De Povos Indígenas no Brasil

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Foto: Uirá Garcia, 1999

Guajá

Autodenominação
Awa
Onde estão Quantos são
MA 520 (Siasi/Sesai, 2020)
Família linguística
Tupi-Guarani

Crianças brincando em acampamento de caça. Aldeia Awa, TI Caru, 2013. Foto: Uirá Garcia
Crianças brincando em acampamento de caça. Aldeia Awa, TI Caru, 2013. Foto: Uirá Garcia

Os Guajá, que vivem na pré-Amazônia brasileira, constituem um dos últimos habitantes dos formadores dos rios Pindaré e Gurupi, os Awa Guajá vivem em terras indígenas situadas nos últimos refúgios de floresta amazônica no estado do Maranhão. A maior parte da população vive em aldeias, mas há grupos vivendo em isolamento voluntário nas TIs Awá, Caru e Araribóia.

A história dos Awa Guajá é marcada por genocídios e pela violência sofrida ao longo de décadas, desde os primeiros contatos com os não indígenas. Seu território tradicional foi atravessado e cortado ao meio pela Rodovia BR-222, na década 1960, e pela Estrada de Ferro Carajás, nos anos 1980. A partir das frentes de colonização e da implementação das políticas de desenvolvimento econômico no norte do país, ocorridas no período militar, os Awa resistiram como puderam para se manterem vivos e seguirem com um modo de vida essencialmente ligado à floresta. O profundo conhecimento sobre a mata, os animais e as plantas revela formas de ação que evidenciam o quanto os Awa são responsáveis por manter vivo o que restou de floresta no Maranhão. Apesar de sua resiliência, é notável impactos irreversíveis dessas políticas no que diz respeito à garantia de seus direitos territoriais. Um povo cuja alimentação tradicional é constituída por aquilo que coletam e caçam na mata vive hoje desafios imensos – o maior deles é a proteção das florestas tropicais.

Nomes

Os Awa Guajá, também conhecidos como Guajá, se autodenominam Awa, termo que inclui todos os falantes da língua, independentemente de onde vivam.

Empregamos aqui no nome composto Awa Guajá, respeitando a forma como esse povo prefere ser reconhecido atualmente. A palavra Awa é sem acento agudo, seguindo a ortografia utilizada pelas comunidades em suas escolas, e a palavra Guajá, uma denominação externa, respeita a ortografia do português.

Politicamente, os termos Awa Guajá, Awá e Guajá ainda são utilizados por eles de forma alternada, a depender do contexto, dos interlocutores e de outros fatores sociopolíticos.

As primeiras menções a esse povo datam da década de 1940 e lá encontramos a denominação Guajá. O nome foi atribuído por não indígenas durante os primeiros contatos com o objetivo de distinguir essa população dos Tenetehara (Guajajara), um povo vizinho. Outras fontes apontam que foram os Ka'apor os primeiros a chamá-los de Guajá. Nos documentos produzidos até a década de 1990, eram nomeados Guajá.

Awa é a autodesignação destas pessoas e significa "gente", "humano". A palavra é empregada pelos Awa Guajá para se diferenciar de outros tipos de gente. Para eles, a humanidade não é uma unidade homogênea que pode ser expressa na ideia de que "somos todos humanos". Ao contrário, a humanidade em seu sentido forte refere-se somente a pessoas que falam a mesma língua, compartilham um espaço e um modo de vida, alimentam-se da mesma forma, respeitam as mesmas regras de etiqueta etc.

O termo awa também é utilizado por diversos grupos amazônicos falantes de línguas da família Tupi-Guarani para se referir a si próprios como "gente", "humano". É o caso, por exemplo, dos Parakanã do Pará, dos Asuriní do rio Xingu e dos vizinhos Ka'apor.

O caçador Majhuxa’a (à esquerda) e sua esposa Pakawãja (em pé), compartilhando um pedaço da saborosa carne de paca com seu cunhado Akamatỹa. Aldeia Tiracambu, TI Caru, 2013. Foto: Uirá Garcia
O caçador Majhuxa’a (à esquerda) e sua esposa Pakawãja (em pé), compartilhando um pedaço da saborosa carne de paca com seu cunhado Akamatỹa. Aldeia Tiracambu, TI Caru, 2013. Foto: Uirá Garcia

Para os Awa Guajá, existem tipos diferentes de "gente" ou "humanos". Pessoas muito próximas entre si, como os residentes de uma mesma aldeia, se chamam de Awatea, "gente mesmo" ou "gente de verdade", quando querem se diferenciar dos demais. Pessoas que vivem em aldeias diferentes podem se referir umas às outras utilizando o termo Awa e não necessariamente Awatea. Quando os Awa Guajá se pensam como um todo (um povo indígena diferente dos demais) se consideram Awa, que é a autodesignação mais geral.

Mas como são chamadas as pessoas que são consideradas diferentes? Há três categorias centrais utilizadas para se referir a outros tipos de gente: 1) Kamara, usada para se referir aos indígenas de outras etnias; 2) Karaia, remete aos não indígenas; 3) Mihua, termo utilizado para nomear os Awá e outros povos desconhecidos, potencialmente bravos, como os Awa Guajá isolados. Outro termo que usam para designar os isolados é Awa ka'apahara, "gente do mato".

Língua

Em um descanso na floresta, durante uma caçada, Airuhua conversa com seu filho Jahara. Aldeia Juriti, TI Awa, 2008. Foto: Uirá Garcia
Em um descanso na floresta, durante uma caçada, Airuhua conversa com seu filho Jahara. Aldeia Juriti, TI Awa, 2008. Foto: Uirá Garcia

A língua Guajá integra o Tronco Tupí e pertence ao subgrupo VIII da família linguística Tupi-Guarani, que inclui as línguas faladas pelos povos Ka'apor, Wajãpi, Zo'é, Amanayé, Anambé, Tembé, Tapirapé, entre outras (Rodrigues, 1984/85; Cabral, 1996). Foi inicialmente estudada por Péricles Cunha (1988) e mais recentemente por Marina Magalhães (2002 e 2007).

Devido ao fato de os Awa Guajá viverem, antes do contato e da sedentarização, organizados em pequenos grupos familiares dispersos em vários territórios, a língua possui variantes associadas aos grupos de origem. Atualmente, vivem na mesma aldeia grupos distintos que foram contatados em momentos diferentes e é possível identificar variações linguísticas sutis específicas a cada um desses grupos, relacionadas à realização de alguns fonemas e itens lexicais.

Há ainda as diferenças relacionadas aos locais onde as aldeias awá foram criadas. A variante falada pelos Awa Guajá que vivem na Terra Indígena Alto Turiaçu é diferente das demais: há empréstimos da língua falada pelos Ka’apor, povo com o qual compartilham o território. Já a variante dos Awa Guajá residentes nas Terras Indígenas Caru e Awá, compartilha palavras e estruturas gramaticais com a língua Guajajara.

No que se refere à sua vitalidade, a língua Guajá é falada fluentemente em todas as comunidades e por todos os indivíduos e não apresenta indícios de que está enfraquecendo. Observa-se ainda, em todas as aldeias, um grau de bilinguismo que pode variar razoavelmente considerando aspectos como gênero, idade e grau de convivência com os não indígenas. De maneira geral, aqueles que melhor se comunicam em português são os homens mais jovens que costumam representar o povo em reuniões e eventos relacionados a questões político-sociais e que, normalmente, acompanham os velhos, as mulheres e as crianças quando estes precisam sair das aldeias. No entanto, especificamente na aldeia Cocal, há lideranças femininas bilíngues que também exercem essa mesma função.

[Colaboração de Marina Magalhães (Linguista, UNB)]

População e localização

Os Awa Guajá são uma pequena população que se encontra na porção oriental da Amazônia, no noroeste do estado do Maranhão. Seu contingente populacional é estimado em cerca de 520 pessoas (Garcia, 2018) e a maioria vive em contato há décadas.

Da direita para a esquerda, os jovens Tarapẽ, Xikapiõ e Juwi’ia, à noite em um retiro de caça. TI Awá, 2016. Foto: Uirá Garcia
Da direita para a esquerda, os jovens Tarapẽ, Xikapiõ e Juwi’ia, à noite em um retiro de caça. TI Awá, 2016. Foto: Uirá Garcia

A mais antiga aldeia é Cocal (antigo Posto Indígena Guajá), localizada na TI Alto Turiaçu, onde também vivem os povos Ka'apor e Tembé. Na TI Caru, território compartilhado com os Tenetehara (Guajajara), estão as aldeias Tiracambu e Nova Samiỹ. Já na TI Awá, a última a ser demarcada, está localizada a aldeia Juriti.

Há também grupos awa isolados, confirmados pela Funai, que vivem entre as TIs Awá e Caru, além de um outro grupo isolado na TI Araribóia, território guajajara mais ao sul e a leste. Este é o principal registro da presença de isolados awa guajá cuja população é estimada em dezenas de pessoas.

De acordo com notícias, relatórios da Funai, documentações dispersas e, sobretudo, os relatos dos Guajajara, estima-se que existiam, em 2019, ao menos 60 Awa Guajá isolados na TI Araribóia. Este dado impressiona, pois tratam-se de grupos isolados vivendo em uma Terra Indígena que abriga mais de 14 mil pessoas do povo Guajajara e que sofre com o altíssimo índice de desmatamento decorrente da ação de madeireiros ilegais.

Pouco se sabe sobre a maneira que esses isolados awa guajá se organizam; quantos grupos são; em quais regiões da TI Araribóia cada grupo estaria; o número exato de pessoas, entre outras informações estratégicas. Devido à sua grande mobilidade e ao fato de estarem constantemente fugindo de madeireiros, narcotraficantes, pequenos posseiros e outros invasores, é difícil termos certeza de onde esses grupos isolados estariam e mesmo quantos são.

A porção de floresta amazônica no Maranhão é uma região com alto grau de pressão antrópica e de desmatamento e é lá onde vivem os Awa. Seus territórios estão nas últimas parcelas de floresta tropical parcialmente preservadas do estado e formam um corredor verde junto com a Reserva Biológica/REBIO do Gurupi, a única Unidade de Conservação de proteção integral na amazônia maranhense.

Segundo estudos, em 2017, 75% da floresta amazônica havia sido desmatada no Maranhão. As principais atividades econômicas na região são, de um lado, o corte de madeira e a produção de carvão vegetal e, de outro, o desenvolvimento da agropecuária e as plantações de eucalipto nas áreas desmatadas. A consequência disso é que há décadas as Terras Indígenas têm sido invadidas e os seus habitantes, as maiores vítimas do desmatamento. O número de lideranças indígenas assassinadas no Maranhão é extremamente alto. Um estudo feito em 2019 pelo Instituto Socioambiental e Joint Research Centre aponta que nas Terras Indígenas habitadas pelos Awa Guajá 92% da floresta remanescente está degradada, ao passo que a TI Araribóia, palco de diversos assassinatos a lideranças guajajara nesse ano, tem 38% da floresta remanescente comprometida.

