“Contar a história do meu avô é um sonho”
por Yamaluí Kuikuro Mehinaku
O começo de um sonho chamado memória
Meu nome é Yamaluí Kuikuro Mehinaku. Estou aqui falando com minha parente Trudruá Macuxi, que vai me entrevistar agora sobre o livro Dono das palavras. O nome mesmo seria “O rei do Xingu”. Meu avô foi um grande herói.
Era um sonho meu, um sonho da família do Nahũ, um sonho do meu tio, Jakalu, único filho homem do Nahũ. Nahũ teve três filhos, um homem e duas mulheres; uma delas é minha mãe.
Eu sempre falei que o meu avô foi protagonista da história do Xingu. Só que ele não foi reconhecido. O branco não falou dele nos livros, não falou nada. O último momento que eu tinha esperança era do nome dele aparecer no filme Xingu. O filme do Cao Hamburger. E não apareceu. Eu fui assistir em São Paulo, na estreia, estava muito ansioso para aparecer o nome do vovô, nada. Eu voltei meio triste porque ninguém contou a história do vovô. Eu voltei e falei para o meu tio: “O nome do vovô não apareceu”. Só apareceu no finalzinho, 1 minuto, 20 segundos só. Não me deixou satisfeito. Mas eu falei: “Eu mesmo tenho que escrever”! Eu mesmo escrevi esse livro.

Eu comecei a falar com meu tio. Meu tio contou toda a história dele. Ainda bem que meu irmão, Mutua [Mehinaku], ele é mestre na Antropologia e Linguística do povo Kuikuro, fez Universidade Federal do Rio de Janeiro. Então tirei as dúvidas, ideias e aí comecei a escrever.
A história do meu avô começava aqui [no Território Indígena do Xingu] e em outra região, no Mato Grosso. Ele tinha saído dessa aldeia para outra aldeia, de outra etnia, atrás do branco. Primeiro os brancos chegaram e eles foram atrás das coisas dos brancos: facas, roupas, linhas. Acho que você sabe muito bem essa história. Acho que com todo mundo foi assim.
Cheguei e pensei. Eu não tinha dinheiro, eu não tinha salário. Eu era beneficiário do programa do governo, Bolsa Família. Nesse dia, nesse tempo, nesse ano eu ganhava 150 reais por mês. Então eu falei: "Vou juntar". Quatro meses eu consegui juntar para bater meu orçamento, consegui 600 reais. Trezentos para ir, trezentos pra voltar. Aí eu pensei: “Ainda bem que eu tenho motocicleta!” Enfrentei 180 km de estrada para chegar na cidade Gaúcha do Norte, eu dormi lá, no outro dia peguei um ônibus pra cidade de Paranatinga.
O povo Bakairi, meu avô conviveu com eles, com eles que ele aprendeu. Lá chegaram os primeiros brancos. Lá na cidade de Paranatinga eu fui de moto também, na chuva. Você pode ver na foto, bem na entrada da terra Bakairi. Chovendo, liso, me arrisquei, mas cheguei. Eu tenho um conhecido lá, um amigo, hoje eu chamo ele de meu irmão. Ele me recebeu.
Só que na cidade de Paranatinga eu comentei com ele que tinha encontrado um Bakairi e tinha falado que estava indo fazer uma pesquisa. Aí eu levei um susto. Ele chegou a falar pra mim que era proibido pesquisadores entrarem na nossa terra. Naquela hora eu recebi essa palavra, eu senti um amargo, vontade de desistir, de não ir para essa aldeia. Mas algum tempo depois chegou meu amigo, para me acalmar.
Eu falei, eu não vou mais pra lá, o cara falou isso e isso. Ele me falou: "Não, ele não é cacique. Eu sou sobrinho do cacique. Meu tio está esperando por você". Isso me acalmou, me aliviou, então eu segui. Na chuva mesmo saímos de moto. Cento e tantos quilômetros, em estrada de chão.
No outro dia eu entrevistei uma senhora que conhecia meu avô. Era uma grande amiga do meu avô Nahũ. Ela tinha 104 anos, mas sabia de tudo ainda. Nossa, ela me ajudou muito! Ela me cobrou para eu entrevistar ela. Cinquenta reais. Aí eu disse: “Está bem”.
Aí ela contou como Nahũ chegou lá, como era nome de criança. Na terceira viagem, o nome da minha bisavó, que a gente não conhecia, eu peguei lá. Eu falei pra família: “A nossa bisavó se chamava assim”. Esse nome tá vivo agora, voltou.
