De Povos Indígenas no Brasil

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Introdução

Quando comparados à nossa sociedade, os povos indígenas apresentam características comuns. No entanto, quando vistos de perto, nota-se além das semelhanças, muitas diferenças.

Variam as culturas, as línguas, as formas de organização social e política, os rituais, as cosmologias, os mitos, as formas de expressão artística, as habitações, as maneiras de se relacionar com o ambiente em que vivem etc.

Esta parte dedicada aos modos de vida dos povos indígenas procura mostrar tanto a diversidade entre os grupos mencionados quanto os aspectos comuns que compartilham entre si.

Xamanismo

Foto: diversos autores, veja aqui

por Pedro de Niemeyer Cesarino (2009)

"Xamanismo" é algo que não se reduz a uma só definição ou explicação. Religião, crença, ritual, sistema de pensamento, ontologia, configuração de mundo: tais são algumas das categorias polêmicas que surgem à mente quando se trata de fazer uma breve apresentação sobre o assunto. O termo, genérico e mal compreendido, é empregado para designar um sistema ritual dos mais antigos da humanidade, partilhado por povos que se estendem da Ásia até o extremo sul da América. "Xamã" parece derivar de çaman, palavra empregada pelos Evenks siberianos para designar os seus especialistas rituais. É análoga a "pajé", derivada por sua vez de termos das línguas tupi-guarani também utilizados na referência a tais especialistas. Cada uma das línguas ameríndias possui seus termos equivalentes, em qualquer parte dos três continentes.

O xamanismo representa, assim, uma base comum aos povos autóctones da Ásia e das Américas, já que este continente foi ocupado por sucessivas migrações provenientes do primeiro. Mais antigo, o xamanismo foi sobreposto por grandes religiões tais como o budismo, o confucionismo, o taoísmo, o cristianismo e o islamismo. Algo análogo ao que ocorre no Brasil, quando os xamanismos indígenas passam a se defrontar com o credo católico ou protestante. Esta é, aliás, uma boa maneira para se compreender um dos traços essenciais do fenômeno: o xamanismo nem sempre desaparece no enfrentamento com grandes sistemas religiosos. Talvez porque não possa ser compreendido exatamente como uma "religião", ele acaba por se infiltrar, por subverter ou por sobreviver às tentativas de conversão que, no Brasil por exemplo, são realizadas desde a invasão européia.

Tratamos, afinal, de uma certa organização ou configuração de mundo que não possui um dogma estabelecido, um conjunto de doutrinas ou alguma escritura sagrada, uma liturgia fixa, um corpo de sacerdotes organizado em torno do Estado e, mais importante, uma fé em alguma divindade única. Difícil, portanto, definir o xamanismo como uma crença. Tais ausências são especialmente válidas para os povos indígenas das terras baixas da América do Sul, ou seja, para aqueles que não viveram sob o domínio de organizações estatais, tais como o império Inca. A mediação exercida pelos xamãs amazônicos tem mais a ver com uma certa diplomacia, uma forma de traduzir e de conectar os humanos viventes à multidão de espíritos, de almas de mortos e de animais que constituem as cosmologias indígenas. Nestas, não há exatamente deuses que encarnam ou que detém poderes sobre fenômenos naturais, para os quais são erguidos templos e oferecidos sacrifícios (como no caso dos Aztecas ou dos Mayas). As entidades com as quais os xamãs indígenas se relacionam são de outra ordem. Ao invés de despachar uma vítima sacrificial como intermediária entre deuses e humanos, os xamãs vão em pessoa encontrar os espíritos e demais sujeitos que habitam os seus mundos.

Xamanismo sem xamãs

O xamanismo, aliás, não se concentra tanto em cargos definidos, tal como no caso dos sacerdotes, mas sim em processos de transformação e de transporte para as moradas destas entidades outras. Não por acaso, algumas sociedades indígenas, tais como os Parakanã do Xingu, possuem um xamanismo sem xamãs. Na ausência de um especialista ritual determinado, são as pessoas comuns que, em sonho, encontram espíritos e trazem deles os cantos que serão executados mais tarde na aldeia, quando o sonhador já estiver desperto. É como se todos fossem de alguma forma um pouco pajés e pudessem, ao seu modo, estabelecer contato com a multidão de entidades invisíveis. O surgimento súbito de um xamã é também algo possível: em um momento de crise, em geral caracterizado por uma grave doença, um sujeito pode começar a estabelecer contato com "pessoas outras" que renovam seu corpo, trocam seu sangue, introduzem elementos mágicos em sua carne, ensinam-lhe cantos. Diz-se então que a pessoa "empajezou", transformou-se em uma pessoa outra. Agora será dotada de "um outro olho", capaz de enxergar o que é invisível às pessoas comuns (ao menos em seu estado desperto).

