Kanoê
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- RO 319 (Siasi/Sesai, 2014)
- Família linguística
- Kanoe
Os Kanoê encontram-se relativamente dispersos na região sul do Estado de Rondônia, próxima à fronteira com a Bolívia. É possível, contudo, reconhecer duas situações diferenciadas de contato com a sociedade envolvente entre os grupos dessa etnia. A grande maioria mora ao longo das margens do Rio Guaporé e caracteriza-se por uma antiga inserção no mundo dos “brancos”; em contraste com uma única família composta por três membros que habita o Rio Omerê, afluente do Corumbiara, que foi contatada pela Funai apenas em 1995, quando eram em cinco, e tem se mantido em relativo isolamento. Esses grupos kanoê, cada qual a seu modo, são marcados por histórias trágicas que resultaram numa significativa redução populacional. Hoje lutam por sua sobrevivência física e cultural numa região vastamente ocupada por madeireiros, grileiros e outros agentes que não raro ameaçam a integridade e o usufruto exclusivo de suas terras.
(atualizado em abril de 2003)
Os Kanoê do Rio Guaporé
Os Kanoê que habitam ao longo das margens do Rio Guaporé caracterizam-se por uma intensa inserção no modus vivendi da sociedade brasileira. Grande parte está casada com membros de outras etnias ou com não índios e apenas três indivíduos conhecem a língua nativa. Entretanto, de acordo com a liderança José Augusto Kanoê, têm consciência de que constituem um povo indígena unido por uma origem comum e por vínculos de parentesco, razão pela qual pretendem desenvolver projetos para reavivar sua identidade etnocultural e lingüística.
Os Kanoê convivem com outras etnias nas Terras Indígenas Rio Branco e Rio Guaporé (antigo P.I. Ricardo Franco), bem como no município de Guajará-Mirim. Há ainda uma família na Terra Indígena Pacaás-Novas (P.I. Deolinda) e outras famílias na TI Sagarana, ambas habitadas pelos Wari. Segundo o depoimento do kanoê Munuzinho (que mora no P.I. Deolinda) em Janeiro de 1997, possivelmente ainda existam outros de seus parentes mais distantes vivendo em outras regiões de Rondônia, dos quais há muito não se tem notícias.
Histórico do contato no Guaporé
Na região sul do Estado de Rondônia habitam numerosos povos indígenas falantes de diferentes línguas, mas que compartilham muitas características culturais. A semelhança cultural entre os grupos falantes de línguas Tupi e Jabuti oriundos da margem direita do Rio Guaporé e seus afluentes fez com que fossem identificados como partes de um “complexo cultural Marico”, nome das cestas de vários tamanhos de fibras de tucum, com pontos pequenos e médios, só confeccionadas por essas etnias (Cf. Maldi 1991:210-11). Já a região entre as cabeceiras dos afluentes do Médio Guaporé e os afluentes da margem esquerda do Rio Pimenta Bueno foi habitat de grupos distintos, a maioria não estudada e de classificação lingüística desconhecida, mas que compartilha aspectos culturais característicos de toda região, como o consumo cerimonial da chicha de milho. Os kanoê fazem parte deste grupo.
No período colonial, a região banhada pelos afluentes e tributários ocidentais do Guaporé e do Mamoré – atualmente território boliviano – foi por cerca de cem anos o maior complexo missionário da América meridional: a Província de Mojos, que acabava atuando também como guarda da fronteira do Rei de Castela. As sociedades que habitavam a região foram cooptadas (e em grande medida dissolvidas) para a defesa dos interesses da Espanha. De modo diverso, toda a ocupação da margem portuguesa do Guaporé passou a ser direcionada para a manutenção da posse e a destruição das missões. Mas a política indigenista (refletindo o interesse dos estadistas coloniais) tomou como estratégia não cooptar os índios, e sim mantê-los em seus territórios próprios para que lá atuassem como guardiões da fronteira.
Ao final do século XVIII, quando os movimentos de independência nas Américas começaram a se definir e os limites coloniais perderam a importância, a região esvaziou-se rapidamente. A partir da segunda metade do século XIX, contudo, voltou a ser ocupada em razão do ciclo da borracha. Nesse período, os povos indígenas remanescentes das antigas missões de Mojos – que já haviam passado por processos de desagregação cultural e miscigenação populacional – foram rapidamente incorporados como mão-de-obra. Já os contingentes indígenas do lado brasileiro da fronteira se mantiveram isolados em sua maioria, habitando áreas menos acessíveis. Estes grupos permaneceram em relativo isolamento da sociedade regional até o início do século XX. A maioria deles, entre os quais os Kanoê, foi contatada quando o General Rondon atravessou a região dos rios Pimenta Bueno e Corumbiara em 1909.
