De Povos Indígenas no Brasil
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== Introdução ==
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Simultaneamente ao processo de auto-organização política dos povos indígenas no Brasil, diversas outras ações foram por eles desencadeadas, assumindo cada vez mais novos espaços, além daqueles tradicionais: atuando na política partidária, desempenhando o papel de professores, agentes de saúde, escritores, documentaristas, pesquisadores, entre outros, sempre divulgando suas lutas e, principalmente, suas ricas culturas e modos de vida diferenciados.
 
Simultaneamente ao processo de auto-organização política dos povos indígenas no Brasil, diversas outras ações foram por eles desencadeadas, assumindo cada vez mais novos espaços, além daqueles tradicionais: atuando na política partidária, desempenhando o papel de professores, agentes de saúde, escritores, documentaristas, pesquisadores, entre outros, sempre divulgando suas lutas e, principalmente, suas ricas culturas e modos de vida diferenciados.
  
A <htmltag tagname="a" href="http://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/educacao-escolar-indigena/introducao" target="_self">incorporação da educação escolar pelos povos indígenas</htmltag> - e o  conseqüente domínio da escrita - tem permitido a formação de sucessivas gerações de professores indígenas que, por sua vez, têm produzido uma série de materiais didáticos nos quais a autoria indígena é cada vez mais marcante. Produzidos tanto nas <htmltag tagname="a" href="http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/linguas/introducao" target="_self">línguas nativas</htmltag> como em português, esses materiais são utilizados nas escolas indígenas visando uma formação escolar mais adequada de crianças e jovens.
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|por '''Lynn Mario T. Menezes de Souza'''
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A [[Educação escolar indígena |incorporação da educação escolar pelos povos indígenas]] - e o  conseqüente domínio da escrita - tem permitido a formação de sucessivas gerações de professores indígenas que, por sua vez, têm produzido uma série de materiais didáticos nos quais a autoria indígena é cada vez mais marcante. Produzidos tanto nas [[Línguas | línguas nativas]] como em português, esses materiais são utilizados nas escolas indígenas visando uma formação escolar mais adequada de crianças e jovens.
  
 
O fenômeno da inclusão digital, que tem tomado conta de todas as regiões do país com a disponibilização de tecnologia da informação, alcança parte das comunidades indígenas que, através do acesso à rede virtual, têm produzido uma diversidade de sites de sua própria autoria.
 
O fenômeno da inclusão digital, que tem tomado conta de todas as regiões do país com a disponibilização de tecnologia da informação, alcança parte das comunidades indígenas que, através do acesso à rede virtual, têm produzido uma diversidade de sites de sua própria autoria.
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As ações de autoria indígena não se esgotam nos exemplos acima. Hoje temos diversos índios estudando em universidades e se formando como advogados, antropólogos, professores, historiadores, jornalistas, etc. Envolvidos na defesa dos direitos dos povos indígenas, estão cada vez mais ocupando espaços nessas áreas.
 
As ações de autoria indígena não se esgotam nos exemplos acima. Hoje temos diversos índios estudando em universidades e se formando como advogados, antropólogos, professores, historiadores, jornalistas, etc. Envolvidos na defesa dos direitos dos povos indígenas, estão cada vez mais ocupando espaços nessas áreas.
  
Os temas aqui apresentados podem ser conhecidos em maior detalhe nos próprios sites indígenas, como também nos sites das organizações indigenistas parceiras.== A escrita e a autoria fortalecendo a identidade ==
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Os temas aqui apresentados podem ser conhecidos em maior detalhe nos próprios sites indígenas, como também nos sites das organizações indigenistas parceiras.
 
 
'''Por Daniel Munduruku, da etnia Munduruku. '''
 
 
 
Uma das lembranças mais agradáveis que tenho da minha infância é a de meu avô me ensinando a ler. Mas não ler as palavras dos livros e, sim, os sinais da natureza, sinais que estão presentes na floresta e que são necessários saber para poder nela sobreviver.Meu avô deitava-se sobre a relva e começava a nos ensinar o alfabeto da natureza: apontava para o alto e nos dizia o que o vôo dos pássaros queria nos informar.
 
 
 
Outras vezes fazia questão de nos ensinar o que o caminho das formigas nos dizia. E ele nos ensinava com muita paciência, com a certeza que estava sendo útil para nossa vida adulta. Aos poucos fui percebendo que aquilo era uma forma natural de aprendizado e que tudo era real. Mesmo quando nos falava dos mistérios da natureza, das coisas que minha cabeça juvenil não compreendia, sentia que o velho homem sabia exatamente o que estava nos ensinando. Fazia isso nos contando histórias das origens, das estrelas, do fogo, dos rios. Ele sempre nos lembrava que, para ser conhecedor dos mistérios do mundo, era preciso ouvir a voz carinhosa da mãe-terra, o suave murmúrio dos rios, a sabedoria antiga do irmão-fogo e a voz fofoqueira do vento, que trazia notícias de lugares distantes.
 
 
 
E assim cresci. E já grande fui perceber que o ensinamento que o velho avô nos passava, realmente nos ajudava a viver os perigos da floresta. Assim podia ler o que a natureza estava sentindo e o que nos estava dizendo. Coisas do futuro? A natureza dizia. Coisas do presente? A natureza nos dizia. Mortes? Brigas? Descaminhos? Estava lá a natureza para nos comunicar.
 
 
 
Hoje, pensando naquele tempo, sinto que a sabedoria dos povos indígenas está além da compreensão dos homens e mulheres da cidade. Não apenas pelo fato de serem sociedades diferenciadas, mas por terem desenvolvido uma leitura do mundo que sempre dispensou a escrita, pois entendiam que o próprio mundo desenvolve um código que precisa ser compreendido. E apenas os alfabetizados nesta linguagem são capazes de fazer esta leitura.
 
 
 
Apesar de ter crescido na cidade, freqüentado a escola formal desde pequeno e ter um relativo domínio dos códigos urbanos, alguma coisa internamente sempre me alertou para a necessidade de não deixar os códigos da floresta morrer dentro de mim. Este alerta sempre aparecia nas horas em que dúvidas ou dificuldades se faziam mais presentes. Era como uma voz que me lembrava o motivo pelo qual tinha aceitado vir para a cidade e nela viver, mesmo tendo aberto mão de uma vida aldeã.
 
 
 
Este alfabeto, que a natureza teima em manter vivo; esta escrita invisível aos olhos e coração do homem e da mulher urbanos, tem mantido as populações indígenas vivas em nosso imenso país. Esta escrita fantástica tem fortalecido pessoas, povos e movimentos, pois traz em si muito mais que uma leitura do mundo conhecido...Traz também em si todos os mundos: o mundo dos espíritos, dos seres da floresta, dos encantados, das visagens visagentas, dos desencantados. Ela é uma escrita que vai além da compreensão humana, pois ela é trazida dentro do homem e da mulher indígena. E neste mundo interno, o mistério acontece com toda sua energia e força.
 
<h2>A lógica do dominador</h2>
 
 
 
Não preciso lembrar aqui que a lógica de quem domina é totalmente diferente daquela dita anteriormente. O humano ocidental cresceu para dominar a natureza como algo fora dele. Dessa forma ele ignorou a escrita da natureza na tentativa de tornar-se dono dela. Desvalorizou as outras formas de leitura e de escrita do mundo e impôs seus próprios olhares e métodos científicos fazendo-nos crer que sua escrita era mais perfeita que aquela infinitamente mais antiga.
 
 
 
Estes olhares que os europeus trouxeram para cá revelaram que seus interesses estavam acima da real intenção de encontrar-se com nossos antepassados. Eles não tiveram consideração por nossos olhares e logo mostraram suas verdadeiras intenções de domínio, de riqueza fácil. Para isso não se furtaram de querer aprisionar nossos avós, roubar-lhes os conhecimentos tradicionais e tentar tirar de dentro de nós nossa forma de escrever nossa própria escrita. Quiseram roubar – e em muitos casos conseguiram – nossa alma colocando em seu lugar um espírito que nunca foi nosso. E o que eles colocaram no seu lugar? Necessidades que não eram nossas. Vontades que não tínhamos; desejos que não desejávamos; ódios que não sentíamos; bens que não nos pertenciam; pensamentos que não pensávamos. Foram plantando no coração de nossos antepassados um desejo de não Ser.
 
<h2>Dominar a escrita do Pariwat</h2>
 
 
 
Se houve uma tentativa de rasgar nosso espírito modificado pelo espírito europeu, houve também – e ainda há – uma nova tentativa de sacrificar nossa escrita tradicional, nosso olhar próprio com a uma lógica cruel que descaracteriza e empobrece nossa gente. Falo da escola tal como ela existe hoje nos meios urbanos. Falo da lógica da diferença que tem habitado os discursos políticos nos últimos quinze anos e que serviu, de certa forma, para reafirmar nossa condição de subseres humanos na prosopopéia lingüística dos discursos etno-pedagógicos dos pariwat.
 
 
 
Nestes discursos, sempre aparecem as realizações dos governos com relação à educação indígena como algo novo, que leva em consideração o “pensar” dos representantes nativos. É claro que não se pode negar os avanços que ocorreram e uma maior preocupação no sentido de tentar organizar o conteúdo que levasse a contento uma educação realmente diferenciada e inclusiva. Mas o que significa isso? Quais os efeitos que isso tem causado na cabeça dos nossos jovens? Como os povos têm reagido a semelhante apelo?
 
