Makurap
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- RO 579 (Siasi/Sesai, 2014)
- Família linguística
- Tupari
Os Makurap historicamente têm uma posição de destaque no complexo interétnico da margem direita do Guaporé, tendo sua língua se convertido em “língua franca” desde o início do século XX, tempo em que o território tradicional desses grupos foi invadido por seringais, cujos patrões impuseram aos índios o regime de aviamento e a depopulação em razão de epidemias avassaladoras. Foram então confinados em áreas demarcadas para várias etnias e cujos perímetros não representam nem a sombra do território tradicional desses povos. Nessas áreas, até hoje o Makurap é a língua indígena predominante nas festas regadas a chicha que ainda hoje são uma marca característica e articuladora dos grupos dessa região.
Localização
Os Makurap vivem em Terras Indígenas localizadas no estado de Rondônia e em algumas cidades vizinhas. Essas TIs também são habitadas por outros povos indígenas, como os Wayuru, Aikanã, Aruá, Djeoromitxí, Tupari, Arikapú, Sakurabiat e Kanoê.
Língua
A língua Makurap faz parte da família lingüística Tupari, que, por sua vez, integra o tronco Tupi. Segundo a lingüista Alzerinda de O. Braga, o português é hoje a língua de comunicação cotidiana entre a população jovem. Dos 75 Makurap que viviam no PI Guaporé no final da década de 1990, 45 ainda falavam a língua Makurap. Esta também é falada por muitos membros mais velhos dos outros grupos indígenas da região. Nas “chichadas” (festas com consumo coletivo de bebida fermentada de milho), os velhos dançam, brincam e falam em macurap independente de seu grupo étnico.
Atualmente os mais jovens falantes de macurap, por influência da língua portuguesa, não fazem mais diferença entre vogais longas e breves que diferenciam palavras na língua nativa, tais como tsãn ("doce") e tsã:n ("frio"). Hoje ambas têm a mesma pronúncia (Braga, 1992).
História
Os grupos indígenas conhecidos pelos portugueses na margem direita do Guaporé durante o século XVIII, na sua maioria absoluta, eram Tupi. Tais grupos teriam sido originários de dispersões de famílias vindas do rio Aripuanã. Sobretudo em relação aos Makurap, habitavam a região situada acima das cabeceiras do rio Branco e ao longo de ambas as margens do alto rio Colorado. O grupo reconhecidamente mais próximo a eles era o Jabuti.
Os contatos entre os colonizadores e esses povos – Makurap, Tupari, Ajuru, Jabuti, Aruá, Arikapu etc. –, durante o século XVIII, foram particularmente intensos porque a ocupação da área tinha então uma importância estratégica, já que se tratava de uma região de fronteira entre colônias portuguesa e espanhola, de modo que as populações indígenas poderiam ser cooptadas no caso de guerra. Em função das necessidades da defesa da fronteira, a navegação pelo Guaporé foi também muito intensa no século XVIII e empregou muita mão-de-obra indígena. A depopulação foi igualmente grande.
Mas, à medida que o Guaporé foi perdendo importância geopolítica, o povoamento não-indígena arrefeceu e o início do século XIX assinalou um período de grande esvaziamento na área. É verdade que a borracha começou a ser explorada na Amazônia nas primeiras décadas do século XIX, mas era um comércio lento, que atendia uma demanda muito limitada. A primeira exportação brasileira aconteceu em 1827: era o início de um período de exploração que se intensificou até o primeiro decênio do século XX, sofreria uma drástica redução a partir de 1912 em conseqüência da concorrência asiática e, trinta anos mais tarde, um notável incremento cm decorrência da II Guerra.
No final do século XIX, seringalistas bolivianos fundaram, próximo à foz do rio Colorado, o seringal Pernambuco. A sua instalação e, posteriormente, a do seringal São Luís, no alto rio Branco, deram início a um rápido processo de contato com os povos Tupi que permaneciam isolados.
