De Povos Indígenas no Brasil
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Obviamente, uma eventual dificuldade dos índios de compreender o caráter criminoso de algumas condutas punidas pelas nossas leis não se deve ao seu “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, mas sim a diferenças étnicas e culturais. Entretanto, muitos juízes criminais aplicam analogicamente aos índios tal norma penal, entendendo que os índios – “quando isolados ou ainda não integrados”, por não serem capazes de entender o caráter ilícito de sua conduta, são inimputáveis. Segundo tal entendimento jurisprudencial, quando se tratar de índios “aculturados” ou “integrados”, e, portanto, capazes de entender a ilicitude de sua conduta, os mesmos são imputáveis, e, portanto, podem ser responsabilizados criminalmente. Quando se tratar de índios “em vias de integração”, ou seja, semi-imputáveis ou parcialmente capazes de compreender o caráter ilícito de sua conduta, é comum os juízes criminais exigirem laudo pericial (antropológico) para aferir o grau de consciência do índio acerca do caráter ilícito de sua conduta.
 
Obviamente, uma eventual dificuldade dos índios de compreender o caráter criminoso de algumas condutas punidas pelas nossas leis não se deve ao seu “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, mas sim a diferenças étnicas e culturais. Entretanto, muitos juízes criminais aplicam analogicamente aos índios tal norma penal, entendendo que os índios – “quando isolados ou ainda não integrados”, por não serem capazes de entender o caráter ilícito de sua conduta, são inimputáveis. Segundo tal entendimento jurisprudencial, quando se tratar de índios “aculturados” ou “integrados”, e, portanto, capazes de entender a ilicitude de sua conduta, os mesmos são imputáveis, e, portanto, podem ser responsabilizados criminalmente. Quando se tratar de índios “em vias de integração”, ou seja, semi-imputáveis ou parcialmente capazes de compreender o caráter ilícito de sua conduta, é comum os juízes criminais exigirem laudo pericial (antropológico) para aferir o grau de consciência do índio acerca do caráter ilícito de sua conduta.
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O Estatuto do Índio em vigor (Lei nº 6.001/73), entretanto, em seu art. 56, dispõe apenas que, no caso de condenação criminal de índio, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o juiz “atenderá ao grau de integração do silvícola”. Ou seja, tudo o que Estatuto do Índio permite é uma atenuação da pena, principalmente quando se tratar de índio “não-integrado”, determinando ainda que as penas de prisão devem ser cumpridas em regime de semi-liberdade, na sede da Funai mais próxima à aldeia indígena. Ou seja, o que o Estatuto do Índio admite é a atenuação da pena quando ficar evidenciado que o índio, em função de diferenças culturais, não pode compreender o caráter criminoso do ato que praticou.
 
O Estatuto do Índio em vigor (Lei nº 6.001/73), entretanto, em seu art. 56, dispõe apenas que, no caso de condenação criminal de índio, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o juiz “atenderá ao grau de integração do silvícola”. Ou seja, tudo o que Estatuto do Índio permite é uma atenuação da pena, principalmente quando se tratar de índio “não-integrado”, determinando ainda que as penas de prisão devem ser cumpridas em regime de semi-liberdade, na sede da Funai mais próxima à aldeia indígena. Ou seja, o que o Estatuto do Índio admite é a atenuação da pena quando ficar evidenciado que o índio, em função de diferenças culturais, não pode compreender o caráter criminoso do ato que praticou.
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'''* Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e sócia-fundadora do ISA. Artigo publicado no livro Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza, o Desafio das Sobreposições, ISA, nov.2004'''
 
'''* Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e sócia-fundadora do ISA. Artigo publicado no livro Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza, o Desafio das Sobreposições, ISA, nov.2004'''
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== Sobreposições em Números ==
 
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Edição das 17h14min de 29 de setembro de 2017

Lista de ataques ao direito indígena à terra

Manifestação promovida pela Hutukara para retirada dos fazendeiros da região do Ajarani, Terra Indígena Yanomami

Manifestação promovida pela Hutukara para retirada dos fazendeiros da região do Ajarani, Terra Indígena Yanomami Foto: Moreno Saraiva/ISA, 2013.

O direito indígena à terra, garantido pela Constituição de 1988, é um direito originário, anterior à criação do próprio Estado - reconhecimento do fato histórico de que os índios foram os primeiros ocupantes do Brasil. Mas ainda hoje esse direito está sob ameaça.

Apesar de a carta magna ter definido que até 1993 o governo brasileiro deveria demarcar todas as terras indígenas, de acordo com o critério de ocupação tradicional das terras, a determinação está longe de ser cumprida. Agora, além de sofrer com a lentidão na efetivação de seus direitos, os povos indígenas são alvo dos sistemáticos e violentos ataques arquitetados pela bancada ruralista.

Após as votações do Código Florestal, parlamentares dessa bancada — diretamente ligada aos interesses de latifundiários, empresas e confederações do agronegócio — voltaram suas canetas a projetos de lei que visam extinguir direitos já adquiridos, modificar (dificultar) o processo de reconhecimento das terras indígenas e criar possibilidades para a exploração dessas áreas por não-indígenas.

Nesse sentido, tramitam no Congresso e são discutidas em outras esferas governamentais várias medidas cuja extinção é uma das principais reivindicações do movimento indígena nacional:

 

Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000

Retira do poder Executivo a função de agente demarcador das terras indígenas ao incluir entre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e a ratificação das demarcações já homologadas. Deputados e senadores teriam o poder, inclusive, de rever e reverter demarcações antigas ou já encerradas. É de autoria de Almir Sá (PPB/RR), acompanhe a tramitação.

Veja notícias e análises desta proposição.

 

Projeto de Lei Complementar (PLP) 227/2012

Considera de interesse público e pretende legalizar a existência de latifúndios, assentamentos rurais, cidades, estradas, empreendimentos econômicos, projetos de desenvolvimento, mineração, atividade madeireira, usinas e outros em terras indígenas. É de autoria de Homero Pereira (PSD/MT), acompanhe a tramitação.

Veja notícias e análises desta proposição.

 

Portaria 303/2012

Fixa uma interpretação sobre as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, estendendo a aplicação delas a todas as terras indígenas do país e fazendo retroagir “ad eternum” sua aplicabilidade. A portaria determina que os procedimentos de demarcação já “finalizados” sejam “revistos e adequados” aos seus termos. Foi editada pelo advogado-geral da União, Luís Inácio Adams.

Veja notícias e análises desta proposição.

 

PL 1610/1996

Dispõe sobre a mineração em terra indígena, considerando que “qualquer interessado” pode requerer autorização de lavra em terra indígena. O projeto não contempla satisfatoriamente o direito de consulta aos que serão afetados pela atividade minerária - a “consulta pública” prevista no PL não dá às comunidades afetadas a possibilidade de rejeitar a exploração mineral. O PL fragiliza também a avaliação ambiental dos empreendimentos, pois só exige estudos aprofundados ao final do empreendimento, quando ele já está praticamente aprovado. De autoria de Romero Jucá (PFL/RR), acompanhe a tramitação.

Veja notícias e análises desta proposição.

 

PEC 237/2013

Permite que produtores rurais tomem posse de terras indígenas por meio de concessão. Se aprovada, na prática a proposta oficializará atividades ilegais como a do arrendamento - que hoje é proibido em terras de usufruto exclusivo dos indígenas. Esta é a segunda proposta de autoria de Padovani sobre o tema e está em tramitação na Câmara. De autoria de Nelson Padovani (PSC/PR), acompanhe a tramitação.

 

Portaria 419/2011

Regulamenta prazos irrisórios para o trabalho e manifestação da Funai e demais órgãos incumbidos de elaborar pareceres em processos de licenciamento ambiental. Essa portaria visa agilizar a liberação de obras de infraestrutura em terras indígenas, incluindo grandes empreendimentos como hidrelétricas e abertura de estradas. Além do encurtamento de prazos, a portaria indica que devem ser consideradas terras indígenas apenas aquelas que tiverem seu perímetro já declarado no Diário Oficial, desconsiderando assim impactos ambientais sobre terras em processo de reconhecimento. De autoria do Poder Executivo, resolução dos Ministros de Meio Ambiente, Justiça, Cultura e Saúde.