Esse quadro foi alterado nas primeiras décadas do século XX, quando foram erguidos numerosos “barracões” para a exploração de borracha e caucho na margem direita do Guaporé, mas cujos proprietários eram em sua maioria bolivianos. Sobretudo a partir da década de 1930, quando a demanda por borracha aumentou no contexto da II Guerra Mundial, o contato se intensificou e muitos povos tiveram suas aldeias invadidas, sofreram epidemias e não raro foram obrigados a abandonar seus territórios para se instalar nos “barracões”, onde ocorreram vários casamentos entre membros de etnias diferentes, colaborando para a dissolução dos grupos.
Os Kanoê habitavam a margem do Rio Pimenta Bueno (provavelmente migrados do Corumbiara para o leste), quando, em 1940, foram em grande parte levados para o Guaporé, sendo estabelecidos no antigo Posto Indígena Ricardo Branco (hoje P.I. Guaporé), junto com outras etnias, a mando do SPI (Serviço de Proteção aos Índios, antigo órgão indigenista) e do governador do território do Guaporé (que veio a ser o território e depois o estado de Rondônia).
Segundo Denise Maldi (1984:110), os índios transferidos foram dispostos para o trabalho servil nos seringais para suprir a mão-de-obra indígena perdida em decorrência de epidemias. O P.I., porém, não tinha infra-estrutura para atender aos recém-chegados. Não havia roças e os índios precisavam empregar todo o seu tempo na coleta da borracha, alimentando-se de gêneros fornecidos pelos seringalistas: charque, feijão e farinha. Pouco depois, contraíram sarampo. A mortalidade foi tamanha que os Kanoê quase foram exterminados. Desde então, durante toda a segunda metade do século XX o processo de ocupação do Rio Guaporé contou com vários massacres de índios.
Nas décadas de 60 e 70, particularmente no período da ditadura militar, na maioria dos casos beneficiados por “certidões negativas” da Funai, fazendeiros rapidamente derrubavam as matas, plantavam pastos e edificavam benfeitorias para “provarem” a ocupação e uso de tais terras, não raro valendo-se de trabalho escravo ou semi-escravo de índios e não índios.
Nesse contexto adverso, a cultura de muitos grupos indígenas do sul de Rondônia permanece com esparsa documentação até os dias de hoje e seu destino, como atesta o antropólogo Luiz Fernando Machado de Souza (responsável pelo relatório de identificação da TI Omerê), encontra-se ameaçado, sobretudo pelas invasões madeireiras em terras de ocupação tradicional indígena.
Por ocasião das sessões de trabalho de campo realizado pelo lingüista Laércio Nora Bacelar em 1991 e 1997, a história kanoê foi resgatada por meio dos depoimentos de Munuzinho Kanoê e Maria Atiminaké. De acordo com estes informantes, os Kanoê ou Kapixanã habitavam malocas extensas às margens do igarapé Kauruá, na região dos rios Carvão e Machado, no sul de Rondônia. Munuzinho informou que, até sua infância, viviam nus, praticavam a agricultura de milho, algodão, taioba, amendoim e fava, entre outras, além da caça e da pesca. Eram considerados "bravos” e foram se "amansando" no contato com os brancos por ação dos missionários, sobretudo depois da morte do último tuxaua (cacique), quando o grupo se dispersou de vez.
O contato com os brancos lhes trouxe a morte por doenças. Munuzinho Kanoê, por exemplo, perdeu um dos seus oito filhos vitimado pela coqueluche, dois por sarampo, um por "bicho na barriga" e uma de suas filhas desapareceu em Porto Velho, sem notícias se estava viva ou morta. A esposa de Munuzinho faleceu depois do último parto.
Além da morte por doenças "de branco", para as quais não tinham defesa em sua medicina tradicional ou nas "pajelanças", o contato lhes trouxe também a morte pelas armas de fogo, sobretudo em conflitos com madeireiros, jagunços, garimpeiros, entre outros. Somem-se a isto os atritos com outros grupos indígenas regionais pela posse da terra, na medida em que esses povos perdiam seus territórios para os brancos. Assim, chegou-se a um momento em que o número de mulheres era muito superior aos homens e, na estrutura social dos Kanoê, já não havia mais como realizar os casamentos. As mulheres passaram então a se casar com homens de outras etnias (Aikaná, Jabuti, Mekém, Makurap, Cujubim etc.) e seguir seus maridos. A desintegração final do grupo se deu por ocasião da morte do último tuxaua, pai de Teresa Piraguê, pois já não havia um homem habilitado, de acordo com as tradições kanoê, para ocupar o posto do falecido.
