De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Ruben Caixeta, 2010

Hixkaryana

Autodenominação
Onde estão Quantos são
PA,AM 1242 (Siasi/Sesai, 2012)
Família linguística
Karib

No processo de retomada de seu território tradicional, no dia 29 de abril de 2010, o cacique da aldeia Torre, rio Nhamundá, Ahtxe Hixkaryana, disse o seguinte sobre seus antepassados:

Muito tempo atrás, nossos avôs viviam lá embaixo, na foz do rio Nhamundá, onde hoje é a cidade de Faro. Lá viviam no meio dos brancos, eram empregados deles, limpavam suas fezes, viviam como cachorro. E se fizessem algo que desagradasse os patrões, suas cabeças eram cortadas. Por isso, houve muita perseguição, por isso fugimos de lá, subimos até a cabeceira do rio Nhamundá, lá onde nasci, mas nossa origem é rio abaixo”. No mesmo dia, outro morador da aldeia Torre, Txikirifu, falou da razão pela qual eles estão retornando rio abaixo: “nossos avôs foram perseguidos pelos brancos e subiram para as cabeceiras, agora voltamos para nossa terra, queremos só um pedacinho de nossa terra, que era muito grande. Estamos reunidos aqui para lutar pela nossa terra, terra que sempre foi nossa. Eu estou achando esquisito isso, ‘lutar pela nossa terra’, mas é isso mesmo, estamos no lugar que sempre foi de nosso povo.

Nome

Hixkaryana (hixka, veado vermelho; yana, povo; hixkaryana, povo veado vermelho) é um nome genérico para designar vários grupos de língua e cultura semelhantes, que vivem atualmente nos vales dos rios Nhamundá (Amazonas-Pará) e médio Jatapu (Amazonas). Hixkaryana engloba outros grupos que, muito provavelmente, tinham maior autonomia no passado, e que, ainda hoje, em contextos locais, se autodenominam: Kamarayana (kamara, onça; yana,  povo; kamarayana,povo onça); Yukwarayana (yukwarî, goma de mandioca; yana, povo; yukwaryana, povo da goma de mandioca); Karahawyana; e Xowyana.

Língua

A língua hixkaryana pertence à família linguística karíb e é falada por todos os membros do grupo. Esta língua é muito semelhante àqueles outros dialetos falados na região mais ampla circunscrita pelos vales dos rios Trombetas e Mapuera, como Waiwai, Xereu, Katuena, Karapawyana, Tunayana. Desta maneira, e pelo fato dos Hixkaryana estabelecerem relações bem estreitas com estes grupos em uma rede de trocas matrimoniais e rituais, tais dialetos são inteligíveis entre si. Da mesma forma que ocorreu com a língua waiwai, que foi estudada por missionários evangélicos e usada como modelo para a tradução da Bíblia (Novo e Velho Testamento) para a língua indígena (no contexto do rio Mapuera), aconteceu com a língua hixkaryana (no contexto do rio Nhamundá). Ela foi usada como modelo para a tradução do Novo Testamento pelos missionários do SIL (Summer Institute of Linguistics) e inibiu os outros dialetos. Este processo também se deu com a língua Waiwai que acabou inibindo e mesmo forçando os índios falantes de outros dialetos, na região do rio Mapuera, a usar o Waiwai como língua geral. Portanto, hoje, a língua waiwai e a língua hixkaryana são largamente usadas numa vasta porção da região das Guianas em função da ação missionária.

Os Kaxuyana que moram no rio Nhamundá, quase todos,  também falam a língua hixkaryana, além da sua língua própria, o Kaxuyana. Contudo, em geral, um Hixkaryana não fala a língua kaxuyana, fato que, de certa forma, demonstra que os Kaxuyana são considerados os “estrangeiros” naquela região e  que devem aprender a língua “nativa”, o Hixkaryana.

A maioria dos Hixkaryana é alfabetizada na língua nativa, sendo capaz de ler e escrever neste idioma. Em 2008, havia apenas uma escola de ensino fundamental na aldeia Kassauá, e muitos jovens, depois desta série, dirigiam-se à cidade de Nhamundá (AM) para prosseguir os estudos de nível médio. Em 2010, uma escola de ensino médio foi implantada na aldeia Kassauá. Além disso, uma dezena de Hixkaryana já cursou ou está cursando o ensino superior em cidades como Parintins e Manaus. Contudo, a maioria das mulheres, dos velhos e das velhas, fala muito pouco o Português, sendo o Hixkaryana a língua mais usada por todos.

O estudo linguístico da língua hixkaryana teve início em 1958 a partir do trabalho do casal do SIL, Desmond e Gracie Derbyshire. A partir de então, foram publicados textos e cartilhas para alfabetização, uma gramática, além da tradução completa do Novo Testamento.

Localização e histórico do contato

Atualmente, a maior parte dos Hixkaryana vive nas margens do médio rio Nhamundá, rio que faz divisa entre os estados do Amazonas e do Pará. São dez aldeias situadas do lado do Amazonas e uma aldeia do lado do Pará. Há ainda duas aldeias situadas noutro rio, no médio Jatapu, estado do Amazonas. Há muitas famílias hixkaryana misturadas com outros grupos (particularmente Katuena, Waiwai e Xereu) e que habitam outras localidades, sobretudo aquelas situadas no rio Mapuera, estado do Pará. Por fim, cabe registrar que algumas poucas famílias hixkaryana moram, temporariamente, nas cidades de Nhamundá, Parintins e Manaus.

Hixkaryana, rio Mapuera, Terra Indígena Nhamundá-Mapuera. Foto: Protásio Frikel, 1951
Hixkaryana, rio Mapuera, Terra Indígena Nhamundá-Mapuera. Foto: Protásio Frikel, 1951

Os discursos dos caciques hixkaryana sobre o direito à terra que ocupavam tradicionalmente encontram um ponto de confirmação na historiografia da região. Segundo Protásio Frikel (1958), entre 1725 e 1759, havia uma missão católica no baixo rio Nhamundá, próxima ao Amazonas, entre os índios Wabui, que, por sua vez, tinham sido “descidos” das margens do rio Trombetas pelo Frei Francisco de São Manços. Muito provavelmente, os Hixkaryana e contemporâneos – que vivem nas aldeias do rio Nhamundá – são descendentes desses Wabui transferidos do rio Trombetas e mesclados a grupos autóctones do próprio rio Nhamundá. A partir das breves biografias e das histórias de vida narradas pelos Hixkaryana, e dos registros realizados por viajantes, pela Funai e pelos missionários, podemos traçar um resumo da formação e dispersão dos diversos grupos indígenas nos vales dos rios Nhamundá e Jatapu.

Até meados do século 18, há informações de índios vivendo no baixo Nhamundá, no local onde é hoje a cidade de Faro. Fugindo de conflitos com os colonizadores, estes índios começaram a subir o rio Nhamundá, encontrando no meio do caminho outros grupos ali já instalados.

No século 19 e início do século 20, os grupos indígenas da região limitavam-se a ocupar as cabeceiras dos rios, geralmente locais de difícil acesso [depois de cachoeiras, no curso de pequenos igarapés e no interior da mata], fugindo das frentes de colonização  não-indígenas.

Na metade do século 20, os índios voltaram a ter contatos com os  não-índios e passaram a ocupar novamente a beira dos rios Jatapu e Nhamundá.

Segundo informação da publicação Povos Indígenas no Brasil/1982 (Gallois & Ricardo, 1983) nos anos 1920, os índios do Nhamundá e do Jatapu foram vítimas de uma epidemia de gripe e, a partir de então, dispersaram-se em uma série de pequenas aldeias.