Então quando terminamos a entrevista, eu peguei dinheiro e peguei miçanga e dei duas opções pra ela escolher. Aí ela falou: "Não vou querer mais dinheiro, vou querer miçanga". Eu respondi: "Ah, está bem. É sua vida, é sua escolha". Fiquei dois, três dias lá. Voltei. Cheguei e escrevi tudo.
O resto eu gravei aqui com meu tio Jakalu. O meu tio está muito contente, está muito animado que o vovô tava morto, a história dele, mas agora voltou vivo. Agora os xinguanos aqui estão para preservar o Xingu, a antiga luta dos líderes, dos caciques, temos que manter nossa área forte.
Muitos leitores já chegaram aqui e muitos livros já foram vendidos. Alguns dei de presente para os caciques. E tá começando a fazer sucesso aqui. Uma etnia, uma aldeia já comprou seis.
Dono das palavras: A história de meu avô, de Yamaluí Kuikuro, está à venda na Loja do ISA. Adquira já o seu!
As miçangas e as ossadas
O branco trouxe para nós a miçanga. Na verdade a miçanga original do Xingu é o colar de caramujo. Esse é o nosso original. Muitas outras etnias usam mais a semente das frutas. Mas aqui no Xingu não, para comercializar estamos inovando as coisas.
Na chegada, os brancos já vinham com a miçanga. Aquela miçanga que minha avó tinha pedido pro Rondon, bem grande. Nessa época eles chamavam de olho de peixe. O olho que tá lá, do peixinho. Eles chamavam desse jeito. Aí depois toda vez que o branco vinha aqui, eles traziam muitas miçangas. Uma volta valia mais de mil reais. Você viu na história do Coronel Fawcett, o Orlando [Villas Bôas] pagou uma volta pra cada um, pra devolver a ossada falsa. Ele pagou com miçanga. Nesse tempo era raro, caro também.
O Coronel Fawcett é um polêmico aqui no Xingu. O Coronel é um britânico da Real Sociedade, Percy Harrison Fawcett. Então ele teve a ideia de vir aqui no Mato Grosso, no Brasil, para encontrar uma cidade perdida. Só agora eu fiquei sabendo, né? Mas na nossa história ninguém sabia. Então chegou na aldeia do povo Kalapalo, eles moravam a 70 km daqui da aldeia.
Não sei como o Fawcett chegou nessa aldeia. Isso, os Kalapalo que sabem. O que estou contando no livro é a versão do meu avô, que ele foi convidado pra lá como intérprete.
Fawcett chegou na aldeia Kalapalo, depois foi para o sítio do cacique, e dormiu lá. Dormiu uma noite e depois foi embora. Os Kalapalo acompanharam, cansaram de acompanhar e voltaram. Aí depois nunca mais foi visto. O Coronel não sei onde está. Na visão espiritual dos pajés, eles têm visão espiritual, eles acreditam que ele entrou no mundo dos animais, dos espíritos.
Muitas vezes eu pergunto aos pajés que têm essa visão, e eles respondem que ele ainda está vivo, não pode ser visto porque virou espírito. Por isso que ninguém acha seus ossos. Os brancos querem muito encontrar o osso do Fawcett. Cem pessoas já morreram atrás do Fawcett. Muitas pessoas já morreram.
Quando eu pesquisei, acabei encontrando que ele tava com 30 kg de ouro, relógio, bússola, tudo de ouro. Eles não procuram só os ossos do Fawcett, mas as joias que eles têm. Isso chama atenção. Isso eu não coloquei no livro, não era a versão do Nahũ.
O cacique cansou de ouvir essa acusação. Os Kalapalo, quando viram esse livro, falaram que Orlando pressionava direto, ameaçava. Por isso que desenterraram o [corpo do] cacique. O cacique tinha falecido há algum tempo. Aí o cacique esperou a chegada do Nahũ. Eles estavam com dúvida, se os brancos saberiam se era o Fawcett ou não. Ou se dava pra enganar o Orlando. Por isso que o cacique perguntou: “Ô sobrinho, dá pra enganar o branco?” O vovô respondeu que eles tinham muitas coisas, eles tinham médicos. E muitos disseram: “Não, ah não! Eles não vão saber”. E desenterraram.