Sem precisar datas e narrado com lapsos de memória e digressões, Munuzinho lembrou-se de um período, provavelmente no final dos anos 50 e início dos 60, em que ele e outros de seu povo foram trabalhar numa fazenda, na qual foram submetidos a um processo brutal de exploração, sendo escravizados e vigiados por jagunços. Nessa fazenda, um menino kanoê, de 11 anos, teria sido estuprado por dois jagunços e, com isso, os Kanoê se revoltaram contra a atrocidade praticada contra o menino. Um dos jagunços estupradores e alguns Kanoê morreram. O outro estuprador teria conseguido fugir para Porto Velho e o pai do menino o perseguiu até lá. No entanto, não mais voltou.
Nas últimas três décadas, dado o intenso processo de expansão agropecuária de Rondônia, muitos dos povos indígenas do Guaporé (Kanoê, Arikapu, Jabuti, Puruborá, Kwaza, Mekém etc.) estão reduzidos a alguns sobreviventes, com a conseqüente perda gradual de suas respectivas identidades lingüísticas e de suas tradições culturais. Entretanto, como apontou Maldi, nesse cenário desalentador emerge uma nova realidade social, a partir da intensificação das relações interétnicas. Na TI Guaporé, por exemplo, alguns aspectos culturais atuam como mecanismos de solidariedade entre os grupos distintos, como o consumo da chicha de milho, intercalando hóspedes e anfitriões, e o xamanismo, com a atuação conjunta de indivíduos de etnias diferentes na aspiração do pó de angico e nas cerimônias de cura.
Os Kanoê do Rio Omerê
Em contraste com os habitantes das margens do Guaporé, este grupo kanoê está enquadrado na categoria de “índios isolados” da Funai, tendo sido contatado pelo órgão apenas em 1995, depois de dez anos de tentativas por parte da Frente de Contato (hoje chamada Frente de Proteção Etnoambiental). Trata-se de uma única família, então constituída pela mãe, Tutuá, de aproximadamente 50 anos; uma filha, Txinamanty, de estimados 30 anos; um filho, Purá, aparentando 25 anos; e dois netos, um dos quais chamado Operá, cujo pai é Kunibu, o cacique dos Akuntsu, outro reduzidíssimo grupo indígena “isolado” no Omerê. A outra criança nasceu no início de 2002. No início de 2003, contraíram malária e faleceram a velha Tutuá e o menino Operá, então com sete anos.
Essa família é monolíngüe em Kanoê e, refugiando-se numa reserva de floresta de uma fazenda, conseguiu sobreviver apartada do contato direto com o homem branco, a despeito de possíveis massacres terem resultado na quase dissolução do grupo.
Já em 1943 foi registrado no relatório de Estanislau Zack à Comissão Rondon que havia índios Kanoê localizados na margem esquerda do Rio Omerê, afluente da margem esquerda do Corumbiara (Cf. Maldi, 1991:263). Muito tempo depois, em meados da década de 70, a Funai foi informada sobre a possível presença de grupos indígenas isolados na região de Corumbiara.
Em 1984, relatos apontaram a existência de índios nas reservas de mata de áreas que estavam sendo desmatadas para o comércio de madeira e formação de fazendas agropastoris, embora fazendeiros locais garantissem não haver mais indígenas na região. Em 1985 foi criada a Frente de Contato que iniciou oficialmente os trabalhos e, em 86, foi interditada uma área com 63.900 ha de superfície e 103 km de perímetro para fins de atração dos isolados. Desde então, não cessaram as tentativas de destruição dos vestígios indígenas por derrubadas, construção de estradas e investidas com trator e esteira a mando dos fazendeiros. Entretanto, por meio de incursões aéreas e por terra, a equipe encontrou várias evidências, tais como roças, estradas, armadilhas, habitações e indumentária indígenas.