A ocupação dos rios Colorado e Branco se deu entre 1910 e 1920, com a instalação de diversos "barracões" e pontos de coleta de borracha. Esses estabelecimentos seriam responsáveis pela incorporação dos Makurap, Wayoró, Jabuti, Arikapú e Aruá à força de trabalho. Mas o seringal, dentre todos, que exerceu uma influência definitiva na intensificação dos contatos com índios foi o São Luís. Seria desse estabelecimento que se irradiaria, anos mais tarde, uma epidemia de sarampo que, com rapidez espantosa, causaria uma grande depopulação, deixando alguns grupos à beira da extinção.
Provavelmente os primeiros contatos foram estabelecidos com os Jabuti, cujas aldeias estavam situadas abaixo das cabeceiras do rio Branco. Os encontros iniciais foram hostis: houve rapto de índias e, possivelmente, mortes. A sociedade mais próxima dos Jabuti era a Arikapú, que logo estabeleceu contato com seringueiros. Os Makurap, situados nas cabeceiras do rio Branco e em ambas as margens do alto rio Colorado, devem ter sido a sociedade seguinte, num processo concomitante com os Ajurú, do alto rio Colorado, mais próximos das cabeceiras. Os Tupari mantiveram seu primeiro contato em 1928.
Em 1934, Emil Heinrich Snethlage esteve no Guaporé e visitou todas essas sociedades. Por ocasião da sua visita, o seringal São Luís já contava com índios trabalhando regularmente. Segundo o seu testemunho, a maioria das mulheres eram prostituídas, a chicha havia sido substituída pela pinga e alguns homens recebiam castigos físicos. Ainda assim, os índios continuavam sendo atraídos para lá.
Em janeiro de 1948, o etnólogo alemão Franz Caspar dirigiu-se também ao seringal São Luís e depois passou meses entre os Tupari. O alemão observou que esses grupos eram culturalmente muito semelhantes. Em relação aos Makurap, havia apenas duas aldeias na região visitada pelo pesquisador.
Após a instalação do seringal e o contato com os brancos, as relações entre os Tupari e os Makurap se intensificaram. Os Makurap foram assumindo uma posição hegemônica entre os grupos da região e a sua língua se transformou no "idioma intertribal", segundo Caspar. A música instrumental e vocal dos Makurap - muito desenvolvida, segundo o autor – também foi adotada pelos demais grupos.
Em 1848, Caspar registrou o seguinte relato de Waitó, líder político e religioso dos Tupari:
No meu tempo de criança, (...) nossos melhores amigos eram os Makurap, que chamamos Tamo na nossa língua. Íamos sempre visitá-los, embora o caminho fosse muito difícil, pois nas grandes savanas o sol queimava nossas cabeças o dia inteiro. (...). Um dia, soubemos pelos nossos amigos terem chegado homens estranhos pelo rio. Uns tinham a pele branca, outros preta. Não andavam nus como nós, mas traziam calças e camisas. Navegavam pelo rio em barcos grandes que lançavam uma fumaça monstruosa. Não caçavam com arco e flecha, mas atiravam com um canudo que fazia um estrondo forte, lançando carocinhos duros no corpo do bicho. Esses homens falavam uma língua que ninguém compreendia. Logo chegaram até as malocas dos Makurap. Não eram maus, pelo contrário, deram aos Makurap muitos colares, espelhos, facas e machados. Depois construíram a sua choça, à beira do rio, e foram procurar as árvores chamadas por nós de herub, com cujo suco fazemos bolas para jogar. Os homens brancos, no entanto, não fizeram bolas de brinquedo com o suco do herub, mas grandes bolões que levavam rio abaixo nos seus barcos. Derrubaram também muitas árvores e plantaram uma porção de milho, banana, mandioca, também arroz e muitas outras coisas. Empregavam os Makurap e davam-lhes mais facas e machados, também calças e camisas, redes e mosquiteiros. Para isso, pediam aos Makurap para os ajudarem a derrubar árvores e abrirem picadas através das matas. Vimos os machados e facas que os Makurap receberam dos estrangeiros. Esses eram muito mais duros do que os nossos de pedra, com os quais trabalhávamos, e não se quebravam com o uso. As facas também eram muito melhores do que as nossas de bambu e talo de cana, com que cortávamos a carne e as penas das setas. (...) No entanto, notamos também que muitos Makurap tossiam e morriam. A tosse era trazida pelos barcos à motor das aldeias dos estrangeiros. Todos os Makurap tossiam e muitos e muitos morriam" (1953: 146ss).