Quando um cacique morre, um ano depois, a gente faz homenagem, o quarup. Esse cacique se chamava Mugiká, grande cacique do povo Kalapalo. Ele foi desenterrado. Ele tinha ganhado um facão do Fawcett. Quando a gente morre a gente é enterrado com objetos, joias, as coisas que você deseja muito.
Quando desenterraram, levaram à lagoa onde o Fawcett foi visto pela última vez. E tiraram para o Orlando. Assim se livraram de Orlando, da ameaça, da pressão. Orlando chamou o mundo, na Europa inteira se espalhou essa notícia. Então hoje, assim que a gente defende: Fawcett está vivo, só que virou espírito.
Uns falam que ele passou num lugar misterioso. Quando você entra nesse mato, tem uma região, uma trilha misteriosa. Quando abre, você entra lá, daqui dois, cinco metros, ela se fecha. Você não volta mais. Assim é que ele entrou no mundo dos espíritos.
Alguns falam que tem outro lugar misterioso, parece que tinha ouro lá, são várias hipóteses, que eles fazem igual o branco. Eu acho que ele tentou pegar o ouro lá, mas o bicho que tá em volta desse ouro, o pegou e morreu. Então temos duas hipóteses que nosso conhecimento, nossa ciência conta.
Ano que vem faz 100 anos de sumiço do Coronel Fawcett. Hoje, a minha luta é recuperar o osso [do cacique Mujiká]. Eles [Kalapalo] deram com medo das ameaças. Coitadinhos dos meus avós. Quando cheguei nesse ponto, eu chorei. Eu vou lutar, a luta continua.
Eu, como indígena, como parente desse cacique [Mujiká], digo que tem que fazer homenagem para ele, o quarup. Isso não é brincadeira. Eu quero que me devolvam o osso para devolver à minha terra. O branco sabe a importância da ossada.
A nomeação das pessoas e dos lugares
Nós do Xingu, quando a gente nasce, a gente ganha dois nomes: um para o pai chamar e um para a mãe chamar. A gente tem muito respeito com o sogro. Eu não posso chamar o nome do meu sogro. Minha esposa também não pode chamar o nome do meu pai, só de sogro. Por isso que aqui cada um de nós tem dois nomes. Tem nome de criança, depois tem nome quando furar a orelha, depois quando vai chegando aos 50 tem outro, 70, 80, tem outro nome. Quando meu avô era criança se chamava Tsikigi. O pai dele faleceu bem cedo, então não sei como era chamado pelo pai.
Quando chegou nesse dia (dos padres) trocou. Não é que trocou, acrescentou mais um nome, José Afonso. Ele era órfão, ele era o único filho da família. Quando você é o único filho da família, você vai ter muitos nomes, quase cada ano muda. Tsikigi, Nahũ, Karuaia, mas o resto nem coloquei, nem Yamaluí. O nome mais famoso que ele tinha eu coloquei.
Quando nasceu o primeiro neto do meu primo, filho da minha tia, ganhou esse nome Tsikigi, e hoje ele se chama Nahũ. Nahun, quando o branco chegou chamou Nahũ, mas é Nahum.

Minha esposa é bisneta do companheiro, que se chamava Külahi Luís, o melhor amigo dele, o irmão. Luís teve quatro filhos. O irmão da minha sogra tem um filho, chama-se Luís. Meu primo, filho da minha tia, chama-se Afonso. Aqui eles chamavam de José, mas em Kuikuro pronunciava como Dzoon.
Aqui na nossa realidade do Xingu, cada curva do rio a gente conhece o nome, cada lugar a gente conhece o nome. Quando fala “porto”, em português, acham que é aquele porto, como o Porto de Santos. Mas aqui é diferente, onde aportamos também podemos chamar de porto.
Por isso eu coloquei o nome dos portos dos antigos, porque os mais atuais, a nova geração não sabe. Nem eu sabia também. É importante colocar cada porto que eles chegavam quase todo ano. Por esse motivo, por essa importância, que eu coloquei. Alguns relembraram os nomes dos portos. Muito importante para nós, escritores indígenas, contar para os leitores. Aí eles vão falar, o porto dos Aweti, dos Mehinako, tudo. A gente reconhece nas histórias o nome de cada porto.
Recado aos leitores
Vocês que acabaram de ganhar meu livro, espero que gostem, que curtam. Meu primeiro livro, minha experiência. Quero que vocês divulguem. Eu gosto de ouvir comentários do meu livro, de cada leitor.