Os indigenistas ainda recolheram vários depoimentos de índios e trabalhadores das fazendas. Alguns peões afirmaram haver pistoleiros matando os índios por tentarem impedir as derrubadas. Uma índia sabanê (ramo nambiquara) relatou a visita de três índios desconhecidos: um velho, uma velha e uma garota de aproximadamente 13 anos, armados de arco e flecha e carregando um balaio mamaindê (nambiquara), que encontraram na beira do rio, uma cabaça com mel e outra com colares de contas pretas. Carregavam também uma pedra e um pau com artefatos para fazer fogo. Disseram estar em busca dos companheiros que haviam se dispersado fazia mais de uma semana, quando, numa noite, foram colocados para fora de casa por um trator que derrubou as casas e passou no meio das roças.
Em maio de 1986, o Juiz federal de Porto Velho deferiu Mandato de Segurança, impetrado pelos fazendeiros da área interditada, ordenando a suspensão da Portaria do Presidente da Funai. Mas o órgão indigenista recorreu e a interdição foi mantida. O sertanista Sidney Possuelo foi então nomeado para coordenar os trabalhos de localização dos índios. Em seu relatório, alegou que a área encontrava-se intensamente recortada por estradas para retirada de madeira em todas as direções, com grande movimentação de caminhões, centenas de trabalhadores, aviões sobrevoando a região o tempo todo e derrubadas de mais de 30 km de comprimento. Possuelo concluiu então que a área onde havia mais vestígios indígenas fora totalmente devastada, mas que até recentemente fora habitada por um reduzido grupo indígena que possivelmente abandonara a região, premido pelas circunstâncias. Dessa maneira, em dezembro desse mesmo ano, a área foi desinterditada, havendo a reintegração de posse pelos fazendeiros.
Contudo, os indigenistas da Frente de Contato, Marcelo dos Santos e Altair Algayer, não desistiram das investigações. Extra-oficialmente, nos anos seguintes continuaram procurando, reunindo evidências, montando hipóteses e driblando os obstáculos de madeireiros, grileiros e agropecuaristas. Em 1993, os indigenistas passaram a contar com um valioso recurso: imagens de satélite recentes possibilitaram cruzar com precisão as evidências acumuladas sobre a presença de índios com as manchas de mata remanescentes das derrubadas das fazendas. Começou então um trabalho sistemático de rastreamento dessas regiões de floresta. Nas duas primeiras expedições nada encontraram. Partiram para uma terceira e as evidências reapareceram. Por fim, localizaram em uma imagem de satélite um ponto vermelho (sinal de desmatamento) do tamanho de uma cabeça de alfinete, no meio de uma mancha de mato de seis por quatro quilômetros. Marcaram as coordenadas e a equipe confirmou a localização da aldeia.
Um mês depois, em setembro de 1995, prepararam uma nova expedição, certos do contato. Chamaram jornalistas e, auxiliados por uma bússola, encontraram a aldeia quatro dias depois. Os primeiros contatos foram amplamente divulgados pela imprensa, em especial pelo jornal O Estado de São Paulo, pela revista Veja e pelo programa Fantástico da TV Globo, com imagens produzidas por Vincent Carelli, antropólogo e cinegrafista do CTI (Centro de Trabalho Indigenista/SP) que acompanhava o caso desde os anos 80.
Segundo relato de Pablo Pereira, jornalista de O Estado presente na ocasião, no alto de um barranco surgiram dois índios cobertos de adornos. Pareciam acuados. Ele, com cerca de 1,60 m de altura. Ela, mais baixa, pele escura, pés descalços, carregando arcos e flechas. Eles conversavam em voz alta em uma língua desconhecida. Por meio de gestos, os membros da Frente de Contato tentavam demonstrar que a visita era pacífica. Os primeiros passos do casal foram receosos. A mulher iniciou uma cerimônia em que parecia pegar no ar os maus espíritos e assoprar para dentro da mata. Ao se aproximarem, tocaram braços e mãos dos brancos. A mulher tremia. O homem balbuciava um som ininteligível. Num segundo momento, todos sorriram. Os índios indicaram a presença de outro grupo na mesma área, aos quais se referiam como “Akuntsu”. Com efeito, um mês depois, conseguiu-se o contato com os Akuntsu.
Depois de comprovado o contato, a área foi novamente interditada, uma década após a primeira interdição. Os fazendeiros reagiram imediatamente, tentando difundir uma versão de que o contato anunciado pela Funai era uma farsa, montada com índios atores. Foram até a aldeia dos recém-contatados, acompanhados de índios cinta-larga, gravar uma contraprova em vídeo. Depois disso, solicitaram um parecer a respeito da veracidade de ambas as fitas aos irmãos Villas-Bôas, acompanhadas de um vídeo cassete novo de “presente”. Os indigenistas preferiram assistir as fitas em seu antigo vídeo cassete e atestaram a veracidade do material de Carelli, assim como a fraude das imagens capturadas a mando dos fazendeiros, com perguntas e reações induzidas. Em seguida, o “presente” foi devolvido intacto.