Os dados do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), citados pelo indigenista da Funai Sebastião Amâncio da Costa (1982), informam que, em 1942, foram encontrados índios desconhecidos na área do rio Novo, afluente da margem esquerda do alto Jatapu.

Hixkaryana, Terra Indígena Nhamundá-Mapuera. Foto: Yves Billon, 1971
Hixkaryana, Terra Indígena Nhamundá-Mapuera. Foto: Yves Billon, 1971

Uma frente missionária protestante, sob a liderança de Desmond Derbyshire do Instituto de Linguística Summer (SIL), instalou-se entre os índios do rio Nhamundá em 1958, na aldeia Kassauá. Os Hixkaryana responsabilizaram-se pela atração de pequenos grupos locais anteriormente dispersos no alto Nhamundá e no rio Jatapu (Gallois & Ricardo, 1983). Na aldeia de Kassauá, foi montado pelos missionários um posto básico de atendimento à saúde e uma escola para a alfabetização dos indígenas na língua hixkaryana e em Português.

Uma outra frente missionária evangélica norte-americana, a Unevangelized Fields Mission, instalou-se no sul da Guiana no início da década de 1950 e para lá atraiu grande número de índios Waiwai e outros grupos da bacia do rio Mapuera, chegando mesmo a cooptar e levar para lá boa parte dos Hixkaryana dos rios Nhamudá e Jatapu. Apenas 15 famílias hixkaryana resistiram ao apelo dos Waiwai (que foram convertidos pelos evangélicos na aldeia da Guiana), e permaneceram na região do rio Nhamundá. Essas famílias foram as seguintes: Kaywerye, Tohkoro, Waraka, Mahxawa, Juno, Awatxare, Mohtî, Txawa, Uemko, Erefoka, Hanami, Tavino, Wari, Atxatiko e Copoi.

De acordo com o Projeto Funai/Radam (Funai, 1976: 11-14), na margem direita do médio rio Jatapu, até 1960, continuava existindo uma aldeia, com cerca de 30 a 40 Hixkaryana e Xowyana, próxima ao local onde se localizava o Posto de Atração Indígena de Jatapu, na Cachoeira Santa Maria.

Hixkaryana fazendo uma flecha, rio Mapuera, Terra Indígena Nhamundá-Mapuera. Foto: Protásio Frikel, 1951
Hixkaryana fazendo uma flecha, rio Mapuera, Terra Indígena Nhamundá-Mapuera. Foto: Protásio Frikel, 1951

Segundo as informações contidas em documentos da Funai  (proc. 3115/81) e no documento do indigenista Sebastião Amâncio da Costa (1982), no ano de 1962, um grupo de balateiros encontrou um grupo de índios no igarapé Cidade Velha, afluente da margem direita do alto Jatapu. Alguns remanescentes desse contato foram atraídos e levados ao Posto Indígena (PIN) de Jatapu, onde viveram até 1982. Segundo informações do grupo indígena atraído ao PIN de Jatapu, soube-se que havia, naquela ocasião, grande número de índios Karara  habitando o rio Cidade Velha, o igarapé das Pedras (afluente da margem direita do alto Jatapu), o igarapé Cidade Encantada (afluente da margem esquerda do alto Jatapu), e os rios Novo, Jatapuzinho e Baracuxi.

Ainda por volta de 1960, uma companhia de extração mineral, a Companhia Siderúrgica da Amazônia (Siderama), instalou-se nas proximidades do PIN de Jatapu, na margem esquerda do rio Jatapu. Um ano depois, segundo relatos orais dos Hixkaryana de Nhamundá, uma epidemia abateu-se sobre os moradores das aldeias do Jatapu, vários morreram e os sobreviventes migraram para a aldeia Kassauá, no rio Nhamundá. No posto de Jatapu ficou apenas uma família karara, composta de pai e um casal de filhos adultos, vivendo no meio de regionais. Por volta de 1975, o PIN de Jatapu foi desativado e, posteriormente, essa família também migrou para o rio Nhamundá.

A partir de 1972, os índios concentrados em torno da Missão Kanashen, na Guiana, iniciaram um processo de dispersão: um grupo migrou para a região do rio Anauá no Estado de Roraima; outro migrou para a aldeia Araraparu no sul do Suriname; e um terceiro foi para o rio Mapuera, no Estado do Pará. As famílias hixkaryana que permaneceram no rio Nhamundá, então, apoiaram o retorno dos “parentes” para o Mapuera, fornecendo-lhes farinha e mudas para a abertura de novas roças de mandioca, banana, cana, cará, abacaxi etc. Além disso, aumentou e solidificou-se a rede de casamento e trocas rituais entre os  Hixkaryana da aldeia de Kassauá e os outros grupos indígenas recém-chegados à nova aldeia de Mapuera.

Em 1970, a Funai instalou-se em Cachoeira Porteira (rio Nhamundá) e, em 1971, na aldeia Kassauá (rio Nhamundá). Em 1977, o SIL deixou a área. A Funai, sob a administração do chefe de Posto de Kassauá, Raimundo Nonato, assumiu os serviços de saúde e educação. Além disso, passou a ser a provedora para os índios, por meio da instalação de uma cantina, de produtos industrializados (sal, açúcar, munição, ferramentas de trabalho nas roças etc.), e em troca, comercializava na cidade  produtos nativos, como farinha, artesanato, e, sobretudo, castanha do Pará. Nesta lógica administrativa e política da Funai, os índios deveriam evitar ao máximo o contato com os brancos e com as cidades (inclusive o trato com o dinheiro), com o objetivo de preservar sua língua e costumes e de impedir o acesso a hábitos não-indígenas, além de evitar as doenças. Esta filosofia implantada na área subsistiu até o final da década de 1980.

Hixkaryana, rio Mapuera, Terra Indígena Nhamundá-Mapuera. Foto: Protásio Frikel, 1951
Hixkaryana, rio Mapuera, Terra Indígena Nhamundá-Mapuera. Foto: Protásio Frikel, 1951

A partir da década de 1980, com a regularização fundiária e a demarcação da Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, os moradores da aldeia Kassauá começaram a se dispersar e novas outras aldeias foram formadas rio abaixo: Cachoeirinha, Cachoeira Porteira, Jutaí, Riozinho e Cafezal.

A partir da década de 1990, com a ausência do SIL e da pouca presença da Funai na área, os Hixkaryana passaram a visitar de forma mais frequente as cidades da região (Nhamundá, Parintins e Manaus), seja para obter recursos financeiros através da venda de seus bens (artesanato, farinha e castanha do Pará), seja para procurar  assistência à saúde e à educação. Muitos jovens hixkaryana foram estudar na cidade de Nhamundá. No final da década de 1990, foi criado o Conselho Geral dos Povos Hexkaryana (CGPH).

Na década de 2000, houve um movimento de dispersão ainda maior a partir da aldeia de Kassauá. Novas aldeias foram fundadas fora da Terra Indígena Nhamundá/Mapuera e fora da Terra Indígena Trombetas/Mapuera, em um movimento de aproximação das aldeias com as cidades e suas benesses, as políticas públicas de assistência e bens de consumo. Ao mesmo tempo, este movimento teve como objetivo reocupar as terras tradicionais no médio rio Nhamundá pelos Hixkaryana. De cima para baixo, as novas aldeias são: Matrinxã, Gavião, Torre, Areia e Belontra.

Em 2002, a sede do PIN Nhamundá, na aldeia Kassauá, foi transferida para a cidade de Nhamundá. Neste mesmo ano, sob a liderança de Yereyere e de seu genro, Wayarafan, parte dos Hixkaryana retorna para o rio Jatapu, abrindo duas novas aldeias, uma chamada Santa Maria (onde funcionou até o início da década de 1970 o PIN Jatapu) e, um pouco mais acima, outra chamada Bacaba.