Todos esses fenômenos estão relacionados a uma composição básica da pessoa nos mundos indígenas. Há sempre uma divisão entre o corpo e ao menos duas almas ou duplos – uma que se transformará em fantasma ou espectro após a morte, outra que terá um destino especial, celeste em muitos casos. O corpo, porém, não é um feixe fisiológico tal como o concebido pelos médicos ocidentais, mas uma espécie de invólucro, de envelope, carcaça, pele ou roupa que abriga as almas de aparência humana. Em estados liminares tais como sonhos, doenças, ou ingestão de substâncias psicoativas, a alma sai de seu corpo/roupa e perambula por aí. Vai encontrar outras aldeias, espíritos, homens e mulheres que os olhos "do corpo" não conseguem enxergar. É nesse ponto que mito e xamanismo se relacionam.

O que é um mito?

Em uma entrevista, fizeram a Claude Lévi-Strauss a seguinte pergunta: "O que é um mito?". E o antropólogo assim respondeu: "Se você perguntasse a um índio americano, é muito provável que ele respondesse: é uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não se distinguiam. Esta definição me parece muito profunda"1. As narrativas míticas ameríndias de fato giram em torno deste tema: houve um tempo em que a imagem geral do cosmos era uma imagem "humana", todas as espécies partilhavam uma forma humana genérica, até que algum evento de ruptura interrompeu tal estado primeiro, instaurando os limites, as diferenças e o problema da invisibilidade. Daí em diante, os animais, frequentemente por conta de algum erro que cometeram nos tempos míticos, ganham corpos/roupas de onça, anta, porco do mato ou de outros bichos, mas continuam com a mesma alma humana que sempre possuíram. Os humanos, por sua vez, são os únicos que mantém o seu corpo à semelhança desta alma genérica, ainda partilhada por todas as entidades que compõem isso que chamamos de "natureza". Veja o que diz o xamã yanomami Davi Kopenawa:

"No começo do tempo, quando nossos antepassados ainda não tinham se transformado em outros, éramos todos humanos: as araras, os tapires, os queixadas, eram todos humanos. Depois, esses antepassados animais se transformaram em caça. Para eles, porém, somos sempre os mesmos, somos animais também; somos a caça que mora em casas, ao passo que eles são os habitantes da floresta. Mas nós, os que ficamos, nós os comemos, e eles nos acham aterrorizantes, pois temos fome de sua carne"2.

 Ora, mas os tempos míticos não se esgotaram. Para os povos indígenas, eles continuam suspensos ou paralelos à atualidade. Muitos animais seguem pensando para si mesmos que são gente, enquanto nós os enxergamos em seus corpos/roupas de bicho. Quando o duplo ou alma de uma pessoa sai para fora de seu corpo, ele pode ver aquilo que antes permanecia velado: as aldeias sub-aquáticas e suas festas; o duplo ou alma humanóide de uma arara; uma árvore que, para os olhos alterados, se mostra como uma sociedade, pois os periquitos podem muito bem se conceber como pessoas e viver, portanto, em malocas.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro formulou bem o problema através de um contraste interessante: os mundos indígenas são multinaturalistas, concebem uma multiplicidade de naturezas (os diferentes corpos dos bichos) e uma unidade da cultura (a cultura humana partilhada por todas as espécies). O mundo ocidental, por sua vez, é multiculturalista, imagina uma multiplicidade de culturas (chinesa, francesa etc.) e uma só natureza. Nesta concepção, animais são radicalmente distintos dos humanos por não possuírem, precisamente, uma alma pensante análoga à nossa e, portanto, uma cultura. Aproximam-se de nós por serem mamíferos, por partilharem de uma natureza comum, enfim. O pensamento indígena pressupõe o contrário: os bichos são próximos de nós porque para si mesmos se concebem como gente e possuem, portanto, uma cultura (malocas, redes, festas, pinturas corporais, cocares e adornos) semelhante a esta visível nas aldeias. Mas os corpos são outros.