Depois desse episódio, a Polícia Federal em Rondônia abriu inquérito para investigar denúncia de tentativa de genocídio contra os índios, sob alegação de que os fazendeiros levaram índios cinta-larga gripados a entrar em contato com os Kanoê, que ainda não haviam sido imunizados.
Desde então, o contato da equipe da Funai com os índios passou a ser mais freqüente, porém restava identificá-los etnolingüisticamente. Na ocasião do primeiro contato, a Funai não dispunha de intérpretes indígenas. A partir de gravações feitas por Vincent Carelli, foram testados intérpretes da língua mequém, outro povo cujos sobreviventes vivem em áreas indígenas localizadas em Rondônia, sem resultados.
A indigenista Inês Hargreaves coletou uma lista de 123 palavras por meio do contato com duas índias do grupo, que permitiu ao lingüista do Museu Goeldi de Belém, Nilson Gabas Jr., identificar uma grande proximidade com a língua kanoê. Rapidamente, foi localizado na TI Guaporé um senhor de aproximadarnente 70 anos que falava com fluência o kanoê, língua considerada praticamente extinta pelos lingüistas. Com o bom entendimento que seu Munuzinho Kanoê teve das gravações, e com as respostas dos índios ao contato com ele, os índios foram identificados como Kanoê.
Foi erguido um acampamento da Funai na entrada de uma das reservas de florestas, às margens de um pequeno igarapé afluente do Omerê. Uma equipe médica e outra odontológica passaram a fazer visitas mensais regulares à aldeia e uma assistente de enfermagem, apta a primeiros socorros, faz plantão no acampamento durante três semanas mensais contínuas. Há ainda um funcionário para proteger os índios, na ausência da chefia, de eventuais interferências de curiosos ou intrusos (como vaqueiros, madeireiros e palmiteiros), bem como para vigiar o acampamento de possíveis retaliações dos interesses dos latifundiários e madeireiros contrariados.
Histórias de antes do contato oficial
Em relação à história específica dos Kanoê do Omerê, no começo de 96, funcionários da Frente de Contato, Marcelo do Santos e Altair Algayer, tendo Munuzinho Kanoê como intérprete, colheram os primeiros depoimentos do grupo. A seguir, um resumo da história que conta parcialmente o porquê de restar tão somente a família de Tutuá.
O grupo contava então com aproximadamente 50 pessoas, das quais a maioria eram mulheres e algumas crianças. Certo dia, os homens se reuniram e decidiram que partiriam todos em expedição à procura de outros povos, com os quais pudessem negociar alguns casamentos. Todos os homens Kanoê, dos idosos aos meninos mais crescidos, partiram. As mulheres ficaram apenas com suas crianças. Mas os dias se passaram e os homens não voltavam. A aflição entre as mulheres aumentava a cada dia e duas delas resolveram partir à procura dos homens. Três ou quatro dias depois, voltaram com a trágica notícia: seus maridos e filhos tinham sido assassinados. As mulheres entraram em pânico e, sem perspectivas, decidiram pelo suicídio coletivo. Prepararam um veneno, deram-no de beber a suas crianças e se envenenaram. Tutuá, porém, mal começou a ingerir o veneno, ainda encontrou forças para lutar pela vida e vomitou o que havia ingerido. Também conseguiu fazer com que seus filhos – Txinamanty e Purá –, sua irmã e sua sobrinha (Aimoró) se salvassem.
Os Kanoê do Omerê ficaram então reduzidos a duas mulheres adultas e três crianças. Mas a irmã de Tutuá já não era a mesma. Enlouquecida, não acreditando que os homens estavam mortos, entregou a filha Aimoró aos cuidados de Tutuá e partiu sozinha à procura de seu marido e de seus filhos homens. Tutuá ainda tentou impedir que ela fizesse isso, mas foi em vão: sua irmã partiu e dela não se teve mais notícias.