No início de 2010, depois de um conflito interno na aldeia de Santa Maria, o grupo local se dividiu: houve um desentendimento entre Wayarafan e seu sogro, Yereyere, sendo que a família do primeiro (incluindo pai, mãe e filhos casados e solteiros) deixou Santa Maria e fundou uma nova aldeia no rio Nhamundá, chamada Cupiúba.

Regularização das terras hixkaryana

A Terra Indígena Nhamundá-Mapuera está localizada nos estados do Amazonas e do Pará, nos municípios de Faro, Oriximiná e Nhamundá. O primeiro Grupo de Trabalho (GT) para estudo e delimitação dessa Terra Indígena foi formado em 1976, pelo projeto Funai/Radam, o qual delimitou, na época, uma área de 950.000 hectares. Um segundo GT de identificação da área foi criado pela Portaria 920 (12 de janeiro de 1981) com a finalidade de completar os dados da equipe anterior. A antropóloga coordenadora desse último GT, Maria da Penha Cunha de Almeida (1981a), argumentou, na ocasião, a necessidade de reajustar a proposta da equipe Funai/Radam, a fim de incluir, nos limites da Terra indígena Nhamundá-Mapuera, as roças indígenas localizadas em ambos os lados do rio Mapuera.

Por outro lado, apesar da antropóloga ter constatado que os Hixkaryana costumavam pescar no rio Jatapu, além do fato de terem habitações permanentes neste rio até o início dos anos de 1970, essa área do rio Jatapu foi excluída dos limites da TI Nhamundá-Mapuera. Não obstante, o mesmo relatório de identificação constatou que, nas cabeceiras do rio Jatapu, existiam três aldeias de índios arredios. Conforme afirmara Maria da Penha C. de Almeida (1981a: 183), essas áreas eram bem próximas, e os Hixkaryana costumavam ir ao Jatapu em expedições de pesca, perambulando, com frequência, para visitar aqueles índios arredios; por isso, foi sugerida “a criação futura de um parque, para se evitar futuramente, problemas de invasão de Terras indígenas”.

Após esses estudos, a TI Nhamundá-Mapuera, com um total de 1.022.400 hectares, foi declarada como de posse permanente dos grupos Hixkaryana, Kaxuyana, Waiwai, Katuena, Mawayana e Xereu, e determinada sua demarcação em 25 de novembro de 1982. No entanto, um novo Grupo de Trabalho interministerial foi criado em 17 de março de 1983 a fim de examinar a pertinência da proposta de demarcação citada acima. Esse GT constatou a imemorialidade da ocupação indígena e recomendou a demarcação de suas terras. Após sua demarcação, a TI Nhamundá-Mapuera teve seu decreto de homologação publicado no dia 18 de agosto de 1989, com uma área total de 1.049.520 hectares.

A Terra Indígena Trombetas/Mapuera, contígua à Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, teve o início do seu processo regulatório com a interdição da área em 1987, em função da presença constatada de vários grupos indígenas isolados no interior de seus limites. Os estudos de identificação e delimitação desta área iniciaram-se no final de 2000 e foram concluídos em 2004, sendo a Portaria Declaratória do Ministério da Justiça assinada no dia 16 de setembro de 2005, com área total de 3,97 milhões de hectares. Tal processo foi concluído no dia 21 de dezembro de 2009 com o Decreto de Homologação da Presidência da República. Esta Terra Indígena, que se somada à Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, chega a um total de mais de 5 milhões de hectares, contudo, não inclui as aldeias que estão no médio rio Nhamundá (aldeias Matrinxã, Gavião, Torre, Areia, Cupiuba, Belontra) e do médio rio Jatapu (Santa Maria e Bacaba). O relatório de identificação e delimitação da TI Trombetas/Mapuera propôs que estas áreas fossem consideradas num futuro estudo para demarcação de uma nova terra, que seria denominada Médio Trombetas-Jatapu, que considerasse também a ocupação tradicional dos  Kaxuyana no rio Cachorro.

Organização social

A regra de residência da sociedade hixkaryana é matrilocal (sinônimo de uxorilocal, norma que leva o casal a morar na casa dos pais da noiva ou nas suas proximidades) e a filiação é bilateral (onde o sistema de descendência e/ou de transmissão de direitos e obrigações é traçado tanto pela linha paterna quanto pela linha materna). Por ali não há a figura propriamente do chefe ou do cacique, mas a do “dono” da aldeia, aquele que possui uma liderança (ainda que tênue ou transitória) pelo fato de ser generoso, possuir as maiores roças, ou, ainda, de conservar próximos a si os genros e, eventualmente, os irmãos. Este “dono” da aldeia pode ainda acumular a função de xamã (curador). Por outro lado, o feiticeiro –  aquele que tem poderes sobrenaturais e é capaz de usá-los contra outra pessoa, às vezes até causando-lhe a morte – é quase sempre identificado como uma pessoa “de fora”, de um outro grupo ou de uma outra aldeia (sempre em relação ao grupo afetado). Das acusações de feitiçaria, frequentemente surgem divisões dos grupos locais, que fundam novas aldeias. As razões para se criar uma nova aldeia também podem ser atribuídas ao esgotamento dos recursos de caça e coleta, às pragas nas roças, ou ainda, à morte de um membro importante do grupo. Seja por uma razão ou outra, aproximadamente uma aldeia, neste modelo tradicional, se desfaz a cada cinco anos, criando novos arranjos nas unidades locais.

Mas como e por quais critérios estes grupos locais se identificam?

Quando perguntamos a algum morador indígena no rio Nhamundá a qual etnia ele pertence, muito provavelmente ele vai responder sem hesitar que é Hixkaryana. Mas, se a conversa se alongar, ele vai dizer que é Kamarayana, ou Karahawyana, ou Yukwarayana, ou Xereu, ou Xowyana. Muitos destes grupos podem ter suas raízes em outros grupos não mais existentes, que possuíam diferenças dialetais mínimas e compartilhavam um mesmo padrão cultural e de organização social. Se esta diferenciação ainda existe hoje no meio do grande aglomerado “hixkaryana”, ela não deve ser buscada em uma ideia de “filiação étnica” (muito menos na possibilidade dela apontar para um passado de linhagens clânicas), mas em uma memória  dos lugares/espaços (diferentes igarapés e rios afluentes do médio rio Jatapu, do alto rio Nhamundá, do médio e baixo rio Nhamundá, e afluentes da margem direita do rio Mapuera) onde viviam os antepassados destes grupos.

A seguir breves relatos desses grupos locais a partir de exemplos tirados da história de vida de alguns Hixkaryana.