 
 
A resposta não é simples, mas ouso dizer que as pedagogias inclusivas não passam de arremedos na solução de um “problema” indígena, pois elas salientam ainda mais a falta de uma real compreensão do que seja um povo indígena e suas verdadeiras necessidades. Mais: elas escancaram a falta de um pensamento governamental a respeito do tratamento que estes grupos étnicos devem ter. Ou seja, revelam que o governo não tem competência para definir o que ele pensa a respeito dos indígenas. Ou será que alguém de governo já se posicionou de forma inequívoca sobre as intenções políticas com relação aos indígenas? Como saber quais as reais intenções políticas oficiais sobre os nativos? Ora, o que vem acontecendo são justificativas pedagógicas do tipo inclusivistas (a diversidade na universidade), ou paliativas (programas estaduais de magistérios indígenas) ou ainda neoliberais (formação de técnicos para suprir o mercado).E qual o propósito disso? Seriam muito diferentes dos projetos de “inclusão” que faziam os militares em sua política de incorporação à sociedade brasileira?
 
 
 
Não importa qual seja a resposta a estas perguntas e, sim, o que vemos acontecer na prática e que não respeita o caminho da memória e da tradição indígena em seu mais amplo sentido. Basta lembrar, para isso, que o domínio da escrita do pariwat é justificado pela necessidade de ler a realidade brasileira que, a priori, não faz parte do imaginário indígena. De modo que, ao meu ver, foi-se criando uma necessidade nos jovens nativos de apreender conceitos e teorias que não cabem no pensar holístico e circular de seus povos. Esta agressão ao sistema mental indígena, fruto de uma história da qual não somos culpados, mas sobre qual temos responsabilidade, acaba se perpetuando nas novas políticas inclusivistas levados a efeito por governos nas três esferas.
 
 
 
Conclusão: nossos jovens se vêm obrigados a aceitar como inevitável à necessidade de ler e escrever códigos das quais prefeririam não aprender e não lhes é dado o direito de recusar sob a acusação de preguiça ou descaso para com a "boa vontade" dos governos e governantes.
 
<h3>Fortalecendo a autoria</h3>
 
 
 
De qualquer forma, entendo que há uma preocupação prática nos diversos programas de educação indígena espalhados pelo Brasil afora, sejam eles operados pelas esferas governamentais ou não-governamentais. Muitos desses programas têm partido do princípio que é preciso fortalecer a autoria como uma forma de fortalecer também a identidade étnica dos povos que atendem. Isso é muito positivo se a gente entender que a autoria, aqui defendida, signifique que estes povos possam num futuro próximo, criar sua própria pedagogia, seu modo único de trafegar pelo universo das letras e do letramento. Só assim posso imaginar que valha a pena o esforço dos que se põem a trilhar este caminho. Se estes grupos de fato acreditarem que estão criando pessoas para a autonomia intelectual e se abrirem espaço na sociedade para a livre expressão deste pensamento, então eles estarão, realmente, fortalecendo a autoria e apresentando um caminho novo para as manifestações culturais, artísticas, políticas, lúdicas e religiosas dos nossos povos indígenas. Caso contrário, estarão levando nossa gente para o mesmo buraco em que o pensamento quadrado ocidental se meteu e, neste caso, estarão sendo piores que o regime ditatorial que almejava exterminar as identidades transformando-as numa única e cínica identidade nacional brasileira.== Uma outra história, a escrita indígena no Brasil ==
 
 
 
'''por Lynn Mario T. Menezes de Souza, mestre em linguística aplicada da educação; doutor em comunicação e semiótica (PUC-SP). Atualmente é livre-docente na USP'''
 
 
 
Há uma longa tradição no Brasil de publicar por escrito, mitos e lendas indígenas, supostamente transcritos das ricas tradições orais, por toda sorte de autores desde viajantes estrangeiros até antropólogos renomados.
 
 
 
O que mais caracteriza essa aparição da voz indígena na escrita é a forma dada a essa voz. Muitos desses textos acabam sendo recriações (por autores não indígenas) de narrativas orais com graus variados de consciência, por parte de seus autores, das diferenças radicais entre a forma escrita e a forma original oral de uma narrativa. Para entender melhor esse processo de registrar narrativas orais no papel, é importante entender os conceitos de performatividade da narrativa oral, o conceito de autoria, de tempo mítico e o conceito da padronização ou homogeneização.
 
<h3>A escrita indígena</h3>
 
<div class="box">
 
 
 
Alguns estudiosos definem a escrita como parte do comportamento comunicativo humano de transmitir e trocar informações; ou seja, a escrita pode ser vista como uma forma de interação pela qual uma ação das mãos (com ou sem um instrumento) deixa traços numa superfície qualquer; nesse sentido, a escrita pode ser concebida como uma forma não apenas alfabética para representar idéias, valores ou eventos. Entendido assim, a escrita sempre esteve presente nas culturas indígenas no Brasil na forma de grafismos feitos em cerâmica, tecidos, utensílios de madeira, cestaria e tatuagens. Por outro lado, a escrita propriamente alfabética, registrando no papel a fala e o som, foi introduzida no Brasil pela colonização européia, e desde o século XVI está presente de formas variadas nas comunidades indígenas; porém, foi apenas nas duas últimas décadas que surgiu o que pode ser chamado de fenômeno da escrita indígena no sentido do aparecimento de um conjunto de textos alfabéticos escritos por autores indígenas.
 
</div>
 
<h3>Performatividade</h3>
 
 
 
Na tradição oral de culturas sem escrita, uma narrativa contada oralmente é muito diferente do ato solitário de escrever e ler um texto numa cultura com escrita. Numa cultura oral, contar uma narrativa para uma platéia se trata de uma performance, um ato social complexo e altamente dinâmico. O contador da narrativa – apesar de acessar e fazer uso de uma série de técnicas para contar estórias, próprias de sua cultura e aprendidas ao longo de sua vida – conta muito com a presença de uma platéia, com a qual ele interage; por exemplo, de acordo com as reações da platéia presente, o contador escolhe uma ou outra técnica para o desenrolar da narrativa garantindo, assim, a possibilidade de prender o interesse de seu público.
 
 
 
Algumas dessas técnicas da performatividade oral incluem variações na impostação da voz, variações de entoação, o uso inesperado do silêncio e o uso da repetição. Sendo típicas da língua falada, tais técnicas desaparecem nas formas escritas das narrativas orais. Assim, os autores que dizem que estão simplesmente escrevendo (registrando no papel) narrativas indígenas tal qual foram contadas, na verdade estão deixando para fora do papel toda a complexidade e dinâmica do processo performativo de narrar oralmente.
 
 
 
Para isso, é bom entender o contraste entre o processo de transcrever e o de escrever: transcrever significa passar para a escrita o máximo possível das características orais (por exemplo, as mencionadas no parágrafo acima) de um processo oral de contar, enquanto escrever significa apenas registrar no papel informações consideradas relevantes. Ao dizer que está apenas escrevendo uma narrativa indígena tal qual ela existe e é contada na cultura indígena, muitos autores na verdade estavam apenas escrevendo ( e não transcrevendo) essas narrativas, deixando para fora da página escrita as complexidades, sofisticações e dinâmica da narrativa oral.
 
 
 
Dessa forma, ao dizer que está apenas escrevendo uma narrativa indígena, o escritor na verdade acaba transformando algo oral com características próprias em algo escrito com características muito diferentes, muitas vezes reduzindo a narrativa oral a apenas um enredo. Assim o escritor desse ‘enredo’ acaba na verdade se tornando o autor da narrativa, agora escrita, que nunca chegou a ser contada  (apresentada) oralmente. Assim, a performatividade da tradição oral que permeia a narrativa oral original, se perde totalmente, fazendo com que aquilo que nasceu como processo oral ou performance se torne um mero produto escrito.
 
<h3>Autoria</h3>
 
 
 
Dessa maneira, a questão da autoria se torna um aspecto crucial em todo fenômeno da escrita indígena. De fato, a questão da autoria na tradição oral difere fundamentalmente da do texto escrito. Numa cultura oral, as narrativas apresentadas em performances orais são vistas como sendo de propriedade coletiva da comunidade e herdadas dos antepassados; são aprendidas através da memória e passadas de geração em geração. O contador não se vê como criador da narrativa, e sim como uma espécie de transmissor; ou seja, ele é um elo numa cadeia infinita de repetidores e guardiões das narrativas ao longo das gerações. A cada ato de contar, não é apenas a narrativa em si que é repetida, mas também toda a tradição oral da comunidade é revivida.
 
 
 
Apesar desse conceito de o contador não ser o ‘criador’ (autor) mas apenas o ‘repetidor’ da narrativa tradicional pertencente à comunidade, na verdade ao seguir as regras da performatividade, interagindo com a platéia e lançando mão das várias técnicas de narrar, de acordo com as reações de sua platéia, o contador acaba usando essas técnicas de uma forma personalizada, para dar vida à narrativa. A comunidade por sua vez, apesar de apreciar as habilidades pessoais do contador, ainda assim considera que a narrativa contada não é propriedade do contador, mas sim da comunidade. O autor da narrativa, nessa visão, é a comunidade e não o contador individual. O exemplo de tal visão é a manifestação dos escritores indígenas do Brasil em sua Carta da Kari-Oca de 2004:
 
 
 
 
 
<div class="box"><blockquote>
 
 
 
Os conhecimentos de nossos avós foram deixados para nossos netos de forma oral como uma teia que une o passado ao futuro. Esta fórmula pedagógica tem sustentado o céu no seu lugar e mantido os rios e as montanhas como companheiros de caminhada para nossos povos. Tais conhecimentos, em forma de narrativas – chamado mitos pelo ocidente – foram sendo apropriados por pesquisadores, missionários, aventureiros, viajantes que não levaram em consideração a autoria coletiva e divulgaram estas histórias não se preocupando com os seus verdadeiros donos.(2)
 
</blockquote></div>
 
 
 
 
 
<span style="font-style: italic;">
 
</span>
 
<h3>Tempo mítico e tempo histórico</h3>
 
 
 
O aspecto da autoria coletiva ou comunitária está ligado ao conceito de tempo mítico e tempo histórico nas culturas orais.
 
