De Povos Indígenas no Brasil

A autoria originária em relevo na literatura indígena

Por Trudruá Dorrico, doutora em Teoria da Literatura, PUC/RS

Texto publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022

A literatura por autores originários, em especial aquela feita por mulheres, tem a missão de semear a palavra indígena pelo território da literatura brasileira, devastada pela monocultura, pelo extrativismo e pelo garimpo da representação

A literatura indígena assim é denominada porque é escrita e publicada por um conjunto de autores originários. Estes representam os valores da terra, reafirmando o pertencimento coletivo dos povos que a consagram. É um movimento de autoria que utiliza o dispositivo do livro, em caráter didático-coletivo e editorial individual, para mobilizar as vozes nativas na pele de papel, desafiando a escrita alfabética e o regime de representação indígena na literatura nacional. Por meio do livro indígena, os escritores noticiam a existência pluriétnica e linguística no país. No projeto da palavra exibem a autoridade da oralidade na manutenção das subjetividades ancestrais e milenares e, ainda, exortam os enfrentamentos políticos nos quais estamos imersos há cinco séculos.

Emprega-se o termo “contemporânea” para indicar a produção de literatura feita por sujeitos indígenas no dispositivo do livro, em caráter coletivo e individual. O livro é uma consequência das conquistas políticas do Movimento Indígena que culminaram na promulgação da Constituição Federal de 1988, que reorientou juridicamente a forma do Estado brasileiro relacionar-se com os povos originários.

O livro indígena de autoria coletiva é o didático-coletivo e refere-se à produção de professores e estudantes em parceria com não indígenas, na confecção de livros pedagógicos com subsídios do governo federal ou agências não governamentais, com a finalidade de alfabetizar as comunidades. Atualmente, existem outros modelos de cooperação, que igualmente mantêm o compromisso de fortalecer a cultura específica e diferenciada dos contextos socioculturais nativos.

A autoria individual, por sua vez, refere-se à produção de sujeitos indígenas inseridos no mercado editorial, a partir da década de 1990, paralelamente à produção coletiva que até então circulava quase que exclusivamente no contexto das comunidades. Esta atua no contexto da cidade e anuncia o indígena como sujeito de direito à expressão literária, teórica e epistemológica via livro. Por suspeição da identidade indígena e do direito ao livre trânsito na cidade, essa modalidade demorou a ser reconhecida como um legítimo movimento literário nos circuitos universitários e culturais. Hoje, porém, destaca-se em festivais, exposições, dissertações e teses acadêmicas brasileiras como um sistema existente e crescente no território (pluri)nacional.

As mulheres indígenas constituem essa conjuntura literária. E é um pouco dessa história que vou contar neste texto.

No Wikilivro Bibliografia das publicações indígenas do Brasil, uma bibliografia colaborativa virtual ensejada por Aline Franca e Thúlio Dias Gomes, coordenada por Daniel Munduruku, há um mapeamento que visa reunir e listar as publicações de escritores indígenas do Brasil. Listados por origem, isto é, de acordo com o povo ao qual os escritores pertencem, essa organização permite vislumbrar a quantidade de autores existentes e atuantes no território nacional. Até o momento, são 26 povos indígenas listados com representatividade autoral de 59 autores, entre os quais há 16 mulheres.

Com intenção de fomentar a leitura dessas obras de autoria feminina, inaugurei o perfil Leia Mulheres Indígenas (@leiamulheresindigenas), na rede social Instagram, com a finalidade de inserir nos clubes de leitura emergentes “Leia Mulheres” a produção literária indígena. Para tornar o acesso didático e impulsionar a procura, preocupei-me com as características visuais, com a foto das autoras, pois os rostos indígenas foram historicamente silenciados ou tiveram seus corpos hipersexualizados, de modo que conhecer os rostos seria uma forma também de desmistificar o estereótipo da “cara de índio”, homogeneizadora e silenciadora da nossa diversidade sociocultural.