Relatos das redes de grupos locais

Wirhta

Wirhta Hixkaryana, aldeia Riozinho, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010Wirhta Hixkaryana, aldeia Riozinho, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010

O pai de Wirhta (Kurupumna) e a mãe (Pexu) eram Hixkaryana. Wirhta nasceu nas cabeceiras do rio Nhamundá, numa aldeia denominada Watkîwî, situada no igarapé  Warua. Ali viviam muitos Hixkaryana e Xowyana, que mantinham contato estreito com os índios do rio Jatapu. Wirhta teve sua primeira filha ainda na aldeia Watkîwî. Quando a segunda filha estava para nascer, o pajé lhe aconselhou, “você não pode ver sangue, não fique perto da sua mulher”, e mandou-o para uma outra aldeia. Enquanto ele estava lá, sua esposa e o bebê morreram durante o trabalho de parto. Seu tio, Mohtî, queria que Wirhta se casasse novamente com uma outra mulher da aldeia de Watkîwî, mas esta não queria, pois se ela já o havia rejeitado antes, não seria agora  que ela iria aceitá-lo. Nesta época [fim da década de 1950], os índios Waiwai, que tinham sido levados do alto do rio Mapuera para o sul da Guiana (aldeia Kanashen) por missionários evangélicos americanos, já tinham sido convertidos ao cristianismo, e faziam expedições até a região do rio Nhamundá com o objetivo de levar também para lá os  Hixkaryana. Wirhta, sem uma esposa, decidiu seguir para a Guiana com os Waiwai e lá casou-se novamente com uma mulher karapawyana, que antes morava no rio Jatapu, com a qual teve vários filhos. Os filhos deste casamento viveram e cresceram entre os Waiwai, aprenderam a falar sua língua e sentiram-se, por isso, mais ou menos membros do grupo waiwai. Por volta de 1972, com a expulsão dos missionários evangélicos da Guiana por um governo de tendência socialista, os índios de lá se dispersam: um grupo foi para o rio Anauá (no estado de Roraima), um segundo grupo foi para a Missão Araraparu (no Suriname), um terceiro grupo foi para o rio Mapuera (estado do Pará), enquanto um quarto grupo permaneceu no sul da Guiana. Wirhta seguiu o caminho daqueles que foram para o rio Mapuera e lá permaneceu até 1985. Neste ano, um de seus filhos veio a falecer, e, fugindo de um possível ato de feitiçaria, mudou-se novamente para o rio Nhamundá, aldeia Kassauá, na companhia dos filhos não-casados. Dali, um pouco mais tarde, mudou-se para a aldeia Riozinho, no rio Nhamundá, abaixo de Kassawá, onde mora até hoje.

Copoi

Copoi Hixkaryana, aldeia Riozinho, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010
Copoi Hixkaryana, aldeia Riozinho, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010

Nasceu e cresceu nas cabeceiras do rio Nhamundá, já próximo ao rio Jatapu. A aldeia da infância chamava-se Matika, localizada bem no meio da floresta (naquela época, por temer a invasão e perseguição dos brancos, os Hixkaryana faziam suas aldeias bem afastadas dos rios maiores). Um pouco mais tarde, mudou-se para aldeia Marawa, já quase na margem esquerda do médio rio Jatapu. Descendo este rio, fundou a aldeia Eremtu, também na margem esquerda do médio Jatapu. Esta funcionava como uma espécie de centro de várias aldeias periféricas localizadas rio acima e nos igarapés - lá havia muita gente morando, sobretudo, de origem hixkaryana e xowyana. Por muito tempo, Copoi ficou morando alternadamente nestas duas aldeias: Marawa e Eremtu. Em 1963, o antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) instalou um posto de atração perto da Cachoeira Santa Maria, na margem direita do rio Jatapu, atraindo para lá a família de Copoi, assim como várias outras que se encontravam rio acima. Naquela época o rio Jatapu era muito visitado por balateiros e gateiros (caçadores de peles de animais selvagens, sobretudo, de onça). A doença chegou, muitos índios morreram, outros deixaram a aldeia-posto de Santa Maria e regressaram para as cabeceiras do rio Nhamudá. Por muito tempo, Copoi ficou andando de um lado para outro, do rio Nhamundá para o rio Jatapu, e vice-versa. Havia poucas mulheres entre os sobreviventes, sendo que Copoi teve que se contentar com uma mulher xereu, a única do grupo que lhe foi dada. Mais tarde, seu primeiro filho, Pedro Arwoka, nasceu na aldeia Mutuma, já no rio Nhamundá. Ao contrário do que aconteceu com muitas famílias hixkaryana,  a de Copoi não foi atraída pela missão evangélica nas Guianas (atual Guiana Inglesa), tendo sempre permanecido nas aldeias do rio Nhamundá, até se estabelecer na aldeia Riozinho, onde mora .

Ahtxe

Ahtxe Hixkaryana, aldeia Torre, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010
Ahtxe Hixkaryana, aldeia Torre, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010

Eu nasci na aldeia Krikrikî, no Igarapé Warua, margem direita do alto rio Nhamundá. Naquele tempo, chegaram lá os brancos, exploradores de pau-rosa, levaram muitas doenças, sarampo, diarreia, muita gente morreu. Dali, mudamos para o igarapé Kuruni, para uma aldeia chamada Tohkuri, onde já havia plantação, mandioca, banana; outro pessoal já morava lá, a família de Pedro Waraka já morava lá. Depois fui morar na aldeia de Kassauá [margem direita do rio Nhamundá], junto com a família de Candinho Kaywerye. Ficava um tempo em Tohkuri e um tempo em Kassauá. Depois abri uma roça do outro lado do rio [margem esquerda], no igarapé Matariu, dei o nome naquele lugar de Mekutîrî [lugar do macaco]. Ia fazer minha aldeia lá, mas, naquela ocasião, chegou por lá Ewká [xamã e líder waiwai que tinha sido convertido ao cristianismo no início da década de 1950], e disse-me que não podia mais morar distante, longe da aldeia de Kassauá, de onde tinham chegado os missionários [o casal Derbyshire, do SIL, em 1958]. Ewká disse que eu tinha que morar com Candinho Kaywerye [liderança que estava sendo “preparada” pelos missionários], que era “dono” de Kassauá. Mais tarde chegou a Funai em Kassauá (1971), trazendo anzóis, calção, espingarda, mercadorias, tudo que a gente precisava, por isso, todo mundo se concentrou lá. Funai ficou lá muito tempo, tinha muito material na aldeia. Era bom. Até que um dia o chefe de posto, Raimundo Nonato, mexeu com a mulher do dono da aldeia, Candinho. Ele não gostou disso, chamou uma reunião, disse que ia expulsar o chefe da Funai. Com isso, acabou tudo em Kassauá, acabaram todas as mercadorias que a gente tinha acesso com a Funai. Até hoje o pessoal tem saudade daquele tempo da Funai, tinha motor de luz, era iluminado. Quando Funai foi embora [final da década de 1980], acabou tudo, não tinha mais nada, faltava facão, foice, não tinha quem comprasse nossa castanha [o chefe de Posto da Funai, Raimundo Nonato, intermediava a venda da castanha para os Hixkaryana]. Isso me deixou com muita dor. Será que vou embora daqui? Pensei. Fundamos a aldeia Jutai, rio abaixo, lá vivi 10 anos. Todo mundo de Jutai gostava de mim, eu dava muita coisa pro pessoal lá, mas o cacique de lá era outra pessoa. Pensei: por que não fundar uma aldeia para mim? Então, resolvemos fundar esta aldeia aqui [já no início da década de 2000], a aldeia Torre [ fora da Terra Indígena demarcada pela Funai]. Não estamos roubando terra de ninguém, pois aqui, no passado, moravam meus parentes, meus antepassados. Eu quero demarcar esta terra, eu mesmo vou demarcá-la, se a Funai não fizer, porque aqui eu vou ficar morando, aqui era onde meu povo morava no passado.