Tutuá, sozinha, criou seus filhos e a sobrinha, refugiando-se na floresta. Porém, tão logo travou contato com os Akuntsu, passou a tentar aproximar-se deles, na esperança de encontrar uma possibilidade de casamento para seus filhos. Mas a relação entre os dois grupos indígenas isolados nem sempre foi amistosa, não só pela barreira lingüística, mas também pelas acentuadas diferenças culturais entre os mesmos. Pelo que Marcelo dos Santos pôde resgatar, através de Munuzinho Kanoê como intérprete, Tutuá Kanoê sempre procurou aproximar seus filhos dos Akuntsu, na esperança de que Kunibu, o cacique, cedesse ou venha a ceder uma das moças para esposa de seu filho Purá. Ao mesmo tempo, Tutuá esperava que sua filha Txinamanty e sua sobrinha Aimoró ficassem grávidas de Pupaki, um rapaz Akuntsu, ou do próprio cacique Kunibu. Mas as tentativas eram sempre frustradas. Toda vez que se aproximavam, acabavam surgindo atritos e ameaças de morte aos Kanoê, o que acabou se concretizando. Por ser mais nervosa e agressiva com eles, Aimoró foi assassinada pelos Akuntsu. Essa morte abalou ainda mais as relações entre ambos grupos. Apesar da instabilidade da convivência, porém, Txinamanty Kanoê ficou grávida do cacique Kunibu e, em outubro de 1996, nasceu um menino. O rapaz kanoê cedeu seu nome, que era Operá (“onça”) para o recém-nascido e adotou o nome de Purá (“cigarra”).
Com a morte de Aimoró, os Kanoê tornaram-se relativamente mais tristes do que já eram, pois, além de ser a pajé do grupo, Aimoró ainda tinha um espírito mais alegre, mais festivo. Era ela quem organizava alguns rituais que os Kanoê ainda mantinham. A família kanoê continuou insistindo em aproximar-se dos Akuntsu, mas as desavenças prosseguiram. Para minimizar o problema, os indigenistas intervieram e sugeriram aos Kanoê que mudassem sua aldeia para a outra reserva de floresta, às margens do igarapé Omerê, a aproximadamente três km do acampamento da Funai.
Língua
A língua Kanoê, também referida como Kapixaná (Kapishana) ou Kapixanã, é falada atualmente por apenas cinco pessoas. Na região sul de Rondônia ainda sobrevivem 40 línguas indígenas, em sua maioria relacionadas a oito macrofamílias, e várias línguas “isoladas”, ou seja, línguas para as quais ainda não foram descobertas evidencias consistentes de parentesco com outra língua ou família lingüística.
Dos sete falantes de Kanoê, três idosos habitam a região às margens do Rio Guaporé, caracterizada, como dito, por um antigo e intenso contato com a população regional, sendo que os demais membros da etnia (cerca de 87 pessoas em 2002) falam apenas o português. Já o grupo do Omerê, contactado em 1995, está reduzido a uma única família de quatro pessoas monolíngües em Kanoê.
A língua Kanoê tem sido classificada como “isolada” (vide Rodrigues: 1986 e Adelaar: 1991), embora Greenberg (1990: 34, 49,55) busque relacioná-la ao Kunsa, e Price (1978) suponha ser uma das línguas da família Nambiquara. Com efeito, Greenberg (1997: 94-98) apresenta algumas poucas evidências de que o Kanoê possa pertencer ao tronco Macro-Tucano, mas que são insuficientes para assegurar tal classificação. Do ponto de vista tipológico, o Kanoê é uma língua morfologicamente aglutinante, de modo que as palavras – principalmente os verbos – são formadas por seqüências de partículas significativas.
Saiba mais
Perfeccionismo e hospitalidade
Em sua compleição física, os Kanoê não são corpulentos, tendo uma estatura de mais ou menos 1,70 m. O grupo do Omerê usa os cabelos aparados bem curtos, razão pela qual Munuzinho Kanoê afirmou que esses seus parentes eram conhecidos como “Cabeça Seca”.
Embora atualmente vivam relativamente tristes em decorrência das condições materiais de vida e da falta de perspectivas, os Kanoê são gentis e receptivos. O grupo do Omerê caracteriza-se por um acurado perfeccionismo, que pode ser observado em sua cultura material e na manutenção da aldeia, que tem o pátio sempre muito limpo e varrido, inclusive o caminho que dá acesso ao igarapé. O caminho que leva à aldeia também é mantido limpo e destocado para que os funcionários da Funai ou membros das equipes médica e odontológica que lhes prestam assistência regular possam chegar de motocicleta. Para tanto, Purá sempre que pode parece estar desobstruindo o caminho, destocando-o, aplainando-o e queimando gradualmente uma árvore grossa, tombada na transversal, a qual impedia o acesso do veículo.