E o xamanismo?

Ora, isso tudo é o xamanismo, essa especial constituição de realidade e de ética cosmológica. Os xamãs, diplomatas ou tradutores, como diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, são os responsáveis pelo arriscado trânsito de almas para além dos corpos. Um homem comum pode, na doença por exemplo, ver a gente-sucuri em suas casas (que sadio ele veria como o rio) e ser seduzido por uma bela mulher-sucuri. Ele passaria então a viver ali com a sua família sub-aquática sem se dar conta de que, na outra aldeia, seu corpo definha e preocupa a sua família "humana". Ele está doente porque incompleto ou vazio, pois a alma ou duplo está alhures com a nova mulher-sucuri. Um xamã deverá então trazê-lo de volta ao seu corpo e, assim, resolver este problema social espalhado pelo cosmos. Situações como esta acontecem com freqüência nas aldeias indígenas. O xamã ou pajé está, a rigor, acostumado com tais trânsitos. Ele já é outra pessoa, pode ter uma família com os humanos-outros, vive sempre entre duas referências, transita entre as gentes dos animais, os espíritos, as almas dos mortos. Costuma trazer de lá notícias através de seus cantos e, assim, integra o enorme contingente de entidades invisíveis ao cotidiano das aldeias. Não por acaso, alguns índios da Amazônia costumam dizer que o pajé "é como um rádio".

Um dos grandes erros está em imaginar que o xamanismo é uma espécie de mística new age, ou então uma tradição fadada ao desaparecimento pelas transformações sociais e pela problemática idéia de aculturação. O xamanismo – esta rede ou malha de conexões entre princípios anímicos que vivem por detrás dos corpos visíveis – é algo por princípio criativo e voltado para a alteridade. Exímios negociadores das multiplicidades sociais presentes desde os tempos míticos, os pajés sabem traduzir em seus próprios termos as novidades de nosso mundo. Os Maxakali são um emblema disso. Confinados em uma terra de Minas Gerais agora repleta de capim, privados da caça e do acesso à paisagem na qual outrora viviam, não deixaram entretanto de possuir uma intensa e fascinante produção ritual. Antenados, fizeram em certa festa um telefone celular de argila, utilizado para a comunicação com os espíritos das lontras3.

 

 

Notas

1. Lévi-Strauss, Claude & Eribon, Didier. De perto e de longe – entrevista com Claude Lévi-Strauss. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988. 

2. Kopenawa apud Viveiros de Castro, Eduardo. "A floresta de cristal". Cadernos de Campo 14/15, 1998, pp. 319-338.

3. Imagens do filme Hemex e Xunin, Terra Indígena do Pradinho, 2005 (acervo de Rosângela de Tugny).

== Mitos e cosmologia ==

Edição a partir dos textos Mitos e cosmologias indígenas no Brasil: breve introdução (1992) e Mito, razão, história e sociedade (1995), de Aracy Lopes da Silva

 

O que são mitos?

Uma das maneiras pelas quais os especialistas costumam conceber os mitos inclui sua definição como narrativas orais, que contêm verdades consideradas fundamentais para um povo (ou grupo social) e que formam um conjunto de histórias dedicado a contar peripécias de heróis que viveram no início dos tempos (no tempo mítico ou das origens), quando tudo foi criado e o mundo, ordenado. O que se enfatiza, dessa perspectiva, é o caráter de narrativas que os mitos têm.

O mito (assim, no singular) pode também ser definido com um nível específico de linguagem, uma maneira especial de pensar e de expressar categorias, conceitos, imagens, noções articuladas em histórias cujos episódios se pode facilmente visualizar. O mito, então, é percebido como uma maneira de exercitar o pensamento e expressar idéias. Quais seriam, porém, suas características distintivas?