Os Awa Guajá, ao lado de outros povos, vivem ilhados em áreas remanescentes da floresta amazônica e estão ameaçados pela destruição ambiental e pela violência que vem no lastro destas atividades ilegais.

Veja o documentário Ka’a zar ukyze wà - Os Donos da Floresta em Perigo (2019) dirigido por Flay Guajajara, Edivan dos Santos Guajajara e Erisvan Bone Guajajara sobre os Awa isolados na TI Araribóia.


O filme traz imagens inéditas desse grupo e um pedido de socorro dos Guajajara pela proteção das florestas e dos Awa isolados cujo modo de vida depende essencialmente da floresta. Se a destruição continuar, o que será de suas vidas?

Fuga e resistência awá na longa duração

Diversos grupos indígenas que hoje ocupam o norte do Brasil migraram nos últimos séculos da região do médio Tocantins devido às frentes de colonização que avançavam para a região central do país. Diversos eventos devem ter colaborado para esses fluxos: guerras, como a Cabanagem (1835-1840) que atingiu a antiga província do Grão-Pará; a escravização indígena, assim como o aumento populacional da região onde viviam (Cormier, 2003). Esses elementos desestabilizaram a vida de vários povos que tiveram que fugir. Muitos deles seguiram para o norte e esse parece ter sido o caso dos Awa Guajá, Ka'apor, Wajãpi, Zo'é, entre outros.

Uma das hipóteses mais prováveis é a dos Awa Guajá terem chegado na região depois dos Ka’apor, grupo historicamente inimigo, que também havia migrado para a região do rio Turiaçu. Até o século XIX, os Awa poderiam ser encontrados na porção leste do Pará e provavelmente no final desse século atravessaram o rio Gurupi para alcançar o atual Maranhão (Balée, 1994). Lá encontraram os Tenetehara, possíveis descendentes dos Tupi da costa maranhense (Wagley e Galvão, 1961).

Desde o século XIX, sabe-se que seus territórios se situam nas cabeceiras dos rios Pindaré, Turiaçu e seus tributários (Gomes, 1982). Outros relatos afirmam que há pelo menos 150 anos grupos awa guajá vivem nas imediações dos rios Pindaré e Turiaçu. Os fluxos migratórios desse povo ocorreram, muito provavelmente, no século XIX, quando grupos se deslocaram em direção ao norte, ocupando áreas onde hoje estão localizadas as TIs Caru, Awá e Alto Turiaçu.

Apesar da dificuldade de traçar um histórico desses movimentos migratórios ao longo de séculos, é certo que pelo menos desde o início do século XX os Awa Guajá viviam próximos ao rio Pindaré, que ainda hoje é designado ’yramãja, o “grande rio”. Foi provavelmente através desse rio que os Awa ocuparam boa parte do seu território, chegando às cabeceiras do rio Caru e seus igarapés. Ao observar os afluentes do Pindaré, como os rios Zutiua, Buriticupu e Caru, notamos que esta bacia é como um conjunto de artérias que abrange todo o território tradicional dos Awa Guajá.

Gomes e Meirelles (2002) consideram a possibilidade da região da Terra Indígena Araribóia ter sido o “coração” de um grande território awa guajá. Estes autores observam que tanto as áreas de serra na TI Araribóia, quanto as serras próximas (Desordem e Tiracambu) foram ocupadas pelos Awa tendo em vista o baixo “interesse agrícola” dessas terras para povos como os Ka’apor e Tenetehara. Os Awa Guajá nunca moraram próximos a rios navegáveis, sempre preferiram as áreas de topo de serra drenadas pelos rios Turiaçu, Caru e Pindaré e rios menores como o Turi, Turizinho, Rio do Sangue, Rio do Peixe, além de inúmeros igarapés. Foi perto desses pequenos igarapés que os Awa se sentiram mais seguros, dado o isolamento e o farto acesso à água. Em seus relatos sobre as inúmeras fugas vividas, a sede (haiwê) que sofriam é sempre mencionada com pesar.

A TI Araribóia, que hoje abriga grupos awa guajá isolados, parece central para se compreender a trajetória dos Awa Guajá como um todo, tanto dos grupos que preferem o isolamento, quanto dos Awa que vivem nas outras TIs. É como se todos os Awa estivessem conectados a ancestrais comuns que viveram na região onde hoje é a TI Araribóia. Se, nas últimas décadas, as duas áreas com presença confirmada de isolados (TIs Awá e Caru; TI Araribóia) abrigam grupos independentes, no sentido de serem, segundo a Funai, diferentes “registros”, o mesmo não teria ocorrido no passado se observamos a ocupação da região a partir uma longa duração.

Antes da construção da rodovia BR-222, na década 1960, havia algo próximo a um território awa guajá contínuo, uma espécie de corredor que ia da TI Araribóia à TI Alto Turiaçu. Esses fluxos foram interrompidos no século XX, com a chegada de migrantes decorrente da construção da rodovia e com a construção da Estrada de Ferro Carajás, na década de 1980.

O que está na origem de quase todo o êxodo dos Awa Guajá, desde a saída de seu território ancestral (TI Araribóia) até a chegada nas matas do Pindaré, onde estão hoje as principais aldeias, é justamente o esgarçamento de seus espaços de vida (a floresta) devido às sucessivas levas de migrantes, a formação de povoados e, em seguida, de pequenos municípios próximos às Terras Indígenas.

As fugas vividas pelos Awa ocorreram devido ao avanço das frentes de colonização no Maranhão iniciadas na década de 1960, com o apoio do governo, sobretudo, por meio da extinta Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste). O discurso oficial na época era o de que não havia povos indígenas na região e que havia ali um vazio demográfico. Ao longo das décadas seguintes, muitos povos indígenas foram contatados, territórios foram criados, no entanto outros grupos continuaram fugindo até a década de 1980, quando foi criado o Projeto Grande Carajás.

A economia que emergia na região até então ocupada pelos povos indígenas era inteiramente dependente da exploração dos recursos da floresta: extração de madeira, abertura de roças, produção de carvão, exploração de recursos naturais como as folhas de jaborandi (como foi o caso da indústria farmacêutica Merck), além da abertura de pastos e plantio de capim. Infelizmente, a drástica diminuição dos recursos florestais ainda é a tônica da economia regional que é resultado direto de políticas oficiais voltadas ao desenvolvimento econômico da região norte impulsionadas, sobretudo, nos anos da ditadura militar no Brasil e presentes até hoje.

Essas políticas tiveram impactos irreversíveis nos territórios dos Awa Guajá, em suas relações e na própria concepção de tempo que estrutura suas vidas - este dividiu-se entre o “tempo do mato” (imỹna ka’ape) e o tempo que marca a vida nas aldeias. A reunião de grupos familiares em aldeias grandes é uma experiência relativamente recente entre os Awa.

Histórias dos contatos

No século XX, mesmo com a intensificação da ocupação não indígena na região, os Awa conseguiram permanecer isolados, pois continuaram a fugir. Até o final da década de 1960, havia pouca informação sobre eles.

Embora o contato oficial entre o Estado brasileiro e os Awa Guajá tenha se iniciado na década de 1970, já se tem notícias de contatos com os Awa desde 1943, quando um pequeno grupo apareceu às margens do rio Pindaré. Em 1965, com a abertura da rodovia São Luís-Belém, outro contato mal-sucedido foi realizado com um grupo de 12 pessoas. Trabalhadores da estrada avistaram esse grupo e acionaram a Funai, que levou cerca de seis a sete indígenas para o então Posto Indígena Gonçalves Dias e todos morreram alguns meses depois (Gomes, 1985). Desde essa época até o final da década de 1980, morreram de tuberculose, sarampo, malária, disenteria e, sobretudo, gripe. Todos os Awa com mais de 25 anos guardam na memória histórias de pessoas próximas vitimadas pela gripe.

Os processos de contato se dão lentamente desde a década de 1940. Em muitos encontros, os Awa contraíram doenças como sarampo e gripe, acarretando mortes, muitas vezes, de todo um grupo local. Oficialmente, o processo de contato com agências do Estado brasileiro teve início em 1973 com as expedições realizadas pelos sertanistas José Carlos Meirelles, Florindo Diniz e Jairo Patusco. Foi somente em 1976 que se deu o primeiro contato com um grupo que estava no alto curso do Rio Turiaçu. Este grupo deu origem ao que hoje é a aldeia Cocal (antigo Posto Indígena Guajá), na TI Alto Turiaçu. Dos 56 indivíduos contatados em 1976, restaram somente 26 pessoas, em 1980, doentes de malária e gripe. Em 2002, essa aldeia tinha 67 pessoas (Gomes e Meirelles, 2002).

Ocorreram diversas iniciativas de aproximação, sobretudo, entre os anos 1970 e 1980. Além das frentes de atração, algumas famílias eram contatadas "por acaso", em encontros com regionais ou com outros indígenas e não raro terminavam em mortes. Quando contatados fora do âmbito de atuação das frentes de atração, os Awa eram, em seguida, enviados para aldeias já criadas pelo órgão indigenista. Muitas vezes, não mantinham a menor relação com os residentes dessas aldeias e não tinham conhecimento necessário sobre a região para onde a Funai os havia levado. Outro fenômeno comum eram os próprios Awa buscarem o contato, aproximando-se dos vilarejos em busca de alimento e socorro. Na década de 1970, viveram um momento crítico, quase foram extintos. Restava-lhes pouca opção contra o genocídio: buscar o contato ou continuar a fugir.

Apesar dessas expedições de contato realizadas pelo órgão indigenista oficial, boa parte do século XX foi marcada pelas fugas dos Awa Guajá. Foram épocas de muito sofrimento caracterizadas pela impermanência dos acampamentos e pelo risco permanente de serem mortos por não indígenas ou de morrerem devido a doenças infectocontagiosas. Em fuga permanente, não era possível viver de maneira adequada, caçar de forma certa e as coisas importantes para se ter perto, como arcos, feixes de flechas, objetos, tição de fogo etc., eram deixados para trás durante as "correrias". Era preciso conter o choro das crianças para que os Awa em fuga não fossem ouvidos pelos não indígenas.

As memórias recentes dos Awa Guajá estão repletas de episódios traumáticos. São relatos de sobreviventes de um genocídio nos quais são comuns menções à sede, ao medo, à tristeza, à falta de cônjuges, à morte. Em outras palavras, foram experiências de puro horror.

"Os karai [não indígenas] mataram a minha esposa e meu filho. Eles atiraram neles na mata. Atiraram com arma de fogo feita de ferro. Eu era o pai. Quem morreu foi um antigo filho meu. Os karai o mataram com arma de fogo. Nós corremos e eles foram atrás de nós e os mataram. Os karai matam até crianças Awa! Mataram meu filho! Eu andei muito pela mata. Às vezes era muito calor e sentia sede. De longe eu ficava observando os karai. Via suas plantações de mandioca e milho. E pensava que um dia ia matá-los. Andava muito pela floresta: a floresta é grande! Muitas vezes eu estava tão perto dos karai que escutava o galo cantar. Por vezes eu passava fome".Karapiru, aldeia Tiracambu, 2013.