Posteriormente todos os seringais do rio Branco, como o Laranjal, o Colorado, o São Luís e o Paulo Saldanha foram adquiridos por um único proprietário –João Rivoredo –, que seria o responsável direto pela dissolução de todas as aldeias indígenas da região, recrutando mão-de-obra, deixando as populações sem assistência médica e, ainda, sem tomar nenhuma atitude para impedir as epidemias de sarampo. Os Makurap mantiveram suas aldeias até cerca de 1950, quando Rivoredo os persuadiu a se concentrarem no São Luís. Quando a mudança ocorreu, já estavam lá instalados grupos Tupari, Jabuti, Arikapu e Aruá.
Quando Franz Caspar voltou ao Brasil, em 1955, encontrou as populações indígenas locais bastante reduzidas por conta de uma epidemia de sarampo. O SPI os atraíra para fora de suas malocas para fazê-los trabalhar no seringal São Luís, onde contraíram a doença. O etnólogo estima que mais de 400 índios de diversos grupos tenham falecido na sede do seringal.
O SPI já não se encontrava presente na região desde o início da década de 1930, quando o órgão transferiu cerca de metade do contingente desses grupos para uma colônia de trabalho mais perto de Guajará Mirim, e mais tarde para o Posto Indígena Ricardo Franco (Caspar, 1955: 152).
Entre as décadas de 1940-1960, houve uma notável dispersão de índios pelos seringais. Em 1940, o então governador do Território do Guaporé (criado em 1943; renomeado Rondônia em 56 e elevado à categoria de Estado em 82) estimulou a transferência de índios do Ji-Paraná para o Guaporé, visando suprir a mão-de-obra perdida em decorrência dos surtos de epidemias. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) dispunha somente do Posto Ricardo Franco (criado em 1930), que não estava preparado para atender os recém-chegados. Não se sabe em que condições foi feita a transferência, mas sabe-se que a mortalidade atingiu índices dramáticos.
O tortuoso processo de reconhecimento das terras
Mesmo com a existência da 9ª Inspetoria Regional do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) –, criada em 1946, os índios continuaram trabalhando nos seringais em condições servis. Somente a partir de 1970 iniciou-se a transferência de índios dos seringais para o Posto Indígena Guaporé, que teve sua área demarcada em 1976, mas homologada apenas vinte anos depois.
E apenas em 1980 a Funai (órgão indigenista que substituiu o SPI a partir de 1967) instalou um Posto Indígena na região do rio Branco. Nessa época, os índios sobreviventes das grandes epidemias já eram mais resistentes às doenças trazidas pelos migrantes. Mas o indigenista Mauro Leonel, que visitou a Ti Rio Branco em 1984, apontou dezenas de casos de gripes com complicações e turberculose. A malária, quase inexistente, tornou-se endêmica a partir de 1983. Em fevereiro de 1984, havia mais de 15 casos apenas na aldeia de São Luís, sem que houvesse assistência médica no local (o atendente de enfermagem estava de licença e não havia sido substituído).
As relações com os seringalistas eram marcadas pelo sistema de aviamento, em que os índios eram convertidos em eternos devedores, precisando vender sua força de trabalho em troca de mercadorias a preços exorbitantes nos chamados “barracões”. No início da década de 1980, a Funai publicou relatório de identificação do que viria a ser a Terra Indígena Rio Branco, em que apontava a existência de 86 indígenas semi-escravizados por um seringalista. Mais ao sul, em área que posteriormente foi convertida na Reserva Biológica do Guaporé, mais 68 índios trabalhavam, também em regime de semi-escravidão, para um fazendeiro. Apenas 33 índios, crianças, doentes e idosos, não serviram a um destes dois senhores no sistema de aviamento.