Estas duas definições coincidem no que é essencial: primeiro, ambas indicam que os mitos dizem algo e algo importante, a ser levado a sério; segundo, ambas apontam também para o fato de uma das especificidades do mito estar na maneira de formular, expressar e ordenar as idéias e imagens pela qual se constitui como discurso, e pela história que narra; por fim, ambas sugerem uma relação particular entre o mito (ou os mitos), o modo de viver e pensar e a história daqueles povos responsáveis por sua existência.

 

De que falam os mitos?

Indiferenciação entre humanos e animais, que se relacionam como iguais; céu e terra próximos, que quase se tocam; viagens cósmicas, homens que voam, gêmeos primevos, incestos criadores; origens subterrâneas; dilúvios; humanidades sub-aquáticas; caos, conquistas, transformações... É o mundo tomando forma, definindo lugares e características de personagens hoje conhecidos.

São os temas míticos, que narram aventuras e seres primordiais, em uma linguagem que se constrói com imagens concretas, captáveis pelos sentidos; situadas em um tempo das origens, mas referidas ao presente, encerrando perspectivas de futuro e carregando experiências do passado. Assim, complexos, são os mitos.

São, também, extremamente variados, já que são criações originais de cada grupo com identidade cultural própria, referidos às suas condições de existência e à cosmovisão aí elaborada. Mas é igualmente inegável a sua condição de variações sobre temas comuns, compartilhados não apenas localmente mas, em alguns casos, em escala universal. Particulares e locais, universais e essencialmente humanos. Talvez resida aí uma parte do fascínio e do mistério dos mitos.

Em universos sócio-culturais específicos, como aqueles constituídos por cada sociedade indígena no Brasil, os mitos se articulam à vida social, aos rituais, à história, à filosofia própria do grupo, com categorias de pensamento elaboradas localmente que resultam em maneiras peculiares de conceber a pessoa humana, o tempo, o espaço, o cosmos. Nesse plano, definem-se os atributos da identidade pessoal e do grupo, que é distintiva e exclusiva, e construída no contraste com aquilo que é definido como o “outro”: a natureza, os mortos, os inimigos, os espíritos.

 

O que são cosmologias?

São teorias do mundo. Da ordem do mundo, do movimento no mundo, no espaço e no tempo, no qual a humanidade é apenas um dos muitos personagens em cena. Cosmologias definem o lugar que os humanos ocupam no cenário total e expressam concepções que revelam a interdependência permanente e a reciprocidade constante nas trocas de energias e forças vitais, de conhecimentos, habilidades e capacidades que dão aos personagens a fonte de sua renovação, perpetuação e criatividade. Na vida cotidiana, essas concepções orientam, dão sentido, permitem interpretar acontecimentos e ponderar decisões. São expressas através da linguagem simbólica da dramaturgia dos rituais. Música, ornamentos corporais, entre outros recursos, permitem o contato com outras dimensões cósmicas, com momentos outros do mundo e do processo da vida (e da morte).

É central a definição do que seja a humanidade e de seu lugar na ordem cósmica em contraposição a outros domínios - habitados e controlados por seres de outra natureza - vistos, às vezes, como momentos diversos de um processo contínuo de produção da vida e do mundo. No cosmos concebido, há ordem, há classificação, há oposição lógica, há hierarquia, categorias inclusivas e exclusivas. Mas há também movimento e um jogo constante com o tempo, seja para suprimi-lo, permitindo aos viventes humanos um reencontro possível com o passado, os ancestrais, as origens, seja para torná-lo eixo da própria existência, destinada a completar-se e a constituir-se plenamente após a morte, na superação eterna das limitações da condição humana.

 

Mito e sociedade

Os mitos são um lugar para a reflexão, falam de complexos problemas filosóficos com que os grupos humanos devem se defrontar. Têm muitas camadas de significação e, são repetidamente apresentados ao longo da vida dos indivíduos que, à medida que amadurecem social e intelectualmente, vão descobrindo novos e insuspeitos significados nas mesmas histórias de sempre, por debaixo das camadas já conhecidas e já compreendidas.

É assim que as sociedades indígenas conseguem apresentar conhecimentos, reflexões e verdades essenciais em uma linguagem que é acessível já às crianças que entram em contato com questões cuja complexidade irão aos poucos descobrindo e compreendendo.