Txikirifu

Txikirifu Hixkaryana, aldeia Torre, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010
Txikirifu Hixkaryana, aldeia Torre, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010

Amkoroci era a mãe da minha mãe (Xuari). Ela contava para Xuari, que contava para meu pai (Joaquim Wanawa), que há muito tempo atrás os pais dela viviam lá embaixo, perto da cidade de Faro. Naquele tempo chegaram lá os madeireiros, os brancos. Houve muita guerra, e os antigos vieram rio acima [rio Nhamundá, acima da cachoeira da Fumaça, ou Kaximo na língua hixkaryana]. Minha avó, mãe de Xuari, foi parar naquela aldeia chamada Mutuma, que foi fundada pelo pai de Joaquim Wanawa, que era meu pai. Depois fundaram um acampamento de caça e pesca na Cachoeira da Fumaça, e fizeram uma roça do outro lado do rio (margem esquerda). Lá ficamos morando, era nossa aldeia, chamada Kaximo. Naquele tempo [1958], chegou lá o missionário Desmond Derbyshire, acompanhado de um outro branco, chamado Mário Rossy, que já conhecia os Hixkaryana. Derbyshire chegou trazendo a Bíblia de Deus. Mas meu pai (Joaquim Wanawa), que já tinha sido ensinado pelos padres católicos, lhe disse: “Não posso me entregar para você, já sou dos padres, vou entregar-lhe apenas meu filho mais velho, Juno, ele vai aprender a palavra de seu Deus”. Naquela época, quando Desmond chegou lá na nossa aldeia, tinha morrido uma pessoa, e todo mundo achava que era Desmond que tinha feito feitiço, ficaram com muito medo dele. Passado um tempo, meu pai morreu na aldeia Kaximo, lá onde ele ainda hoje está enterrado. Resolvemos abandonar esta aldeia, subimos o rio, nos instalamos novamente em Mutuma. Lá, Desmond disse que éramos poucos, devíamos subir até a aldeia Kassauá e nos juntar às famílias de Pedro Waraka e Candinho Kaywerye. A Funai já estava lá em Kassauá, onde cresci até meus 20 anos de idade. Dali, baixei com a família de Ahtxe para a aldeia de Jutai, onde moramos 10 anos, onde meu filho casou-se com a filha de Ahtxe. Quando o sogro dele desceu o rio e fundou a aldeia Torre, meu filho me disse: “Eu vou baixar com meu sogro, porque meu sogro vai fazer uma nova aldeia, tenho que ir com ele.” E lhe respondi: “Tá bem meu filho, então vamos descer toda nossa família, porque lá embaixo é o lugar que meus avós moravam”. Agora estamos todos aqui, precisamos abrir mais roças, precisamos de terra para caçar, pescar, por isso precisamos demarcar nossa terra. Nós somos daqui, no passado meus avós foram empurrados rio acima, mas somos daqui”.

População e aldeias

Habitação dos Hixkaryana, aldeia Torre, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010
Habitação dos Hixkaryana, aldeia Torre, Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, Amazonas. Foto: Ruben Caixeta, 2010

O modelo tradicional de aldeia hixkaryana era constituído basicamente por uma casa comunal, no interior da qual morava toda a população da aldeia (entre 30 a 50 pessoas), dividida em famílias nucleares. A duração da aldeia era de cerca de 4 a 6 anos. Este modelo foi fortemente abalado a partir da chegada na região da frente missionária do SIL (Summer Institute of Linguistics), em 1958 e, mais tarde,  no início da década de 1970, da Funai. Estas duas frentes contribuíram para que dois processos ocorressem: de um lado, houve um grande crescimento da população em função da chegada de vacinas e de um melhor atendimento à saúde; de outro lado, esta população concentrou-se em torno de uma grande e única aldeia, Kassauá.

Contudo, a partir da década de 1980 e, sobretudo, da década de 2000, um intenso movimento de dispersão voltou a operar a partir da aldeia Kassauá e novas aldeias foram fundadas: 10, no rio Nhamundá, e 02, no rio Jatapu. Nunca é fácil determinar exatamente o montante de moradores de cada uma destas aldeias, uma vez que, para além dos nascimentos e casamentos, com a regra de residência matrilocal (sinônimo de uxorilocal, norma que leva o casal a morar na casa dos pais da noiva ou nas suas proximidades) em funcionamento, o processo “tradicional” e ativo de fusão e dispersão dos grupos locais conduz sempre a arranjos e rearranjos das famílias em função de suas alianças e, consequentemente, alteram-se os locais de moradia.

A seguir quadros estimativos da população e das aldeias hixkaryana em 2010.

Aldeias  no rio Nhamundá

           '(de cima para baixo)
Número de pessoas
Kassauá 570
Cachoeira Porteira 80
Jutaí 57
Riozinho 88
Cafezal 53 (a maioria é composta de membros do grupo kaxuyana)
Matrinxã 24
Gavião 18
Torre 22
Areia 17 (a maioria é composta de membros do grupo kaxuyana)
Cupiúba 16
Belontra 12

 

Aldeias no rio Jatapu Número de Pessoas
Santa Maria 38
Bacaba 17

OBS: Total de moradores (Hixkaryana) no rio Nhamundá e rio Jatapu: 942 pessoas.

As aldeias Areia e Cafezal são formadas basicamente por moradores pertencentes aos grupos Kaxuyana e Kahyana, havendo ali algumas famílias misturadas entre Hixkaryana/ Kaxuyana/ Kahyana 

Crescimento populacional

 

Ano Número de pessoas
2010 1012 pessoas (inclui as famílias “misturadas” com os índios kaxuyana das aldeias Cafezal e Areia, em um total de 70 pessoas)
2002 900 pessoas (Fonte: Caixeta de Queiroz, 2008: 258)
1981 307 pessoas (Fonte: Almeida, 1981)
1978 291 pessoas (Fonte: Nonato Nunes, 1978)
1972 140 pessoas (Fonte: Nonato Nunes, 1978)
1959 100 pessoas (Fonte: Derbyshire, 1965: 05)

 

Grupos coresidentes

No rio Nhamundá há moradores pertencentes a dois outros grupos indígenas que, apesar de serem originários de outras áreas geográficas e de falarem línguas distintas, foram incorporados por meio da convivência e/ou do casamento com os Hixkaryana. São eles: Kaxuyana e Karara.

Os Kaxuyana

Os Kaxuyana são habitantes originários do rio Cachorro, um afluente da margem direita do rio Trombetas. O nome “Kaxuyana”  significa gente (yana) habitante do rio Kaxuru (ou rio Cachorro). Estes índios viviam ali até 1968, quando estavam diminuindo vertiginosamente em função das epidemias e da falta de assistência à saúde. O grupo então deixou o território tradicional para se dividir em duas frentes migratórias: um grupo maior, de cerca de 50 pessoas, deslocou-se para a Missão Tiriyó, no alto Paru de Oeste; enquanto uma família de 7 pessoas juntou-se aos Hixkaryana, no rio Nhamundá. O grupo que foi para o rio Nhamundá instalou-se provisoriamente na aldeia Kassauá, mais tarde foi habitar perto de Cachoeira Porteira, um pouco mais abaixo. Já na década de 1980, depois da demarcação da Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, o grupo, já bastante ampliado em função dos casamentos interétnicos com os Hixkaryana, fundou uma aldeia “própria”, mais abaixo, denominada Cafezal. Desta aldeia, no final da década de 1990, um grupo desmembrou-se e, sob a liderança de Kanahtxe (um índio kahyana, casado com uma mulher kaxuyana), formou uma nova aldeia, Areia, abaixo da aldeia Cafezal, no rio Nhamundá, fora da TI Nhamundá/Mapuera. A aldeia Cafezal chegou a contar com uma população de 74 pessoas em 2002.

Em 2003, o líder kaxuyana João do Vale, que tinha migrado para a missão Tiriyó em 1968, voltou para local de habitação tradicional, no rio Cachorro, e lá refundou a aldeia Santidade. Um pouco mais tarde, este grupo reinstalado no rio Cachorro atraiu para lá parte do grupo kaxuyana da aldeia Cafezal, liderada por Joãozinho Printxe. Na ocasião, os planos de Printxe eram fazer uma aldeia própria no rio Cachorro, autônoma daquela de Santidade, o que ocorreu no início de 2009, com a fundação da aldeia Chapéu (com 38 pessoas em 2010). Outro irmão de Joãozinho Printxe, casado com uma mulher hixkaryana, não quis voltar para a nova aldeia no rio Cachorro e permaneceu vivendo com sua parentela na aldeia Cafezal.