 
 
O antropólogo Da Matta3 (1987) aponta dois conceitos de tempo simultaneamente presentes nas culturas indígenas brasileiras: um ‘presente anterior’ e um ‘presente atual’. Enquanto o presente anterior se remete a um passado durante o qual o mundo tal como é hoje ainda não existia, o presente atual se refere ao estado de coisas no mundo de hoje em dia.
 
 
 
Outro escritor (Sullivan4 1988) chama esse presente anterior de “primordium”, descrevendo-o como um plano temporal primordial nas cosmologias indígenas sul-americanas, quando tudo estava sendo ainda criado, e quando as coisas e os seres possuíam formas instáveis capazes de se mudarem constantemente; nesse plano temporal, tudo podia se transformar em outra coisa, até que ocorreu um grande desastre primordial que criou uma ruptura no tempo e acabou gerando o plano do tempo ‘presente atual’. Nesse plano, os seres e as coisas pararam de  mudar de forma e se fixaram permanentemente nas formas que tinham no momento do grande desastre primordial.
 
 
 
Portanto, enquanto que no plano temporal do ‘presente anterior’ ou do ‘primordium’, todos os seres se intercomunicavam e mudavam de forma e por isso eram iguais, no plano temporal do ‘presente atual’ os seres passaram a ficar separados e isolados uns dos outros, em formas distintas.  Para muitas culturas indígenas, o plano do ‘presente anterior’ (diferentemente de nosso conceito de passado) continua existindo, e as transformações e intercomunicações entre os seres seguem um movimento cíclico, como se fosse de repetição; esse plano é chamado por muitos estudiosos do plano do ‘mito’. Por outro lado, no plano do ‘presente atual’, onde os seres ocupam formas fixas e estão isolados uns dos outros, tudo segue um processo linear; este  plano é chamado de plano da ‘História’. Dizem os especialistas que esses dois planos coexistem de forma paralela e se intercomunicam; portanto não são separados. Os xamãs ou pajés são capazes de viajar entre os dois planos na busca de curas, soluções e explicações para eventos e problemas cotidianos.  Grande parte das narrativas orais indígenas narram eventos que ocorreram e ocorrem nesse plano do ‘presente anterior’.
 
 
 
Dessa forma, pode-se dizer que as narrativas orais performáticas e míticas, acompanhadas pelo conceito de autoria coletiva, remetem-se ao conceito valorizado da coletividade e à inseparabilidade típica do ‘presente anterior’; em contraste, pode-se dizer de forma geral que uma narrativa escrita de autoria individual, contando sobre algo existente hoje, se remete ao plano do ‘presente atual’, do ‘hoje-em-dia’ da historicidade.
 
<div class="box">
 
 
 
Em '''“Tuparis e Tarupas”''', por exemplo, a autora Betty Mindlin faz questão de identificar os narradores das narrativas que ela reúne no livro, mas ao passar as narrativas para uma forma escrita, isto é, deixando de lado as formas performáticas do ato de narrar oral, pode-se dizer que ela acaba sendo a autora das narrativas, embora não seja a narradora. Veja o exemplo:
 
 
 
“O Dia”
 
 
 
“Antigamente, não existia o dia. Conta-se que na casa de Waledjat era sempre escuro, nunca amanhecia. Existia o sol, mas não passava o claro para cá”.  (Narrador: Konkuat, 1989)
 
 
 
 
 
 
 
Em outros livros como '''“Wamrêmé Za’ra Nossa Palavra”''', dos Xavante, há uma preocupação maior de manter as características da narrativa oral, e apesar de identificar os nomes dos narradores, deixa-se claro que a autoria do livro é do povo xavante.
 
 
 
História da Anta(8)
 
 
 
[...] O marido fica escondido, esperando... Prepara o arco e:
 
 
 
-Tummmm! Dá uma flechada na fêmea. Ela cai:
 
 
 
-Ôhr, ôhr, ôhr..
 
 
 
O macho se aproxima e o homem dá outra flechada:
 
 
 
-Tummmm!
 
</div>
 
 
 
A coexistência e possibilidade de comunicação entre os dois planos temporais indicam que pode haver uma conexão entre narrativas ‘míticas’ e narrativas ‘históricas’.  A antropóloga Gallois5 (1994) cita exemplos das narrativas dos Waiãpi nas quais os narradores chegam a atualizar as narrativas tidas como míticas de acordo com os fatos recentes ocorridos na história daquela comunidade e presentes em sua memória. Portanto, longe de ser apenas uma estória, esse tipo de narrativa oral constrói e reconstrói a história daquela comunidade. Essas atualizações ou variações porém, não são percebidas nessas comunidades como mudanças ou deturpações da narrativa oral original e o contador, conseqüentemente, não é visto como autor de seu texto (modificado ou atualizado) e sim como repetidor.
 
<h3>Padronização</h3>
 
 
 
Além de confundir autor e narrador, transcrição e escrita, outra violação comum na escrita indígena ocorre quando as “transcrições” de narrativas orais acabam inadvertidamente caindo em mais uma armadilha aberta no espaço entre a oralidade e a escrita, dessa vez a armadilha da padronização ou homogeneidade. Essa questão diz respeito ao fenômeno descrito acima de atualizar a narrativa oral – o que paradoxalmente mantém uma narrativa sempre a mesma, apesar de torná-la diferente a cada apresentação. Quando tal variação ou atualização de uma narrativa oral passa inadvertidamente a ser transcrita e publicada, ela adquire, através da escrita, a aparência de ser a forma única daquela narrativa; passar uma narrativa para a escrita acaba deslocando-a (o que acontece com qualquer texto escrito) do contexto temporal e local de sua apresentação oral perante uma platéia, fazendo com que aquilo que foi contado oralmente como uma variação/atualização de uma narrativa já existente, fique publicado/congelado no papel como a única forma invariante da narrativa, padronizando-a e homogeneizando-a para sempre. Isso acaba reduzindo a plenitude e complexidade da história indígena e das tradições orais numa mera estória.(9)
 
<h3>
 
A história reescrita</h3>
 
 
 
Embora haja muitos relatos da percepção entre as comunidades indígenas da importância e do poder da escrita,(10) foi apenas recentemente que a escrita passou a ser vista de fato como uma ferramenta importante para o resgate de suas culturas e de suas identidades, ameaçadas  pela sociedade envolvente.
 
 
 
A constituição de 1988, que oficialmente reconheceu a existência das línguas indígenas no Brasil, abriu o caminho para a educação bilíngüe indígena e levou à criação da nova instituição da escola indígena, reforçando assim o esforço dessas comunidades para a recuperação de suas culturas, muito embora cada comunidade sempre tivesse seus próprios meios para a transmissão de suas tradições orais.
 
 
 
Essa política nova de educação indígena no Brasil deu um impulso nunca antes visto para o surgimento de uma nova escrita indígena, seja através da necessidade de criar novos materiais didáticos com conteúdos indígenas para alimentar as escolas indígenas, seja através da formação de um novo público leitor formado pelo alunado dessas escolas pelo país afora, ou seja, ainda por causa dos vários programas de autoria indígena que surgiram em vários cursos de formação de professores indígenas para estimular a escrita e a produção de novos materiais didáticos para as escolas indígenas.
 
A nova escrita indígena que nasce de e para a nova escola indígena aparece especialmente quando surge o desejo e a necessidade de reescrever a história indígena, e por que não, de reescrever até mesmo as estórias indígenas, numa tentativa desenfreada de arrancar o poder de autoria das mãos dos tradicionais e históricos tutores das comunidades indígenas:
 
<div class="box"><blockquote>
 
 
 
Eu sou índio porque nós temos costume de falar nossa língua. E também nós temos costume de dançar a festa do mariri.[...] Por isso é que nós queremos continuar a ser índio. É pelos costumes de nossa aldeia que todo pessoal já conhece. Então não adianta a gente negar a nossa língua e dizer que não é índio. O índio não pode virar cariu, porque é de outro jeito e chama de índio. O índio também é gente. Nós somos índios Caxinauás do Jordão e queremos aprender a língua de português, ler, escrever e tirar conta para não ser roubado pelo cariu
 
</blockquote></div>
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Curiosamente, essa escrita nasce na forma de livro didático, escrito, na maioria das vezes coletivamente por grupos de professores indígenas em cursos de formação de professores para escolas indígenas. Tais livros procuram disseminar os conhecimentos culturais da tradição oral na forma de livros escritos especificamente para o currículo da escola indígena.
 
Porém, como ocorreu com as “transcrições” das narrativas orais, as armadilhas  que separam a cultura oral da cultura escrita são muitas; a primeira aparece já na definição de fronteiras disciplinares: qual deveria ser a diferença entre narrativas num livro didático para o ensino da língua (seja ela materna ou português) e outras em livros para o ensino de história e de ciências? Surge novamente o espectro da indistinguibilidade entre ficção e realidade ou entre história e estória.(12)
 
 
 
Alguns livros procuram contrapor as narrativas da tradição oral já existentes com narrativas (“memórias”) pessoais biográficas redigidas especialmente pelos professores/autores, como se aquelas fossem “mitos” com menor grau de veracidade, e portanto menos científicas, enquanto estas são vistas como documentos testemunhais tendo maior grau de veracidade e cientificidade:
 
<div class="box"><blockquote>
 
 
 
Quando Deus (13) andava no mundo, para ver quem era bom e quem era ruim, ele encontrou no meio da mata uma aldeia e ficou pra saber se os índios eram bons ou ruins. Então Deus virou tamanduá que era manso e eles o levaram pra casa. O tamanduá ficou lá [...] Na década de 30 (14), a Companhia do Vale Rio Doce executa o projeto de construção da EFVM. A vale cortou o território Krenak em 1905 sob protesto dos Burúm. Estes nunca foram indenizados pelos prejuízos. A companhia trouxe as fazendas de café, a exploração de minérios, a poluição sonora para a região [...] Várias vezes, á sua maneira os Burum reagiram, bloqueando a estrada colocando pedras e paus nas trilhas para impedir passagem. [...] Vários morreram ali atropelados. O último a morrer foi Humberto, em 1984, quando voltava de um congresso indígena realizado em B.H.
 