Outra preocupação foi informar o nome próprio do povo e a área de atuação na legenda da postagem. O nome próprio do povo invoca a região ou a distribuição do povo por outros territórios. Esse tópico foi considerado importante, uma vez que os clubes de leitura se organizam por municípios. Outro ponto a ser destacado foi a preocupação com a área de atuação, em quais gêneros as escritoras transitavam: poesia ou narrativa (cosmológica ou ficcional), além de gêneros que ainda não conseguimos nomear, que nascem da intersecção entre saberes ancestrais e a adoção da escrita alfabética e de gêneros ocidentalizados.

Como os clubes e educadores da rede básica e universitária manifestaram interesse nas obras, foram selecionadas obras que circulavam no mercado editorial ou que pudessem ser adquiridas pelos leitores. Para facilitar o reconhecimento visual, foram publicadas as capas dos livros das autoras, com o intuito de que não indígenas e também indígenas pudessem conhecer quantas e quais obras a respectiva escritora já havia publicado.

Listar e elencar a produção autoral das mulheres indígenas significa mapear, não no sentido colonial, mas no sentido indígena que assumimos hoje, de demarcar a terra simbólica para proteção de nossas representações e promoção de nossas subjetividades. Nesse sentido, o subtítulo que invoco, a autoria originária em relevo, busca fomentar a necessidade de sermos reconhecidas enquanto autoras, escritoras, poetas e teóricas indígenas nas terras literárias. Tal como a luta pela terra, pelo pertencimento, pelas políticas da identidade indígena, simbolicamente partimos de nossas nacionalidades para afirmarmos nosso direito às sociedades e culturas plurinacionais. A seguir listo algumas autoras e suas respectivas obras publicadas.

Eliane Potiguara

<i>O pássaro encantado</i>, de Eliane Potiguara. Editora: Jujuba, 2014
O pássaro encantado, de Eliane Potiguara. Editora: Jujuba, 2014

Nasceu no Rio de Janeiro e pertence ao povo Potiguara (PB). É professora, escritora, ativista e empreendedora indígena brasileira, além de fundadora da Rede Grumin de Mulheres Indígenas. Foi uma das 52 brasileiras indicadas para o projeto internacional “Mil Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz”. Em 2021, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

  • A terra é a mãe do índio. Rio de Janeiro: Grumin, 1989.
  • Metade cara, metade máscara. São Paulo: Editora Global, 2004.
  • O coco que guardava a noite. Ilustrações de Suryara Bernardi. São Paulo: Mundo Mirim, 2012.
  • O pássaro encantado. São Paulo: Jujuba Editora, 2014.
  • A cura da terra. Ilustrações de Soud. São Paulo: Ed. do Brasil, 2015.

Márcia Wayna Kambeba

<i>Saberes da floresta</i>, de Márcia Wayna Kambeba. Editora: Jandaíra, 2020
Saberes da floresta, de Márcia Wayna Kambeba. Editora: Jandaíra, 2020

É escritora indígena do povo Omágua/Kambeba. Também é cantora, compositora, atriz, palestrante, poeta e locutora. Formou-se em 2012 no mestrado na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Em 2021, foi aprovada em 1º lugar no Doutorado em Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Pará (Ufpa). É a 1º indígena a ocupar o cargo de Ouvidora-Geral da Prefeitura Municipal de Belém.

  • Ay Kakyrytama: eu moro na cidade. 2. ed. São Paulo: Editora Pólen, 2018.
  • O lugar do saber. Lorena: Uk’a Editorial, 2021.
  • Saberes da floresta. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
  • Kumiça Jenó: narrativas poéticas dos seres da floresta. Flórida, EUA: Underline Publishing LLC, 2021.
  • O povo Kambeba e a gota d’água. Ilustrações de Cris Eich. Brasília: Edebê Brasil, 2022. (Coleção Motyrõ)

Auritha Tabajara

<i>Coração na aldeia, pés no mundo</i>, de Auritha Tabajara. Xilografia de Regina Drozina. Editora: UK’A Editorial, 2018
Coração na aldeia, pés no mundo, de Auritha Tabajara. Xilografia de Regina Drozina. Editora: UK’A Editorial, 2018

Pertence ao povo Tabajara. É escritora, cordelista, contadora de histórias e terapeuta holística. Recebeu o selo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) em 2019 pela obra Coração na aldeia, pés no mundo (2018). Protagonizou o filme inédito Mulher sem chão, no qual compartilhou a direção com Débora MecDwell.