 

Decreto 7957/2013

Com esse decreto, “de caráter preventivo ou repressivo”, foi criada a Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública, tendo como uma de suas atribuições “prestar auxílio à realização de levantamentos e laudos técnicos sobre impactos ambientais negativos”. Na prática isso significa a criação de um instrumento estatal para repressão militarizada a toda e qualquer ação de povos indígenas, comunidades, organizações e movimentos sociais que decidam se posicionar contra empreendimentos que impactem seus territórios.

[Março/2015] 

Povos indígenas e soberania nacional

Nos últimos anos, a presença do Exército no interior das Terras Indígenas situadas na chamada “faixa de fronteira” da Amazônia brasileira se intensificou por meio da instalação de pelotões e de operações de treinamento e vigilância. Isso configura uma nova situação, resultado do encontro de dois processos que ocorreram no Brasil nas últimas décadas: a priorização geopolítica da fronteira amazônica pelas Forças Armadas e a efetivação dos direitos indígenas inscritos na Constituição Federal de 1988, sobretudo os territoriais, os quais resultaram no reconhecimento pelo Estado – e demarcação –  de terras indígenas extensas e contínuas na faixa de fronteira internacional. O relacionamento entre militares, sobretudo do Exército, e indígenas, nessas circunstâncias, acarretou alguns conflitos nos últimos anos e uma inédita tentativa de regulamentação de conduta de militares designados a servir nessas unidades.

Como proceder às consultas prévias com comunidades indígenas que vivem em locais pretendidos pelas Forças Armadas para implantarem suas bases (pistas de pouso, pelotões, mini-centrais hidrelétricas, etc)? Uma vez implantadas, como regulamentar os efeitos socioambientais decorrentes do seu funcionamento?  E com respeito às manobras de treinamento e vigilância? São apenas alguns exemplos de questões concretas que suscitaram o debate.

Resistência às demarcações

Durante os anos que precederam a promulgação da Constituição Federal de 1988, as Forças Armadas, especialmente o Exército, dedicaram esforços para evitar que sobreposições desse tipo se efetivassem, se opondo à demarcação de Terras Indígenas extensas e contínuas na faixa de fronteira. Essa atitude persistiu mesmo depois de promulgada a Constituição. Do ponto de vista doutrinário, a questão foi superada com a demarcação da TI Yanomami (declarada em 15/11/1991 e homologada em 25/05/1992), precedida por uma série de pareceres elaborados por juristas importantes e técnicos de vários ministérios, além da Secretaria de Assuntos Estratégicos e do ministro-chefe do gabinete militar da época. Afora os governadores dos estados de Roraima e Amazonas, afetados pela demarcação da TI Yanomami, a opinião geral foi de que não havia incompatibilidade entre a presença militar e a demarcação da Terra Indígena ou riscos à segurança nacional. Essa posição foi confirmada em 1999 quando, em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, o general Schroeder Lessa, então comandante militar da Amazônia, afirmou aos parlamentares presentes que as Terras Indígenas não configuram obstáculo às ações militares em regiões de fronteira.

Apesar disso, as Forças Armadas persistiram em reforçar suas prerrogativas e preocupações históricas e conseguiram que o presidente Fernando Henrique Cardoso promulgasse o Decreto 4.412, de 7 de outubro de 2002 – o qual dispõe sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas Terras Indígenas, garantindo-lhes a liberdade de trânsito, a autonomia para a instalação de infra-estrutura e a implementação de projetos.

Nesse contexto, lideranças indígenas e organizações da sociedade civil reiteraram a necessidade da criação de um código de conduta que regulamentasse a situação. A tese foi levada ao Conselho Nacional de Combate à Discriminação do Ministério da Justiça, acatadas pelo Gabinete de Segurança Institucional da presidência, o que resultou em uma série de reuniões – batizadas “Diálogo de Manaus” – as quais antecederam a definição dessas normas, concretizadas pelas portarias n° 20, do Exército (02/04/03), e sua subseqüente, n° 938, do Ministério da Defesa (17/10/03), que estendeu os efeitos da anterior a todas as Forças Armadas.

Apesar do avanço que representou a aceitação do mérito da questão e da promulgação de uma regulamentação, não foi constituída uma comissão interministerial voltada a fiscalizar a aplicação desse termo de conduta, trazendo dúvidas quanto à aplicação prática das medidas acordadas entre os diferentes atores envolvidos na questão.

Código de conduta

A situação da presença direta de bases permanentes do Exército em regiões de fronteira na Amazônia brasileira é resultado de um longo processo de re-priorização geopolítica do Estado Nacional, iniciado em meados do século passado, com resultados mais visíveis no terreno a partir da década de 1970.

Na história republicana – para não remontar às expedições do início da colonização e à política pombalina que implantou no século 18 um “colar” de fortificações nos limites amazônicos brasileiros – as modalidades de afirmação da soberania nacional variaram. Durante algumas décadas do século passado, por exemplo, vigiu o trinômio FAB-Missões-Índios, cabendo à Aeronáutica apoiar a obra civilizadora das missões religiosas instaladas para aldear e catequizar os índios, eles próprios como guardiões da fronteira. Para tanto, foram construídas pistas de pouso nessas regiões. No período pós 1964, o lema “integrar para não entregar (a Amazônia)” foi a base ideológica para o Plano de Integração Nacional – com a construção de obras de infra-estrutura e a concessão de benefícios fiscais aos investidores privados – que uniu objetivos econômicos às preocupações geopolíticas, para ocupar o que era chamado de “vazio demográfico”, desconsiderando a ocupação indígena.

Na década de 1980, o Projeto Calha Norte deu novo fôlego ao viés militar dos planos de ocupação da Amazônia brasileira, apesar da retórica oficial de que não se tratava de um projeto meramente militar. Seu principal objetivo foi a instalação de pelotões de fronteira que servissem como embriões de novos povoados, voltados a vivificar as fronteiras e garantir assim a soberania brasileira, especialmente ao norte da calha do rio Amazonas, considerada virtualmente mais ameaçada por forças externas.

Faixa de fronteira

Nas Américas, os estados coloniais e depois nacionais se sobrepuseram à ocupação anterior de milhares de povos indígenas e, segundo padrões diferenciados, absorvem a sua ocupação atual. De um modo geral, a ocupação colonial do continente se deu das regiões costeiras para o interior. Na Amazônia, ela se estabeleceu a partir das terras baixas. O controle sobre a foz do Rio Amazonas permitiu a portugueses e brasileiros um acesso mais fácil à imensa extensão territorial abrangida pelos leitos navegáveis dele e de seus formadores e afluentes, razão pela qual mais da metade da bacia amazônica acabou incluída no território nacional.

No processo de ocupação do interior, grupos indígenas foram historicamente escravizados ou cooptados, outros massacrados ou mortalmente infectados, muitos fugiram para as terras mais altas, acima das cachoeiras e alguns ainda hoje não chegaram a ser diretamente alcançados. Não é de estranhar que a ocupação indígena seja tanto maior onde menor tenha sido a penetração colonial. Assim como é de se esperar que a ocupação indígena permaneça ou prevaleça em regiões remotas, fronteiriças, como as terras mais altas da região amazônica.

O Brasil tem 16.886 quilômetros de fronteira terrestre com dez países da América do Sul. Somente a China e a Rússia têm maior extensão que essa. Elas estão definidas em tratados bilaterais com todos os vizinhos, encontram-se demarcadas e são internacionalmente reconhecidas. A faixa de 150 quilômetros ao longo da linha de fronteira terrestre é constitucionalmente definida como de especial interesse para a defesa nacional e envolve áreas pertencentes a mais de 500 municípios de 11 estados brasileiros. Aí estão cidades, estradas, rios, posses e assentamentos, propriedades privadas rurais, terras públicas com diferentes destinações e, inclusive, terras indígenas.