</blockquote></div>
 
 
 
Outros livros ainda contêm narrativas ditas ficcionais e até mesmo poesias escritas especialmente para esses livros pelos professores/autores, às vezes de autoria coletiva, outras vezes de autoria individual, criando uma nova modalidade de, ou talvez confundindo para sempre, o conceito de “autor”:
 
<div class="box"><blockquote>
 
 
 
Sinto que sou índio porque não tenho cara de branco, meu corpo é diferente, meu jeito de caminhar é diferente. Meu cabelo é liso, Não tenho muita barba E nem pêlo enrolado no braço e na perna. Índio tem pêlo liso no suvaco e na canela. Somos iguais e diferentes. Diferentes na língua, jeito e costume. Igual no corpo, na inteligência, no respeito. Somos todos iguais: índios, negros, brancos.
 
</blockquote></div>
 
 
 
 
 
 
 
 No caso do texto acima, a autoria é atribuída coletiva e anonimamente a um “Grupo de professores indígenas do Acre”, (15) que diferentemente das narrativas de autoria coletiva que surgem dentro de uma mesma etnia e grupo social, essa narrativa foi elaborada por sujeitos de várias etnias reunidos num curso de formação de professores indígenas do Acre. As três narrativas apresentadas imediatamente acima atestam duas questões que permeiam as novas narrativas indígenas: a questão de gênero textual e a questão do sujeito. Dada a complexidade da situação do surgimento dessas narrativas no espaço problemático entre a oralidade e a escrita, é de se esperar que os gêneros textuais das narrativas reflitam tal complexidade, dificultando a sua identificação em termos dos gêneros da cultura escrita, tais como ‘poesia’, ‘conto’ ou ‘crônica’. Muitas vezes, são os editores não-indígenas dos textos que formatam os manuscritos atribuindo-lhes o gênero textual que mais lhes parece cabível nas circunstâncias, sem que os próprios autores tenham escolhido intencionalmente tais gêneros. Como se sabe, ‘poesia’, ‘conto’ e ‘crônica’ são gêneros da cultura escrita e têm mais a ver com a disposição do texto verbal no espaço bidimensional da página do que com o aspecto da performatividade e a interação narrador-audiência, mais característica da tradição oral, cujas distinções de gênero textual são menos definidas e mais situacionais.
 
 
 
A antropóloga Tonkin (1992) aponta, por exemplo, a dificuldade de distinguir, na narrativa oral, entre uma narrativa pessoal, subjetiva e auto-biográfica e uma narrativa supostamente mais objetiva que representa uma história da vida da comunidade; ou seja quando uma estória passa a ser história? Quando uma ficção passa a ser fato? Como esclarece Tonkin, nessas situações, uma narrativa, seja oral ou escrita, contém eventos organizados seqüencialmente de forma a apresentar um tipo de enredo; a seleção dos eventos e seu ordenamento ajudam a criar uma ‘ordem moral’ que elimina a sensação de desordem e falta de sentido, e afasta a possibilidade de representar um mundo em estado de caos.
 
Esse ordenamento dos eventos é feito de acordo com uma experiência de vida de um sujeito; porém, esse sujeito da experiência, seja ele expresso explicitamente na narrativa ou não, mais do que um sujeito individual, é um sujeito social(16) e coletivo. Esse ‘sujeito social’ não deixa de ser um indivíduo, mas reflete o processo de formação de identidades de sua cultura onde a dinâmica individual-social é diferente da do sujeito individual numa cultura ocidental; nas culturas indígenas, cada sujeito é visto em termos de suas relações com os outros sujeitos da comunidade, e nunca de uma forma independente ou individualista.
 
 
 
Esse conceito de sujeito está intimamente relacionado com os conceitos temporais das culturas indígenas, conforme discutimos acima, que estabelecem o diálogo entre o ‘tempo anterior’ mítico e coletivo (gerador do sujeito coletivo) e o ‘tempo presente’ atual, histórico e social (gerador do sujeito separado, aparentemente indivíduo.
 
<h3>A visualidade na escrita indígena</h3>
 
 
 
Outra característica marcante dos livros de escrita indígena é seu grande apelo visual. A grande maioria deles é altamente ilustrada com desenhos em cores vivas feitos pelos próprios autores individual e/ou coletivamente, levando alguns a considerá-los até como um fenômeno novo da arte indígena.(17)
 
 
 
Na maioria das vezes, porém, sendo tutelados por pessoas de fora das comunidades indígenas, o processo de editoração desses livros, incluindo o tratamento gráfico final que lhes é dado, muitas vezes é controlado por pessoas que acabam também vítimas inocentes das armadilhas que separam a cultura oral da escrita. Como no caso dos gêneros textuais, muitas vezes esses “editores”  desconhecem o papel e o valor do texto ou elemento visual naquela cultura indígena e, partindo de uma cultura escrita que dá primazia à palavra escrita, acabam confundindo-se e atribuem ao texto escrito (que para algumas comunidades indígenas apenas “ilustra” ou complementa um texto visual) maior importância do que ao texto visual.18 Aliás, o diálogo elaborado entre os textos visuais e escritos presente na nova escrita indígena ainda merece ser estudado como um fenômeno à parte.19
 
 
 
Tendo em vista que o objetivo principal do surgimento desses livros, dentro do contexto da nova escola indígena, é de resgatar as culturas indígenas, o que mais se vê nesse fenômeno da recente escrita indígena  é o surgimento de uma nova cultura indígena atravessando e confundindo as fronteiras tênues entre a cultura escrita e a cultura oral.
 
 
 
Essa nova escrita indígena, especialmente a que é escrita em português,  nasce paradoxal e simultaneamente local e nacional, marginal e canônica: local, porque cada comunidade com projetos para uma escola indígena se torna produtor/autor e consumidor/leitor de seus próprios textos; nacional, porque a política da escola indígena é federal, e isso faz com que surja um público consumidor/leitor potencial da escrita indígena em todas as escolas indígenas do país, fazendo com que esses livros possam circular para fora de suas comunidades produtoras, tornando as tradicionais sabedorias e valores das culturas indígenas (nas suas novas formas transformadas escritas) numa nova espécie de capital cultural transcomunitário; marginal, porque essa escrita embora já prolífica e de grande abrangência, ainda não mereceu o interesse das academias e instituições literárias nacionais que, quando muito, a vêem como uma espécie de literatura popular ou de massas, sem grande valor literário (quando alguns desses livros encontram o caminho para o mercado externo das livrarias nos grandes centros urbanos do país, não é incomum encontrá-los na seção de Literatura Infantil);e finalmente canônica porque trata-se de uma escrita que já nasce no bojo da instituição escolar, com seus mecanismos de inclusão e exclusão curriculares que em várias culturas formam a base para a construção, destruição ou transformação dos cânones literários. (20)
 
 
 
Não deixa de haver uma certa ironia no fato de que a escrita indígena, produto de um setor historicamente marginalizado como sendo ‘primitivo’, já esteja formando, em menos de uma geração, seus próprios cânones da escrita.
 
 
 
Mais do que reescrever a sua estória/história, as comunidades indígenas parecem já estar escrevendo sua história. De forma diferente das literaturas pós-coloniais de língua inglesa e francesa, que antes de tudo buscaram “escrever de volta” aos antigos centros colonizadores metropolitanos, para serem ouvidos e lidos (21), as comunidades indígenas brasileiras parecem ter se contentado em reescrever a sua história escrevendo para eles mesmos, construindo assim uma nova identidade indígena, ambígua e híbrida, ao mesmo tempo local (como vimos acima, “Kashinawa do Acre”, por exemplo) e nacional (“índio brasileiro”). Resta saber o resultado a longo prazo dessa relação fascinante e um tanto incestual da nova escrita indígena com a escola indígena.
 
<h3>A estória escrita</h3>
 
 
 
Um terceiro grupo de escrita indígena é aquele que inclui os escritores declaradamente de origem indígena (Daniel Munduruku, Kaká Werá Jecupé e Olívio Jekupé), mas que migraram para os centros urbanos nacionais, e conviveram com a cultura dominante, escrevendo de e para a cultura dominante não indígena. Longe dos fenômenos mencionados da tutelagem dos intermediadores e da escola indígena, esses autores ou publicam suas próprias obras ou são publicados por editoras não indígenas, e até de prestígio, como foi o caso de Daniel Munduruku.22 Longe também da performatividade da tradição oral, e portanto de suas platéias indígenas, esses autores seguem,com algumas exceções, a tradição escrita e seus gêneros (Souza 2001,2002).(23)
 
 
 
Com esse distanciamento de suas origens e de um público leitor indígena, esses autores, embora procurem reescrever a versão dominante da história indígena para não indígenas,(24) acabam sujeitos aos processos de exclusão e marginalização do mercado editorial dominante, conseguindo no máximo, ser lidos como autores de estórias escritas, ajudando, porém, à sua maneira, a prestar visibilidade, embora restrita, à problemática do processo de construção da(s) identidade(s) indígena(s) e à questão indígena. Mas essa é uma outra história...
 
 
 
'''Março de 2006'''
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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<h3>Notas</h3>
 
 
 
1 Uma versão anterior, deste texto foi publicada em Perspectivas da literatura ameríndia no Brasil, Estados Unidos e Canadá. (org.) Eloína Santos. Feira de Santana: UEFS, 2003.
 