O que manteve os Awá vivos e praticamente “invisíveis” durante todo o século XX foi a capacidade de viverem em grupos pequenos na floresta. Diante da necessidade de estarem permanentemente em fuga, esses grupos se dispersaram na mata e muitos deles somente voltaram a se encontrar após o contato oficial, quando foram reduzidos em aldeias permanentes. Não por acaso, ainda persistem pequenas diferenças dialetais entre os grupos locais que vivem nas quatro aldeias do povo Awa.

A estratégia de incorporar nas equipes de expedições de contato indivíduos contatados do mesmo povo que está em isolamento foi e ainda é utilizada entre os Awa, como em toda a Amazônia indígena. Entretanto, nos últimos contatos ocorridos em 2006 e 2014, os Awa decidiram fazer sozinhos.

A existência de Awa isolados na Terra Indígena Araribóia é alvo de grande preocupação por parte dos Tenetehara, povo que compartilha o território com esses isolados e que vêm atuando como uma espécie de protetor. Da mesma forma, os Awa Guajá que vivem nas aldeias estão preocupados com o tipo de vida precária que seus “parentes isolados” estão levando. Com frequência, homens awa que vivem nas TIs Caru e Awá se juntam às expedições na TI Araribóia, organizadas pela Frente de Proteção Etnoambiental Awá-Guajá (FPEAG)/Funai, para, de alguma maneira, contribuir para a proteção dos parentes.

Os isolados Awa Guajá da TI Araribóia somam dezenas de pessoas, diferindo dos isolados que vivem entre as TIs Awá e Caru, que são menos numerosos. Da perspectiva dos Awa contatados, esses que conhecemos como “isolados” são chamados ora de “gente do mato” (awa ka’apahara), quando considerados “próximos”, ora de “gente brava” (mihua), quando são concebidos como distantes.

Até a década de 1990, ocorreram outros contatos na região da Araribóia com famílias e/ou indivíduos Awa Guajá que, posteriormente, foram transferidos para as TIs Caru e Awá. Os isolados que, hoje, resistem na TI Araribóia são remanescentes de um conjunto populacional composto por falantes de uma mesma língua (o Guajá) que vive separado há bastante tempo.

No fim de 2014, houve o contato com três pessoas awa guajá na TI Caru. Eram remanescentes de um grupo que resistiu ao contato desde a década de 1980, conhecido como o “grupo de Miri-Miri”, em referência ao nome de seu líder. Esse grupo justificou a criação do posto indígena Tiracambu (TI Caru) visando, ali, fixá-los, mas Miri-Miri e seu pessoal preferiram permanecer na floresta. Estima-se que todos os isolados existentes na TI Caru sejam remanescentes ou descendentes do grupo de Miri-Miri.

Após décadas fugindo, ora pelas serras, ora pelas matas drenadas pelos rios Pindaré, esse pequeno grupo se viu encurralado e sem perspectivas em um dos territórios mais ameaçados da Amazônia. O contato foi feito por um grupo residente na aldeia Awá (TI Caru). Há quase uma década, em 2006, pessoas dessa mesma aldeia localizaram e contataram membros do grupo encontrado em 2014.

A autonomia política dos Awa representada por pequenos grupos familiares, base de sua organização social pré-contato, fez com que o processo de contato atravessasse a década de 1990 e se arrastasse até hoje. Os grupos awa que evitam a todo o custo o contato estão nas áreas de mata contínua entre as TIs Caru e Awá e na TI Araribóia.

Os Awá Guajá e a Estrada de Ferro Carajás

A Estrada de Ferro Carajás do Programa Grande Carajás, pólo de produção e exportação de minérios da então Companhia Vale do Rio Doce (hoje Vale S/A), foi inaugurada em 1985. A construção da ferrovia acelerou os contatos com grupos indígenas que até então viviam sem contato no Pará e no Maranhão. A política indigenista favoreceu a Vale do Rio Doce, na época empresa estatal, ao retirar os indígenas de seus territórios apenas por serem áreas por onde passaria a estrada.

Nesse período, os contatos com os grupos awa estavam no início, mas centenas de indivíduos não contatados já haviam morrido por causa de doenças e assassinatos perpetrados pela população regional emergente. A partir de 1982, a Companhia Vale do Rio Doce firmou um convênio com a Funai para dar início a delimitação das áreas que seriam destinadas aos Awa Guajá. Foi nesse contexto que começaram os trabalhos de demarcação das Terras Indígenas Caru e Alto Turiaçu, para onde eram levados os Awa que iam sendo contatados pela Funai.

Índios Guajá do Rio Turiaçu e membros da Frente de Atração. Foto: Vincent Carelli/Vídeo nas Aldeias
Índios Guajá do Rio Turiaçu e membros da Frente de Atração. Foto: Vincent Carelli/Vídeo nas Aldeias

Motivado pela passagem da ferrovia em locais próximos aos territórios awa, o órgão indigenista reativou as chamadas frente de atração e então, a partir de 1984, novas famílias awa foram contatadas e novas mortes advindas de contatos pouco planejados ocorreram. Nessa época, muitos grupos awa foram localizados e alguns contatados nos igarapés formadores da cabeceira do rio Caru, como o igarapé Água Branca, um dos limites da Terra Indígena Caru, e o Igarapé Brejão. Estes locais estavam invadidos por pequenos grupos de posseiros e grileiros.

O fato de a ferrovia cortar ao meio os territórios tradicionais awa pode ser atestado em inúmeros episódios ocorridos na década de 1980. Em 15 de agosto de 1985, na altura do km 396 da EFC, um motorista da empresa Tratex, empreiteira que trabalhava para a Companhia Vale do rio Doce, foi ferido por uma flecha no momento em que trabalhava na construção de um desvio que liga a ferrovia a BR-222. Só nesse ano, foi o terceiro episódio desse tipo que aconteceu nas imediações da ferrovia, envolvendo a população local recém-instalada e/ou trabalhadores da Vale e os Awa (Gomes, 1985). Em uma expedição realizada em agosto de 1985, Gomes ouviu relatos de que trabalhadores da ferrovia viam com frequência os Awa ao longo da estrada, assim como muitos moradores que viviam em lotes e fazendas próximas à ferrovia de Carajás.

Em 1985, teve início a identificação da TI Awá. Essa TI interliga as TIs Caru, que margeia a ferrovia, e Alto Turiaçu, e foi destinada ao usufruto exclusivo dos Awa Guajá. No entanto, até a sua desintrusão completa, em 2014, estava invadida por centenas de ocupantes ilegais, entre eles fazendeiros, posseiros, madeireiros e pequenos agricultores. Nos últimos anos, mesmo após um longo processo de desintrusão, parte dos antigos ocupantes ilegais e invasores da TI Awá voltaram ao território ocupando-o novamente com gado e roças de mandioca para a produção comercial de farinha.

O Projeto Carajás afetou não apenas os Awa Guajá, mas também cerca de 40 comunidades indígenas distintas (Treece, 1987), influenciando diretamente a atual configuração socioespacial dos povos indígenas na região, que perderam parcelas significativas de seus territórios tradicionais.

A duplicação da ferrovia intensificou os impactos da Estrada de Ferro sobre as TIs onde vivem os Awa Guajá. As aldeias Awá e Tiracambu, na TI Caru, são muito próximas dos trilhos e, portanto, expostas à poluição sonora provocada pelo ruído dos trens de carga. O projeto de duplicação também resultou no aumento das pressões de madeireiros e invasores sobre os territórios indígenas que, até hoje, sofrem com invasões e incêndios criminosos, como os ocorridos em 2015 que afetaram 57,5% da TI Awá.

O impacto da estrada de ferro é sentido pelos Awa Guajá de diversas formas. Além da presença física da ferrovia, do crescimento populacional regional e da pressão sobre seus territórios (intensificado pela duplicação), há a destruição florestal. Transtornos ecológicos decorrentes dos impactos da ferrovia, como a dispersão e morte dos animais, têm afetado suas atividades de caça, que são fundamentais para os Awa Guajá. O barulho produzido pelos trens (terẽ ma’iha)espanta os animais e atrapalha os sentidos dos caçadores em suas atividades diárias.

Como a grande maioria dos povos amazônicos, os Awa não possuem uma palavra para designar "animal", mas sim para "caça" ou "presa": ma'amiara. Hoje em dia, no entanto, fazem uma distinção clara entre "caça brava" (haitema'á) e "caça mansa" (haite’yma'a). A "caça brava" está acostumada com o barulho dos tratores, motosserras, trens e povoados que existem no entorno dos territórios e por isso mais atenta e difícil de ser caçada. Já a "caça mansa" é aquela que vive no interior da Terra Indígena, em áreas ainda preservadas. Nesses lugares, os animais não estão acostumados com a presença humana e, portanto, vivem menos escondidos - são mais suscetíveis a virarem presa dos caçadores awa.

Para os Awa, o silêncio e a atenção são atitudes fundamentais para se viver na floresta. Porém, com a construção da ferrovia, essa experiência tem sido modificada brutalmente. A destruição ambiental também é vivida em termos sonoros, pois remete à produção contínua de barulho.

Com a ampliação da estrada de ferro da Vale, concluída em 2018, foi implementado um Plano Básico Ambiental (PBA) e, ao lado desse plano, foi renovado o acordo de cooperação para mitigação dos impactos estabelecidos desde a construção da ferrovia. A Vale destinou parte dos recursos do projeto para atividades de compensação, atendendo os povos Awá, Guajajara e Ka’apor.

Este projeto da Vale acumula um número considerável de denúncias de violações de direitos humanos e socioambientais (consulte o relatório sobre o Projeto Ferro Carajás).

Organização social e política

Os Awa Guajá sempre viveram em pequenos grupos e privilegiam formas independentes e mais “fragmentadas” de organização social, marcadas, inclusive, pela dispersão geográfica dos grupos locais. Isso fica evidente quando vemos a abrangência de seus territórios: vão desde as TIs Alto Turiaçu, Awá, Caru até a TI Araribóia.

Existem registros da presença e/ou passagem dos Awa em regiões muito distantes entre si, desde a cidade de Araguaína, no Tocantins, passando pela região entre os rios Zutiua e Pindaré, no Maranhão, chegando até povoados no baixo rio Caru.

Há ainda relatos de Awa que, durante suas fugas percorreram longas distâncias, alcançando os estados de Goiás, Bahia e Minas Gerais. A trágica história de Karapiru, documentada por Andrea Tonacci no filme "Serra da Desordem" (2006), é um desses casos. Após testemunhar o assassinato de sua família por posseiros que haviam invadido seu território, Karapiru iniciou uma longa jornada de fuga pelas serras do Brasil central. Depois de uma década em fuga solitária, foi encontrado pela Funai em 1988, no estado da Bahia, a mais de mil quilômetros de distância de seu ponto de partida, no Maranhão.