  • Coração na aldeia, pés no mundo. Xilografia de Regina Drozina. Lorena, SP: UK’A Editorial, 2018.

Aline Pachamama – Churiah Puri

<i>Boacé Uchô: a história está na terra</i>, de Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri). Editora: Pachamama, 2020
Boacé Uchô: a história está na terra, de Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri). Editora: Pachamama, 2020

É originária do povo Puri da Mantiqueira. Historiadora, escritora e ilustradora, é doutora em História Cultural pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e idealizadora da Pachamama Editora.

  • Pachamama: a poesia é a alma de quem escreve. Rio de Janeiro: Pachamama, 2015.
  • Taynôh: o menino que tinha cem anos. (Churiah Puri). Tradução de Heron Wa'rãwi Abtsiré, Mbyä'i Silvä Xünü e Laura Brito Guerra. 3. ed. Rio de Janeiro: Pachamama, 2019.
  • Boacé Uchô: a história está na terra. Rio de Janeiro: Editora Pachamama, 2020.

Vãngri Kaingáng

<i>Estrela Kaingáng: a lenda do primeiro pajé</i>, de Vãngri Kaingang. Editora: Biruta, 2023
Estrela Kaingáng: a lenda do primeiro pajé, de Vãngri Kaingang. Editora: Biruta, 2023

Pertence ao povo Kaingang. Nasceu em 1980 na Terra Indígena de Ligeiro na região norte do Rio Grande do Sul e se formou em Ciências Biológicas pela Universidade de Passo Fundo (UPF). É escritora, educadora, ilustradora e artesã.

  • Jóty, o tamanduá: reconto Kaingáng. Em coautoria com Mauricio Negro. Ilustrações dos autores. São Paulo: Global, 2010. (Coleção Muiraquitãs)
  • Estrela Kaingang: a lenda do primeiro pajé. Ilustrações de Catarina Bessel. São Paulo: Biruta, 2016.

Graça Graúna

<i>Flor da Mata</i>, de Graça Graúna. Editora: Penninha Edições, 2014
Flor da Mata, de Graça Graúna. Editora: Penninha Edições, 2014

Pertence ao povo Potiguara. Escritora, poeta e crítica literária, é graduada, mestre e doutora em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe) e pós-doutora em Literatura, Educação e Direitos Indígenas pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Publicou Canto mestizo (1999), Tessituras da terra (2000), Tear da palavra (2001), livros já considerados raros e de difícil acesso. Participa de várias antologias poéticas no Brasil e no exterior e é responsável pelo blog Tecido de Vozes.

  • Criaturas de Ñanderu. Ilustrações de José Carlos Lollo. Barueri: Manole, 2010.
  • Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
  • Flor da mata. Ilustração de Carmen Barbi. Belo Horizonte: Penninha Edições, 2014.
  • Fios do tempo (quase haikais). São Paulo: Editora Baleia Cartonera, 2021.

Gleycielli Nonato

<i>Vila Pequena, causos contos e lorotas</i>, de Gleycielli Nonato. Edição do autor, 2017
Vila Pequena, causos contos e lorotas, de Gleycielli Nonato. Edição do autor, 2017

Nasceu em Coxim (MS), em 1987, onde vive até hoje. Originária do povo Guató do Pantanal (MS), é acadêmica de Letras na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), escritora, comunicadora, atriz e produtora cultural. Publicou Índia do rio: poesias (2013), edição da autora. Também publicou o manifesto “Há sangue de índio em seu prato” e quatro poesias autorais de ênfase em literatura indígena e literatura feminista na revista Ruídos Manifestos.