Existem 185 terras indígenas situadas na faixa de 150 km da fronteira em todo o País, 34 das quais com parte de seus limites colados na linha de fronteira. Do total, 75% encontram-se demarcadas e registradas em cartório. A demarcação das terras indígenas situadas em faixa de fronteira é uma providência fundamental, entre outras, para a regularização da situação fundiária, fator relevante para garantir estabilidade e evitar conflitos em regiões de fronteira. A indefinição de limites, a ocorrência de invasões e de disputas pela terra, não apenas quando se trata de terra indígena, constitui uma fragilidade que desfavorece a política de fronteiras.

De Norte a Sul do Brasil, há 45 povos indígenas que vivem em território brasileiro e em território de países vizinhos. A construção política das fronteiras terrestres não se pautou pela morfologia pluriétnica da ocupação indígena nesses territórios. Fundamentou-se muito mais na presença militar ou missionária, com base no princípio da ocupação colonial efetiva, que recortou povos e territórios.

Porém, freqüentemente, as relações construídas entre as frentes de colonização e as “lideranças” ou intermediários indígenas locais foram cruciais em muitos casos para caracterizar a efetividade da própria presença colonial e implicaram a inclusão (ou exclusão) das terras ocupadas por esses grupos. Essas relações continuam sendo relevantes no exercício da soberania dos estados nacionais, assim como para a implementação de quaisquer políticas públicas nessas regiões. A qualidade dessas relações é um fator indissociável da qualidade dessas políticas.

Não há registro histórico de conflitos fronteiriços entre o Brasil e os seus vizinhos que tenha tido povos ou terras indígenas como referência central. Assim como não há precedente de grupos indígenas no Brasil que tenham pretendido vincular-se a algum outro país ou reivindicar estado próprio. A expectativa continuada dos povos indígenas é pela demarcação das suas terras e pela implementação de políticas de seu interesse pelo estado brasileiro. E há o caso dos Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul, que receberam do próprio Exército brasileiro, ainda no século 19, um extenso território contínuo na fronteira como reconhecimento do seu apoio durante a Guerra do Paraguai. Vale também mencionar a Comissão Rondon de Inspeção de Fronteiras do Norte amazônico, que, no ano de 1927, recomendava a muitas aldeias e chefes indígenas que visitava que se fixassem em território nacional, buscando persuadi-los com promessas de assistência por parte do Estado brasileiro.

Intercâmbios transfronteiriços

Mas a fronteira não é apenas uma linha imaginária politicamente acordada para estabelecer limites entre territórios nacionais. Por ela transitam pessoas, mercadorias e ilícitos. Além da situação dos povos indígenas que vivem dos dois lados da linha, há brasileiros (e vizinhos) que vivem além (ou aquém) dela, familiares e amigos, comerciantes e turistas. Com fronteira plenamente reconhecida, vivendo em paz com todos os seus vizinhos há mais de um século e diante do avanço democrático ocorrido na América do Sul nos últimos vinte anos, é de se esperar que essa linha enseje políticas de aproximação e integração, valorizando o intercâmbio de idéias, manifestações culturais e produtos. Isto vale para índios e não índios, brasileiros e demais sul-americanos, residentes ou viajantes.

E, ainda, a fronteira é um espaço suscetível de incidentes. Passam por ela produtos falsificados, dinheiro ilícito, drogas, doenças, armamentos traficados, criminosos contumazes e imigrantes ilegais. Via de regra, essas conexões criminosas ocorrem nas cidades fronteiriças e se utilizam das vias de transporte entre os países, mas também podem se utilizar de qualquer área de fronteira em que encontrem condições mais favoráveis. Raramente ocorrem em terra indígena ou envolvem pessoas indígenas.

Em tempos de paz, os incidentes de fronteira são de natureza tipicamente policial. Ocorrem em qualquer parte do(s) território(s) nacional(ais). Confrontam a ordem jurídica e a autoridade do Estado, mas não ameaçam a soberania política ou a integridade do território nacional. São questões afetas à política para as fronteiras e não propriamente à defesa militar; demandam repressão policial e não guerra convencional.

Índios e militares

As mazelas institucionais da Funai e de outros órgãos com competências afetas às demandas indígenas não justificam a interveniência militar na política indigenista. O conhecimento atual sobre os diferentes povos, com milhares de comunidades com localização definida, a dimensão das terras já reconhecidas, com recursos naturais, patrimônio cultural, serviços ambientais, diversidade biológica e conhecimentos tradicionais associados, impelem a sociedade e o Estado Nacional a buscar respostas mais consistentes.

Não se trata de ignorar as relações históricas acumuladas entre militares e índios, que levaram as Forças Armadas a incorporar a questão indígena à sua visão estratégica, o que é um mérito a ser perseguido por outras instituições. Das guerras coloniais ao indigenismo tutelar, é inegável, para o bem ou para o mal, a influência militar sobre a política indigenista. Porém, ainda há vivas seqüelas do período histórico mais recente em que essa influência se traduziu em subordinação, na ditadura militar e no governo Sarney, em que os conflitos sobre direitos e terras indígenas se multiplicaram.

Também não se trata de minimizar a importância e a extensão das relações atuais entre índios e militares, sobretudo na parte amazônica da faixa de fronteira. Há pelo menos trinta anos, o Exército vem procedendo a transferência de unidades com infra-estrutura, equipamentos e efetivos de outras regiões do Brasil para a Amazônia, que no conjunto atingirão logo mais um total de 25 mil homens. Outro mérito seu: a ênfase estratégica na Amazônia, que por muitos motivos não militares é, mesmo, altamente estratégica.

Assim como vem aumentando a presença militar em diversos municípios situados em regiões de fronteira, o Exército vem implantando dezenas de pelotões em terras indígenas nessas regiões. Mesmo dispondo do poder convocatório, trata-se de um trabalho penoso e dispendioso, com todos os ônus da transferência e permanência de contingentes em regiões remotas, desprovidas de infra-estrutura e condições favoráveis de assistência, dependendo de abastecimento por via aérea.

Pode ser que a atual presença militar em terras indígenas, assim como em outras áreas, ainda não seja suficiente para a estratégia de defesa nacional que se pretende. Está prevista a instalação de mais unidades militares permanentes em terras indígenas situadas na faixa de fronteira . É o que dispõe um decreto presidencial recente (nº 6.513 de 22/07/2008, publicado no DOU no dia 23/07/2008, seção 1, pg. 01), que prevê a apresentação de um plano do comando do Exército a ser submetido pelo Ministério da Defesa à aprovação do Presidente da República num prazo de 90 dias.

Esse decreto tem uma motivação muito mais política, de dar resposta concessiva a segmentos anti-indígenas, do que para atender necessidades da defesa nacional. É discriminatório, porque faz supor que as terras indígenas na fronteira têm implicações para a segurança nacional que outras áreas não têm, o que é uma farsa. Além disso, não há nada que indique a necessidade de pelotões em qualquer terra indígena, o que acabará constituindo uma distorção da própria política de defesa, com desperdício de recursos públicos que certamente seriam mais necessários para outras demandas da própria defesa ou de outras políticas, inclusive a indigenista.

Além do mais, a forma e a intensidade do estabelecimento de unidades militares em terras indígenas, quando for o caso, têm outras implicações que merecem atenção e o estabelecimento de regras, mecanismos de monitoramento e mediações institucionais adequadas para resguardar os direitos indígenas e dirimir situações de conflito de interesses. Antes que o debate ganhe contornos puramente ideológicos, trata-se de apontar, a título de exemplo, algumas questões concretas que merecem a atenção daqueles que prezam as prerrogativas do Estado Democrático de Direito. Quais são os critérios que regem a escolha dos locais de instalação das unidades militares? Quando os locais pretendidos pelo militares para a instalação de um pelotão ou de uma pista de pouso coincidirem com a existência de comunidades indígenas, como realizar uma consulta prévia informada? Quais as mediações adequadas para que tais consultas respeitem a organização social e formas de comunicação eficazes, o que implica, em muitos casos, a necessidade de tradução das justificativas em línguas nativas? Uma vez definidos esses locais, via de regra colados a comunidades já existentes em áreas remotas, quais as regras para a utilização de recursos naturais (água, pedra, areia, etc) e de mão-de-obra locais para a construção da infra-estrutura? Não seriam desejáveis estudos prévios de impactos socioambientais? Uma vez instalada a infra-estrutura, quais as regras de convivência entre os militares dos pelotões e as comunidades locais?