Veja o verbete específico sobre os Kaxuyana

Os Karara

Protásio Frikel (1958: 136-137), com base em suas informações de campo, tece o seguinte comentário, na década de 1950:

Alguns ‘balateiros’ [brancos exploradores de peles de animais e produtos vegetais da selva amazônica] subiram o Jatapu e, chegando a um afluente, encontraram uma maloca onde havia pequenas plantações. Ante a sua aproximação, os índios fugiram. Impelidos pela fome, os balateiros apoderaram-se de algumas bananas maduras e batatas doces, e ali deixaram, como pagamento, um terçado. E, como achassem a situação um tanto equívoca – pois ficaram desconfiados com a fuga repentina dos índios – regressaram a sua canoa. Pouco depois, apareceu ali um grupo de homens com bordunas. Andavam inteiramente nus, eram de tez bastante clara e usavam barba (devido a esse pormenor, creio que se tratava dos Karara, dos meus informantes indígenas). Muito irritados, injuriavam os balateiros, exaltando-se progressivamente, sacudiam as bordunas e acabaram por lançar o terçado a seus pés. A situação tornou-se crítica. Então, meu informante, armando-se de coragem, aproximou-se deles e, por meio de sinais e gestos, explicou que tinham tirado as bananas simplesmente porque estavam com fome. Os índios compreenderam e, aos poucos, se acalmaram. Estabeleceu-se até um contato mais ou menos amistoso entre eles, tendo os índios lhes dado mais bananas. E, em seguida, foram-se embora. Todavia, não quiseram levar o terçado, em hipótese alguma, e nem sequer tornaram a tocá-lo. Os balateiros, porém, desistiram de esperar e se retiraram.

Próximo a essa mesma região, contatos muito mais violentos, entre balateiros e possíveis Karara, ou seus parentes, são relatados por Sebastião Amâncio (1982). Conforme dados oriundos do extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), há os seguintes relatos sobre o contato dos Karara com os não-indígenas:

  • Em 1942 um grupo de extratores de balata foi surpreendido por um grupo de índios desconhecidos na área do rio Novo, afluente da margem esquerda do alto Jatapu. Nesta ocasião integrantes do grupo extrativista, por medo, pânico entre outros fatores, no ato do contato, passaram a alvejar indiscriminadamente com arma de fogo o grupo indígena, abandonando em seguida a área, que até hoje é evitada pelas frentes pioneiras de penetração. Conforme dados existentes, há indivíduos que sobreviveram a esse contato ;
  • Em 1962 novo grupo de balateiros encontrou um grupo de índios no igarapé Cidade Velha, afluente da margem direita do alto Jatapu, ocasião em que foi raptada uma índia, posteriormente tomada sob a custódia de servidores do Posto Indígena de Atração Jatapu que atuava na área;
  • Em 1963 foi organizada uma expedição pelo antigo SPI, a qual foi acompanhada e orientada pela índia raptada. Ela conduziu os expedicionários até a maloca de seu povo, o local era habitado por dez índios, de ambos os sexos e idades diversas, sendo todos atraídos e levados ao PIA Jatapu;
  • Segundo informações do grupo indígena atraído para o PIA Jatapu, havia um grande número de índios karara habitando o rio Cidade Velha e o igarapé das Pedras (afluentes da margem direita do alto Jatapu), e os rios Cidade Encantada, Novo, Jatapuzinho e Baracuxi (afluentes da margem esquerda do alto Jatapu).

Em 2002, foram encontradas duas remanescentes dos Karara, na aldeia Jutai, na TI Nhamundá-Mapuera: Esese (“batizada” pelos funcionários do SPI de Maria Karara) e sua filha Xenyexenye. Elas  contaram um pouco da história do grupo: eles eram antigos moradores do rio Carara ou Cidade Velha (afluente da margem direita do alto Jatapu). Quando moravam em uma aldeia situada no rio Quixubim, afluente da margem direita do rio Carara, foram contatados pelos funcionários do SPI e atraídos para o Posto do Jatapu, juntamente com vários outros Hixkaryana e Xowyana do rio Jatapu. Esese conta que nesse Posto morreram os pais de seu pai (Caitako Akolo, pai, Txurye, mãe), sua mãe Ateo e sua irmã Nazaret (que havia se casado com um “branco” e tivera um filho, falecido também em Jatapu). Viveram ali até depois de 1960, quando a chegada na área de uma companhia exploradora de minério, Siderama, trouxe várias doenças e mortes, obrigando os índios do Posto Jatapu a migrarem em direção às aldeias do rio Nhamundá. José Karara, pai de Esese, depois da morte de sua primeira mulher – a índia Ateo Karara, com quem teve, além de Esese, Francisco e Nazaret –, casou-se com uma Hixkaryana, chamada Kuiwi. Ele teve seis filhos em seu segundo casamento.  Faleceu na aldeia Jutai, deixando ali sua segunda esposa e seus filhos. Francisco, o irmão de Esese, depois que todos os parentes hixakaryana deixaram o Posto de Jatapu, ficou vivendo ali sozinho por um certo tempo, até que também mudou- se e foi morar na cidade de Maués, onde se casou com uma mulher “branca”. Xenyexenye é filha de Esese com um índio Sataré, Vitor, que se mudou para Manaus. Hoje, Esese vive na aldeia Jutai junto com sua filha Xenyexenye, seu genro, um Hixkaryana, e os filhos deste casal.

Modos de vida tradicionais e suas transformações

O padrão tradicional das aldeias hixkaryana, tal como aquele da região das Guianas (sobretudo para os grupos do complexo cultural Tarumã/Parukoto), era constituído por uma grande e única casa comunal, no interior da qual habitavam famílias extensas matrilocais (sinônimo de uxorilocalidade, norma que leva o casal a morar na casa dos pais da noiva ou nas suas proximidades). Não raro, ao lado dessa casa havia um ou dois abrigos destinados ao preparo de alimentos, à fabricação de artesanato e aos visitantes da aldeia. A casa comunal abrigava entre 30 e 50 pessoas. As aldeias eram dispersas, situadas próximas a um rio ou a um igarapé, e, geralmente, tinham uma duração de cerca de 4 a 6 anos.

Com a chegada dos missionários na região, em 1958, e com a conversão do grupo, este padrão sofreu uma transformação. Hoje em dia, as famílias nucleares moram em casas separadas. Muito embora a estrutura arquitetônica das construções ainda obedeça, na sua maior parte, ao estilo da casa tradicional (isto é, uma casa no formato cônico levantada diretamente a partir do chão, coberta de palhas de palmeira e sem repartimento interno), muitas das casas individuais começam a obedecer aos traços e formas da arquitetura regional (estrutura de palafitas, divisão interna em mais de um cômodo, cobertura de telhas de amianto ou zinco). Porém, ainda hoje toda aldeia  deve ter idealmente uma casa grande (umaná), onde ninguém mora, mas onde são realizados os eventos públicos (tais como reuniões com membros dos diversos órgãos governamentais), as festas e as danças.

As aldeias passaram a agrupar muito mais gente e a durar muito mais tempo do que o padrão antigo permitia. A aldeia Kassauá, por exemplo, contava em 2010 com mais de 500 pessoas, e está instalada no mesmo local há mais de 50 anos. Contudo, sobretudo a partir de 2000, iniciou-se uma grande dispersão na região do rio Nhamundá, reatualizando-se o modelo tradicional de fusão e dispersão dos grupos locais.

Atualmente, no modelo ideal de aldeia, deve haver ainda uma igreja ou casa de cultos, um posto de saúde e uma escola.