As grandes aldeias onde hoje os Awa vivem, com cerca de 50 a 200 pessoas - a depender da aldeia - são novidade. Apesar de reunirem muitas pessoas, cada aldeia se estrutura como um conjunto de pequenas aldeias, uma vez que não há pátio central ou qualquer construção ou espaço que seja o centro da vida coletiva. Suas aldeias, formadas por diferentes famílias, são organizadas por “setores” baseados em grupos de "homens importantes" ou “chefes” (tamỹ). Pensar a comunidade como um “todo homogêneo” é uma ideia que os Awa Guajá não compartilham.

As famílias são como unidades autônomas e todo chefe de família é uma espécie de líder (tamỹ ou xipa tamỹ) em potencial. Não faz sentido, portanto, falar em uma liderança que represente o “todo”, o “povo” ou a “sociedade awa" etc. O coletivo pode ser articulado em contextos específicos, mas logo se dissolve em uma organização social descentralizada. É por isso que a noção de liderança também assume um sentido específico: é aquele que consegue convencer os outros com as suas palavras ou com a sua empolgação com relação a uma tarefa.

Myty é um termo que remete a um entendimento importante sobre a política e pode ser traduzido para o português por “puxar”. Uma liderança ou um chefe (tamỹ) tem como principal atribuição "puxar" um coletivo. É quem vai na frente, puxando os demais. A expressão myty ipamẽ dá essa ideia, justamente: “puxando e indo junto/misturado”. Os trabalhos na roça, as caçadas e outras ações são pensadas dessa maneira.

Em todas as atividades, nos mais diversos aspectos da existência, os tamỹ são evocados. A "chefia" entre os Awa não se baseia em acordos ou consensos coletivos fomentados por um único indivíduo. A figura do cacique é, portanto, inexistente. Mesmo as pessoas que são chamadas em português de "lideranças", têm suas funções mais próximas às dos "interlocutores" ou "diplomatas", que fazem mediações ou traduções entre realidades políticas diferentes. Não há chefes com poder coercitivo ou capaz de organizar toda uma aldeia. Quando muito os chefes awa conseguem convencer o seu "pessoal", a sua família e pessoas próximas - nada mais do que isso.

Após décadas organizados em quatro aldeias (Cocal, Juriti, Awá e Tiracambu), os Awa Guajá contatados estão se dividindo em novas outras aldeias, como Nova Samiỹ e Aldeia da Cachoeira, e não sabemos quantas mais virão.

Vivendo afastados entre si, desde antes do contato até hoje, os diferentes grupos locais awa não correspondem a uma idealização de “grupo indígena” com intercâmbios intercomunitários, autoidentificação com o “grupo” e alianças em diferentes situações. Por mais paradoxal que possa parecer, talvez tenha sido justamente essa “fragmentação” que possibilitou aos Awa permanecerem sem contato com os não indígenas, resguardando-os, assim, de um fim ainda mais trágico como o completo extermínio.

Florestas habitadas

Piraima’a e Jawatra’ia (na rede) durante uma caçada. Aldeia Juriti, TI Awa, 2016. Foto: Uirá Garcia
Piraima’a e Jawatra’ia (na rede) durante uma caçada. Aldeia Juriti, TI Awa, 2016. Foto: Uirá Garcia

Apesar dos Awa Guajá não viverem mais em acampamentos temporários e não dormirem em tapiris como antigamente, a vida na floresta (ka'a) continua sendo fundamental. A mata é um local haxỹ ("fresco") e parahỹ ("bonito", "bom", "perfeito"), diferindo da aldeia que dizem ser haku ("quente") e manahỹ ("desagradável", "imperfeita"). No verão, especialmente, as aldeias viram base para suas incursões de caça, principal atividade produtiva. Os Awa caçam e dormem na mata e passam longas temporadas na floresta.

O conjunto de ambientes habitados pelos Awa é composto pelas terras firmes (wytyry), pelas zonas de várzea e pelos cursos de rio ou simplesmente 'ya ("água") que, durante os meses de chuva, formam um complexo de alagados. Estes ambientes diversos constituem um conglomerado de áreas de caça identificadas por diferentes topônimos que, por sua vez, possuem uma infinidade de trilhas (e algumas clareiras) as quais atravessam todo o território tradicional awa.

Esse conjunto territorial é denominado, genericamente, de haka'a ("minha floresta") e, mais especificamente, de harakwaha ("meu lugar", "meu domínio"). Haka'a e harakwaha são expressões que, muitas vezes, são empregadas como sinônimos. Em português, costumam traduzir por "minha área", fazendo alusão ao processo de demarcação de suas terras.

Harakwaha denota não só a mata, mas também as relações estabelecidas entre as pessoas, os animais e as plantas. A ideia expressa por essa palavra extrapola as relações dos humanos com os seus espaços e inclui os relacionamentos de outros seres, não humanos, com floresta, águas, aldeia, céu, entre outros.

O local reconhecido enquanto tal por um grupo (familiar, local etc.) também é chamado de harakwaha. É a área onde as pessoas de um grupo circulam, onde caçam e manejam seus recursos. Tradicionalmente, os harakwaha eram exclusivos de uma família e/ou grupo local que o conhecia profundamente. Os limites entre essas áreas eram dados pelos harakwaha de outros grupos, muitas vezes, de parentes próximos. Até o contato, todo o território awa era uma extensa malha formada por diversos harakwaha e cada grupo local ou, frequentemente, grupo familiar circulava por um desses espaços, conhecendo-o, nomeando-o, interagindo e explorando seus recursos.

Posto Indígena Juriti, TI Awá, 2007. Foto: Uirá Garcia
Posto Indígena Juriti, TI Awá, 2007. Foto: Uirá Garcia

As últimas décadas trouxeram mudanças na forma de os Awa se organizarem espacialmente. Assim como as configurações das aldeias se alteraram, dando lugar a aglomerados populacionais formados por diferentes grupos locais, os espaços de circulação desses grupos também foram afetados. As aldeias awa são frutos de uma engenharia social do contato e reúnem grupos diferentes que antes viviam dispersos em áreas distintas. Isso quer dizer que muitas pessoas que hoje vivem juntas não se conheciam antes do contato. A "vida em aldeia" surgiu, entre os Awa, no contexto das frentes de atração da Funai e dos chamados "postos indígenas". É interessante observar, no início, que os Awa usavam o termo funai para nomear as aldeias onde passaram a viver.

Cotidiano

O modo de vida dos Awa Guajá é inteiramente dependente da relação que estabelecem com a floresta e os seres que nela vivem. A caça é uma delas.

A caça, para os Awa Guajá, é uma atividade central, não somente em termos de subsistência, mas especialmente em termos existenciais. Trata-se de uma prática que diz muito sobre suas concepções sobre a vida que está essencialmente ligada à floresta.

Esse povo é denominado genericamente de "caçador-coletor", uma categoria arbitrária para se referir a populações cuja subsistência está baseada na caça, na pesca e na coleta de produtos florestais e que não dependem de uma prática agrícola. Muitos povos "caçadores-coletores" podem até plantar, mas não baseiam a sua vida exclusivamente aos ciclos agrícolas, com calendários associados aos trabalhos nos roçados e jardins.

Da esquerda para a direita, Wa'amixĩa, Piakwa, Manijasĩa coletando Jussara. Aldeia Tiracambu, TI Caru, 2013. Foto: Uirá Garcia
Da esquerda para a direita, Wa'amixĩa, Piakwa, Manijasĩa coletando Jussara. Aldeia Tiracambu, TI Caru, 2013. Foto: Uirá Garcia

O crescente desmatamento na Amazônia maranhense é uma grande ameaça ao modo de vida awa e traz sérias preocupações para esse povo que até pouco tempo vivia exclusivamente daquilo que tirava da floresta.

Até a época do contato, os Awa não praticavam agricultura, atividade que tem sido introduzida ao longo dos anos nas aldeias pela Funai, principalmente, o cultivo de mandioca, macaxeira, milho, arroz, abóbora, feijão, frutas, dentre outros. Tal atividade, no entanto, ainda está diretamente ligada à Funai, que organiza os trabalhos com as comunidades. Trabalhadores temporários são contratados para auxiliar os Awa em suas roças e o sistema de trabalho é o mesmo adotado pela tradicional agricultura de “corte e queima” maranhense (Forline, 1997).

Entre os Awa, não se encontra nenhum dos subprodutos de uma “agricultura tradicional indígena", como o fumo, o beiju e as bebidas fermentadas, tal como se vê entre outros povos amazônicos e povos horticultores Tupi. Tradicionalmente, toda a alimentação awa vem da floresta: as caças, os méis e os frutos como pequis, cupuaçu, bacuri, bacaba, inajá, dentre outros.

A farinha de mandioca era desconhecida pelos Awa até os contatos oficiais com a Funai. Essa farinha é, para eles, uma comida dos brancos. Uma das histórias dos primeiros contatos com os Awa é que muitos se recusavam a comer farinha, pois pensavam que se tratava de um tipo de terra.

Piraima’a posa orgulhoso ao lado da anta que recém abatera. Aldeia Juriti, TI Awa, 2007. Foto: Uirá Garcia
Piraima’a posa orgulhoso ao lado da anta que recém abatera. Aldeia Juriti, TI Awa, 2007. Foto: Uirá Garcia

Mesmo que hoje em todas aldeias awa se pratique a agricultura, a caça continua movendo a vida das famílias. As pessoas seguem dispostas a abandonar atividades nos roçados para averiguar rastros da existência de uma vara de porcos ou de um bando de guaribas na mata.

A centralidade da caça é marcante e isso fica evidente na expressão usada com frequência pelos Awa para se referir a si próprios: watama'a aria, "nós somos caçadores". Todas as outras atividades, como a pesca e coleta de mel e frutos são tributárias dela ou postas em segundo plano. Forline (1997) realizou um estudo sobre o tempo alocado pelos Awa em suas diversas atividades cotidianas e demonstrou que a caça é aquela que ocupa mais tempo em seus dias.

Além disso, o conhecimento awa sobre a floresta e, mais particularmente, sobre as plantas é tributário a seu interesse pela caça. Cormier ressalta o baixo número de plantas utilizadas pelos humanos para consumo, medicamentos, xamanismo etc. quando comparado com o número de plantas conhecidas consumidas pelos animais de caça, mais especificamente os macacos (Cormier, 2003).

Jui’i e seu avô Mĩtũrũhũa preparando o jacaré para a refeição. Aldeia Juriti, TI Awa, 2008. Foto: Uirá Garcia
Jui’i e seu avô Mĩtũrũhũa preparando o jacaré para a refeição. Aldeia Juriti, TI Awa, 2008. Foto: Uirá Garcia

A pesca, apesar de amplamente praticada, é, tradicionalmente, uma atividade menos desenvolvida. Os Awa Guajá permaneceram, em boa parte de sua história, distante dos cursos de grandes rios e não possuíam canoa ou qualquer técnica mais apurada para a captura de peixes (tal como armadilhas ou represas). Embora os peixes não estejam no topo das suas preferências alimentares, os rios e igarapés abastecem as pessoas não só de peixes, mas também com as carnes de uma espécie de jacaré (jakare) e de poraquês (manaky). Além desses, a capininga (jaxajhua - Kinosternon scorpioides), um quelônio habitante dos lodos nos igarapés, é muito apreciada.