Em 1983, a Terra Indígena Rio Branco foi finalmente demarcada (e homologada em 86). Contudo, seu perímetro – então de 240 mil ha – deixou de fora sete aldeias. Ao norte, quatro aldeias próximas à antiga sede de seringais, habitadas em sua maioria por Makurap, ficaram fora dos marcos para a doação dessas terras pelo Incra a 10 mil famílias, no projeto de colonização do rio Branco. Outras três aldeias ficaram fora da área demarcada, cujos habitantes, em sua maioria Tupari, viviam em área próxima à Reserva Biológica do Guaporé.
Além da inadequação na extensão demarcada, um seringalista invasor continuou a explorar o trabalho dos indígenas em suas próprias terras. Como aponta relatório de Mauro Leonel em 1984, as condições de atendimento do Posto Indígena Rio Branco eram péssimas, e os índios tinham que arcar com viagens de doentes, transporte de mercadorias e deslocamentos de funcionários do PI, que eram financiados pela cantina da comunidade. Esta foi criada em 1980, com apoio da Funai, para fazer frente ao barracão do seringalista invasor, até então único provedor de mercadorias dos grupos da região.
Para o funcionamento da cantina, 30% da venda de borracha e 100% da castanha pelos índios eram destinados à sua manutenção, que era feita pelo administrador do PI. Entretanto, devido à ausência de infra-estrutura do posto, o dono do barracão podia levar os produtos até as colocações onde trabalhavam as famílias. Assim, apesar de cobrar mais pelas mercadorias, estas eram de acesso mais fácil do que a cantina para muitos indígenas (Leonel, 1984:204).
No que diz respeito à situação no rio Mequéns, segundo Ana Vilacy Galucio, em 1982 funcionários da Funai visitaram a atual área, onde viviam em grandes dificuldades famílias Sakurabiat e Makurap, porém nenhum apoio mais específico por parte do órgão federal resultou dessa visita. Somente no ano seguinte, após uma epidemia de gripe que dizimou cerca de 30 pessoas, foi restabelecido um contato mais estreito com a Funai.
Em 1985, a Funai organizou um grupo de trabalho para investigar a situação real dos moradores da área, constatando que naquele ano havia cinco grandes grupos corporativos, incluindo serrarias e fazendas, explorando ilegalmente o comércio de madeira dentro da área indígena e tentando apropriar-se da terra pertencente à atual TI Rio Mequéns.
Por essa razão, houve resistência dos invasores da área, apoiados por políticos e fazendeiros locais. Assim, somente em 1996, a TI Rio Mequéns foi demarcada e homologada, com uma área de 105.250 hectares, bem inferior ao tamanho originalmente demandado por seus habitantes indígenas.
Modo de vida
Como apontado por Denise Maldi, as sociedades indígenas situadas no lado oriental do rio Guaporé (Aruá, Ajurú, Aricapu, Jabuti, Makurap, Sacurabiap, Tupari) partilharam um complexo cultural com características bem definidas. As relações intersocietárias se davam, e ainda hoje ocorrem, sobretudo através de dois mecanismos: as festas de chicha e os casamentos. Nas festas de chicha, as aldeias se alternavam nos papéis de anfitriã/convidada, criando redes de solidariedade e reciprocidade, como ocorria também nas sociedades do oriente boliviano.
No que se refere à cultura material, alguns elementos tradicionais atestam inequívoca similaridade entre os grupos dessa região:
- a ausência do cultivo da mandioca "brava" e da farinha na alimentação;
- a construção de casas redondas, com esteio central, abrigando uma família extensa patrilocal, usualmente de 12 a 20 pessoas (com exceção dos Tupari, cuja habitação tradicional era uma grande maloca);
- o consumo da chicha de milho na alimentação regular e da chicha fermentada em ocasiões cerimoniais;
- confecção do marico (cestas de vários tamanhos de fibras de tucum, tecidas em pontos miúdos ou médios).
Parentesco
A organização social tradicional makurap incluía clãs nominados e patrilineares. Hoje a maior parte deles foi extinta, mas ainda assim os Makurap mencionaram à Denise Maldi em 1991 os seguintes subgrupos: Mitum ("mutum"), Uaxaliai ("morcego"); Uaríiiá ("papagaio"); Xixauap ("rato"); Xát ("cobra"); Tamunan ("sabiá"); Viriü ("tatu-canastra"); Ikô ("urucum"); Ëte ("veado"); Guüt ("lamparina de breu"); Mevurá ("panela"); lekô ("urubu"); In-en-paráp ("raposa"); Perahón ("arara vermelha"); Aratá (“arara amarela"); Min-án ("saúva"); Maranpáin ("lagarta"); Ngáp ("caba"); Uruküt ("grilo"); Uaketé ("mucura"); Uakôt ("jacu").