Várias práticas tradicionais foram abandonadas em função da ação missionária, entre elas, a não utilização do tabaco, das bebidas fermentadas (o caxiri), bem como o abandono de  rituais e festas durante os quais tais bebidas eram consumidas, das relações poligâmicas e práticas de feitiçaria. Talvez o maior abalo na vida tradicional tenha sido produzido a partir do enfraquecimento ou, pelo menos, ofuscamento do xamanismo, já que em torno dele todo um contexto de práticas de cura e agências mitológicas era mobilizado.

Mais uma vez, nem tudo desapareceu, pois, ainda hoje, pessoas continuam sendo acusadas de feitiçaria e muitos eventos são explicados a partir de uma cosmologia nativa. Da mesma forma, se boa parte dos rituais tradicionais não são mais praticados, há toda uma encenação da relação entre os Hixkaryana e o mundo exterior (ou entre o “nós” e os “outros”) que continua ativa durante as festividades cristãs (natal e páscoa) ou durante as chamadas “conferências” das igrejas locais, nas quais grupos viajam longas distâncias  para festejar juntos os espíritos cristãos, que, quase sempre, estão amalgamados a um fundo cosmológico indígena.

Por fim, cabe ressaltar que, pelo menos no plano da organização social, mais propriamente, da regra de residência uxorilocal (sinônimo de matrilocal, norma que leva o casal a morar na casa dos pais da noiva ou nas suas proximidades), pouca coisa mudou em relação ao passado: esta regra marcante que implica nos serviços do genro para o sogro e na obrigação das famílias se organizarem e se distribuírem em termos desta regra para as atividades de subsistência.

Cosmologias

O universo mitológico hixkaryana é muito familiar  à mitologia sul-americana. Em geral, os mitos falam sobre um passado pré-cósmico no qual não havia distinção rígida entre humanos e não-humanos, ou melhor, um passado no qual a condição humana era coextensiva à natureza. Além disso, as narrativas míticas revelam humanos na condição de animais, tentando domesticar as plantas, adquirir o fogo de cozinha, enfim, tentando viver em sociedade tal como muitos outros animais, paradoxalmente, já faziam. Dois outros temas importantes são: as diferenças mínimas construídas ou experimentadas, no plano do pensamento, a partir de figuras ou estruturas semelhantes, como no exemplo dos irmãos gêmeos; ou as diferenças mínimas entre membros da mesma espécie, como os gaviões ou as araras.

A seguir, dois mitos que giram em torno dessa temática. O primeiro deles, intitulado Mawari e Woska, fala desses “cunhados” semelhantes e diferentes, que são os antepassados dos Hixkaryana, e foi contado em abril de 2010 pelo “dono” da aldeia Matrinxã, Antônio Mauasa.  Os Waiwai também possuem uma versão deste mesmo mito para falar de seus antepassados. O segundo é intitulado Yaimo e também foi narrado em abril de 2010 pelo “dono” da aldeia Torre, Afonso Ahtxe.

Mawari e Woska (por Mauasa)

Naquele tempo, na aldeia dos Kamarayana [“povo onça”], uma velha protegia duas pequenas criaturas que tinham nascido a partir de dois ovos de jabuti: Mawari e Woska. Ela colocava-os para crescer debaixo do telhado, das folhas que cobrem o teto da casa e os mantinha ali em segredo. Pela manhã, a pedido da velha kamarayana, as onças da aldeia saíam para caçar. A onça pintada tomava uma trilha, a onça vermelha pegava outra trilha. Logo em seguida, de repente, por volta das 7 horas da manhã, a onça pintada já estava de volta, logo trazia sua caça. Já a onça vermelha só voltava com sua caça no final do dia, bem mais tarde.

Quando a onça pintada entrava na aldeia, entrava na sua casa, o seu estômago começava a rugir: grou, grou, grou! “Estou sentido cheiro de gente, quem está aí?”. A velha respondia: “Não, não há ninguém aqui.” Mais tarde, chegava a onça vermelha, e seu estômago também começava a rugir: grou, grou, grou! “Estou sentido cheiro de gente, quem está aí?”. A velha respondia: “Não, não há ninguém aqui”.

No dia seguinte, a velha kamarayana renovava seu pedido para que as onças fossem caçar. Enquanto as onças encontravam-se fora da aldeia, a velha tirava Mawari e Woska do teto da casa e colocava-os no chão para comer e crescer. Quando a primeira onça, a pintada, chegava da caça, o seu estômago novamente começava a rugir: grou, grou, grou! “Estou sentido cheiro de gente, quem está aí?”. A velha respondia: “Não, não há ninguém aqui”. Depois era vez do retorno da onça vermelha, e a mesma pergunta e resposta repetiam-se.

No dia seguinte, o mesmo acontecimento sucedia-se e, assim, dia a dia, as criaturas cresciam, até o dia que não tiveram mais medo das onças e puderam sair elas mesmas para caçar.

Já no meio do mato, Mawari plantava uma árvore de bacaba (kumu), Woska, atrás dele, plantava uma árvore de bacabinha (tatinu); Mawari plantava uma castanheira (tîtko), Woska, atrás dele, plantava um outro tipo de castanheira (awanama); Mawari plantava um pé de buriti (ikako), Woska, atrás dele, plantava um outro tipo de buriti (karanaru); Mawari plantava um pé de banana (tuxkma), Woska, atrás dele, plantava um pé de banana selvagem (1).

Naquele tempo, os dois heróis não possuíam mulher. Mawari foi pescar, e pescou um peixe que era uma mulher, muito bonita, ficou com ela. No dia seguinte, Woska também quis uma mulher, então, Mawari convidou-o para ir colocar timbó no rio. Pegaram uma piranha, que foi dada a Woska. Contudo, quando estavam fazendo sexo, a piranha cortou o pênis de Woska, e este nunca pôde ter filhos.

Naquele tempo, Mawari não tinha roça e buscava mandioca no mato. Ali havia uma árvore que não possuía galhos e nem folhas, era repleta de mandioca. Dizia para sua esposa, vou no mato buscar mandioca. “Onde vai buscar mandioca? Debaixo da terra, onde as mandiocas estão enterradas?”, perguntava a esposa. “Não, lá no mato há uma árvore, basta eu chegar debaixo dela, balançá-la, para que a mandioca caia lá do alto no chão”, respondia o marido. No dia seguinte, a esposa foi no lugar indicado pelo marido onde havia a “árvore” de mandioca, mas nada encontrou. Sozinho, voltou o marido no lugar onde havia a “árvore” de mandioca, balançou-a, do alto caiu o fruto, levou-o para casa. Passou muito tempo para que a mulher desenvolvesse seu próprio jeito de coletar mandioca.

Os antepassados do povo kamarayana são filhos de Mawari, criados numa aldeia do povo kamarayana. Ali aprenderam finalmente a cultivar plantas e a plantar roças. Assim é como é: éramos nós assim mesmos. Éramos nós que éramos assim. É só isso!

Nota: (1) A lógica aqui é que o herói Mawari sempre tenta “plantar” as coisas perfeitas, enquanto Woska, ao imitá-lo, “planta” sempre uma coisa de menor valor ou imperfeita, isto é, desvirtua o ato do irmão.

Yaimo (por Ahtxe)

Antigamente havia um homem que vivia sozinho, era pequeno e magro. Ele pegava seu arco e sua flecha e ia caçar no mato. Debaixo das árvores avistava lá no alto um grupo de macaco guariba. Então, ele, o homem, que era pajé, transformava-se em gavião grande (yaimo), voava para a copa das árvores e abatia o macaco. Descia da árvore, pegava sua flecha e furava sua presa.