  • Vila Pequena, causos contos e lorotas. Coxim: Edição do autor, 2017.

Sony Ferseck

<i>Weiyama: mulheres que fazem sol</i>, de Sony Ferseck e Georgina Sarmento. Editora: Wei Editora, 2022
Weiyama: mulheres que fazem sol, de Sony Ferseck e Georgina Sarmento. Editora: Wei Editora, 2022

Pertence ao povo Macuxi. É doutoranda em Literatura na UFF, mestre em Letras e graduada em Letras/Inglês pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Além de sua pesquisa, ela se dedica às suas próprias produções literárias.

  • Movejo. Boa Vista: Wei Editora, 2020.
  • Weiyama: mulheres que fazem sol. Boa Vista: Wei Editora, 2022.

Julie Dorrico, agora Trudruá Dorrico

<i>Eu sou macuxi e outras histórias</i>, de Julie Dorrico. Editora: Caos e Letras, 2019
Eu sou macuxi e outras histórias, de Julie Dorrico. Editora: Caos e Letras, 2019

Quem assina este texto, pertence ao povo Macuxi. Doutora em Teoria da Literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Premiada com o 1º lugar no concurso Tamoios/FNLIJ/UKA de novos escritores indígenas em 2019. Administradora coletiva do perfil @leiamulheresindigenas no Instagram e do canal Literatura Indígena Contemporânea, no YouTube. Curadora da I Mostra de Literatura Indígena no Museu do Índio da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Também é colunista do Portal Ecoa/UOL.

  • Eu sou macuxi e outras histórias. Ilustrações de Gustavo Caboco. Nova Lima: Editora Caos e Letras, 2019.
  • Tempo de Retomada. São Paulo: Editora Urutau, 2023.
  • Originárias: uma antologia feminina de literatura indígena. Organização por Trudruá Dorrico e Mauricio Negro. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2023.

As obras de autoria feminina exibidas nessa brevíssima lista incluem epopeia, conto, poesia, autobiografias e ficções com representações positivas dos sujeitos originários, que falam dos encantados, narram os conflitos que nunca cessaram e as interseções dos espaços da floresta e da cidade, celebram os tempos originários, entre outros temas. Todas as obras, porém, tocam a ferida de existirmos como mulher indígena num espaço-tempo colonizado.

No fim de 2021, inspirada em nossa agenda central, que é a terra, fiz a curadoria da I Mostra de Literatura Indígena para o Museu do Índio (UFU). Essa mostra traz outras autoras pertencentes aos respectivos biomas de seus povos. Aqui é possível consultar uma lista que perpassa vários territórios, mas não esgota o que elas já realizaram. Sendo assim, indico, como condição de possibilidade para conhecer mais obras de autoria feminina, fazer uma pesquisa pelo perfil conhecido ou buscar obras com temas requisitados.

A diversidade de temas e obras é expressiva. Na Mostra argumentei que nossas obras, as obras de autoria indígena, o objeto livro, rememoram as fundações do mundo, narram os eventos que nos trouxeram até aqui, as aventuras de nossos guerreiros e avôs ancestrais e contemporâneos. E, ainda, que a literatura revela como aprendemos a curar, a celebrar, a reverenciar todos os seres, humanos e não humanos; que nossas histórias são imemoriais legadas por nossos antepassados: de árvore, de gente, de rio, de animais, de plantas, de constelações. Continuadas por nossos avós, pais, mães, tios e tias, a literatura de autoria indígena hoje possui a missão de semear a palavra indígena pelo território da literatura brasileira, devastada pela monocultura, pelo extrativismo e pelo garimpo da representação.

Nós, mulheres, constituímos essa história, desde a fundação de nossa existência. Por isso reitero a crença no feminino, na terra, no relevo, em nós. Somos muitas florestas inscrevendo, escrevendo e contando, enfim, nossas histórias. (novembro, 2022)

Referências