A proximidade física entre pelotões e aldeias potencializa a ocorrência de incidentes nas relações entre militares e índios. Por exemplo, quando são explorados locais sagrados com a explosão de rochas para se obter brita para a pavimentação de pistas de pouso, ou corrompidas paisagens e fontes de água em busca de areia; ou em operações de campo realizadas sem aviso prévio da população civil. Ou quando soldados se utilizam, sem prévia autorização, de alimentos coletados em roças indígenas durante exercícios de sobrevivência na selva. Ou quando ocorrem relações sexuais entre soldados e índias, consentidas ou forçadas, gerando ressentimentos e nascidos que não se enquadram nas estruturas sociais tradicionais.

Portanto, o como e o onde dessa presença militar em terras indígenas é altamente relevante para essas relações, para que elas se desenvolvam em condições favoráveis e consistentes com o objetivo de defesa nacional, que também inclui a segurança e a confiança dos índios. Certamente, não são implicações estranhas aos comandantes militares, mas ainda há muito que se pode fazer, e corrigir, para que se evitem esses incidentes e se potencialize a dimensão mais positiva da relação.

 

A lei de crimes ambientais se aplica aos índios?

Neste texto, Juliana Santilli* trata da confusão jurídica e conceitual provocada pela sobreposição dos limites de UCs com TIs, que tem gerado a seguinte dúvida: os índios podem ser responsabilizados criminalmente pela prática de condutas lesivas ao meio ambiente?

Antes de mais nada, é preciso esquecer a idéia – totalmente equivocada e sem fundamento jurídico – de que os índios são penalmente inimputáveis e, portanto, não respondem pela prática de quaisquer crimes. Não há nada no ordenamento jurídico brasileiro – seja na Constituição, seja no Código Penal, seja no Estatuto do Índio em vigor – que autorize tal entendimento. Nos termos do Código Penal, só são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos e os autores de crimes que, em função de “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, eram, ao tempo da prática do crime, inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento. A lei penal prevê ainda a chamada semi-imputabilidade, permitindo a redução da pena quando o autor do crime é parcialmente capaz.

Obviamente, uma eventual dificuldade dos índios de compreender o caráter criminoso de algumas condutas punidas pelas nossas leis não se deve ao seu “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, mas sim a diferenças étnicas e culturais. Entretanto, muitos juízes criminais aplicam analogicamente aos índios tal norma penal, entendendo que os índios – “quando isolados ou ainda não integrados”, por não serem capazes de entender o caráter ilícito de sua conduta, são inimputáveis. Segundo tal entendimento jurisprudencial, quando se tratar de índios “aculturados” ou “integrados”, e, portanto, capazes de entender a ilicitude de sua conduta, os mesmos são imputáveis, e, portanto, podem ser responsabilizados criminalmente. Quando se tratar de índios “em vias de integração”, ou seja, semi-imputáveis ou parcialmente capazes de compreender o caráter ilícito de sua conduta, é comum os juízes criminais exigirem laudo pericial (antropológico) para aferir o grau de consciência do índio acerca do caráter ilícito de sua conduta.

O Estatuto do Índio em vigor (Lei nº 6.001/73), entretanto, em seu art. 56, dispõe apenas que, no caso de condenação criminal de índio, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o juiz “atenderá ao grau de integração do silvícola”. Ou seja, tudo o que Estatuto do Índio permite é uma atenuação da pena, principalmente quando se tratar de índio “não-integrado”, determinando ainda que as penas de prisão devem ser cumpridas em regime de semi-liberdade, na sede da Funai mais próxima à aldeia indígena. Ou seja, o que o Estatuto do Índio admite é a atenuação da pena quando ficar evidenciado que o índio, em função de diferenças culturais, não pode compreender o caráter criminoso do ato que praticou.

Entretanto, a possibilidade de responsabilização criminal de índios por crimes ambientais suscita questões bem mais complexas, principalmente quando há sobreposições de Territórios Indígenas e Unidades de Conservação.

A Constituição reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Assegura ainda aos índios o direito de usufruto exclusivo sobre as riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos, e a posse permanente sobre suas terras tradicionais.

O direito de usufruto exclusivo se destina a assegurar aos índios meios para a sua sobrevivência e reprodução física e cultural. Vê-se, portanto, que a Constituição protege o modo de vida tradicional dos povos indígenas, e que suas atividades tradicionais, desenvolvidas e compartilhadas ao longo de gerações, e reproduzidas segundo usos, costumes e tradições indígenas, estão claramente excluídas da possibilidade de aplicação das normas incriminadoras previstas na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98). Atividades tradicionais como caça, pesca e extrativismo, ainda que realizadas mediante o emprego de técnicas, métodos, petrechos ou substâncias não permitidas pela legislação ambiental, estão isentas das penas cominadas aos crimes ambientais. Diversas são, entretanto, as conseqüências penais quando se tratar de atividades não-tradicionais, que deverão se submeter à legislação ambiental.

Nas palavras de Fernando Mathias Baptista:

Na medida em que a exploração (de recursos naturais) se dê de acordo com os usos e costumes dos povos indígenas, não estão eles obrigados a cumprir com as normas e padrões ambientais exigidos para a população não indígena, pois a Constituição respalda seus usos e costumes como legítimos e reconhecidos pelo Estado brasileiro. Caso passem a explorar seus recursos naturais de forma diversa do que dita suas tradições e costumes de manejo, então passariam a estar sob o crivo da legislação ambiental, devendo observar as restrições ambientais para cada atividade pretendida (2002: 186)

Deve ser salientado que a prática, pelos índios, de atividades não-tradicionais, tais como pesca comercial, exploração florestal etc., sem o cumprimento da legislação ambiental enseja não só a responsabilidade criminal – quando estiver caracterizado algum dos crimes ambientais previstos na Lei 9.605/98 ou em outras leis penais – como também a responsabilidade civil e administrativa pelos danos ambientais. A responsabilidade civil implica a obrigação de reparar os danos ambientais provocados pela conduta ilícita ou indenizá-los e a responsabilidade administrativa implica a imposição de penalidades administrativas pelo órgão ambiental, tais como multas, embargos, interdição etc., através de processo administrativo que se instaura com a lavratura de auto de infração pela fiscalização ambiental.

Outra questão é a caracterização do crime previsto no art. 40 da Lei de Crimes Ambientais: aquele que causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação ou ao seu entorno está sujeito a pena de reclusão de um a cinco anos. Se há uma superposição dos limites de Unidades de Conservação sobre terras tradicionalmente ocupadas por índios, não há como alegar que os índios, ao praticarem atividades tradicionais incompatíveis com a natureza da Unidade de Conservação – por exemplo, caçar ou pescar, ou coletar plantas ou sementes dentro de um Parque Nacional ou Reserva Biológica cujos limites incidem sobre Terras Indígenas – estejam praticando o referido crime (de dano a Unidade de Conservação). Se a Constituição assegura aos índios direitos originários sobre suas terras tradicionais, não há como responsabilizá-los quando praticam atividades tradicionais, segundo seus usos, costumes e tradições, dentro de Unidades de Conservação cujos limites incidem sobre suas terras tradicionais – mesmo quando se trate de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, em que aquela atividade é vetada pela legislação ambiental. Se a categoria de Unidade de Conservação criada sobre os limites das Terras Indígenas é incompatível com as atividades tradicionais desenvolvidas pelos povos indígenas, não há como sustentar a sua validade jurídica em face dos direitos originários assegurados constitucionalmente aos povos indígenas.