Alimentação, saúde e floresta em pé

Os Awa Guajá realizam uma distinção muito clara entre "comida dos brancos" (karai nimi'ua) e "comida de verdade" (hanimiu tea) ou "comida de gente" (awa nimi'ua), isto é, sua alimentação tradicional composta basicamente por carnes de caça, peixes, mel e frutos coletados na floresta.

Apreciam comer carne todos os dias, de preferência, várias vezes ao dia. Gostam, especialmente, da carne de capelão/guariba e outros macacos; queixadas e caititus; pacas, cotias e tatus; além da anta, veado dentre outros animais. Existe uma relação diretamente proporcional entre o porte do animal ingerido e as qualidades alimentares de sua carne.

Juxa’a moqueando cotias em um acampamento de caça. TI Awa, 2016. Foto: Uirá Garcia
Juxa’a moqueando cotias em um acampamento de caça. TI Awa, 2016. Foto: Uirá Garcia

Comer o animal correto é fundamental para a boa formação do corpo de uma pessoa humana. Um corpo forte e belo faz-se com uma alimentação boa e farta; ele se fortalece com a ingestão constante de carnes de caça. Por não fazerem estoques, saem diariamente para caçar.

Nos dias de hoje, ao lado dos alimentos tradicionais, consomem a farinha de mandioca, frutas e diversos cultivares introduzidos pela Funai, como a abóbora, milho, macaxeira, arroz, feijão, batata-doce, entre outros. O consumo de alimentos não indígenas, apesar de bem disseminado e apreciado, é suspenso em momentos de resguardo, quando as mulheres estão em período de menstruação, durante resguardo pós-parto ou doença. Mesmo com as mudanças no regime alimentar, os Awa guardam um grande interesse pelas carnes de caça, frutos de coleta (babaçu, inajá, bacaba, buriti, bacuri, pequi e outros) e mel. Conhecem dezenas de espécies de mel que além de servirem como fonte de energia, trazem “alegria para o corpo”.

A alimentação correta para os Awa é muito mais do que ingestão de calorias. Eles, mais do que ninguém, sabem o que é produzir e lutar pela própria comida. Caçam sempre que podem e essa tecnologia desenvolvida há centenas de anos abrange formas de conhecimento e intervenções no ambiente muito sofisticadas.

A floresta para os Awa é a grande fonte de alimentos, é lá onde vivem os animais de caça. No entanto, estes estão cada vez mais ameaçados pela degradação ambiental que vem ocorrendo há décadas na Amazônia maranhense.

Há, portanto, uma relação direta entre a floresta, a qualidade da alimentação e a saúde das pessoas. A degradação ambiental e o desmatamento florestal são fatores que afetam profundamente a saúde dessa população. Não por acaso, uma de suas maiores preocupações é o risco iminente do fim da alimentação tradicional. Com frequência, perguntam: "Os brancos não sabem que vão acabar com os nossos animais?".

Caçadas na floresta

Descanso durante uma caçada. Aldeia Juriti, TI Awa, 2006. Foto: Uirá Garcia
Descanso durante uma caçada. Aldeia Juriti, TI Awa, 2006. Foto: Uirá Garcia

As aldeias parecem pontos de chegada e parada do mato, pois as coisas boas da vida acontecem na floresta. Uma caçada curta não dura menos que seis horas e, em média, as pessoas ficam cerca de dez horas na floresta para ter o mínimo de sucesso em suas saídas.

As caçadas podem ser executadas com espingardas, arco e flechas e armadilhas. São realizadas de diversas maneiras: individuais; em casal; com grupos de irmãos, cônjuges e filhos; caçadas de uma jornada diurna ou esperas noturnas; e até mesmo grandes caçadas coletivas, que podem mobilizar boa parte de uma aldeia. Por serem compreendidos como aspectos importantes, os tipos de animais caçados (hama’a, “minha caça”), as atitudes dos caçadores e sua saúde e vitalidade são temas que sempre surgem relacionados nos relatos dos Awa sobre as caçadas.

Numa única jornada, além de pescar, caçar com flechas e espingardas, cavar buracos para pegar bichos, caçar com cachorro, ainda é possível: extrair resinas de maçaranduba e jatobá (utilizadas na iluminação noturna das casas) e embiras para fazer "cordas"; confeccionar cestos cargueiros com folhas de açaí para levar o peso que acumularam; coletar mel, carás e outros tubérculos encontrados na floresta e na capoeira na volta para a aldeia. Em meio a tudo isso, as mulheres ainda carregavam seus filhos, os amamentam e os fazem dormir, espantando os mosquitos.

Da esquerda para direita: Takamỹ à, seguido por seu filho, Maihuxa’a, Hajkaramykỹa e seu filho Warajua, comendo mel durante caminhada na floresta. Aldeia Awa, TI Caru, 2013. Foto: Uirá Garcia
Da esquerda para direita: Takamỹ à, seguido por seu filho, Maihuxa’a, Hajkaramykỹa e seu filho Warajua, comendo mel durante caminhada na floresta. Aldeia Awa, TI Caru, 2013. Foto: Uirá Garcia

Essas jornadas na floresta podem ser chamadas de wataha, cuja tradução é "caminhada". Wataha é sinônimo de muitas ações que se desenrolam no decorrer de uma jornada (andar, caçar e coletar) e exprimem a própria vida para os Awa. As caçadas são chamadas genericamente de wata (“andar-caçar”) e todo homem caçador é referido watama'a, cuja tradução literal é "caminhador" e que pode ser traduzida por "caçador".

O principal objetivo de uma caminhada (wataha) é caçar um animal, de preferência uma carne gorda (ikirá) e saborosa (he’ẽ). Quase sempre, os Awa saem para floresta para “matar” (ika) uma caça previamente rastreada, seja por ser a época dos frutos apreciados pela presa, seja porque alguém sonhou com ela.

Ao fim das caçadas, além de comida, os Awa costumam voltar repletos de filhotinhos de animais para presentearem suas filhas e esposas. Algo que chama à atenção é a quantidade de animais de criação ou xerimbabos que existem em suas aldeias e que, antes do contato, eram criados no mato. As aldeias são repletas de animais e, muitas vezes, podem chegar a ultrapassar o número de moradores humanos. São macacos, jacus, quatis, jacamins, cotias, pacas, tartarugas, porcos e até filhotes de onça criados pelas mulheres, crianças e, em alguns casos, pelos homens. Esses animais têm um ciclo de vida nas aldeias desde a sua captura até a soltura depois de uma certa idade. Macacos adultos, com cinco ou seis anos podem se tornar violentos e atacar as crianças e por isso não devem conviver no mesmo espaço.

Quando caminham no mato é muito comum eles assobiarem de tempos em tempos, a fim de atrair pássaros emplumados como azulonas, inhambus e jacupembas. Tais animais, dizem os Awá, cantam pouco na época das chuvas, e os homens os imitam para ouvirem suas respostas e, eventualmente, caçá-los enquanto se deslocam. Ouvir a resposta dessas aves aos assobios humanos é uma das formas de conexão dos Guajá com os animais. Os povos caçadores como os Awa mobilizam um grande aparato sonoro como parte de sua tecnologia de caça. A floresta “fala” com os Awa de diversas maneiras. Além de uma audição aguçada, outro componente complementar é a capacidade de imitar o som dos animais. Durante as caçadas não se fala, mas existe uma outra linguagem na floresta: assobios, urros, barulhos, gritos e imitações.

Para cada animal um tipo de imitação é produzido. Tal conhecimento acústico, quando empregado à caça, envolve nuances e técnicas que servem para ludibriar as presas ou funcionam como sinais para os caçadores rastrearem. Os Awá conseguem, inclusive, adaptar para a sua língua o canto de alguns pássaros.

O objetivo dos chamados para atrair animais (hamakai) é fazer com que o bicho pense se tratar de algum "parente próximo" (harapihiara ha'ỹ) e levar o animal à morte. A ideia é que os sons imitados se pareçam com os sons de "amigos" (hary), "irmãos" (harapihiara), "filhos" (imymyra, tajyra, taira), e outros parentes.

As pessoas awa têm uma atenção acústica desenvolvida a ponto de, muitas vezes, dispensarem o apoio da visão em caçadas noturnas sem lanterna. À espera de animais na madrugada, são capazes de distinguir a espécie de um animal e outras características, como o peso e sexo, ao escutar o peso da passada ou mesmo ao sentir um odor característico.

Caçada de capelão

Os Awa são caçadores habilidosos e possuem uma técnica apurada para a captura de mamíferos arborícolas, em particular, quatro espécies de primatas: macaco guariba ou “capelão” (warí - Alouatta belzebul); macaco-cairara (kaihú - Cebus kaapori); macaco-cuxiú (kitxiú - Chiropotes satanus) e macaco-prego (ka’í - Cebus apella]. A técnica, que consiste em uma emboscada aérea dos animais, ainda contemplaria a captura de quatis (kwatxí - Nasua nasua) e ouriços-caixeiros (kãnú - Coendu prehensilis), mamíferos também de hábitos arborícolas. A carne mais apreciada é a do guariba, que é sinônimo de alimento.

Para além do fato de comerem esse animal, os Awa gostam de escutá-los. O capelão é considerado o animal terrestre mais barulhento do mundo e o seu grito pode ser ouvido por mais de 4 Km e produzir 130 decibéis. O fato dos guaribas serem animais sonoros é importante para os Awa: os guaribas, assim como os humanos, cantam.

Enquanto Uriximatỹa olha para a câmera, Kamará, Takya e Pirama’a observam a copa de uma árvore a procura de macacos, aldeia Juriti, TI Awa, 2007. Foto: Uirá Garcia
Enquanto Uriximatỹa olha para a câmera, Kamará, Takya e Pirama’a observam a copa de uma árvore a procura de macacos, aldeia Juriti, TI Awa, 2007. Foto: Uirá Garcia

Os Awa gostam do canto desses animais. Sempre que podem elogiam a capacidade deles de produzir um "belo canto" (jã pãryhy) – característica que os diferencia de outros macacos. Dificilmente caçam os capelães no final da tarde, pois é a hora que estão cantando. Então, param para ouvi-los. Os Awa conseguem distinguir pelas vozes quantos são fêmeas ou machos; adultos ou filhotes - tal como a pegada de um animal terrestre revelará seu peso, idade, sexo e outras informações relevantes para o caçador. A partir dessas informações que traçam os seus planos para o dia seguinte.

A técnica de caça aos capelães envolve cerco e intimidação que é chamada warí babopô ("espantar o capelão"). Trata-se de uma emboscada aérea. Para caçá-los, cada homem sobe estrategicamente em outras árvores situadas ao redor da árvore onde estão os animais. Ao perceberem a proximidade dos caçadores, os animais tendem a se esconder nas partes mais elevadas da copa de uma árvore.