Os leitores já estão me parabenizando muito, estão muito emocionados. Aqueles que compraram de mim. Eu quero que meu livro faça mais sucesso. Vocês que estão aí, com meu livro, divulguem por favor, assim nosso trabalho vai ser valorizado. Para os pesquisadores, continuem trabalhando felizes, sem desânimo.
As palavras e seu dono
por Trudruá Dorrico
Ritual de iniciação
As histórias de aventuras de avós indígenas foram historicamente, assim como os povos originários, silenciados. Essa obnubilação impediu que os povos da floresta fossem admirados por seus cantos, seus rituais, suas lutas esportivas, suas línguas, suas organizações sociais e suas biografias, e, sobretudo, por seus territórios.
A história do avô Nahũ Kuikuro, apresentada por seu neto Yamaluí Kuikuro Mehinaku, narra as origens de uma luta coletiva: as aventuras de um homem consciente de seu pertencimento à sociedade kuikuro; o serviço da tradução a que se destinou; e a luta inexorável pela liberdade e direitos dos povos Kuikuro, Aweti, Kalapalo, Yawalapiti, Mehinako, Kĩsêdjê, Kawaiwete (Kaiabi), entre outros que habitam o Território Indígena do Xingu (TIX).
Nahũ Kuikuro é o protagonista desta biografia literária que traz no enredo, ainda, um mistério que perdura toda a narrativa; personagens históricos como os irmãos Villas Bôas e o Marechal Rondon, e a localização de um Brasil nomeado e conhecido pelos povos indígenas – que agora compartilham um pouco de seus territórios desde suas próprias palavras.
Escrito na língua Kuikuro com tradução para o Português, o texto se apresenta em colunas, em que cada uma das línguas ocupa o lugar que deveria ter tido desde sempre: em primeiro plano, a palavra indígena presente no livro e, em segundo, a língua portuguesa a acompanhando.
A obra é organizada pela cronologia do nascimento de Nahũ, passando pelo seu encantamento e encerrando com a apresentação do escritor Yamaluí, que descreve o legado de ser neto do biografado. O livro acompanha ainda a transliteração de um depoimento de Nahũ, uma cronologia de sua trajetória, além de notas explicativas ao fim da obra, que podem ser consultadas durante sua leitura.
Por meio desta biografia podemos notar que a jornada de Nahũ, embora tenha se tornado órfão de pai assim que nasceu e de sua mãe anos depois, é marcada por deslocamentos de caráter coletivo: durante um tempo acompanha ele sua mãe Hugasa Kuikuro; depois, os tios Atahu e Aguja, que o criam. Nessa caminhada, conhecemos ainda a família do povo Bakairi que o acolhe – Malta Bakairi, sua esposa Waiguito Xunakalo e os filhos Ayáku e Katuna –; Külahi Luis Kuikuro, seu companheiro de trabalho e viagem; e ainda a própria família de Nahũ, em momento de viagem com a esposa Sesuaka Mehinako e com o filho, Jakalu Kuikuro.
É nestes encontros, aventureiros e algumas vezes tristes, com os parentes e com os não indígenas, e nos lugares pelos quais vai passando, que os destinos vão sendo desenhados.
Esta resenha – radicada na teoria da literatura indígena e com intuito de demarcá-la na literatura brasileira – debruça-se sobre a voz ancestral de Nahũ Kuikuro, que o neto Yamaluí Kuikuro Mehinaku trabalhou para reconhecer como um hiper-avô-diplomata na obra Dono das palavras: A história de meu avô (Todavia, 2024).
A voz ancestral
Na teoria da literatura indígena, a autora potiguara Graça Graúna identifica dois narradores na contação de história, gênero assinalado também por ela para sinalizar as especificidades da estética presente no conto indígena: o narrador que é o avô, o contador de história, o sábio; e o narrador aprendiz, que geralmente está no segundo plano da narrativa e que avança apoiando-se nos ensinamentos de seu ancestral.
Nesta obra, essa voz ancestral também se manifesta com dois narradores: o narrador-neto está em primeiro plano e o narrador-avô no segundo. O que não muda, no entanto, é a hierarquia da voz ancestral que reverencia o avô, e reconhece nele a autoridade da palavra, do rezo, da cultura. Assim, nesta biografia literária, vemos a cronologia da vida de Nahũ Kuikuro sendo contada pelo neto.