Suponhamos, entretanto, que os índios pratiquem atividades não-tradicionais predatórias (ex.: exploram ilegalmente madeira) dentro dos limites da Unidade de Conservação que incidem sobre o território indígena. Poderão ser responsabilizados pelo crime de “causar dano a Unidade de Conservação”? Parece-nos que não, pois não estarão causando dano propriamente a uma Unidade de Conservação, e sim a seu território tradicional, e, portanto, sua conduta não se amolda a tal tipo penal específico. Poderão, entretanto, ser responsabilizados por crimes contra a flora, em geral (destruir ou danificar florestas de preservação permanente, impedir a regeneração natural de florestas etc.), pois a sua conduta certamente se encaixará dentro de tal norma incriminadora.

Em suma, quando os índios promovem a exploração de recursos naturais voltada para a comercialização, têm que se adaptar às normas ambientais em vigor. Se, por exemplo, resolvem explorar a pesca comercial, precisarão de autorização do Ibama e terão que respeitar as normas que restringem a pesca em período de reprodução. Da mesma forma, eventual exploração madeireira dependerá da aprovação de plano de manejo florestal sustentável e do cumprimento da legislação florestal.

Referência bibliográfica

BAPTISTA, Fernando Mathias. “A gestão dos recursos naturais pelos povos indígenas e o Direito Ambiental”. In: LIMA, A. (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo, Instituto Socioambiental; Porto Alegre, Antônio Fabris Editor, 2002.

  * Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e sócia-fundadora do ISA. Artigo publicado no livro Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza, o Desafio das Sobreposições, ISA, nov.2004

Sobreposições em Números

Por Fany Pantaleoni Ricardo, Antropóloga, coordenadora do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas, ISA e Silvia de Melo Futada, Bióloga e mestre em Ecologia, ISA. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

 

Em março de 2017, data do fechamento desta coletânea, contabilizava-se em todo o país 74 casos de sobreposição territorial envolvendo 58 Terras Indígenas e 55 Unidades de Conservação (36 federais e 19 estaduais), que somam cerca de 11,4 milhões de hectares, correspondentes a 9,7% da extensão total das TIs no território nacional. A grande maioria dos casos encontra-se na Amazônia Legal (51) e o restante se distribui entre as regiões Sul-Sudeste (17) e Nordeste (06). Do total de UCs envolvidas, 32 destinam-se à Proteção Integral: são 14 Parque Nacionais (Parnas), oito Parques Estaduais (PESs), quatro Estações Ecológicas (Esecs), quatro Reservas Biológicas (Rebios), uma Reserva Ecológica (Resec) e um Refúgio da Vida Selvagem (RVS). Outras 23 destinam-se ao Uso Sustentável: sete Reservas Extrativistas (Resex), uma Resec, nove Florestas Nacionais (Flonas), três Florestas Estaduais (FES) e três Aries.

Proteção integral

A maior parte dos casos de sobreposição envolvendo UCs de Proteção Integral é herança de meados do século passado, quando Áreas Protegidas deste tipo eram criadas sem o devido levantamento da ocupação humana, ou mesmo sem considerar os direitos de povos indígenas e outras populações tradicionais. Além disso, naquela época, era comum que povos indígenas com pouco contato fossem entendidos como parte integrante da natureza a ser conservada, em virtude de seu modo de vida ser considerado de baixíssimo impacto.

Na Amazônia Legal, há 22 TIs sobrepostas a 20 UCs de Proteção Integral, federais (13) e estaduais (07). Entre estas, apenas quatro unidades (duas federais e duas estaduais) foram criadas a partir do ano 2000, quando foi instituído o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc). Embora o Snuc tenha indicado a criação de um Grupo de Trabalho para regularizar as sobreposições, entre órgãos responsáveis pela execução das políticas ambiental e indigenista, o grande marco deste campo foi a determinação do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), lançado em 2002, em não apoiar a criação de UCs até que estas tivessem solucionado as questões pendentes com as terras e povos indígenas que afetavam.

No norte do Mato Grosso, a TI Apiaká do Pontal e Isolados – identificada e delimitada em 2011 a partir de processo iniciado em 2008 – se sobrepõe quase integralmente (97%) à Resec Apiacás, criada em 1982, e parcialmente (10,9%) ao Parna do Juruena, de 2006. No leste do mesmo estado, a TI Wedezé, dos Xavante, foi identificada em 2011 com uma pequena parcela (8%) sobreposta à RVS Quelônios do Araguaia. No Amazonas, em região próxima a Porto Velho (RO), a Área de Restrição de Uso Jacareúba/Katawixi – instituída em 2007 pela Funai para a proteção de povos em isolamento na região do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira – foi sobreposta quase integralmente (96%), no ano seguinte, ao Parna Mapinguari. No norte do Pará, a Esec Grão-Pará, criada em 2009, passou a se sobrepor à TI Kaxuyana-Tunayana – com presença de isolados – identificada e delimitada em 2015, a partir de processo iniciado em 2008.

Fora da Amazônia Legal, são 18 casos envolvendo 17 TIs sobrepostas a 12 UCs de Proteção Integral, sendo cinco federais e sete estaduais. Entre as sete estaduais, criadas entre 1961 e 1995, seis se encontram no estado de São Paulo – entre a Capital, o Litoral e o Vale do Ribeira – e uma no litoral catarinense. O PES Serra do Mar, criado em 1977, por exemplo, se sobrepõe a seis diferentes TIs ocupadas pelos Guarani Mbya. Na capital São Paulo, nos últimos anos, também foi instaurada a sobreposição entre o PES Jaraguá, criado em 1961, e a TI Jaraguá também ocupada pelos Guarani, cujo reestudo foi aprovado pela Funai em 2013, tendo sido a terra declarada pelo Ministério da Justiça em 2015.

Na região Nordeste, os três casos efetivos de sobreposição entre TIs e UCs de Proteção Integral se encontram na Bahia. A TI Barra Velha, dos Pataxó, homologada em 1991, se sobrepõe integralmente ao Parna Monte Pascoal, criado em 1961. Também a TI Barra Velha do Monte Pascoal, área de reestudo da TI Barra Velha, identificada em 2014, se sobrepõe parcialmente (30%) à mesma UC. Além dessas, recentemente foi instaurado o caso da sobreposição territorial entre o Parque Nacional do Descobrimento, criado em 1999, e parte (14%) da TI Comexatiba (Cahy-Pequi), também dos Pataxó, identificada pela Funai em 2015, em processo iniciado em 2005.

Uso sustentável

A grande maioria das situações de sobreposição territorial entre TIs e UCs de Uso Sustentável encontra-se na Amazônia Legal; são 26 casos envolvendo 22 TIs e 19 UCs, 13 federais e seis estaduais. Entre estes casos, 13 (11 TIs, oito Flonas, três FES) envolvem unidades que, embora admitam a permanência de populações tradicionais desde a instituição do Snuc (2000), se destinam prioritariamente à exploração madeireira empresarial, atividade incompatível com as Terras Indígenas.

Cumpre destacar que quatro das UCs desta categoria se encontram sobrepostas parcialmente a três TIs com presença de povos isolados: a Yanomami (RR), a Kaxuyana-Tunayana (PA) e Riozinho do Envira (AC). A estes casos, somam-se ainda outras três TIs reservadas povos isolados, regularizadas entre 2007 e 2016, que se sobrepõem parcialmente a duas Resex. São elas: a TI Jacareúba-Katawixi (AM) sobreposta em 19% à Resex Ituxi; e as TIs Piripikura (MT) e Kawahiva do Rio Pardo (MT) sobrepostas, respectivamente, em 1,5% e 0,6% à Resex Guariba Roosevelt.