Enquanto os homens sobem silenciosamente nas árvores, um caçador experiente, quase sempre um velho, sobe o mais próximo que consegue à copa da árvore onde se escondem os animais. Uma vez lá em cima, observa, mexe nas folhas e tenta encontrar algum vestígio ou esconderijo do grupo, que está camuflado, e quando finalmente se certifica que estão ali, inicia uma fala muito específica. No cerco que se inicia, ganha vida um processo comunicativo no qual o animal é ameaçado; escorraçado de seu abrigo de folhas; muitos gritos são dados, principalmente por esse homem. Enquanto isso, quem permanece no solo (mulheres e crianças) ajuda-o com gritos e assobios. O cerco consiste em fazer com que os animais escondidos fujam de seus abrigos, se dispersem para as outras árvores para finalmente serem abatidos na fuga.

O processo pode durar horas com o caçador desafiando os animais até que uma hora, apavorados, fogem. No momento imediato à fuga, na confusão, escuta-se tiros misturados a gritos, zunidos de flecha e berros desafiadores dos valentes capelães. Após alguns segundos, os animais são feridos e caem das árvores.

Cosmografia

O eixo céu e terra é um dos aspectos fundamentais para o entendimento do mundo awa, como para a maioria dos grupos Tupi-Guarani. A terra (wy'), o local onde vivem os humanos, é apenas uma pequena parte do universo.

Há também diversos iwá ("céus"), onde habitam os mortos e outros seres celestes, como os karawara. Os patamares celestes (iwá) são incontáveis e os humanos não sabem ao certo quantos níveis existem sobre a terra. A subida ao céu (ohó iwá pe) é experimentada pelos homens, sobretudo, durante o ritual da takája e uma vez no céu, eles conseguem subir para mais dois ou três patamares para visitar outras aldeias celestes.

A cosmografia awa também faz referência a um mundo subterrâneo, igualmente denominado iwá, onde habita uma outra humanidade, sobre a qual os humanos da terra pouco sabem.

O cosmos atual é compreendido como resultado da separação de um mundo anterior, no qual o céu, a terra e o subterrâneo eram muito próximos. Como em diversas sociocosmologias tupi, os Awa se referem a uma histórica separação entre as camadas cósmicas, cujo resultado principal foi a diferenciação entre os habitantes da terra.

Iwá ("céu"), ha-ripá ("aldeia") e ka’a (“floresta”) são os principais eixos em torno dos quais a vida dos Awa Guajá gravita. Céu e mata são domínios pelos quais guardam grande interesse, figurando como temas centrais em boa parte das conversas cotidianas.

A floresta (ka’a) é o local onde os Awa sempre viveram e o habitat de tudo aquilo que conhecem: animais, mel, plantas medicinais, frutos etc. Apesar de todo perigo que oferece, a floresta ofereceu, ao longo da história recente desse povo, segurança para que conseguissem viver distanciados dos kamará (“outros indígenas”) e dos karaí (“não indígenas”).

Pessoa humana

A humanidade foi criada por Maíra, o herói cultural. Sozinho no mundo, produziu a partir de um tronco de árvore a primeira mulher na terra (wy). Com o seu surgimento e a consequente gravidez, inicia-se um ciclo a partir do nascimento de dois meninos gêmeos, os filhos dos heróis, Maíra e Ajỹ. As narrativas (mumu'uáena) contadas pelos Awa abordam as aventuras desses gêmeos enquanto estavam na terra, pois depois decidem abandoná-la e vão viver no céu (iwá).

Em primeiro plano, o ancião Tatajkamaha (já falecido), e ao fundo os jovens Guardiões da Floresta na TI Awá, 2016. Foto: Uirá Garcia
Em primeiro plano, o ancião Tatajkamaha (já falecido), e ao fundo os jovens Guardiões da Floresta na TI Awá, 2016. Foto: Uirá Garcia

A pessoa humana é constituída por três elementos: ipiréra ("corpo" ou “couro”), haitekéra ("princípio vital" ou "vitalidade") e ha'aera ("raiva-espectro" ou "alma penada"). Nenhum destes elementos é um princípio abstrato, tais como “representações” do que seria a pessoa humana. Ao contrário, remetem a noções relativas à fisiologia dos corpos e fornecem uma terminologia apropriada para o entendimento das relações entre humanos e não humanos.

Quando uma pessoa morre, os Awa costumam dizer que "haitekéra foi para iwá" (haitekéra ohó iwá) e, uma vez falecida, permanece no céu. A ideia de morte implica no deslocamento espacial do princípio vital da pessoa da terra para os patamares celestes. Seu “couro” permanece na terra até apodrecer e a “raiva” segue para a floresta (kaa), em locais recônditos, e se transforma em ajỹ. Esta última categoria remete a espectros canibais que vivem na mata e costumam atacar os humanos, provocando-lhes doenças.

Os Awá traduzem ha’aera para o português como “raiva”, mas não se trata da mesma “raiva” que se expressa pelo termo imahy (“bravo”, "aborrecido”). Esta última é um sentimento que, apesar de perigoso e desprezado, é muito comum e importante em diversas situações, como na guerra. Ha’aera, ao contrário, pode ser traduzido pela ideia de “raiva-espectro”, devido tanto à sua condição de “sombra”. Um princípio invisível e espectral que é dotado de grande penetração. É algo que todo humano carrega, pois faz parte da sua composição física, porém, ao ser liberado após a morte, age como uma energia formadora de seres ligados à morte, os ajỹ.

Assim como os humanos, diversas presas animais também liberam "raiva" (ha’aera) e isso traz muitos problemas aos humanos, especialmente, aos caçadores. A "raiva-espectro" dos animais caçados pode buscar vingança, emanando doenças e retirando a sorte de caçadas futuras. Macacos, veados, porcos, dentre outros animais de caça, mesmo depois de mortos, podem se lançar em uma vingança noturna e invisível com a intenção de atingir o caçador, deixando-o doente. Muitos caçadores, principalmente quando estão dormindo, podem ser atacados pelo espectro raivoso do animal abatido. Esta é uma causa comum de doenças entre os Awa Guajá.

Com frequência, as doenças são causadas por um desequilíbrio entre esses elementos que compõem a pessoa e são desencadeadas por motivos diferentes: o medo; a tristeza; a saudade; um sonho ruim; um alimento proibido que por algum motivo seja ingerido; o contato com cadáveres; a falta de alimentação adequada; o encontro com os ajỹ, os seres-espectros que habitam a floresta. Apesar de terem causas diferentes, as doenças têm alguns sintomas que são característicos de uma disfunção no “princípio vital” de uma pessoa: fraqueza no corpo, dores no fígado, no coração e na cabeça. Esses e outros sintomas são comumente associados à vulnerabilidade do "princípio vital" (haitekéra) que pode abandonar o corpo da pessoa temporariamente, expondo-a a situações de perigo.

Karawara, os espíritos da floresta

Os karawara são espíritos celestes que embora vivam em patamares superiores (iwá), mantêm um trânsito constante com a terra. Costumam vir em busca de “caça”, “água”, “mel" (e por vezes fogo), produtos essenciais para a vida no céu. Nessas vindas para terra podem ajudar os humanos com curas xamânicas.

Possuem uma imagem humana celestial definida: são bem adornados com cocares e braceletes. São habitantes de um lugar limpo e agradável, caçadores infalíveis, cantores magníficos e falantes de uma outra língua, uma fala celeste (iwá ma’ihá, “fala do céu”) cuja prosódia é o canto ().

Se perguntarmos a uma pessoa awa o que é um karawara, provavelmente, teremos respostas como: awa parãhy ("humanos belos"); awaeté ("gente de verdade"); awa katy ("pessoas boas"); ou karawara watê ("os karawara estão lá em cima").

A floresta é o lugar onde os espíritos karawara também caçam, mas aqui na terra eles podem assumir também a forma de animais e plantas. Cada espírito celeste possui na terra um correspondente animal, vegetal ou mesmo fenômeno da natureza, que seriam como suas extensões terrenas.

São relacionados a pequenos animais, insetos, plantas e alguns objetos. Seriam, por exemplo, uma "gente pica-pau", "gente pássaro juriti", "gente tucano", "papagaio”, “siricora", "sabiá", "borboletas", "marimbondos", "gente taquara", dentre outras plantas e bichos.

Cada karawara é especializado em um tipo de caça, por exemplo: karawara Phu'uá Jará (gente pipira-de-bico-vermelho) é caçador de macaco-prego; karawara Makaró (gente pomba-galega) é caçador de queixada; karawara Xakará Jará (gente gavião-caracoleiro e gente gavião-de-cauda-curta) é caçador de guariba; karawara Taky Jará (gente tucano-de-bico-preto) se alimenta de bacabas; karawara Wahá Jará (gente carangueijo-do-rio) é caçador de veado; e Hairá Jará (gente irara ou papa- mel) desce à terra para coletar mel.

Descem à terra (wy) para caçar, preferindo não pisar no solo, pois entendem que o chão da terra é muito sujo, repleto de podridão, doenças e perecimento. A terra é habitada por criaturas desprezíveis aos olhos dos karawara, como os animais de criação dos brancos, principalmente os cachorros - cuja palavra na língua dos karawara é karory'ỹma, “lixo” -, além de galinhas, bovinos e porcos domésticos.

Os karawara sentem tanta fobia pela sujeira terrena que quando voltam para sua morada passam um tempo cuspindo no chão (jaru, “seu cuspir”) para liberar a sujeira através da saliva, se purificando. Os Awa também o fazem ao limparem vísceras, lidarem com sangue, carne podre ou qualquer outro odor fétido que impregne seus corpos. Alguns karawara, como Inamẽxa’á (gente-pássaro-saurá) e Inamẽtyxa’á (gente-pássaro-anambé-azul) nunca descem à terra, pois a consideram extremamente suja.

Caçam com arcos, flechas e espingardas de cima das árvores, sem pisar o solo terreno (wybe, “na terra”), e com uma rapidez espantosa. Seus equipamentos de caça lançam luzes e raios. Tanto a munição das armas quanto as flechas são constituídas por tatá (energia/fogo), o que faz com que seus disparos sejam certeiros. O animal morre sem qualquer ferimento e, principalmente, sem derramar sangue. Os karawara tem pavor de sangue. Após a presa abatida, amarram suas pernas com embira (iwira), a levam para o céu, onde todo o processo de limpeza e cozimento da carne é realizado. Como os karawara conseguem carnes na quantidade que desejam, nunca estocam carnes moqueada em suas casas, tal como fazem os humanos. Ao contrário, eles comem tudo até que se acabe.

Em poucas palavras, os karawara seriam, ao mesmo tempo, caçadores, pajés e espíritos magníficos. Ao descerem à terra (para caçar, extrair mel ou buscar água), os humanos não os encontram pois, além de serem rápidos em suas caçadas, as realizam em locais e matas distantes, onde os Awa não alcançam.

São esses seres grandes pajés e os seus cantos de cura são cantos que tematizam suas caçadas. Para os humanos, essa relação entre xamanismo e caça também é marcante; muitos "rezadores" são grandes caçadores.