Desde o início, o narrador-neto localiza o espaço, a aldeia indígena Kuhikugu, para apresentar as origens de seu avô: ele nasceu em Kuhikugu, dentro da casa de chefe, de seu avô, Kalahati. Segundo o livro, Kuhikugu significa “lagoa dos peixes kuhi” e dá origem a Kuikuro, corruptela do nome da aldeia.
A narrativa faz o percurso cronológico de 1922, quando Nahũ Kuikuro nasce, até os anos 2000, ano do falecimento do chefe xinguano. Durante os anos datados esparsamente vamos conhecendo as experiências do avô, como quando conheceu pela primeira vez um caraíba.
Interessante assinalar que, da perspectiva indígena, encontrar alguém tão diferente, vindo de tão distante, e por um transporte desconhecido, não torna esse outro exótico, mas alguém que pode até receber o estatuto de hiper – kuegü na língua kuikuro. Isso diz da própria capacidade da cultura do povo Kuikuro conviver com as diferenças entre as gentes e entre os diferentes mundos já existentes.
A partir das viagens e passeios de Nahũ conhecemos os nomes das aldeias, tais como, Alahatuá, Pakuera (Bakairi), Maranata (onde ficavam os alemães), Jagamü, Kalapalo, Inhagü Hatoho (ou Kunugihütü), aldeia Tuiararé (Kayabi no Xingu). Também aprendemos os nomes dos rios e lagos, como Rio Batovi, Rio Curisevu, Rio Culuene, Rio Vermelho, Lagoa Ipatse (área Kuikuro), Rio Sete de Setembro, Rio Buriti, Rio das Mortes, Rio Manitsauá, Rio Tanguro, Rio Ajuga, Rio Tuatuari.
Emil’ Keme’, do povo Maya Kiche’, teórico da literatura indígena, afirma que o projeto civilizatório indígena passa fundamentalmente pela renomeação dos nomes que foram colonizados – corpo, floresta, territórios –, um passo fundamental para a soberania e autonomia indígenas, e sobretudo, para recuperar um lugar de enunciação. Este projeto busca renomear o continente como Abya Yala e o reconhecimento das categorias inerentes aos povos indígenas em seus territórios, tal qual o apresentado por Yamaluí nesta obra: “Se trata más bien de reconfigurar el mapa de nuestro hemisferio de acuerdo a los nombres y parámetros empleados por nuestros ancestros y sus descendientes”.
Por sua vez, Linda Tuhiwai Smith, do povo Maori, socióloga e intelectual, afirma que a redefinição material de nosso mundo ocorreu simultaneamente, “[...] por meio de medidas como renomear e ‘dominar’ nossas terras, aliená-las e fragmentá-las por meio da legislação, além de impingir o desalojamento forçado das pessoas que viviam nessas terras e as consequências sociais resultantes de altas taxas de mortalidade e enfermidade”.
Nesse sentido, um dos projetos metodológicos indígenas que Smith elenca é justamente o projeto de nomear. Ao adentrar no mundo xinguano pelo olhar de Yamaluí, temos contato com nomes da tradição kuikuro que identificam o espaço pelos nomes nas língua materna, uma língua conectada ao território em nível material, espiritual, social, individual e coletivo kuikuro. O projeto civilizatório indígena busca reconhecer esses conhecimentos ignorados pela colonização, mas que agora passam a se fazer presentes por meio da obra literária.
Biografias indígenas
Conforme o levantamento feito por mim, abrangendo publicações editoriais indígenas desde os anos 1970 até o 2020, esta é a primeira biografia indígena publicada na história da literatura indígena no Brasil. Fazer um perfil e contar a história de uma personalidade, liderança indígena pode ser um caminho para o Brasil reconhecer suas origens, suas raízes e valorizar nossos avós originários.
Ao contar a vida de personalidades indígenas, como Nahũ nesta obra, ao biografar pessoas que tiveram uma vida dedicada ao movimento indígena, temos não a exaltação do indivíduo, mas a metonímia da vida indígena: narrativas de pessoas e povos de um território pluriétnico e multicultural, que se debruçam para proteger, fortalecer e perpetuar as raízes do “futuro ancestral” – como diz Ailton Krenak.
Quantos homens e mulheres originários inspiraram coragem, força, determinação, admiração e resistência são conhecidos por suas biografias? Ao encerrar esta resenha, é esse sentimento que me semeia: o de que esta obra escrita por Yamaluí, que nos transporta ao mundo xinguano pelas vivências, memória e legado de Nahũ, engendra uma nova tradição em nosso sistema literário indígena.
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Projeto Os Brasis e suas Memórias