Atualmente, no Médio Solimões e Afluentes (AM), quatro TIs – Acapuri de Cima, Porto Praia, Jaquiri e Uati-Paraná –, identificadas entre os anos 1990 e 2000, se sobrepõem integralmente (ou quase) à Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Esta, a primeira unidade desta categoria, recategorizada em 1996, a partir da Estação Ecológica homônima, criada em 1990 e destinada à proteção integral da natureza. Desde então, diversos coletivos classificados de modo genérico como ribeirinhos, pescadores ou caboclos passaram se reconhecer como povos indígenas. Atualmente, conforme levantamento produzido por Deborah Lima e Rafael Barbi (veja capítulo Solimões), são cerca de 10 mil indígenas pertencentes a pelo menos dez povos: Kambeba/Omágua, Kokama, Kaixana, Kanamari, Katukina, Madi-Já/ Kulina, Mayoruna, Miranha, Mura, Ticuna. Ainda conforme o levantamento, as quatro TIs supracitadas são apenas uma pequena parcela das TIs 30 reivindicadas por aproximadamente 45 comunidades/aldeias distribuídas pelas RDSs Mamirauá e Amanã, além da Resex Auati-Paraná.

Situação semelhante ocorre na região do Baixo Tapajós e Arapiuns (PA), onde constam duas TIs munduruku declaradas em 2016 – Taquara e Bragança/Marituba – que se encontram integralmente sobrepostas à Flona Tapajós; a primeira unidade do tipo a ser criada no Brasil em 1974. Estas TIs estão vinculadas a coletivos que passaram a se reconhecer como indígenas em meados de 1998. Há ainda na região 14 TIs reivindicadas e sem providências, das quais oito se encontram no interior da Resex Tapajós Arapiuns. São cerca de 7 mil indígenas em toda a região, pertencentes a 12 povos – Apiaká, Arapium, Arara Vermelha, Borari, Cara Preta, Jaraqui, Kumaruara, Maytapu, Munduruku, Tapajó, Tupaiu e Tupinambá.

Fora da Amazônia Legal há cinco casos de sobreposição entre cinco TIs e quatro UCs de Uso Sustentável. Na Paraíba, a Arie Manguezais da Foz do Rio Mamanguape, criada em 1985, se sobrepõe a 1,9% da área da TI Potiguara, homologada em 1991 (declarada em 1983), e a 14% da da TI Potiguara de Monte-Mor; ambas habitadas pelos Potiguara. Por ser constituída por terras públicas ou privadas, a Arie não apresenta, a princípio, um dos tipos de sobreposições mais conflitantes. No Ceará, a TI Lagoa Encantada, dos Jenipapo-Canindé, declarada em 2011 a partir de processo iniciado em 1997, se sobrepõe em 82% à Resex Batoque, criada em 2003. Os outros dois casos se encontram na região sul do país. Em Santa Catarina, a TI Ibirama-La Klãnõ – dos Guarani, Kaingang e Xokleng – declarada em 2003 em processo iniciado em 1997 instaurado para rever os limites de uma pequena área reservada pelo SPI em 1927 – se encontra sobreposta em 9% de sua extensão à Arie Serra da Abelha, criada em 1996. No Rio Grande do Sul, a TI Mato Castelhano-Fág Ty Ka, dos Kaingang, identificada em 2016, a partir de processo iniciado em 2009, se sobrepõe a uma ínfima porção (1,3%) da Flona Passo Fundo.

 

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Lista de sobreposições de TIs e UCs (Março, 2017)
  Terra Indígena Unidade de Conservação Sobreposição na TI  
  Nome Situação atual Categoria/Nome* Criação Área (ha) % Isolados
AMAZÔNIA LEGAL
  Acre
1 Arara do Rio Amônia Declarada, 2009 PARNA Serra do Divisor 1989 2487 11,76  
2 Arara do Rio Amônia Declarada, 2009 RESEX Alto Juruá 1990 12227 57,84  
3 Arara/Igarapé Humaitá Homologada, 2006 RESEX Riozinho da Liberdade 2005 9866 11,3  
4 Jaminawa /Envira Homologada, 2003 FLONA Santa Rosa do Purus 2001 70988 87,48  
5 Rio Gregório Declarada, 2007 FES Rio Liberdade* 2004 42557 21,92  
6 Rio Gregório Declarada, 2007 RESEX Riozinho da Liberdade 2005 2880 1,48  
7 Riozinho do Alto Envira Homologada, 2012 FLONA Santa Rosa do Purus 2001 6378 2,43 Sim
  Amazonas
8 Acapuri de Cima Declarada, 2000 RDS Mamirauá* 1990 18516 94,63  
9 Balaio Homologada, 2009 PARNA Pico da Neblina 1979 37890 14,67  
10 Balaio Homologada, 2009 REBIO Morro dos Seis Lagos* 1990 242018 93,73  
11 Betânia Homologada, 1995 ARIE Javari-Buriti 1985 330 0,27  
12 Betânia Homologada, 1995 ESEC Jutaí-Solimões 1983 5497 4,47  
13 Cué-Cué/ Marabitanas Declarada, 2013 PARNA Pico da Neblina 1979 200629 25,39  
14 Diahui Homologada, 2004 FLONA Humaitá 1998 31604 66,6  
15 Inauini/Teuini Homologada, 1997 FLONA Mapiá-Inauini 1989 4852 1,03  
16 Inauini/Teuini Homologada, 1997 FLONA Purus 1988 62233 13,22  
17 Jacareúba/ Katawixi Restrição de Uso, 2007 PARNA Mapinguari 2008 586261 96,08 Sim
18 Jacareúba/ Katawixi Restrição de Uso, 2007 RESEX Ituxi 2008 19083 3,13 Sim
19 Jaquiri Homologada, 1991 RDS Mamirauá* 1990 1885 100  
20 Médio Rio Negro II Homologada, 1998 PARNA Pico da Neblina 1979 48946 15,48  
21 Porto Praia Homologada, 2004 RDS Mamirauá* 1990 4170 100  
22 São Domingos do Jacapari e Estação Homologada, 2009 ESEC Jutaí-Solimões 1983 31853 23,77  
23 Uati-Paraná Homologada, 1991 RDS Mamirauá* 1990 9558 7,49  
  Amazonas/Pará
24 Andirá-Marau Homologada, 1986 PARNA Amazônia 1974 89593 11,25  
25 Kaxuyana-Tunayana Identificada, 2015 ESEC Grão-Pará* 2006 24632 1,12 Sim
26 Andirá-Marau Homologada, 1986 FLONA Pau-Rosa 2001 21673 2,72  
27 Kaxuyana-Tunayana Identificada, 2015 FES Faro* 2006 391985 17,83 Sim
28 Kaxuyana-Tunayana Identificada, 2015 FES Trombetas* 2006 1600381 72,79 Sim
  Amapá
29 Uaçá I e II Homologada, 1991 PARNA Cabo Orange 1980 13023 2,76  
  Mato Grosso
30 Apiaká do Pontal e Isolados Identificada, 2011 PARNA Juruena 2006 109280 10,94 Sim
31 Apiaká do Pontal e Isolados Identificada, 2011 RESEC Apiacás* 1992 978175 97,92 Sim
32 Enawenê Nawê Homologada, 1996 ESEC Iquê 1981 219719 29,3  
33 Kawahiva do Rio Pardo Declarada, 2016 RESEX Guariba-Roosevelt* 1996 2823 0,69 Sim
34 Piripkura Restrição de Uso, 2008 RESEX Guariba-Roosevelt* 1996 3820 1,57 Sim
35 Portal do Encantado Declarada, 2010 PES Serra de Santa Bárbara* 1997 11427 26,43  
36 Wedezé Identificada, 2011 RVS Quelônios do Araguaia* 2001 11876 8,16  
  Pará
37 Bragança/ Marituba Declarada, 2016 FLONA Tapajós 1974 13627 100  
38 Munduruku-Taquara Declarada, 2016 FLONA Tapajós 1974 25580 100  
39 Sawré Muybu (Pimental) Identificada, 2016 FLONA Itaituba II 1998 154798 85,67  
  Rondônia
40 Igarapé Lourdes Homologada, 1983 REBIO Jaru 1961 13017 6,64  
41 Massaco Homologada, 1998 REBIO Guaporé 1982 409772 97,2 Sim
42 Rio Negro Ocaia (reestudo) Declarada, 2011 REBIO Rio Ouro Preto* 1990 33067 25,28  
43 Rio Negro Ocaia (reestudo) Declarada, 2011 RESEX Rio Ouro Preto 1990 1089 0,83  
44 Rio Negro Ocaia (reestudo) Declarada, 2011 RESEX Rio Pacaás Novos 1995 95220 72,78  
45 Uru-Eu-Wau-Wau Homologada, 1991 PARNA Pacaás Novos 1979 709024 37,78  
  Roraima
46 Raposa Serra do Sol Homologada, 2005 PARNA Monte Roraima 1989 114199 6,54  
47 Yanomami Homologada, 1992 FLONA Amazonas 1989 1597283 16,73  
48 Yanomami Homologada, 1992 PARNA Pico da Neblina 1979 1125324 11,78  
49 Yanomami Homologada, 1992 PES Serra do Aracá* 1990 1525794 15,98  
  Tocantins
50 Inãwébohona Homologada, 2006 PARNA Araguaia 1959 379442 100  
51 Utaria Wyhyna/Iròdu Iràna Declarada, 2010 PARNA Araguaia 1959 179777 100  
FORA DA AMAZÔNIA LEGAL
  Bahia
52 Barra Velha Homologada, 1991 PARNA Monte Pascoal (Parque Nacional e Histórico) 1961 8896 100  
53 Barra Velha do Monte Pascoal (reestudo) Identificada, 2008 PARNA Monte Pascoal (Parque Nacional e Histórico) 1961 13623 30,93  
54 Comexatiba (Cahy-Pequi) Identificada, 2015 PARNA Descobrimento 1999 4165 14,64  
  Ceará
55 Lagoa Encantada Declarada, 2011 RESEX Batoque 2003 82 4,75  
  Minas Gerais
56 Xakriabá (reestudo) Identificada, 2014 (Suspensa/Justiça) PARNA Cavernas do Peruaçu 1999 18629 43,22  
  Paraíba
57 Potiguara Homologada, 1991 ARIE Manguezais da Foz do Rio Mamanguape 1985 405 1,91  
58 Potiguara de Monte-Mor Declarada, 2007 ARIE Manguezais da Foz do Rio Mamanguape 1985 1145 15,08  
  Paraná
59 Cerco Grande Identificada, 2016 ESEC Guaraqueçaba 1982 516 36,78  
  Rio de Janeiro
60 Guarani de Araponga Homologada, 1995 PARNA Serra da Bocaina 1971 218 100  
  Rio Grande do Sul
61 Mato Castelhano-FÁg TY KA Identificada, 2016 FLONA Passo Fundo 1968 1307 36,64  
  Santa Catarina
62 Ibirama-La Klãnõ Declarada, 2003 ARIE Serra da Abelha 1996 3310 9,01  
63 Ibirama-La Klãnõ Declarada, 2003 REBIO Sassafrás* 1977 360 0,98  
64 Morro dos Cavalos Declarada, 2008 PES Serra do Tabuleiro* 1975 1777 83,43  
  São Paulo
65 Boa Vista do Sertão do Promirim Identificada, 2013 PES Serra do Mar* 1977 4957 95,2  
66 Guarani do Aguapeú Homologada, 1998 PES Serra do Mar* 1977 1899 42,67  
67 Jaraguá (reestudo) Declarada, 2015 (Suspensa/Justiça) PES Jaraguá* 1961 298 56,02  
68 Pakurity (Ilha do Cardoso) Identificada, 2016 PES Ilha do Cardoso* 1962 5810 100  
69 Peguaoty Identificada, 2016 PES Carlos Botelho* 1982 5094 82,16  
70 Peguaoty Identificada, 2016 PES Intervales* 1995 696 11,23  
71 Peruíbe Homologada, 1994 PES Serra do Mar* 1977 94 19,83  
72 Ribeirão Silveira Declarada, 2008 PES Serra do Mar* 1977 4881 58,29  
73 Rio Branco (do Itanhaém) Homologada, 1987 PES Serra do Mar* 1977 2285 79,53  
74 Tenondé Porã Declarada, 2016 PES Serra do Mar* 1977 9853 61,29  
* Unidades de Conservação Estaduais.              