É por todas estas razões que os mitos são, em sua plenitude, de difícil compreensão. As verdades que dizem e as concepções que contêm, embora refiram-se a questões pertinentes a toda a humanidade, são articuladas e expressas com valores e significados próprios a cada sociedade e a cada cultura. Para chegar até elas é, portanto, essencial um conhecimento bastante denso dos contextos sócio-culturais que servem de referências à reflexão contida em cada mito.

Os mitos falam sobre a vida social e o modo como ela é organizada e concebida em uma determinada sociedade. Não a espelham, simplesmente: problematizam-na, tornam-na objeto de questionamento e incitam a reflexão sobre as razões da ordem social. Podem – e, de fato, muitas vezes o fazem – terminar por reafirmá-la (Lévi-Strauss, 1976), mas isto não se dá de forma mecânica.

 

Mito e história

O mito, como a cultura, é vivo. Já que simultaneamente produto e instrumento de conhecimento e reflexão sobre o mundo, a sociedade e a história, incorpora como temas, os processos perpetuamente em fluxo nos quais se desenrola a vida social. São produtos elaborados coletivamente, nos quais novas situações são articuladas e tornadas significativas (como exemplos desses processos, ver Gallois, 1993 e Lopes da Silva, 1984).

Os mitos são parte da tradição de um povo, no entanto a tradição é continuamente recriada: caso contrário, perderia o sentido, seria apenas reminiscência, e não memória de experiências passadas que são tornadas referências vivas para o presente e para o futuro. Os mitos, assim, mantêm com a história uma relação de intercâmbio, registrando fatos, interpretações, reduzindo, por vezes, a novidade ao já conhecido ou, inversamente, deixando-se levar pelo evento, transformando-se com ele (Sahlins, 1989; Fausto, 1992).

Há até pouco tempo, as sociedades indígenas eram entendidas, pelos estudiosos, como sociedades “sem história”. Imaginava-se essas sociedades voltadas para o passado mítico, empregando sua criatividade no sentido de manter-se igual a si mesma, negando o fluxo da história, neutralizando as transformações e reconhecendo como processos, apenas os de recomposição do modelo tradicionalmente seguido. Foram assim concebidas num primeiro momento dos estudos antropológicos e, em consonância com isto, foram definidas como sociedades “tradicionais, sagradas e fechadas” sobre si mesmas, imunes à mudança. Desta perspectiva, os povos indígenas só “entravam na História” a partir de seu contato com os “brancos”, como partícipes da história ocidental.

Estas idéias foram forçosamente revistas. Percebeu-se que aí havia uma visão etnocêntrica que impedia a compreensão das sociedades nativas em seus próprios termos. Sabe-se hoje (e isto é tema atual de inúmeras pesquisas) que as culturas humanas desenvolvem variadas lógicas históricas, maneiras de pensar, relacionar-se e viver os processos históricos.

 

Panorama da Diversidade

Veremos referências mais concretas aos modos indígenas específicos de conceber o cosmos e de se situar nele. Segue a ilustração, feita aqui apenas como ponto de partida.

Temas comuns

A recorrência de assuntos, noções, figuras e imagens nas mitologias indígenas sul-americanas foram objeto da obra consagrada de Claude Lévi-Strauss, que revelou, por debaixo e através das variações locais, problemáticas comuns. O simbolismo prolífico e as imagens ricas e diversificadas dão concretude às noções abstratas, filosóficas, que expressam a visão indígena do mundo. Simetrias, inversões, valorações antagônicas que se alternam, homologias, alteração de ênfases... são mecanismos da lógica do mito e, nesta medida, da lógica do pensamento humano, ambos postos em movimento para propiciar a reflexão sobre oposições, tais como a de natureza/cultura; vida/morte; homem/mulher; particular/geral; identidade/alteridade. As mitologias e as cosmologias indígenas tratam, portanto, de temas com que se preocupam todos os homens, com menor ou maior grau de elaboração, expressão ou consciência. São temas, como se vê, que remetem à essência do que significa ser humano e estar no mundo. Por isto mesmo, apesar do estranhamento inicial trazido por signos desconhecidos - que carregam concepções inesperadas, articuladas a teorias cuja tradução escapa à primeira aproximação - a comunicação é possível e se dá não só na pesquisa e na divulgação, como também fascina e desafia.