Arte vocal

Cantar é um aspecto central para compreender a importância da caça e dos karawara na vida dos Awa. É possível dizer que uma das coisas que os Awa Guajá mais gostam de fazer, além de caçar, seja cantar.

Cantam em muitas situações: antes do amanhecer, acompanhando o nascer do sol, avisando a uma seção residencial que o sol irá raiar; a noite, para embalar as crianças no sono; nas caçadas, bem baixinho para que não sejam ouvidos; ou bem alto, ao voltarem para a casa com a caça abatida. Existem cantos que manifestam alegria, prazer sexual e a condição de se estar junto. Cantam mesmo até sem qualquer motivo aparente, só pelo prazer de soltar a voz.

"Cantar bonito" (jã paryhy) que é "cantar duro/forte" (jã haty). Os Awa valorizam a duração e a força do som emitido ao cantar.

A arte vocal awa é extremamente rica. É possível dizer que há tantas canções quanto são os karawara. Foram eles que ensinaram os cantos para a humanidade e cada um tem o seu repertório próprio. Cantar à noite, por exemplo, para uma criança dormir bem, sem pesadelos, é algo que os karawara aconselham aos humanos até hoje.

Os cantos que os Awa executam na terra são os mesmos que os karawara produzem no céu e os temas variam de acordo com cada karawara, pois cada espírito tem as suas peculiaridades. Esses inúmeros cantos revelam os aspectos mais essenciais de cada karawara, que é o dono do canto: sua alimentação; seu modo de caçar e outros detalhes de sua existência.

Ao cantar em casa à noite, planejando uma caçada, muitos caçadores podem atrair o karawara (dono do canto) que, durante a caçada, sobretudo nas esperas noturnas, pode entrar no corpo do caçador e, tal como um "espírito auxiliar", aumentar sua eficiência. Os karawara, portanto, auxiliam os Awa em suas caçadas.

Os cantos remetem diretamente à presa que o karawara, dono do canto, costuma caçar. E, nesse sentido, são cantos de caça que os Awa entoam, em voz baixa, quando vão para floresta caçar e, em voz alta, quando retornam para aldeia após um dia de caça.

A forma dos cantos é parecida, mas o que muda são os conteúdos, pois remetem a um karawara específico. Vejamos um exemplo:

Canto de karawara tapi'i jara (gente-anta)

Awata taryka pyha
A'u hanimi'ũa pyha
A'u hanimi'ũa
Awata pyha
A'u akaju
Awata matarahỹ nipe

Eu ando (caço) atrás de tatajuba à noite
Eu como minha comida à noite
Eu como minha comida
Eu ando (caço) à noite
Eu como caju do mato
Eu ando (caço) pelo escuro

Os Awa não cantam para os karawara, mas como os karawara. Eles se tornam esses espíritos celestes para cantar e caçar. Ao cantar, evocam o ponto de vista desses caçadores infalíveis que vivem no céu e ao fazê-lo se aproximam de um ideal de caça, inalcançável para os humanos.

Há ainda os cantos relacionados ao xamanismo awa que são realizados durante as sessões de cura. É no ritual da takaja que os cantos atingem um de seus principais objetivos: a comunicação com os karawara.

Ritual takája

Além dos Awa, outros povos montam "tocaias para a realização de diversos rituais, como os Asurini do Xingu, Aikewara, Parakanã, entre outros. Apesar das diferenças entre elas, tais espaços se caracterizam por serem locais onde espíritos e divindades celestes se instalam ao visitar a terra, seja para se alimentar, cantar, dançar ou curar.

A tocaia awa, chamada takája, tem como objetivo aproximar os mundos e trazer os karawara para cantar na terra, permitindo também que os homens viajem ao céu para cantar.

Nos meses do verão, um abrigo ritual semelhante a uma tocaia (takája) é construído e é lá onde o ritual acontece. É somente durante à noite que os homens entram na takája e entoam os cantos. A escuridão é uma das marcas desse momento ritual, os karawara só descem à terra na escuridão, pois, mesmo vindo caçar durante o dia, não gostam da luminosidade terrena.

Nas tocaias rituais, diferentemente daquelas feitas para caçar, há uma abertura no teto, de onde os xamãs-cantadores awa partem para alcançar iwá, as plataformas celestes. A takája não funciona como uma "casa cerimonial" em um pátio central, que congregaria humanos e deuses; ela é um elemento bem discreto e minimalista nas aldeias awa.

Piraima’a se preparando para o ritual de “subida para o céu”. Aldeia Juriti, TI Awa, 2009. Foto: Uirá Garcia
Piraima’a se preparando para o ritual de “subida para o céu”. Aldeia Juriti, TI Awa, 2009. Foto: Uirá Garcia

No início da noite, os homens começam a entoar seus cantos de maneira muito potente. E, aos poucos, começam a se adornar. Suas esposas os ajudam a se paramentar. A ornamentação consiste em braceletes com penas de tucano, chamados jamakwa, e um cocar formado com as mesmas penas, chamado jakỹita. No corpo e nos cabelos são afixadas penugens brancas de harpia, gaviões ou urubu-rei. Estas são presas com resina cheirosa de dois tipos de breu chamados jawarako e uhuka. O cheiro dessas resinas, dizem os Awa, é o próprio cheiro dos karawara.

Enquanto se adornam, os homens cantam, e uma vez prontos se dirigem ao abrigo cantando e dançando com passos específicos: as duas mãos entrelaçadas sobre o peito e, sem mudar a postura das mãos, levantam e abaixam o corpo como os movimentos de uma ave a ciscar o chão. Esta é uma das danças executadas pelos karawara no céu e imitadas pelos humanos na terra.

A cantoria (janaha) e a dança (panỹ) se iniciam, enquanto, um de cada vez, os homens adentram a takaja para cantar. Uma vez dentro, o homem inicia uma sucessão de cantos que são entoados com toda a força. Do lado de fora da takaja, homens, mulheres e, por vezes, nos momentos iniciais da noite, crianças, seguem cantando. É possível perceber o som da voz masculina dentro da takaja se deslocando de um lado para outro, já que o homem que se encontra dentro está dançando em movimentos circulares.

De repente ouve-se o barulho de um salto e um silêncio mortal no interior do abrigo: - O homem foi para o céu (oho iwa), alguém comenta. Nessa hora, a esposa, irmã ou outra mulher ligada ao viajante celeste inicia um canto frenético. É só a partir daí que podemos enxergar a importância das mulheres durante a cantoria. Sem elas dificilmente os homens conseguiriam voltar para casa, pois não conseguiriam encontrar o caminho de volta; atravessam muitos céus e poderiam facilmente se perder nesses mundos. O canto das esposas é o único elo que permite a conexão entre o céu a terra. Após subir ao céu, um homem pode permanecer lá por um tempo relativamente longo (algumas horas). Todo o ritual da takaja pode durar desde duas até umas seis horas.

Da mesma forma como ocorre quando alguém sonha (imuhy), o corpo do homem, quando dentro da takája, permanece na terra e o "princípio vital" (hajtekera) se desprende do corpo e viaja até o céu. Subir até lá é sempre perigoso. Os karawara convidam os homens para que subam mais em outros céus, que conheçam outras aldeias celestes; comam deliciosos banquetes; conheçam outros cantos, outras danças. Mas os humanos sabem que isso significaria a sua morte. Se os homens se distanciarem da terra, não ouviriam mais suas esposas cantando e assim perderiam o caminho de volta. todos sabem que não se deve andar muito nas plataformas celestes.

Aru karawara, trazer os espíritos celestes

Os homens se deslocam para os patamares celestes (iwá) a fim de entrar em contato com os karawara, espíritos celestes. O ritual da takája também tem como objetivo aproximar os karawara que vem na terra cantar, dançar e realizar curas xamânicas, pois são considerados grandes pajés.

Uma vez que o homem vai para o céu, o silêncio reina no interior da takája. Esse estado permanece por longos minutos e algum tempo depois, ouve-se o barulho de um pulo: dois pés pisam o chão simultaneamente, o que indica que algum visitante celeste veio a terra cantar. Quando os homens sobem aos céus, seu corpo fica dentro da takája, vazio, e é utilizado pelos karawara como uma pele. Ao se referir a quem sobe, os Awa dizem que ele "traz os karawara". Uma vez no céu, o homem diz aos seres celestes: "Desçam, vão ver seus parentes na terra". Alguns são bem-vindos, outros não e por isso devem ser espantados.

Cada karawara tem especificidades em seus cantos de modo que todas as pessoas que estão do lado de fora da takája sabem exatamente qual ser está em seu interior. Quando descem do céu, emitem sons característicos de seus duplos terrestres (onça, gavião, pássaros, marimbondos, porcos etc.). À medida que os homens saem da takája para cantar do lado de fora (quem canta são os próprios karawara), param na frente das mulheres e crianças, cantam () e sopram (pyy) os seus corpos.

O processo de cura consiste basicamente em trazer o "calor do céu" (iwa rakuha) e soprá-lo em diversas partes do corpo da pessoa. Esse calor pode agir de forma preventiva, fortalecendo o corpo, assim como pode curar uma pessoa doente. Os sopros executados pelo cantador-xamã fazem com que as pessoas fiquem bem, sem doença.

Há uma outra expressão para mencionar esse procedimento terapêutico: ru iwa janaha, "trazer a música/canto do céu". Os karawara e a cura estão diretamente relacionados. É pelo canto que os homens se comunicam com esses espíritos celestes que, então, os auxiliam nas curas.

A terapêutica awa se vale de cantos e remédios tradicionais. Os Awa não fazem uso de tabaco nem de bebidas fortificantes que seriam consumidas pelos cantadores-xamãs. O máximo que utilizam são remédios da floresta como auxílio da cura, porém o básico é o canto e o sopro.

Além da takája, há pelo menos uma outra forma de trazer os karawara à terra: por meio de cantos noturnos feitos por um homem em sua casa. Seu princípio vital deixa o corpo e vai ao céu enquanto o karawara vem à terra para curar. Quando o homem canta, o karawara se instala em seu peito e logo lhe comunica os procedimentos que devem ser feitos. Essas curas são chamadas simplesmente de karawara ou ru karawara ("trazer espírito"). Os corpos dos pacientes são, então, soprados, tirando o agente patogênico (ha'aera) que ali se instalou.

Os karawara ajudam os homens a curar e a caçar, pois com eles estabelecem relações de reciprocidades. Mas sem a caça, o mel e a água terrena os karawara morrem. Nesse sentido, o desequilíbrio ecológico é também desequilíbrio cósmico. O fim da vida celeste pode ser provocado pelo desmatamento e degradação ambiental na terra e pela penúria alimentar dos karawara e dos Awa.

Os Awá nunca falaram explicitamente sobre uma teoria fatalista oriunda do desmatamento, mas sugeriram, em diversos momentos, o descontentamento dos karawara com o fim da floresta. Os karawara estão os mais interessados nas florestas em pé, pois o mundo dos espíritos celestes está em relação de continuidade com o mundo dos Awa. Isso acarreta apreensão e tristeza aos humanos.

