas de escolas e universidades, cuja formação é sabidamente limitada e medíocre no Brasil. O que aconteceria se as línguas indígenas invadissem as escolas não indígenas, as cidades, as universidades, a mídia, os congressos, os seminários, a literatura, o cinema, com boas traduções (nas duas direções)? Cantos são poemas, narrativas contam outras histórias, as oitivas de Belo Monte não teriam sido pantomimas de fachada para "escutar os índios" sem entender o que dizem.
(agosto, 2016)