 
 
2 Veja a íntegra da carta no artigo “A escrita e a autoria fortalecendo a identidade”, de Daniel Manduruku, nesse capítulo.
 
 
 
3 DaMatta, R. 1987 Relativizando: uma introdução á antropologia social, Rocco, Rio de Janeiro
 
 
 
4 Sullivan, L. E. 1988 Icanchus Drum; an orientation to meaning in South American religions, Macmillan, New York
 
 
 
5 Gallois, D. 1994. Mairi Revisitada a reintegração da fortaleza de Macapá na tradição oral dos Waiãpi. NHII USP, São Paulo
 
 
 
6 Veja por exemplo as “transcrições” (conforme definimos acima) traduzidas e publicadas por Betty Mindlin.Tuparis e Tarupás (1993, Editora Brasiliense, São Paulo) e compare com as “transcrições” de Sereburã e outros Wamrêmé Za’ra Nossa Palavra (1998, Editora Senac, São Paulo) com uma preocupação maior em reter no texto escrito mais características da narrativa oral.
 
 
 
7 De Mindlin 1993 Tuparis e Tarupás. Coletada e publicada pela antropóloga, note o destaque dado ao narrador nomeado.
 
 
 
8 De Sereburã e outros 1998 Wamrêmé Za’ra Nossa Palavra. Note as repetições e os sons típicos de uma narrativa oral, onde o narrador procura dramatizar  e dar vida á narrativa.
 
 
 
9 Veja por exemplo as narrativas publicadas por Ciça Fittipaldi A Árvore do mundo e outros feitos de Macunaíma (1988), e Subida pro Céu (1986) Melhoramentos, São Paulo.
 
 
 
10 Veja por exemplo o relato de Levi Strauss em Tristes Trópicos (1957) descrevendo a apreensão da escrita como instrumento mágico de poder sobre os outros por parte de um chefe Nambikwara
 
 
 
11 De “Eu sou índio” por Norberto Sales Têner, em O Jacaré Serviu de Ponte, CPI do Acre 1984.
 
 
 
12 Para uma discussão desse fenômeno veja White, H.1973 Metahistory, Johns Hopkins University Press, Baltimore.
 
 
 
13  De Conne Pãnda Ríthioc Krenak: coisa tudo na língua krenak (1997). MEC p. 32.
 
 
 
14  De Conne Pãnda Ríthioc Krenak: coisa tudo na língua krenak (1997) MEC, p. 39.
 
 
 
15 De Antologia da Floresta 1997 CPI do Acre, Rio Branco, p.10-11.
 
 
 
16 Veja o conceito de sujeito ‘pronominal’ de Bhabha, H.K. 1995. “Freedoms Basis in the Indeterminate” em Rajchman, J. (ed) The Identity in Question, Routledge, New York e o conceito de sujeito relacional no perspectivismo indígena de Castro, E.V 2000 “Cosmological Deixis and Amerindian Perspectivism” em Lambek, M. (ed) Anthropology of Religion, Blackwell, Oxford
 
 
 
17 Veja a este respeito o comentário de Meliá, B. 1989 em A Conquista da Escrita Indígena, Iluminuras, São Paulo. p. 14
 
 
 
18 Veja como exemplo a re-publicação de Shenipabu Miyui pela Editora da UFMG em 2000. O livro original foi escrito de forma multimodal pelos Kashinawá para quem o texto visual é pelo menos tão importante quanto o texto verbal sendo que os dois tipos de texto geralmente são interligados. Na re-edição do livro essa interligação se perde por completo.
 
 
 
19 Veja a este respeito o estudo de Souza, LMTM (2000) “Surviving on paper: recent indigenous writing in Brazil”. ABEI JOURNAL nº 2
 
 
 
20  Veja a este respeito Guillory, J. (1993 ) Cultural Capital: the problem of literary canon formation, University of Chicago Press, Chicago
 
 
 
21 Veja o gênero narrativo que Gallois 1993 chama de “fala para branco”; veja nota 6 acima.
 
 
 
22 Autor de Histórias de Índio (1997) Companhia das Letras, São Paulo.
 
 
 
23 Souza, LMTM 2001 “Para uma ecologia da escrita indígena: a escrita multimodal kashinawá” em Signorini, I. (org) Investigando a relação Oral\Escrito, Mercado de letras, Campinas; Souza, LMTM 2002 “As visões da anaconda: a narrativa escrita indígena no Brasil”, Semear nº 7, PUCRJ
 
 
 
24 A tentativa de Munduruku de desfazer a imagem negativa do índio aparece timidamente num gênero de livro/narrativa infanto-juvenil; as narrativas de Jecupé  bordam o místico/mítico/esotérico (veja Oré Awé (1992?) Phytoervas, São Paulo, A Terra dos Mil Povos (1998), Tupã Tenondé (2001) Ed. Peirópolis, São Paulo.
 
</div>== Uma experiência que poderia dar certo ==
 
 
 
'''por Gersem Baniwa, da etnia Baniwa, professor, mestre em antropologia social pela UnB e diretor-presidente do centro indígena de estudos e pesquisa (Cinep)'''. '''Texto publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2001-2005 (págs. 193-196)'''
 
 
 
Enquanto experiência demonstrativa, o '''Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI)''' tinha como principal missão, além da contribuição finalística com a sustentabilidade territorial e econômica, influenciar na mudança de velhas e viciadas práticas tutelares de políticas públicas voltadas aos povos indígenas. Mas a insensatez política do governo está enterrando essa possibilidade e com isso toda a esperança de milhares de cidadãos indígenas brasileiros que acreditaram no compromisso dos chefes brancos.
 
 
 
O projeto é resultado de ampla articulação política dos povos indígenas da Amazônia, sob a liderança da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que desde a realização da ECO-92 no Rio de Janeiro, reivindicavam programas específicos voltados a atender suas principais demandas principalmente as de auto-sustentação e de proteção territorial.
 
 
 
As lideranças indígenas que participaram desde o início das discussões tinham clareza de que o projeto não deveria ser mais um entre vários que existiram, ou seja, projetos concebidos, planejados e executados pelos governos ou entidades de apoio para os povos indígenas. Queriam um projeto gerenciado com ampla e real participação dos índios e que o projeto tivesse a cara indígena nos seus princípios e critérios orientadores e nas metodologias de execução.
 
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'''As lideranças sabiam que sem incorporar as formas de pensar e fazer indígenas, o projeto novamente não teria êxito e sempre deixaram isso claro durante todo o processo de sua construção. Lutaram muito para que o governo brasileiro e os financiadores da cooperação internacional entendessem e aceitassem isso'''.
 
</div>
 
 
 
O processo de construção foi difícil e tenso em vários momentos, mas os resultados foram animadores e as lideranças indígenas até hoje consideram o PDPI como a principal conquista do movimento indígena dos últimos dez anos. Foi com esse espírito que o PDPI, no contexto das políticas públicas voltadas para os povos indígenas, foi projetado e implantado para demonstrar através de experiências concretas as possibilidades de implementação de políticas públicas mais coerentes com as suas realidades e demandas.
 
 
 
Olhando para os sete anos de existência do processo PDPI (considerando 1999 como o ano em que a idéia oficialmente foi assumida pelo Ministério do Meio Ambiente) e considerando a cifra atual de 262 propostas indígenas recebidas das quais 71 foram aprovadas, pode-se arriscar três situações ou momentos distintos e significativos da experiência: as inovações inauguradas na cultura política brasileira, os dramas que assolam o projeto e as possíveis perspectivas.
 
 
 
 
 
<h3>Inovações propostas pelo PDPI</h3>
 
 
 
'''''Os índios como co-gestores '''''
 
 
 
A participação indígena como condição para o seu êxito é uma das principais marcas do projeto PDPI. A presença indígena foi fundamental em todas as fases e níveis do projeto. No entanto, não foi uma tarefa fácil. Primeiro, pela resistência de muitos setores do governo para que isso ocorresse. Segundo, porque muitos atores indígenas e não indígenas entenderam que o fato de garantir um representante indígena na gerência e paridade na Comissão Executiva do projeto resolveria a questão da participação indígena. Talvez pelo tamanho da briga que foi necessário travar até sua aprovação pelo governo brasileiro e pelos doadores internacionais, os índios superestimaram as duas importantes conquistas.  A Comissão Executiva é um colegiado paritário entre a representação do governo e a indígena cuja função é definir as diretrizes do projeto e avaliar as propostas apresentadas.
 
 
 
A participação e envolvimento indígena na construção do projeto foi uma divisão de responsabilidade e até de poder. Isso permitiu que as lideranças indígenas se sentissem como co-gestores do projeto e não como simples interlocutores/mediadores ou beneficiários.  Em grande medida, essa inovação na relação dos povos indígenas com o Estado se deve, por um lado, à sensibilidade da equipe do Ministério do Meio Ambiente através da Secretaria de Coordenação da Amazônia e muito particularmente graças à sensibilidade da secretária Mary Alegretti, que se dedicou dentro do governo à viabilidade institucional do processo e por outro lado, pela capacidade de articulação e mobilização indígena, dirigida à época pelo Euclides Macuxi, coordenador geral da Coiab. Além disso, a sensibilidade por partes dos representantes da cooperação internacional, expressa de forma mais concreta através da Cooperação Técnica (GTZ) e Financeira (KFW) Alemã, do Banco Mundial e da Cooperação Técnica Britânica (DFID), foi indispensável ao convencimento do governo brasileiro e de outros parceiros e aliados envolvidos.
 
 
 
Essa repartição de responsabilidade permitiu, mesmo com tantas adversidades, criar condições operacionais, conceituais, técnicas e metodológicas suficientes para alavancar o projeto rumo aos resultados preconizados. Do lado indígena, por exemplo, foram realizadas 16 oficinas micro-regionais em toda a Amazônia Legal e dois seminários regionais de consulta aos povos indígenas durante os três anos (1999-2001) de preparação e elaboração do programa.
 