Em frente à maloca central onde dormem, sob a cobertura que lhes serve de cozinha, cada um parece ter seu local marcado. Nas visitas à aldeia, quando estavam todos presentes e reunidos, sentavam-se sempre nas mesmas posições: a mãe, Tutuá, sempre ao lado esquerdo do fogão; Txinamanty, cuidando de seu filho Operá ou alimentando-o, sempre numa das extremidades da área da cozinha, frontal à posição de sua mãe; Purá, na outra metade da cozinha, onde também amarram os porcos para serem alimentados.
Os Kanoê relevam-se hospitaleiros e corteses com seus visitantes. Tão logo se chega, oferecem ao visitante uma farta caneca de chicha (uma espécie de suco) de milho, fria e refrescante, levemente adocicada. Depois do contato com a Funai, só bebem água filtrada e preparam suas chichas e outros alimentos com água também tratada em filtros de barro com velas de argila porosa, típicos nas casas brasileiras, pois o acampamento lhes doou um desses aparelhos para protegê-los de possíveis doenças advindas da contaminação das águas do igarapé Omerê. Quando se deixa a aldeia, na despedida procuram sempre ofertar alguma coisa, sobretudo bananas. Do mesmo modo, quando visitam o acampamento da Funai, sempre que podem levam algum agrado, como um peixe, um pedaço de caça ou algumas frutas.
Atividades produtivas
Os Kanoê são agricultores, caçadores, pescadores e coletores. Criam galinhas e porcos-do-mato (queixadas), fazem roças de mandioca, cana-de-açúcar, milho, cará, batata-doce, amendoim e fumo. Cultivam ainda bananas, mamões-papaia e abacaxi.
Para a confecção de suas roças, o local é caprichosamente desmatado, queimado, destocado e capinado. As plantações parecem organizadas em setores específicos: cana-de-açúcar aqui, mandioca ali, amendoim acolá. O mesmo capricho revelam no trato dos animais que criam: as galinhas têm um galinheiro para protegê-las. Os porcos também têm duas casas cujas paredes foram feitas de toras de madeira fincadas lado a lado e cobertas por folhas de palmeira trançadas. As portas, feitas de tábuas de madeira lascada, têm um sistema de travas que lhes permite prender os porcos-do-mato em segurança e protegidos de outros animais carnívoros, sobretudo onças, durante a noite. Também fazem uso das roças do acampamento da Funai, onde arrancam mandiocas e carás, colhem mamões e cachos de coco, sempre que suas roças estão desprovidas. Pelo que pôde ser observado, os Kanoê mantêm uma relação de amizade e cortesia mútua com o pessoal do acampamento.
Outro traço que os caracteriza é a disposição para o trabalho. A velha Tutuá acorda sempre muito cedo e, munida de um facão, de seu arco e suas flechas e de um grande cesto dorsal, sai à procura de cachos de coco, sobretudo na área do acampamento onde há muitas palmeiras. Depois de colhê-los, arranca cada fruto dos cachos, acomoda-os no cesto e volta à aldeia. O peso é grande, mas ela caminha cerca de três quilômetros atenta às possibilidades de encontrar uma caça. De volta à maloca, torra os cocos, aos punhados, nas brasas do fogão. Depois, quadra-os um a um e, com uma faca, retira-lhes a polpa cozida e, à medida que faz isso, vai jogando as porções de massa para os porcos se alimentarem. É uma tarefa diária, repetitiva, que no entanto ela parece fazer sempre bem disposta.
Cultura material
Desde antes do primeiro contato com a Frente de Contato, os Kanoê do Omerê usam vários colares multicoloridos feitos com material plástico. Também usam um chapéu típico, de mesmo formato do chapéu do homem branco, porém confeccionado com talas vegetais de palmeira entrelaçadas e, na aba, fitas de lona plástica preta. Além disso, por ocasião do contato já usavam algumas peças de roupas em tecido industrial (proveniente de sacos de juta), as quais eles mesmos confeccionaram. Ademais, na aldeia, foram encontrados alguns utensílios, tais como garfos e facas de metal, vasilhame de alumínio e embalagens plásticas de produtos diversos. Esses materiais eram recolhidos pelos Kanoê nas incursões pela floresta, provavelmente deixados nos acampamentos de madeireiros, seringueiros e palmiteiros no interior das florestas ou nos pastos. Após a visita de Munuzinho Kanoê, pediram peças de roupas e calçados, no que foram atendidos. Somente a velha Tutuá anda com o busto nu, mas parcialmente encoberto por uma boa quantidade de colares sobrepostos, uns de material plástico, outros de conchas e sementes.