Muitas vezes essas denominações se fazem acompanhar do sufixo nian, como por exemplo: Guüt nian, lekô n, etc. Nian foi traduzido por "gente". Nesse mesmo ano de 1991, os indivíduos da TI Guaporé se identificaram como pertencentes aos seguintes subgrupos: Rato; Urubu; Mucura; Urucum; Mutum; Morcego; Tatu-canastra; Saúva. Assim, dos 21 subgrupos identificados, somente nove ainda possuíam representantes.
As subdivisões makurap se definiam também pela territorialidade. Nesse sentido, os informantes mais velhos foram capazes de determinar, com objetividade, um panorama das suas localizações ao longo do rio Colorado. Desse modo, o conjunto apresentado de 21 grupos nominados dividia-se entre dois outros, 10 na margem esquerda e 11 na margem direita desse rio.
Entre os Makurap esses grupos regulamentavam o casamento, sendo exogâmicos. Formavam, portanto, grupos territoriais ocupando áreas definidas; nominados, de origem mitológica; regulamentadores do casamento pela exogamia; regulamentadores da descendência pela patrifiliação e da residência pela patrilocalidade, podendo por isso serem considerados clãs.
Em relação ao parentesco, o modelo macurap é idêntico ao Jabuti. Um mesmo termo é usado para pai e irmão do pai, para mãe e irmã da mãe; por sua vez, há termos próprios para irmão da mãe e irmã do pai. Os avôs e as avós maternos e paternos recebem termos iguais, só havendo distinção de sexo. Há diferenciação na terminologia dos primos cruzados matrilaterais e patrilaterais, configurando, na terminologia ortodoxa, o típico modelo “sudanês”.
Os primos cruzados patrilaterais são chamados - tanto o homem como a mulher - pelo termo virá, que significa "noivo" ou “noiva". O casamento preferencial era realizado entre um homem e a uma prima cruzada patrilateral. Essa combinação da exogamia com a terminologia de parentesco do tipo "sudanês", e a preferência do casamento recaindo sobre a prima cruzada patrilateral redundava numa circulação de mulheres entre os diversos clãs macurap.
Xamanismo e mitologia
O xamanismo entre os Makurap, bem como nas demais sociedades da região oriental do Guaporé, se caracteriza pelo uso de um alucinógeno: as sementes de angico, que são maceradas até virarem pó e misturadas com um tipo especial de fumo, cultivado para este fim. Chamou a atenção de Rondon o fato de que os índios "não fumavam", mas usavam "tomar rapé por meio de um dispositivo bastante engenhoso, o qual consiste em um tubo de taquarinha, de dois palmos de comprimento, tendo numa das extremidades, um pequeno recipiente carregado de pó de tabaco, a pessoa que vai tomar a pitada aproxima-o das narinas, e outra pessoa, servindo-se da extremidade livre do tubo, sopra por ele, fazendo o rapé penetrar nas fossas nasais do tabaquista, que auxilia a operação mediante profunda inalação". A descrição corresponde exatamente à forma como, ainda hoje, é aspirada a mistura de pó de angico e fumo, que Rondon chamou de “rapé" (Maldi, 1991).
O uso do tabaco com pó de angico em situações que põe em causa a presença de espíritos, doenças ou alguma dificuldade é recorrente no repertório mítico macurap.
No que diz respeito ao mito de origem desse povo, como aponta Maldi (1991), muitas diferentes versões evidenciam a origem dos 21 clãs como a origem da própria sociedade. Os grupos emergem ostentando simbolicamente o objeto, planta ou animal epônimo. E, como quase sempre ocorre nos mitos de origem das sociedades indígenas sul-americanas, a gênese da sociedade é a gênese da própria humanidade e todos os demais povos surgem em episódios posteriores. Os brancos são originários do mesmo local e a sua característica é a hostilidade: "armas de fogo":
Havia dois irmãos, Bejü e Nambô, que moravam dentro de um buraco de pedra. Queriam sair, mas não sabiam como. Nambô preparou tabaco (fumo e semente de angico macerado) para fumar e fazer o buraco abrir.