(março, 2017)

TIs e outros territórios tradicionalmente ocupados se complementam?

por Leandro Mahalem de Lima, antropólogo, ISA. publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

As duas regiões com a maior quantidade de Terras Indígenas ainda não identificadas na Amazônia brasileira – o Médio Solimões (AM) com 30 e o Baixo Tapajós (PA) com 14 – abrangem diversas sobreposições com outros territórios tradicionalmente ocupados.

Estes casos envolvem povos em processo de renascimento cultural – também chamados de resistentes ou emergentes – que passaram a assumir identidades indígenas desde o marco constitucional de 1988. E também as ditas “comunidades caboclas” ou ribeirinhas – pescadores, lavradores e extrativistas – cujas ocupações, como as dos indígenas, foram regularizadas por meio de reservas de usufruto coletivo sustentável destinadas a populações tradicionais, no âmbito do ICMBio (Resex, RDS, Flona), Incra (PAE, PDS, PAA), e de órgãos estaduais.

Apesar de diferentes, os direitos garantidos a essas populações na CF 88 se assemelham em seus aspectos fundamentais – os arts. 231 e 232 para os indígenas; e os arts. 215, 216 e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para quilombolas e outras comunidades tradicionais. Os indígenas, quilombolas e populações tradicionais também são amparados pela Convenção no 169 da OIT, que, além de garantir a participação em processos que lhes afetem, veda a remoção forçada de territórios tradicionais (art. 16). Terras Indígenas, Territórios Remanescentes de Quilombo e de Uso Sustentável são Áreas Protegidas pela União, indisponíveis ao mercado e destinadas à posse coletiva. A grande diferença é que TIs e TRQs garantem o usufruto permanente, ao passo que, nas de Uso Sustentável, a posse coletiva é condicionada à renovação periódica.

Soluções conjuntas para esses casos são afirmadas em diversos planos e políticas instituídas ao longo das últimas duas décadas. Da Política Nacional da Biodiversidade (Decreto 4.339/2002) consta a orientação de se “promover um plano de ação para solucionar os conflitos devidos à sobreposição de UCs, TIs e de TQs”. O Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (Decreto 5.758/2006) propõe “definir e acordar critérios em conjunto com os órgãos competentes e segmentos sociais envolvidos para identificar os casos e propor soluções” e “apoiar a participação dos representantes das comunidades locais, quilombolas e povos indígenas nas reuniões dos Conselhos das UCs”. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais reafirma a necessidade de “solucionar ou minimizar os conflitos” (Decreto 6.040, 2007) e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Decreto 7.747, 2012) destaca a construção de “planos conjuntos de administração das áreas de sobreposição (...) garantida a gestão pelo órgão ambiental e respeitados os usos costumes e tradições dos povos indígenas”.

A câmara temática “Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais”, a 6a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, vem dedicando atenção especial ao tema. Para a subprocuradora-geral da República e ex-coordenadora da 6a CCR, Deborah Duprat, “ao assumir o caráter pluriétnico da nação, a Constituição de 1988 tornou impositiva a aplicação analógica do tratamento dado à questão indígena e aos demais grupos étnicos” (O Estado Pluriétnico, 2013).

Para a procuradora Maria Luiza Grabner, coordenadora da 6a CCR, “os direitos territoriais dos povos quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais gozam da mesma hierarquia dos povos indígenas, pois ambos desfrutam de estatura constitucional” de modo que “em casos de conflito” faz-se “necessário buscar a harmonização entre estes direitos, consideradas as especificidades de cada situação”. A elaboração de um “plano de ação” é uma “via possível para a resolução de conflitos entre APs, TIs e TQs” (Direitos territoriais, dupla afetação e gestão compartilhada, 2015).