Povos Jê

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Entre povos da família lingüística Jê, o cosmos é concebido como habitado por diferentes humanidades - a subterrânea, a terrestre, a subaquática e a celeste – que existem desde sempre. O tempo das origens é o da indiferenciação e da desordem, da convivência e da interpenetração daqueles domínios. Astros, como o Sol e a Lua, são gêmeos primordiais que vivem aventuras na terra e aqui deixam o seu legado, antes de partirem para sua morada eterna. Nos mitos Jê, há referências explícitas às atividades de subsistência e às práticas sociais de modo geral. Instituições sociais – a nomeação dos indivíduos, a guerra, o xamanismo... – têm no mito descritas as suas origens e exposta a sua essência.

 

Povos do Alto Rio Negro

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Por contraste, caberia mencionar, a região do alto rio Negro, o noroeste amazônico, morada de povos de língua Tukano. No início dos tempos, antepassados míticos criaram o mundo que, antes, não existia. Das entranhas de uma cobra grande ancestral, que fazia o percurso do rio, saíram, em pontos precisos daquele percurso, os primeiros antepassados de cada um dos vários povos da região, determinando, assim, seus respectivos territórios, suas atribuições específicas e um padrão hierarquizado de relacionamento entre eles.

Em muitas cosmologias, as relações entre humanos e os demais seres são pensadas através da idéia da predação, numa metáfora que simbólica e logicamente aproxima caça, guerra, sexo e comensalidade. Ainda no alto rio Negro, o xamã parece estar encarregado de garantir que fluxos e volumes de energia vital compartilhada por humanos e animais mantenham-se em níveis adequados. Exageros na matança de animais deflagrariam, como contrapartida, epidemias e malefícios entre os homens, provocados por espíritos protetores dos animais. Um equilíbrio vital nas lembranças e o convívio com a idéia da morte são experiências diárias na apreciação e na condução da vida.

Povos Tupi-Guarani

Desde há mais de 500 anos, os não-índios produzem análises na tentativa de compreender as práticas sociais e as concepções cosmológicas dos Tupi-Guarani. Do espanto inicial à sistematização das informações dos cronistas, realizada entre as décadas de 1940 e 1950, passando pela catequese jesuítica e pelos episódios dramáticos da Conquista, é constante a referência central a temas como a guerra, o canibalismo, a vingança da morte através de novas guerras e novas mortes e novas vinganças.

Uma compreensão destes povos, suas sociedades e suas cosmologias, adequada aos tempos recentes de amadurecimento teórico e metodológico da antropologia, revela – apesar da grande diversidade existente entre elas, tanto no plano sociológico, quanto nas variações entre suas cosmovisões respectivas – a centralidade da noção de temporalidade como eixo sobre o qual constroem-se noções fundamentais como a de pessoa e de cosmos. Temporalidade está aliada às relações de alteridade que os Tupi-Guarani buscam sistematicamente situar fora do domínio social propriamente dito, encarnadas nos inimigos, nos espíritos, nos animais, nos mortos e nas divindades.

 

Bibliografia citada

  • FAUSTO, Carlos. “Fragmentos de História e Cultura Tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico”. In: CARNEIRO DA CUNHA, M. (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo, Cia das Letras/Edusp/SMC, 1992
  • GALLOIS, Dominique. Mairi Revisitada. São Paulo, NHII-USP/Fapesp, 1993.
  • LALLEMAND, Suzanne. “Cosmogonia”. In: AUGÉ, M. (org.) A construção do mundo. Edições 70, Lisboa, 1978.
  • LEACH, Edmund. “O Gênensis enquanto um mito”. In: Edmund Leach (org. Roberto da Matta), Ed. Ática/Grandes Cientistas Sociais/Antropologia 38, 1983, pp. 57-69.
  • LÉVI-STRAUSS, C. “A gesta de Asdiwal”. In: Antropologia Estrutural Dois, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1976.
  • LOPES DA SILVA, Aracy. “A expressão mítica da vivência histórica: tempo e espaço na construção da identidade xavante”. In: Anuário Antropológico/82, Tempo Brasileiro/Universidade Federal do Ceará, Rio de Janeiro e Fortaleza, 1984. ------. “Mitos e cosmologias indígenas no Brasil: breve introdução”. In: Índios no Brasil. Grupioni, Luís Donisete Benzi (org.). São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992. ------. “Mito, razão, história e sociedade”. In: LOPES DA SILVA & GRUPIONI (orgs.). A Temática Indígena na Escola. Brasília, MEC/MARI/Unesco, 1995.
  • SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. São Paulo, Cultrix, 1989.
  • VIDAL, Lux. Grafismo Indígena. Estudos de Antropologia Estética. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Edusp, 1992.
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. & CARNEIRO DA CUNHA, M. “Vingança e Temporalidade: os Tupinambá”. In: Anuário Antropológico/85, Ed. Universidade de Brasília e Ed. Tempo Brasileiro, Brasília e Rio de Janeiro, 1986.