Os colares de material plástico são compostos de peças trapezoidais ou circulares unidas por linhas enceradas feitas de fios de tucum ou de algodão. Essas peças parecem ser recortadas de baldes de plástico velhos, deixados pelas incursões de madeireiros e palmiteiros nas reservas florestais ou pastos. Os colares atestam o caráter perfeccionista dos Kanoê, pois as peças têm exatamente a mesma forma e desenho e, além disso, são parcialmente sobrepostas monocromaticamente ou com alternância de cores, em que predominam o laranja e o branco, o que torna o efeito visual belo. Acompanham os colares brincos com pingentes de peças do mesmo material plástico, de mesma forma geométrica e tamanho. As mulheres, Tutuá e Txinamanty, usam brincos brancos e Purá, o rapaz, brincos laranja-avermelhados.
Completam-lhes a indumentária uma longa grinalda de fibras de buriti soltas; braceletes diversos, alguns dos quais similares aos colares; caneleiras e tornozeleiras de palha trançada ou de tecido. Esses adereços são usados pelos mais jovens sobre a camisa. Além disso, os Kanoê usam eventualmente duas longas penas vermelhas de arara, que são encaixadas num pequeno botoque feito em osso de tucum, colocado num furo entre as narinas.
Em sua aldeia, nem sempre estão usando todos esses adereços, mas parecem não abrir mão de seus colares, braceletes e da grinalda de fibra de buriti. Tão logo alguém se aproxima, os Kanoê procuram imediatamente colocar o chapéu ou, no mínimo, um gorro. Por outro lado, quando visitam o acampamento da Funai, na maioria das vezes se paramentam, usando todos seus adereços, inclusive as penas de arara transversais no nariz.
O chapéu é confeccionado de duas maneiras. O primeiro tipo é inteiriço, feito de um trançado de palha de talo de folha de palmeira, especialmente de buriti, de aba fixa. O outro tipo de chapéu tem o mesmo modelo, mas é composto de duas peças independentes. A primeira peça é um gorro em forma de meia esfera, feito em gomos triangulares de couro de animal ou de tecido, unidos entre si por costura feita à mão, com acentuado perfeccionismo. A segunda peça é uma aba circular solta, na medida da cabeça do usuário, trançada em talos finos de taquara envoltas por estreitas fitas de lona plástica preta, unidos por palha de buriti, de tal forma que formam um desenho regular. No arremate final, as pontas de taquara são unidas por uma amarra feita com fibras de palha da folha de buriti. Nesse ponto de arremate, encaixam longas penas de arara, sobretudo vermelhas. Essa aba solta é encaixada na cabeça, após vestirem o gorro, dando a impressão de um chapéu inteiriço. Assim, quando estão em sua aldeia, muitas vezes usam apenas o gorro.
O perfeccionismo dos Kanoê reflete-se ainda na confecção de suas flechas e adereços. Purá possui uma bolsa de couro, na qual guarda todo o material de que necessita para a confecção de arcos e flechas. As penas de aves são cuidadosamente separadas em conjuntos por tipo e cor, e presas por linhas enceradas de fibras de tucum. Na mesma bolsa, Purá guarda os estoques de linhas vegetais ou de material plástico desfiado, cuidadosamente enroladas, bem como os tufos de cera de abelha com os quais impermeabiliza das linhas e as ataduras das penas e do bico da flecha.
A aldeia kanoê no Omerê possui cinco habitações desprovidas de divisões internas e janelas, apenas com uma porta à frente e outra atrás. O teto é composto de duas águas e estende-se até o chão, sendo a estrutura de sustentação composta de troncos. As malocas são cobertas de açaí (Euterpe oleracea) ou inajá (Pindarea concinna). O chão é cuidadosamente batido e nivelado no interior e arredores das casas.
No que diz respeito aos rituais, os Kanoê do Omerê fazem numerosas pajelanças e cerimônias, quando se cheira rapé de angico. Segundo Maldi, é característico entre os povos indígenas dessa região a atuação do xamã por meio desse alucinógeno: as sementes de angico são maceradas até virarem pó e misturadas com um tipo especial de fumo, cultivado para esse fim. Os xamãs também usam um léxico especial, aparentemente ininteligível aos não iniciados, e recitam durante o processo de cura. A xamã do grupo do Omerê é Txinamanty, que realiza trabalhos de cura e trata de intercorrências cotidianas.
Fontes de informação
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