A interpretação legal depende de uma avaliação caso a caso, levando em conta princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, procurando traduzir as formas de entendimento entre indígenas e tradicionais em ações coordenadas nos contextos locais. Conforme o argumento, estas ações são fundamentais para estimular soluções criativas, que visem a complementaridade, a cogestão e mútuo fortalecimento entre as populações. Afinal, as sobreposições são apenas um dos modos de interconexão entre TIs e outros territórios tradicionais. Mesmo que um dia deixem de se sobrepor formalmente, estas zonas de ocupação multicomunitárias continuarão relacionadas, formando extensos corredores de circulação entre bacias hidrográficas.

Não são processos simples. No Médio Solimões, o antropólogo Rafael Barbi relata que “o passar para indígena em uma comunidade depende da formação de um consenso entre seus moradores”, embora a posse e o manejo compartilhado sejam objeto de discórdia influenciados por fatores diversos, como conversões, migrações e cisões (em “Reconhecer-se indígena...”, capítulo Solimões).

Na Resex Tapajós Arapiuns, as audiências mediadas pelo MPF, as reuniões do Conselho Deliberativo da Resex e os seminários conjuntos – ocorridos entre 2013 e 2016 – são ainda situações tensas em que indígenas e tradicionais continuam a “se confrontar como no passado”. Apesar das tensões, o antropólogo indígena Florêncio Vaz e os estudantes indígenas João Tapajós (Arapium) e Luana Cardoso (Kumaruara) (em “Lutando por direitos...”, capítulo Tapajós Madeira) afirmam que não desejam “expulsar os tradicionais”, mas avançar “rumo a soluções mais integradas de uso e gestão comum do território”. Mais do que isso, reconhecem que sua reorganização política como indígenas” se deu no contexto dos trabalhos da Igreja Católica, do movimento sindical e da mobilização pela criação da Resex Tapajós Arapiuns. Assim, para eles, a igreja, o sindicato e o movimento extrativista são componentes fundamentais de sua própria história indígena.

(março, 2017)

Licenciamento ambiental em xeque

por Maurício Guetta, advogado, ISA. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.


O Direito Socioambiental vive tempos de retrocessos. Após a aprovação da Lei no 12.651/2012, que dilacerou o antigo Código Florestal, e da Lei no 13.123/2015, que abriu as portas da exploração desenfreada da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, a “bola da vez” eleita pelo Congresso Nacional, a serviço de interesses privados, é, sem dúvida alguma, o licenciamento ambiental, principal instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, com ampla proteção constitucional.

Considerado um mero entrave burocrático e custoso por determinados setores, o licenciamento ambiental, consolidado há mais de 30 anos no país, possui fundamental relevância para a preservação dos direitos difusos da sociedade brasileira ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade vida; para a proteção dos direitos das populações atingidas pelos impactos decorrentes da instalação e operação de empreendimentos potencialmente poluidores; para a composição ou atenuação de conflitos; além, evidentemente, de funcionar como instrumento imprescindível aos desideratos constitucionais da prevenção e mitigação de danos.

Importante pontuar que muitos dos entraves à efetividade do licenciamento não seriam resolvidos por meras alterações legislativas, como se verifica, por exemplo, com a desestruturação dos órgãos públicos responsáveis pela emissão de atos administrativos no bojo do procedimento de licenciamento ambiental.

Tramitam, atualmente, 40 proposições legislativas destinadas a alterar a atual legislação sobre licenciamento ambiental. Entre elas, destacam-se, pela densidade política com que tramitam no Congresso Nacional e pelo conteúdo, os seguintes: Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 65/2012, Projeto de Lei do Senado – PLS n.o 654/2015 e Projeto de Lei – PL nº 3729/2004.

Quanto à PEC no 65/2012, que pretende inserir um § 7o ao artigo 225 da Constituição, ao prever que a mera apresentação de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) resulta em autorização para a execução da obra, o projeto pretende simplesmente extinguir o licenciamento ambiental, intenção que configura um gravíssimo e inaceitável retrocesso aos direitos fundamentais da sociedade brasileira. Ao estabelecer que as obras não poderão ser suspensas ou canceladas após a apresentação do EIA, a PEC no 65/2012 fere cláusulas pétreas relacionadas aos princípios da separação dos poderes, da inafastabilidade do controle jurisdicional, da efetividade das decisões judiciais e do acesso à justiça, cânones essenciais do Estado Democrático de Direito.

Já o PLS no 654/2015 pretende que os empreendimentos de infraestrutura considerados estratégicos para o interesse nacional sejam licenciados através de um singular e diminuto rito procedimental, o que faz mediante uma série de medidas para flexibilizar o controle exercido pelos órgãos licenciadores e demais órgãos envolvidos no licenciamento ambiental. Assim como a PEC no 65/2012, o conteúdo do PLS no 654/2015 representa grave ameaça aos direitos fundamentais protegidos pelo licenciamento ambiental, na medida em que estabelece o menor grau de prevenção, controle e fiscalização, sem qualquer direito à informação e participação, justamente para empreendimentos causadores de significativa degradação socioambiental. Ademais, é preciso considerar que, ao afrouxar o controle e prevenção das atividades potencialmente poluidoras, o PLS aumenta os riscos de ocorrência de desastres socioambientais.

Por fim, o PL no 3729/2004 tem por escopo criar a “lei geral do licenciamento ambiental”. Apesar de ser grande o número de substitutivos (16) atrelados ao seu processo legislativo, dois são os textos que, quando do fechamento deste artigo, podem ser votados pelo Plenário da Câmara dos Deputados.

O primeiro, relatado pelo deputado ruralista Mauro Pereira (PMDB/ RS), possui conteúdo altamente preocupante, na direção da intensa flexibilização do licenciamento, para além de sua precariedade quanto à técnica legislativa. Apenas para se ter uma ideia, esse substitutivo estabelece a possibilidade de cada estado federativo definir, autonomamente, quais empreendimentos serão objeto ou não de licenciamento, bem como quais procedimentos e estudos ambientais serão aplicados em cada caso. Estaria, com isso, instaurada a “guerra pela flexibilização do licenciamento”, a exemplo da “guerra fiscal”, deixando o licenciamento submetido a interesses de atrair investimentos de cada estado. Esse texto determina, ainda, que o licenciamento simplificado, de caráter autodeclaratório, seja aplicável à maioria das atividades licenciadas, além de prever uma série de mecanismos para reduzir a participação e simplificar procedimentos e estudos. Não bastasse, estabelece dispensas de licenciamento para atividades potencialmente poluidoras, atendendo diretamente interesses privados de setores específicos, como o agronegócio. Há, portanto, uma série de inconstitucionalidades nesse substitutivo ao projeto de lei.

O segundo texto, com maior aderência política, é o substitutivo a ser apresentado pelo Governo Federal, sobre o qual deixaremos de apresentar considerações por ainda não ter qualquer definição sobre seu conteúdo quando da conclusão desse artigo.

Qualquer que seja a proposição legislativa, é importante ter em mente que, diante das disposições constitucionais aplicáveis à matéria, bem como da relevância crucial desse instrumento para a efetividade dos direitos fundamentais de natureza socioambiental, o licenciamento ambiental deve ser fortalecido pelo Estado brasileiro, garantindo-se mais efetividade aos direitos à informação e à participação social, melhores condições institucionais aos órgãos ambientais, independência e autonomia às decisões dos agentes públicos, melhoria da qualidade dos estudos de Avaliação de Impacto Ambiental, entre outras medidas amplamente debatidas com os mais diversos setores da sociedade e do Poder Público, incluindo-se o Ministério Público (Federal e Estaduais), a comunidade científica, os órgãos ambientais, os movimentos sociais, os povos indígenas e outros.

(outubro, 2016)