 
 
 
 
 
 
'''''Capacitação '''''
 
 
 
O projeto definiu como princípio e critério básico de assessoria e assistência técnica às comunidades executoras dos projetos a capacitação como um processo contínuo, permanente e realizado na comunidade local. Percebeu-se que não adiantaria apenas capacitar os dirigentes ou coordenadores de projetos aprovados, sem o envolvimento da comunidade. Isso não significa que toda a comunidade tem que participar diretamente da execução das atividades, mas precisam acompanhar todo o processo de desenvolvimento do projeto.
 
 
 
A assessoria tem sido prestada, no limite da capacidade da equipe técnica extremamente reduzida do projeto, de forma permanente através de acompanhamento diário por intermédio do escritório central de Manaus, mas principalmente por meio de visitas de monitoria e assessoria aos projetos locais.  Monitoria técnica relâmpago de campo no âmbito de projetos governamentais não é novidade, mas o PDPI inovou na maneira como ela é realizada, dedicando o tempo necessário para que a equipe técnica compreenda suficientemente a situação para assim poder colaborar melhor na solução dos problemas. Nessa tarefa, geralmente a equipe de monitoria ou de assessoria precisa articular, mobilizar e comprometer outros parceiros locais, sejam ONGs ou agências governamentais no apoio ao projeto.
 
 
 
No PDPI, uma proposta apresentada por uma comunidade indígena nunca é reprovada, o que equivale dizer que sempre é possível a comunidade melhorar, reelaborar em base às próprias observações enviadas pela equipe técnica ou comissão executiva quando a proposta é devolvida à comunidade proponente para sua reformulação. Portanto, o que é importante para o PDPI não é a aprovação ou reprovação, mas, o processo de capacitação da comunidade indígena. Os processos tradicionais de monitoria e assessoria sempre se pautaram pela lógica da avaliação mecânica de dar veredicto, isto é, achar os erros ou eventualmente alguns acertos. No PDPI, o papel da assessoria não é ensinar, mas aprender, em conjunto, a encontrar soluções adequadas aos problemas apresentados e, sobretudo colaborar na capacitação da comunidade para encontrar as melhores soluções aos problemas que enfrentam. Esse me parece o principal espírito do PDPI: possibilitar o desenvolvimento de um processo de organizar as idéias (planejar), pôr em prática essas idéias (executar), monitorar as ações, avaliar os resultados e disponibilizar as experiências aos interessados.
 
 
 
 
 
 
 
'''''Equipe técnica '''''
 
 
 
Desde o início da implantação do PDPI, sempre houve uma grande preocupação na constituição da equipe técnica do projeto. Em primeiro lugar, o projeto havia assumido o compromisso de quebrar velhas e viciadas práticas paternalistas e etnocêntricas na relação Estado/governo e povos indígenas. Segundo, tratava-se de um trabalho junto a mais de 180 povos etnicamente diferenciados, o bastante para exigir muita sensibilidade e habilidade política, técnica e humana por parte da equipe.  Cuidadosos processos transparentes de seleção, envolvendo representantes de várias entidades, inclusive representantes indígenas, foram permitindo constituir uma equipe técnica para a Unidade de Gerenciamento (UG), competente e comprometida  com os princípios e ideários do projeto.
 
 
 
Nesse sentido, a equipe gerencial da UG, apesar de reduzida, sempre esteve afinada para garantir o bom desenvolvimento das ações do projeto. As ações mais importantes da UG são: capacitação das comunidades e organizações indígenas, apoio às comunidades e organizações indígenas na elaboração de projetos e acompanhar, assessorar e monitorar a implementação de subprojetos.    Arranjo Institucional Uma outra importante inovação no projeto PDPI foi o arranjo institucional construído para sua efetividade, aproveitando-se das experiências então em curso de outros programas do PPG7, principalmente dos Projetos Demonstrativos Tipo A (PDA/MMA) e do PPTAL (Funai). A internalização dos recursos financeiros da cooperação internacional (KFW) através do Banco do Brasil permitiu maior agilidade no processo (um ano), o que poderia levar até três ou quatro anos por vias tradicionais, pela necessidade de passar pelo Congresso Nacional para então chegar ao Tesouro Nacional, isso sem contar a carga burocrática que a partir do Tesouro seria imposta ao projeto.
 
 
 
Outra vantagem importantíssima desse procedimento é o fato de permitir que os recursos da cooperação internacional destinados a apoiar as iniciativas indígenas cheguem integralmente ao seu destino, sem possibilidade de retenção de parte dos recursos por parte do governo, exceto as taxas administrativas previamente acordadas entre as partes. Mas o fato novo nesse arranjo institucional foi a inclusão dos povos indígenas através da Coiab e de outras organizações regionais como parceiros e não somente como públicos-alvos ou interlocutores dos beneficiários.  A Coiab, por exemplo, ganhou novo status nas relações interinstitucionais estabelecidas em torno do projeto, passando a exercer responsabilidades concretas dentro e fora. A expressão dessas responsabilidades pode ser demonstrada através da indicação do gerente técnico, dos seus representantes na Comissão Executiva, mas principalmente na responsabilidade de articulação, mobilização e capacitação das comunidades indígenas para o acesso aos recursos e para o acompanhamento qualificado de todo o desenvolvimento do projeto.
 
 
 
Nessa relação, governo, povos indígenas e cooperação internacional, as entidades de apoio aos índios sempre tiveram importância destacada como assessorias e prestadores de assistência técnica, mas não como interlocutores ou porta-vozes, o que também é uma importante inovação.  O reconhecimento concreto das organizações, povos e comunidades indígenas como sujeitos coletivos de direitos – autonomia e cidadania – é uma marca revolucionária do PDPI no âmbito das políticas públicas. A tradição da política indigenista oficial ainda hoje vigente em vários setores do governo é pautada pelo princípio da tutela, da incapacidade e sobretudo pela dominação cultural, política e econômica dos povos indígenas.
 
<h3>Os dramas que assombram o projeto</h3>
 
 
 
'''''Descompromisso do governo'''''
 
Nos últimos dois anos (2004 e 2005), o projeto vem vivendo sistematicamente verdadeiros dramas para cumprir suas funções. Não há funcionários capacitados em número suficiente para exercer as funções técnicas, administrativas e financeiras da Unidade de Gerenciamento em Manaus, o que compromete a qualidade do trabalho e maior celeridade das ações.
 
 
 
Os processos administrativos extremamente lentos centralizados no GAP/MMA (Grupo de Apoio a Projetos) mais conhecido como “Grupo que Atrapalha Projetos” impedem o bom andamento do projeto que trabalha com um público diferenciado, composto de muitas etnias e culturas, em regiões de difícil acesso. Para agravar a situação, no ano de 2005 (até novembro, segundo informações da UG Manaus) o MMA só conseguiu repassar R$ 100.000,00 (cem mil reais) dos US$ 500.000,00 (quinhentos mil dólares) anuais assumidos contratualmente pelo governo brasileiro para a gestão do projeto (contrapartida), prejudicando seriamente as ações estratégicas do programa, como a indispensável capacitação das comunidades e organizações indígenas e das viagens de monitoração e assessoria técnica nas aldeias onde os projetos estão sendo executados.
 
 
 
O curioso de tudo é que a crise não tem nada a ver com a qualidade e perfil do projeto, mas com a capacidade de cumprir satisfatoriamente suas tarefas operacionais, ou seja, problema de gestão. Os principais problemas são, portanto, de ordem interno- administrativa e financeira, que no arranjo institucional ficou como contrapartida do governo brasileiro. Tudo isso não é novidade na esfera pública governamental, principalmente para setores politicamente desprivilegiados como é o caso dos povos indígenas. Foi assim desde o início do projeto.
 
 
 
O que assusta mesmo é a falta de compromisso político por parte do governo para com os povos indígenas, o que gera incapacidade na solução dos problemas como os do PDPI, e que pode ser estendida a outros setores indígenas como revela o aumento significativo de casos de violência contra os índios nos últimos anos.  As próprias atitudes irreconhecíveis do MMA são surpreendentes: demonstram incapacidade de honrar seus compromissos contratuais, políticos e sociais com o PDPI (todas as agências envolvidas), e conseqüentemente com os povos indígenas. Não se trata de falta de vontade política ou capacidade técnica da equipe do MMA, mas de uma política deliberada do governo. Sabemos que no MMA e, no atual governo em geral, existem muitas pessoas historicamente compromissadas com a causa indígena, mas que, pela apatia do governo em relação à temática indígena e favorecimento a interesses de elites e de outros segmentos sociais eleitoralmente mais rentáveis, se tornaram impotentes para fazer o que gostariam de fazer.
 
<h3>
 
Perspectivas</h3>
 
 
 
Diante do quadro em que se encontra hoje o PDPI, dois cenários são possíveis: o primeiro é o de continuidade e consolidação da sua missão original de possibilitar o desenvolvimento de experiências inovadoras junto aos povos indígenas. Essas experiências são necessárias para arejar, estimular e provocar novas formas de relacionamento entre o Estado e os povos indígenas, traduzidas em ações pautadas pelo reconhecimento dos povos indígenas como protagonistas das políticas públicas destinadas a eles. Mas para isso é necessário mudar seu quadro crítico atual, recuperando a confiança de todos os atores que apostaram na capacidade inovadora do projeto, principalmente a dos povos indígenas, os principais interessados no sucesso do projeto. Isso só ocorrerá se houver uma mudança substancial e concreta na política indigenista vigente, ou seja, se a questão indígena tiver um mínimo de importância na pauta do governo.
 