Após fumar, o buraco se abriu e começou a sair gente: os Mutum, os Sabiá, os Saúva e todos os outros. Cada um levava nas mãos o animal que era o seu nome. Alguns saíram com lamparinas de breu de jatobá; outros, com panelas de barro. Depois de saírem todos os Makurap, começaram a sair os Jabuti, Tupari, Aruá... nor fim saíram os eré. Saíram com armas de fogo, atirando. Por isso os Jabuti ficaram com medo, correram para o mato e ficaram bravos.
A partir desta estrutura básica, existem vários outros mitos envolvendo os irmãos Bejü-Nambô. A autora destaca, por exemplo, o mito de origem do milho: Somente os Rato tinham milho. Bejü transformou-se num nambu-preto e foi até a aldeia dos Rato. Atou sua rede perto de um pote cheio de milho, para roubar.
De manhã foi embora, levando o milho. Chegando na aldeia dos seus parentes, mandou que as mulheres abrissem os maricos e neles despejou os grãos. Bejü conseguiu encher três maricos com sementes. Os outros foram então plantar o milho. Ele se deitou e ficou esperando o milho crescer. Passado algum tempo, sua irmã cozinhou grande quantidade de milho. Bejü comeu tudo. Ficou com a barriga inchada. Chamou Nambô para curar. Nambô soprou sua barriga e ele ficou bom.
Em seu trabalho de compilação de narrativas entre povos indígenas em Rondônia, Betty Mindlin publicou versões mais recentes de mitos macurap. Em alguns destes, os irmãos Nambô e Beijü registrados por Maldi têm os nomes de Nambué e Beiju, tal como na história:
Narrador: Alfredo Dias Makurap, 1989
Havia dois irmãos, e um deles era capaz de inventar muitas novidades. Um dos irmãos passava fome, andava pedindo esmola, e o outro irmão comia bem.
Os irmãos tinham, ainda, uma irmã. Esta viu que o irmão comia bem, que a comida aparecia sozinha, e que ele não precisava trabalhar para comer, Queixou-se para o outro:
Nós só comemos palmito, e ele macaxeira, já prontinha!
Também não tinham água, ate o irmão inventar. A água deles, até então, era sororoca de palha ou de árvore parecida com a bananeira: era preciso furar e beber. Um dia, o irmão mais novo viu que o mais velho estava bebendo água de verdade.
— Deixa um pouquinho de água para mim, para eu experimentar, porque minha água é muito grossa, de poça d'água! - pediu, vendo que a água do irmão era limpinha.
O mais velho não queria dar, mas o outro tanto insistiu, que ele pegou um pau e atirou, para mostrar com o barulho da queda onde é que tinha água. O mais novo foi procurar, mas não achou. É que o mais velho bebia a água, e depois ela sumia.
O mais velho chamava-se Nambué, e o mais novo, Meiu, ou Beiju, e a moça, Nantonká.
Beiju tanto pediu água, que Nambué lhe deu - mas veio tanta água, que cobriu Beiju, que ficou borbulhando dentro d'água.
A irmã pediu para Nambué procurar Beiju. Nambué fumou um cigarro, soprou, e aí saiu o irmão dele, inteirinho, como era antes.
— Mano, eu estava aqui, guardando nossa água, quando ela te cobriu – disse, mentindo, pois ele é que tinha inundado o outro.
Pois é, o mais velho vivia comendo, sem trabalhar, não sofria, vivia inventando coisas. Enquanto comia macaxeira, o outro só tinha urtiga.
Nambué tinha casa bonita, e Beiju tinha que carregar os troncos nas costas, sozinho. Ia puxando o pau, arrastando para fazer a maloca, mas o pau sumia. Cada vez que olhava para trás, não via mais o pau. Uma hora olhou bem rápido, e viu mão de gente segurando os troncos. Correu para a casa do irmão.