Novas formas de organização política

Os Awa Guajá que vivem nas aldeias são considerados pelo Estado brasileiro como um povo de “recente contato” e por isso vivem sob sua forte tutela. São pessoas que vivenciaram diversas políticas de contato: desde a criação das chamadas “frentes de atração”, passando pelos postos indígenas até a reestruturação da Funai e a criação das Frentes de Proteção Etnoambiental.

Ao longo desse período, esses Awa foram alijados de qualquer processo participativo que pudesse prepará-los para a barbárie que chegaria, mais recentemente, com a duplicação da Estrada de Ferro Carajás e diversas outras ameaças como a maciça invasão de seus territórios por madeireiros e posseiros.

Os Awa estão no meio de um turbilhão de transformações decorrentes do contato, do desmatamento e da invasão de seus territórios, de novos relacionamentos com a Frente de Proteção Awá-Guajá/Funai, os Guajajara (seus aliados na proteção da floresta), além de outros agentes. Além disso, há a chegado de recursos oriundos de um Plano Básico Ambiental (PBA) de mitigação dos impactos da duplicação da ferrovia Carajás da Vale.

A fim de lidar com esses desafios, criaram duas associações indígenas cujo objetivo principal é fortalecê-los frente a tantas mudanças e ameaças. Em 2018, foram fundadas a Associação Kakỹ (TI Alto Turiaçu) e a Associação Arari (TIs Caru e Awá).

Reunião de formação da organizações indígenas Arari e Kakỹ. Aldeia Awá, TI Caru, 2016.
Reunião de formação da organizações indígenas Arari e Kakỹ. Aldeia Awá, TI Caru, 2016.

As associações receberam um aporte financeiro inicial oriundos do Plano Básico Ambiental (PBA) da duplicação da ferrovia e hoje conta com diretorias constituídas e um assessor não indígena contratado cada uma. Esse processo tem aproximado de maneira inédita os Awa das diferentes aldeias e, além disso, do ponto de vista desse povo, as associações vêm atuando como um interlocutor entre as aldeias e os diversos agentes de fora. O objetivo principal dessas organizações é formular projetos que sejam interessantes para as aldeias no sentido de promover ações com as quais os Awa se identificam e ao mesmo tempo gerar renda para as famílias. As mulheres, especialmente, estão engajadas na produção de artesanatos os quais desejam comercializar por meio da Associação Arari e também esperam participar de oficinas promovidas pela associação (de artesanato, mas não só), com a participação de instrutores possam ensiná-las novas técnicas e linguagens ou apoiá-las no aperfeiçoamento de trabalhos que já realizam.

Os resultados de todos esses processos ainda são incertos, mas para os Awa Guajá já passou da hora de assumir o protagonismo de suas vidas. Durante décadas foram retratados como “exóticos”, “nômades”, “caçadores-coletores”, “sobreviventes” e toda a sorte de adjetivos que ressaltavam uma equivocada primitividade. Hoje estão buscando gerir plenamente suas vidas, cujos desafios, como a entrada do dinheiro com benefícios sociais, a chegada de ONGs, as compensações ambientais e mesmo as missões evangélicas (para o caso da TI Alto Turiaçu), os colocam em contextos que trazem muitas incertezas, inclusive, existenciais. O maior desafio reside em garantir de forma conciliada a proteção dos recursos naturais, o desenvolvimento de fontes de renda sustentáveis e a manutenção da qualidade de vida, frente a tantos retrocessos que o Brasil vem atravessando nas áreas ambientais e de direitos humanos.

Notas sobre as fontes

Apesar deste verbete basear-se substancialmente em meu próprio trabalho, cujos principais resultados podem ser encontrados no livro Crônicas de Caça e Criação (2018), muitos autores são decisivos para a consolidação de uma literatura qualificada sobre os Awa Guajá.

Autores como Loretta Cormier (2003) Louis Forline (1997) e, sobretudo, William Balée (1994) e Mércio Gomes (1982, 1985) dedicaram páginas importantes de seus trabalhos a fim de reconstruir a ocupação awa guajá na região do leste amazônico que, mesmo com relatos esporádicos desde o século XIX, raramente apareceu na bibliografia etnológica especializada.

Das primeiras descrições, a mais segura provavelmente é a da Curt Nimuendajú (1948) à época do Handbook of South American Indians (Vol. 3). Além de se basear em sua passagem pela região, o autor também compila um conjunto de outros relatos. Em Nimuendajú (1948) são contempladas descrições como a de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio (1825) que, em 1774, menciona entre os grupos indígenas do baixo Tocantins os Uaya. Um outro autor apresentado por Nimuendaju, Cezar Augusto Marques (1864), menciona os Ayaya, um povo "selvagem" que se encontrava nas imediações da estrada que ligava Imperatriz a Belém. De acordo com Araujo Brusque (1862: 12) os Uaiara (Guajará, segundo Nimuendajú) podiam ser vistos no alto curso do Rio Gurupi, mas não fixaram residência naquela região (Nimuendajú, 1948: 135-136). Antes de Nimuendajú, o engenheiro Gustavo Luís Guilherme Dodt viajou pela região do Gurupi (na segunda metade do século XIX) e em 1873 publicou o seu relato que foi reeditado em 1939 (Dodt, 1939).

Em 1957, François-Xavier Beghin publicou um curto e pioneiro relato de viagem no Journal de la société des américanistes a partir de um encontro que teve com um grupo awa que vivia na região do rio Turiaçu, no limite com o estado do Pará. Tal encontro, muito bem descrito, foi mediado por seu Raimundo, um homem negro que trabalhava como guarda-linha na região. Neste relato, o autor capta elementos importantes sobre os Awa que até hoje são fontes de debate e interesse: gosto pela vida na mata, o interesse pela caça e pela criação de animais em suas pequenas aldeias-acampamentos.

Posteriormente, foi em trabalhos sobre os Ka’apor, como o de Francis Huxley (1963) e Darcy Ribeiro (1996), que conhecemos um pouco mais dos Awa - a partir da descrição dos encontros dos Ka’apor (e mesmo desses antropólogos) com grupos awa da região do rio Gurupi.

Em relação ao contato, o primeiro relatório oficial foi redigido pela antropóloga italiana Valéria Parise em 1973 (Relatório da viagem ao Alto Rio Carú e Igarapé da Fome para verificar a presença de índios Guajá). Junto com Parise estavam também os sertanistas Jairo Alberto Patusco e José Carlos Meirelles, este último veio se tornar um dos mais importantes indigenistas do país. Na década de 1980, Mércio Gomes também escreveu um conjunto de relatórios, comunicações e reflexões em parte como pesquisador independente, em parte para a Funai e como coordenador do chamado “Programa Awá”, concebido no bojo da construção da Estrada de Ferro Carajás. O objetivo do programa era conter o impacto da construção da ferrovia na vida dessa população. Os relatórios e publicações de Gomes são importantes para termos a real dimensão do violento efeito do contato na vida dos Awa. Tais documentos encontram-se nos arquivos da Funai e destacamos aqui os trabalhos de 1985: Programa Awá – relatório Inicial; Relatório antropológico sobre a área indígena Guajá (Awá-Gurupi); Relatório sobre os índios Guajá Próximos à ferrovia Carajás - Km 400 e, em parceria com José Carlos Meirelles, Área indígena Awá-Gurupi. Estudos e proposta.

As décadas de 1980 e 1990, como desdobramento dos primeiros contatos oficiais com parte da população awa guajá, propiciou o aparecimento de diversas pesquisas, sobretudo, nas áreas de linguística e antropologia. Na linguística, a Análise fonêmica preliminar da língua Guajá (1987) de Péricles Cunha é pioneira. Em antropologia, temos as teses de Louis Carlos Forline, The persistence and cultural transformation of the Guaja Indians: Foragers of Maranhão state, Brazil (1997), e de Loretta Cormier, que veio a ser publicada em livro com o título Kinship With Monkeys (2003) - são os dois primeiros trabalhos monográficos sobre os Awa. Ao lado desses, o livro Footprints of the forest: Ka’apor ethnobotany – the historical ecology of plant utilization by an amazonian people de William Balée (1994), que realiza uma comparação entre os Ka’apor e os Guajá e suas distintas formas de manejo da floresta, é um marco na literatura, não só sobre os Awa Guajá, mas sobre a Amazônia como um todo.

Em anos mais recentes, um conjunto de antropólogos e linguistas vêm se dedicando ao estudo de diferentes aspectos da vida dessa população. Muitos desses autores estiveram apenas de passagem, o que em nada diminui a sua contribuição. Outros, por sua vez, vêm construindo uma parceria duradoura que associa atuação política e produção de um conhecimento situado a partir dos interesses dos Guajá. Sob uma perspectiva mais materialista, da ecologia política, destacam-se a dissertação de mestrado de Helbert Medeiros Prado, O impacto da caça versus a conservação de primatas numa comunidade indígena Guajá (2008), e publicações de Prado com Louis Carlos Forline e Renato Kipnis como "Hunting Practices among the Awá-Guajá: Towards a long-term analysis of sustainability in an Amazonian indigenous community" (2012). Além desses estudos, um grupo de arqueólogos estrangeiros também publicou análises nessa mesma perspectiva. Destacamos o artigo de Alfredo González Rubial, Almudena Hernando e Gustavo Politis "Ontology of the self and material culture: Arrow-making among the Awá hunter-gatherers (Brazil)" (2010). Por fim, sob essa perspectiva, é importante destacar o livro de William Balée Cultural Forests of the Amazon. A Historical Ecology of People and their Landscapes (2013).

Sob uma perspectiva histórica e do contato destacamos os trabalhos de Eliane Cantarino O'Dweyer, O papel social do Antropólogo (2010), com uma profunda reflexão sobre a produção de dados para o laudo da Terra Indígena Awá e os desdobramentos dessa pesquisa. Há também a coletânea organizada por Almudena Hernando e Elisabeth Maria Beserra Coelho - Estudos sobre os Awá – caçadores-coletores em transição (2013) que reúne trabalhos de autores com diferentes orientações.

Reunindo etnograficamente história, política e ecologia a tese de doutorado Guilherme Ramos Cardoso, Ariku karai pyry: o "ficar no meio dos brancos" para os Awa do Pindaré, MA (2019 Unicamp), e a dissertação de mestrado de Marcelo Yokoi - Na Terra, no céu: os Awá-Guajá e os Outros (2014 Unicamp) - também se destacam como fontes incontornáveis.

Mais recentemente, na área de linguística, a tese Sobre a Morfologia e a Sintaxe da Língua Guajá (Família Tupi-Guarani) (2007 UnB) de Marina Magalhães é uma contribuição decisiva. E, além desta, a tese de Flávia de Freitas Berto - Tipologia de articulação de cláusulas: contribuições de um estudo sobre o Guajá (2017 Unesp) também se destaca. Além dessas, a pesquisa Awa Papejapoha: um estudo sobre educação escolar entre os awá guajá/MA (2015 UnB) de Rosana de Jesus Diniz Santos, a partir de sua experiência enquanto missionária do CIMI e professora da escola indígena é uma importante contribuição.

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