Ao retornar para a aldeia, exibia a caça para os seus companheiros: “Olhem o macaco que cacei, olhem o lugar onde acertei a flecha”. Ninguém suspeitava de seu segredo. Uma mulher então pensou: “Vou casar-me com este caçador, não é que ele é bom de caça mesmo?”. Depois disso, chamou o marido: “Vamos caçar guariba?”. Foram. No meio do caminho o marido disse: “Fique aqui, volto daqui a pouco”. De repente, o homem-yaimo já estava lá, debaixo da árvore, furando com a flecha dois macacos já abatidos. De longe, a mulher olhava escondida: “O que será que ele está fazendo? Ele parece um bicho! Será que ele não é gente, está me enganando?”.

De volta os dois para a aldeia, o marido dizia para o sogro e os cunhados: “Vejam o que matamos, guaribas!”. E sua esposa, mandava: “Dê um macaco para o seu sogro, vamos dividir, o outro é para nossa casa”. Depois disso, a mulher contou o segredo para o pai dela: “Meu marido matou sim os guaribas, mas não foi com a flecha”. “É mesmo, será que é verdade?”, perguntou-se o pai. Nisto a filha estava pensando: “Não quero comer essa caça, não foi gente que a matou, foi como se outro bicho a tivesse matado, não quero contaminar meu corpo, a caça que é caçada por outro animal não é a mesma coisa daquela que é caçada pelo homem”.

“É verdade o que a minha filha contou?”, perguntou o sogro ao genro. Este, então, ficou com muita raiva pelo fato da sua mulher ter revelado o segredo. O marido, que era um gavião grande, pensou: “Vou mordê-la, vou matá-la”. Foi assim que um dia, quando a mulher foi buscar batata na roça, o gavião grande agarrou-a pelas costas e voou com ela para a copa de uma árvore grande (wayana). O pai, de longe avistou: “O gavião está levando minha filha, ele subiu com ela lá naquela árvore”.

Na aldeia, o pai da moça conversou com seus parentes: “Minha filha desapareceu, o gavião grande não vai voltar mais com ela. O que vou fazer?”. Reuniu a família: “Vamos lá matar o gavião grande, precisamos de muita gente, ele está muito grande”. O pessoal reuniu-se, armado com arco e flecha. O gavião começou então a rondar a aldeia, aproximou-se, pousou em cima de uma árvore, passou o dia todo lá, sentado, gritando: “Uchim, uchim uchim! Provou de carne de gente, gostou, está querendo mais! Ele, o homem-gavião, não parece gente, é animal mesmo!”. Os caçadores da aldeia, perguntaram-se: “Onde ele está?”; “Está em cima da árvore, lá no alto!”. Chegaram lá debaixo: “Quem vai matar, quem flecha bem?”. “Eu, eu sou bom caçador”, disse um homem. “Está bem, pode matar”, autorizou um outro. A flecha foi atirada, mas muito fraca, e o gavião que estava lá no alto não foi atingido. O gavião estava alegre: “Não vão me acertar!”. Um segundo caçador disse: “Você já errou, dê-me uma flecha mais grossa, arco mais forte, uma flecha mais dura, vou acertá-lo”. Lançou a flecha duas vezes, acertou duas vezes o gavião. Na segunda vez, o gavião abriu as pernas, abriu as asas, e suas penas voaram. Lá de cima da árvore as penas esvoaçaram, espalharam, caíram, formaram outros pássaros, semelhantes ao gavião, entre eles, o papagaio, um gaviãozinho, o karauka (um tipo de águia predadora do mutum), o wikoko (um tipo de águia predadora do tucano, do jacamim e do nhambu), o orinhuru (um tipo de águia maior, predadora do caititu, da cotia, da paca e da cobra grande).

Ahtxe (o narrador do mito) conclui sua narrativa: “Isso aconteceu no passado e é tudo verdade. Quando eu vivia no alto rio Nhamundá, certa vez, fui fazer uma canoa no meio do mato, quando estava de volta para a aldeia, o gavião atacou e levou meu cachorro vermelho, comeu-o. Fui atrás do gavião, queria matá-lo, mas não consegui”.

Nota sobre as fontes

Sobre os Hixkariana não há, até o momento, nenhuma tese acadêmica ou estudo etnográfico sobre sua organização social e cosmologia. Já o estudo da língua hixkaryana é bastante completo, tendo sido realizado a partir de 1958 pelo lingüista e missionário do SIL Desmond Derbyshire (1961, 1964, 1965, 1965/6, 1974, 1975, 1977, 1978, 1979).

Para além disso, muito pouco foi escrito sobre este povo, e quem deseja melhor conhecê-lo é preciso se contentar com as fontes de informações produzidas pelos relatórios administrativos e documentos referentes ao processo de regularização de sua terra (conferir especialmente Almeida, 1981a e 1981b).

A publicação Povos Indígenas no Brasil: Amapá/Norte do Pará (Gallois & Ricardo, 1983) apresenta uma panorama bastante completo sobre a história e a situação do grupo naquela época, início da década de 1980.

Dados mais atualizados podem ser consultados na publicação Trombetas-Mapuera: Território Indígena (Caixeta de Queiroz, 2008), que é uma versão modificada e impressa do relatório de identificação e demarcação da Terra Indígena Trombetas/Mapuera.

Fontes de informação

  • ALMEIDA, Maria da Penha de. Relatório de eleição e delimitação das áreas dos Pls Nhamundá e Mapuera (divisa dos Estados do Amazonas e Pará). Brasília : Processo FUNAI 2989/80, 1981a (f. 46-184).

 

  • ALMEIDA, Maria da Penha de. Relatório referente ao projeto de construção da hidrelétrica de Cachoeira-Porteira (Trombetas) Brasília : Processo FUNAI 3115/81, 1981b (f. 02-42).

 

  •  AMÂNCIO, Sebastião. 1982 ."Comunicação de Serviço nº184/1ª DR - 20/09/82". Processo Funai 3115/81 (f.69-80).

 

  • CAIXETA DE QUEIROZ, Ruben. Trombetas-Mapuera: Território Indígena. Brasília: FUNAI/PPTAL, 2008.

 

  • CORRÊA, Raimundo Nonato Nunes. Relatório do Posto Indígena Nhamundá. 1978.

 

  • DERBYSHIRE, Desmond. Notas comparativas sobre três dialetos Karib. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Nova Série: Antropologia. No 14. Outubro de 1961.

 

  • -------. Formulário padrão Hixkaryana. Rio de Janeiro. Museu Nacional. 1964.

 

  • -------. Textos hixkaryana. Publicações avulsas do Museu Paraense Emilio Goeldi no. 3. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi. 1965.

 

  • -------. The post positional particle word class – Hixkaryana. Rio de Janeiro. Museu Nacional. 1965-6.

 

  • -------. Performatives in Hixkaryana discourse. Rio de Janeiro. Museu Nacional. 1974.

 

  • -------. Estrutura sintáxica da língua hixkaryana. Rio de Janeiro. Museu Nacional. 1975.

 

  • -------. Discourse redundancy in Hixkaryana. International journal of american linguistics 43: 176-1 88, 1977.

 

  • -------. Another kind of “Hearsay Particle” in Hixkaryana (Brazil). Notes on Translation 70: 8-13. 1978.

 

  •  -------. A diachronic explanation for the origin of OVS in some Carib languages. Work papers of the Summer Institute of Linguistics 3:35-46. University of North Dakota Session : Summer Institute of Linguistics, 1979.

 

  • FRIKEL, Protásio. Classificações lingüístico-etnológica das tribos indígenas do Pará setentrional e zonas adjacentes. In Revista de Antropologia. São Paulo, n. 6, 1958.

 

  •  FUNAI (Fundação Nacional do Índio). 1981. Processo 3115.

 

  • GALLOIS, Dominique& RICARDO, Carlos Alberto (ed.) 1983. Povos Indígenas no Brasil: Amapá/Norte do Pará. São Paulo, CEDI, volume 3.