 
 
Outro elemento importante para essa mudança é o movimento indígena, que deveria usar toda a sua capacidade e força política de mobilização e articulação para pressionar o governo a cumprir suas obrigações contratuais no caso do PDPI e ainda assumir o compromisso político e ético de construção e estabelecimento de uma nova política indigenista menos discriminatória e tutelar. É notório que o movimento indígena, através da Coiab tem procurado acompanhar, ainda que timidamente, o desenvolvimento do projeto e eventualmente tem cobrado soluções para os problemas.  Penso que poderia ser mais ofensivo e eficiente em suas estratégias de intervenção, utilizando os espaços de que dispõe, como a gerência e a Comissão Executiva e outras formas de pressão.
 
 
 
Nesse sentido,  a experiência dos índios com o PDPI confirma a idéia de que não basta ao movimento indígena cobrar e ocupar espaços de participação e de intervenção junto à sociedade e ao governo. Antes, precisa capacitar técnica e politicamente seus quadros e qualificar seus instrumentos de intervenção.
 
 
 
Outro cenário é o governo assumir de vez seu descompromisso com os povos indígenas e sua incapacidade de lidar com princípios e parâmetros inovadores no âmbito de políticas públicas o que seria uma demonstração de incapacidade de formulação e implementação de uma nova política indigenista sob os novos parâmetros da Constituição Federal e das leis internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT/ONU) que o atual governo ratificou nos seus primeiros meses de trabalho. Neste caso, a Unidade de Gerenciamento, estando em Manaus ou Brasília, não fará mais nenhuma diferença, pois o PDPI só será mais um programa etnocêntrico de governo para índios, com enormes prejuízos para o futuro no tocante à crença por parte dos índios e seus aliados e parceiros das possibilidades de construção de programas governamentais capazes de reconhecer as diversas realidades e modos de pensar e fazer indígenas.
 
 
 
Uma vez comprovada a incapacidade do Estado e do governo em executar políticas públicas diferenciadas aos povos indígenas garantidas pelas Leis do país, restará aos índios se qualificarem cada vez mais para assumirem tarefas estratégicas complementares destinadas a forçar a incorporação dos modelos e experiências exitosas por parte da cultura política do Estado brasileiro. No caso particular dos ideários do PDPI, diante do eminente fracasso da capacidade de gestão do governo, porque não os índios assumirem diretamente a gestão do projeto. Se o contra-argumento é a incapacidade técnica dos índios, então que se invista na capacitação dos quadros indígenas e no fortalecimento institucional das organizações indígenas. Aliás, uma das fraquezas originais do PDPI foi a pouca importância dada ao fortalecimento institucional das organizações e comunidades indígenas. Sem exagero, se poderia mesmo dizer que houve uma discriminação por parte da coordenação e das instituições envolvidas do PPG7 com os povos indígenas nessa questão. Basta considerar o apoio financeiro oferecido ao Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) pelo PPG7 para o seu fortalecimento institucional e acompanhamento do desenvolvimento do PDA e do próprio PPG7, enquanto que os povos indígenas, apesar de reiteradas solicitações, nada receberam de apoio concreto para tal fim.
 
 
 
O componente de fortalecimento institucional do PDPI apoiado pelo DFID que deveria atender essas necessidades, acabou sucumbindo com cortes de recursos orçamentários e limitando suas ações a um curso de gestores indígenas de projetos e alguns apoios pontuais a algumas organizações indígenas. É vergonhoso ver a Coiab, enquanto importante parceiro estratégico, viver com pires na mão, atrás de outros parceiros do PDPI e do PPG7 para conseguir passagens e outras necessidades quando precisa participar de importantes eventos ou para desenvolver atividades ligadas ao fortalecimento institucional.
 
 
 
Para além do PDPI, essa conduta do governo mostra os descaminhos e sinais de retrocesso do quadro indigenista atual, no qual diálogo amplo e produtivo com os povos, com as organizações e comunidades indígenas parece proibido. Os índios voltaram a ser objetos ou meros sujeitos passivos de consultas e o governo só age sob extrema pressão e quase sempre para tentar sanar prejuízos de sua imagem.
 
 
 
'''(janeiro, 2006)'''
 
 
 
 
 
<div class="box">
 
<h3>Notas</h3>
 
 
 
* Este artigo não tem como objetivo fazer uma análise e avaliação dos primeiros resultados alcançados do PDPI nem tão pouco dos impactos produzidos, depois de quase cinco anos de implantação. O propósito é organizar um olhar indígena pessoal sobre a experiência vivenciada no processo de sua construção e implantação, levantando alguns elementos constitutivos do processo, como as inovações produzidas, os principais desafios e perspectivas.
 
</div>
 
<div class="box">
 
<h3>Outras leituras</h3>
 
 
 
''<htmltag tagname="a" href="/files/file/PIB_institucional/PDPI.pdf">O Projeto para Sustentabilidade em terras Indígenas</htmltag>,'' artigo de Fábio Vaz R. de Almeida e Cássio Inglez de Souza (antropólogos), publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2001-2005
 
</div>== Índios somos nós ==
 
 
 
'''por Andréa França, pesquisadora de cinema e comunicação; professora do Departamento de Comunicação Social do curso de cinema (PUC/RJ).'''
 
 
 
'''Texto originalmente publicado no livro Povos Indígenas no Brasil 2001-2005'''
 
 
 
 
 
Assistindo a Shomotsi, Kiarãsã Yõ Sãti: o amendoim da cutia, Kinja Iakaha: um dia na aldeia, Daritidzé: aprendiz de curador, Das crianças Ikpeng para o mundo, todos realizados por videastas índios no âmbito do projeto <htmltag tagname="a" href="http://videonasaldeias.org.br" target="_blank">Vídeo nas Aldeias</htmltag>, o que mais me surpreendeu, num primeiro momento, foi perceber que esses documentários jogam em duas frentes, dirigem-se a dois tipos de público bastante distintos: para o homem branco, ocidental, esses documentários parecem nos dizer que somos nós que nos tornamos outros, “índios”, pois os que foram esquecidos não esqueceram; para os índios, os vídeos não só permitem que eles tenham acesso, elaborem e recriem a sua própria imagem, como também mostram que eles podem ensinar coisas que outras comunidades indígenas, assim como o homem branco, não sabem. 
 
<h2 style="text-align: left;">O projeto Vídeo nas Aldeias</h2>
 
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<p style="text-align: left;">Criado em 1988, Vídeo nas Aldeias é um projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil. Sua missão é apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais. Em 1998, o projeto deu início ao programa de formação de realizadores indígenas, tornando-se escola e centro de produção de cinema para povos indígenas
 
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O que essas imagens do “outro” indígena – bem longe de nós, brancos – têm, por que elas conseguem nos falar, dirigir-se a nós, fazer-se compreender e, mais do que isso, como é possível que elas nos façam perceber nossas maneiras de ser, de nos pensarmos, como é possível que elas nos falem do nosso mundo? Essa é a pergunta que me fazia ao assistir a esses documentários, a pergunta que me motivou a escrever sobre eles também. Há uma dimensão claramente política no Projeto Vídeo nas Aldeias, e isso não porque se queira pensar o outro apenas, mas porque nos lembra que esse outro nos pensa também, que tem idéias a nosso respeito, que nos vê de um certo modo.
 
 
 
 
 
O que se vê nesses filmes é uma história que pensamos conhecer, mas contada em outros termos. Não é, para começar, uma história dos índios filmada pelos brancos, mas uma história dos brancos (ou dos índios) filmada pelos índios. Uma história, ou melhor, várias. E as histórias que contam esses filmes são aquelas da descoberta por nós, brancos, de toda uma estratégia lúdica, fabulatória e política dos índios, que jamais tínhamos visto sob esse ângulo. Surpreende a diversidade de rostos, de formas de representar o espaço e o tempo das aldeias, de se apropriar da imagem, de solicitar o espectador. Vemos ritos, festas, o dia-a-dia, memórias, tradições, narrativas do ontem e do amanhã, fragmentos de conversas, gestos, brincadeiras; contam-se mitos como se fossem contadas memórias pessoais; diz-se o que se diz há muito tempo, e diz-se o que nunca foi dito; conta-se muito do que contamos, mas de modo bem diferente.
 
 
 
 
 
“Me filma, colega, estou contente. A festa é dura, mas eu venci”, diz um índio xavante que se aproxima da câmera depois do ritual de provação para adquirir força e poder de cura; “Ele vai poder cuidar de mim um dia (...) vem. Filma ele. Pode filmar”, pede um outro índio depois de pintar o filho para iniciá-lo no mesmo ritual, em ''O aprendiz de curador'' (2003); “eu sempre quis que tivéssemos essa câmera. Sempre peço pra me filmarem. Não tenho vergonha. Sempre dancei assim, conheço bem a dança do amendoim, como antigamente. É assim que nós velhos fazemos. Pronto, terminei”, declara uma velha, “tomando” a cena em ''O amendoim da cutia'' (2005), filme que detalha o cotidiano da aldeia Panará na colheita do amendoim.
 
<h2>Afirmação livro dos corpos</h2>
 
 
 
Existe uma afirmação livre dos personagens como condição do cinema. Nesses filmes, os corpos se afirmam igual e livremente, se mostram de um certo modo, tomam a cena para “encenar” o que acreditam que seja bom para eles; existe sempre a possibilidade de entrar em cena para fazer a “sua” cena, o “seu” filme. Em Shomotsi (2001), um dos filhos do personagem que dá título ao documentário, entra de repente no plano em que o pai passa urucum no rosto e diz, olhando para o espelho e passando também urucum: “chega, não tem mulher mesmo!” e sai correndo; ou ainda, durante a refeição de Shomotsi com a família na mata, o outro filho diz para a câmera: “E lá estamos nós aparecendo...”. Para além da intimidade e da cumplicidade entre aquele que filma e aqueles que são filmados, patente em todos os planos de cada um desses documentários, existe um desejo de filme que não está somente do lado dos índios videastas, mas do outro lado da câmera também: há um desejo de filme tão grande quanto o desejo daquele que filma e, ao tornar esse desejo visível, atuante, falante, essas imagens criam um cinema absolutamente igualitário, um cinema onde cada corpo - seja ele da planta, da concha, do jacaré, da cutia, da criança, do velho - tem o mesmo valor que um outro para a câmera, todos eles igualmente diferentes, importantes e únicos. 
 