— Mano, vem achar nosso filho comigo...
Nambué já sabia que existia gente, mas não tinha dito nada. Nambué mandou o irmão fechar os olhos, e pitou um cigarro. O mato desapareceu, houve uma limpeza mágica, e fez-se um campo grande.
Foi saindo gente de dentro da terra, e eram tantos grupos como há hoje: mutum, macaco, tudo. Só saia gente, bichos, não.
Aparecia uma gente toda enfeitada, bonita, mulheres, homens, crianças.
Nambué queria que falassem só uma língua, mas cada povo foi para um lado, e ficou como hoje, cada povo falando uma língua diferente. Foi Beiju, o irmão mais novo, que passou por todos os cantos, mudando as línguas.
Os irmãos precisaram ensinar o trabalho às pessoas. Fizeram plantação, roça deles todos, com macaxeira, milho, mundubim. Nambué mandou o mais novo tomar conta de uma parte das pessoas, enquanto ele tomava de outra.
Beiju, descuidado, mandou uma chuva imensa, uma alagação, que matou todo mundo. Apodreceu todo o mato, acabaram as plantas.
Nambué ficou bravo com Beiju, que mandara alagar tudo, e empurrou toda a água, foi fazendo secar. Sobraram só um irmão e uma irmã, em cima de uma serra, e estes e que foram semente de gente, fazendo a humanidade recomeçar.
(uma versão mais longa está publicada no livro Tuparis e Tarupás, de Betty Mindlin e narradores indígenas)
Um tema presente na mitologia macurap e bastante recorrente em narrativas de outros povos amazônicos diz respeito ao Cobra, um homem belo e sedutor que depois se revela não-humano.
Festa de chica
Hoje as festas tradicionais, segundo levantou o antropólogo Samuel Cruz (da ONG Kanindé), só ocorrem aproximadamente uma vez por ano. Mas Caspar comenta inúmeras vezes em sua obra a freqüência com que os povos da região realizavam festas, que comumente duravam três dias inteiros, e quando se consumia uma imensa quantidade de chicha fermentada de mandioca ou milho.
O consumo de chicha e carne de caça era entremeado por vômitos. Nas palavras do etnólogo: “Faz parte da festa: beber, vomitar, beber, vomitar, até o dia raiar” (1953:52). Produziam instrumentos de taboca e dançavam até o nascer do sol, como nessa descrição:
“Uma dúzia de músicos se alinhara ao redor de um pau fincado no chão. Seguravam na mão esquerda a taboca e a mão direita estava pousada no ombro do vizinho. Os dançarinos moviam-se em círculo, dando passinhos para o lado, ao som de uma melodia simples. Não demorou e outros dançarinos se juntaram.
Todos traziam o arco e flecha na mão, ou a espada [de palmeira e dois gumes] ao ombro. As mulheres se alinharam na roda exterior. Davam-se as mãos, ou se seguravam na cintura, ou no ombro. As rodas se moviam lentamente em círculo, no ritmo da música. De tempo em tempo, marcavam passo, faziam sempre na mesma cadência uns passinhos para trás e depois, com um grito selvagem, recomeçavam a rotação vagarosa para a direita. Ora os músicos tocavam o solo, ora os dançarinos cantavam em coro. Uma cadência característica anunciava o fim da dança, depois de um quarto de hora, mais ou menos. A roda parava. Os índios soltavam um ‘huuuuuuh!’. Então corriam a fim de encher suas cuias e se acocoravam ao pé das fogueiras que brilhavam em todos os cantos. Os músicos iniciaram uma nova sessão” (:101).
Tanto homens como mulheres bebem muito nessas ocasiões. A despeito de serem as mulheres as produtoras de chicha, nas festas masculinas os homens que serviam as mulheres e em porções bem menores. Já nas festas das mulheres eram elas que bebiam e apenas ocasionalmente ofereciam bebida aos homens.