 
 
 
 
Em ''Um dia na Aldeia'' (2004), filme que detalha o cotidiano da aldeia Cacau, na Amazônia, um grupo de índias volta da colheita de wesi (“os brancos falam açaí”), com seus bebês acoplados ao corpo enquanto caminham e, de repente, ouvimos uma delas: “estão falando de mim? Todas somos muito bonitas. Eu não sou gorda não, vou emagrecer”. E todas riem muito. Essas imagens nos falam porque o espectador tem a possibilidade de avaliar igualmente cada personagem, seus gestos, suas histórias, suas qualidades, seu senso de humor, sua entrada em cena. O cinema é uma experiência compartilhada e de afirmação (da língua, dos ritos, da comida, enfim, do cotidiano de cada aldeia).   
 
 
 
 
 
Em ''Das Crianças Ikpeng para o Mundo'' (2002), quatro crianças apresentam sua aldeia, sua comida, seu cacique, e convidam o espectador - que, para elas, serão outras crianças índias, como elas - a fazer o mesmo, interrogando-o, solicitando-o. A força do dispositivo montado aqui é que essas imagens são concebidas como uma espécie de vídeo-carta, em que, se o “remetente” são as crianças da aldeia Ikpeng, o “destinatário” poderá ser qualquer um que tenha interesse – cinematográfico, antropológico, etnográfico –, qualquer um que tenha curiosidade pelas histórias dos outros. “Todo documentário se interessa pela ficção dos outros”, disse Jean-Luc Godard, sintetizando em larga medida a proposta desses filmes. O destinatário se bifurca então entre um destinatário-mesmo, empírico, fixável (as crianças de outras aldeias) e um destinatário-outro, distante, nômade, um outro sempre outro. Sem dúvida, trata-se de um documentário que soube encontrar as crianças certas e, mais do que isso, fez da arte do encontro uma possibilidade de que o filme pudesse ser de fato compartilhado, afirmado e vivido por elas.
 
 
 
 
 
Num certo plano, o menino Kamatxi come mangaba. Ele anda pela mata, vê a fruta no chão, se agacha para pegá-la e volta à posição em pé. A câmera segue os movimentos do menino, vai até a fruta no chão, observa de perto seu gesto de limpá-la e volta ao rosto do menino que, de perfil, engole a fruta e a mastiga, segurando o riso enquanto olha enviesado para a câmera. Ouvimos as risadas em off das outras crianças que o observam. A existência de uma platéia (que ri, comenta, brinca) na cena é uma outra modalidade da afirmação livre dos corpos; há nesse sentido um jogo de reflexos que reitera dois públicos distintos – o homem branco e o índio – a ocupar simultaneamente a posição de espectador. Lembremos do plano cômico e inusitado do chefe da aldeia Panará, em O amendoim da cutia, que simula estar transando com uma bananeira como se esta fosse uma índia; ele mexe o corpo, rebola, agarra a planta, descreve a chegada do gozo enquanto, em volta dele, as índias o observam, interrompem a colheita do amendoim e dão boas risadas. Público, como nós, as índias produzem uma espécie de rebatimento em espelho do índio-espectador no branco-espectador. Índio somos nós.
 
<h2>A identidade e a realidade no vídeo</h2>
 
 
 
A proposta de exprimir uma identidade já dada ou uma realidade estanque que pré-existiria ao filme, tão presente no discurso antropológico, etnográfico ou nos documentários expositivos clássicos, não tem lugar nesses filmes. Os olhares dos índios para a câmera, seus gestos, suas expressões, seus sorrisos, suas falas, são momentos intensos, fortes, justamente porque mostram a consciência de que se trata de um jogo entre quem filma e quem é filmado, um jogo em que a performance dos índios está ligada a fatores que são produzidos pelo documentário, para o documentário e que não existiriam sem ele.
 
 
 
 
 
É verdade que toda uma corrente do cinema documentário moderno – o cinema direto – rompeu com a tendência de pensar os filmes como representação de significações pressupostas do real. E, como essa corrente, esses filmes partem do pressuposto de que a filmagem produz um outro contexto, cria acontecimentos novos. Não basta ligar a câmera diante de alguma coisa e achar que a “realidade” virá à tona. Neste aspecto, creio ser fundamental o trabalho desenvolvido nas oficinas de formação do Vídeo nas Aldeias, trabalho este que, como explicam os coordenadores do Projeto, Mari Corrêa e Vincent Carelli, reflete a opção por um estilo de filme, uma linguagem que implica experimentação, pesquisa. Não podemos esquecer, como enfatizam os coordenadores, que os realizadores são aprendizes e que num processo de formação, a interferência ou a influência dos instrutores é real e, neste caso, plenamente assumida. A câmera aqui instiga e cria o fato que ela está documentando, rompendo de forma radical com a forma de fazer filmes sobre índios, sobretudo nos documentários etnográficos mais clássicos. Trata-se de um cinema cujo dispositivo é extremamente poroso, para que cada um possa percebê-lo como próximo, ao alcance de sua mão.
 
 
 
 
 
Há toda uma força do gesto que representa o projeto Vídeo nas Aldeias, força esta que é anterior às histórias que tais filmes contam. Creio que esse gesto precisaria ser bem mais compreendido, levado muito mais a sério, no seu engajamento, na sua poesia, nas indagações éticas e estéticas que traz consigo. São filmes cujos realizadores estão estreitamente integrados a tudo que se passa a todo o processo de produção; pesquisam e escolhem seus personagens, filmam e editam suas narrativas, suas relações com o corpo, com a comida, com o trabalho, supervisionados por instrutores que questionam suas escolhas, discutem, sugerem, acolhem e aprendem. Poderíamos dizer, sem medo de exagerar, que a grande questão que atravessa Vídeo nas Aldeias é: como propor aos índios um projeto através do qual os documentários feitos se tornem um documentários “deles”?
 
 
 
 
 
Porque dar a palavra ao outro (pobre, índio, minorias) para que eles se exprimam não basta, dizem esses filmes. É necessário que esses personagens reais sejam capazes de fabular, inventar, fazer emergir a imaginação no mundo da razão. Diria, por isso mesmo, que estes filmes estão para além das zonas reservadas aos esquematismos da montagem, dos discursos e dos ideais de verdade. O projeto Vídeo nas Aldeias, existindo desde o final dos anos 80 – um tempo longo, que implica numa ética do rigor e da responsabilidade –, pode reivindicar a seriedade de um cinema que suspende o juízo sobre a natureza real ou encenada do mundo, e não almeja uma verdade dos índios – pois sabemos que esta habita no horizonte como promessa, raramente como fato. Escutemos pois o que dizem os Ikpeng, os Panará, os Ashaninka, os Xavante, todos esses que viemos a chamar, por esquecimento, “índios”, como quem diz “os outros”, quando fomos nós que, a depender desses filmes, nos tornamos outros. (junho, 2006)
 
 
 
  
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Edição atual tal como às 15h48min de 1 de abril de 2024

Autoria indígena

Simultaneamente ao processo de auto-organização política dos povos indígenas no Brasil, diversas outras ações foram por eles desencadeadas, assumindo cada vez mais novos espaços, além daqueles tradicionais: atuando na política partidária, desempenhando o papel de professores, agentes de saúde, escritores, documentaristas, pesquisadores, entre outros, sempre divulgando suas lutas e, principalmente, suas ricas culturas e modos de vida diferenciados.

A incorporação da educação escolar pelos povos indígenas - e o  conseqüente domínio da escrita - tem permitido a formação de sucessivas gerações de professores indígenas que, por sua vez, têm produzido uma série de materiais didáticos nos quais a autoria indígena é cada vez mais marcante. Produzidos tanto nas línguas nativas como em português, esses materiais são utilizados nas escolas indígenas visando uma formação escolar mais adequada de crianças e jovens.

O fenômeno da inclusão digital, que tem tomado conta de todas as regiões do país com a disponibilização de tecnologia da informação, alcança parte das comunidades indígenas que, através do acesso à rede virtual, têm produzido uma diversidade de sites de sua própria autoria.

Há de se destacar ainda duas das ações de protagonismo indígena mais interessantes nos últimos anos: são os “vídeo-makers” e os “técnicos e produtores musicais” indígenas. Formados dentro de um projeto assessorado pela organização não-governamental “Vídeo nas Aldeias”, diversos jovens indígenas têm aprendido a dominar as técnicas de áudio e vídeo e, com isso, produzido documentários de autoria nos quais, definitivamente, o “olhar indígena” sobre o mundo ganha um estatuto indiscutível. Mais recentemente, em parceria com a organização não-governamental “Som das Aldeias”, diversos jovens indígenas estão  aprendendo a manusear ilhas de edição em áudio com o objetivo de aprender a produzir seus próprios CDs musicais.

As ações de autoria indígena não se esgotam nos exemplos acima. Hoje temos diversos índios estudando em universidades e se formando como advogados, antropólogos, professores, historiadores, jornalistas, etc. Envolvidos na defesa dos direitos dos povos indígenas, estão cada vez mais ocupando espaços nessas áreas.

Os temas aqui apresentados podem ser conhecidos em maior detalhe nos próprios sites indígenas, como também nos sites das organizações indigenistas parceiras.