Atividades produtivas
A base de subsistência dessa população são as roças, a pesca e a caça. Segundo relatório do lingüista Denny Moore sobre sua viagem ao Posto Indígena Guaporé de 29 de abril a julho de 1988, havia gado no posto que era vendido de vez em quando. Algumas pessoas cortavam seringa, outras vendiam farinha. Comenta ainda que a castanha podia ser comercializada, mas os índios alegavam que o acesso ao castanhal é por um igarapé de difícil navegação.
Tradicionalmente, segundo conta Franz Caspar, o trabalho nas roças envolve uma divisão de papéis, cabendo aos homens queimar e limpar o terreno, bem como preparar os orifícios em que as mulheres em seguida depositam as sementes, e posteriormente fazem a colheita, trazendo os produtos para a aldeia nos maricos. Uma vez preparado o roçado para o plantio, as mulheres hoje participam de todo o processo de agricultura, desde a semeadura até a colheita. Elas não participam diretamente nas etapas de derrubada e queima do roçado, mas mantêm sempre uma boa quantidade de chicha pronta para o consumo dos trabalhadores. O preparo da chicha é uma atividade quase exclusivamente feminina, alguns homens ajudam esporadicamente durante a fase de moer o milho no pilão. A coleta de frutos silvestres também é realizada principalmente pelas mulheres e crianças, exceto dos frutos de palmeiras, como açaí e patauá, que requerem o trabalho dos homens.
Da mandioca ou do milho fazem a chicha. No caso daquele tubérculo, ele é descascado, cortado, cozido, resultando numa pasta que tradicionalmente era mastigada e cuspida nas panelas para que fermentasse. É então amassada no pilão, peneirada e mexida. Depois fica de repouso por alguns dias para fermentação. Para fazer a chicha de milho, as mulheres enchem grandes panelas com grãos de milho e água. Despejam os grãos de milho cozidos no pilão de madeira, onde é convertido em uma papa. O processo de fermentação é semelhante ao da mandioca.
O extrativismo e os barracões
Na década de 1980, a organização econômica dos grupos que habitavam a área indígena Rio Branco foi descrita pelo indigenista Mauro Leonel como uma mistura de sua forma tradicional com a extração da borracha, a coleta e quebra da castanha para venda ou troca no mercado. Nessa época, operava o regime de barracão, em que os índios vendiam seu trabalho ou produtos da floresta pelas mercadorias trazidas da cidade e oferecidas nos barracões dos seringais e na cantina do Posto Indígena, tais como óleo, fósforos, querosene, facões, açúcar, sal, ferramentas, pilhas, sabão, munição, entre outros itens.
Todas as atividades são permeadas, sempre que possível, pela caça e pesca. O timbó é uma prática constante de todos os grupos, mas vêm enfrentando dificuldades na pesca devido à construção de PCHs [Pequena Central Hidrelétrica: ver item Impasses contemporâneos]. A caça é muito escassa, mas encontra-se porco do mato, tatu, paca, tatu-canastra, veado, cotia, anta, jacuatinca, quati, macacos e jaboti. Caçam também aves e apreciavam o mel, frutas e o amendoim.
Fontes de informação
- BRAGA, Alzerinda de Oliveira. A fonologia segmental e aspectos morfofonológicos da língua makurap (tupi). Campinas : Unicamp, 1992. 76 p. (Dissertação de Mestrado)
- CASPAR, Franz. Tupari: entre os índios, nas florestas brasileiras. São Paulo: Melhoramentos, 1953. 225p.
- MALDI, Denise. “O complexo cultural do marico”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia, n. 7(2), 1991. pp. 209-269.
- MINDLIN, Betty. INDÍGENAS, Narradores. Terra grávida. São Paulo : Editora Rosa dos Ventos/RECORD, 1999. 275 p.
. Antologia de mitos dos povos Ajuru, Arara, Arikapu, Aruá, Kanoe, Jabuti e Makurap. São Paulo : Iamá, 1995. 67 p.
. Moqueca de maridos. Rio de Janeiro : Record/Rosa dos Tempos, 1997. 303 p.
. Tuparis e tarupás. São Paulo : Iamá; Brasiliense; Edusp, 1993.
- PRATES, Laura dos Santos. O artesanato das tribos Pakaá Novos, Makurap e Tupari. São Paulo : USP, 1983. 149 p. (Dissertação de Mestrado)