== Rituais ==

por Renato Sztutman, antropólogo. Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo/NHII-USP e colaborador do ISA

 

Introdução

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Os mitos contam como as coisas chegaram a ser o que são. Contam como as divindades, os homens, os animais e as plantas se diferenciaram. Os rituais, por sua vez, fazem o caminho inverso dos mitos. E, não por acaso, eles se dispõem muitas vezes a contar o mito, a recriar o mito, promovendo uma espécie de retorno a esse tempo de indiferenciação geral em que divindades, homens, animais e plantas se comunicavam entre si, e produziam sua existência por meio dessa interação. As populações indígenas acreditam que esta comunicação, esta interação deve se dar de maneira mediada e é indispensável para a produção de pessoas e da própria sociedade. Afinal, é do cosmos mítico que são extraídas as matérias-primas para a constituição das pessoas e da sociedade. Perder de vista esta comunicação, esta interação é entregar-se à inércia, à permanência num mundo sem sentido.

Os rituais de iniciação, por exemplo, consistem em fazer com que neófitos [iniciantes] sejam separados do convívio social e, assim, se submetam a um estado de liminaridade no qual a fronteira do mundo social, humano, parece borrar-se. É somente passando por esse estado de liminaridade que o neófito poderá voltar a este mundo, agora de maneira transformada.

Os rituais funerários, de sua parte, consistem em separar os vivos do morto, fazendo que o último retorne ao outro mundo, mundo não-humano. Toda morte coloca os vivos, nela envolvida, num estado de liminaridade. Por isso não é de se espantar que os rituais funerários ou pós-funerários sejam, entre os povos indígenas, muitas vezes aproveitados para a realização da iniciação de jovens.

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Podemos dizer que essa comunicação ritual se estabelece entre seres humanos e seres não-humanos, como espíritos, divindades, donos de espécies naturais, subjetividades que habitam corpos animais e vegetais etc.; todos dotados de diferentes potências. Mas não podemos esquecer que essa comunicação acaba por se fazer entre pessoas de proveniências distintas: gente de outras aldeias, de outros territórios e mesmo de outras etnias.

Os rituais indígenas são uma celebração das diferenças. Em primeiro lugar, das diferenças entre os seres que habitam o cosmos. Os humanos sabem que muito do que possuem – aquilo que chamamos de cultura – não foi meramente “inventado” por eles mesmos, mas sim tomado, no tempo do mito, de outras espécies, e mesmo de inimigos há muito não vistos. Os rituais indígenas são, além disso, uma celebração das diferenças entre os próprios seres humanos, diferenças sem as quais não haveria nem troca nem cooperação. E para celebrar essas diferenças uma intensa trama de prestações – de comida e bebida, sobretudo, mas também, em certas ocasiões, de cantos e artefatos – é posta em movimento.

 

[Agosto, 2008]

 

Panorama da Diversidade

 

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O ritual funerário dos Bororo (MT) marca um momento especial de socialização dos jovens. Não só porque muitos deles são formalmente iniciados, mas, também, porque é por meio de sua participação nos cantos, danças, caçadas e pescarias coletivas que eles têm a oportunidade de aprender e perceber a riqueza de sua cultura.
ritual_kraho
Na corrida de toras, que está relacionada à realização de diferentes rituais, os Krahô (TO) dividem-se em duas equipes, ditas "metades". Cada uma delas carrega uma seção de tronco de buriti (ou outro vegetal), cujo formato, tamanho e ornamentação são variáveis. Os Krahô são um grupo Timbira, da família lingüística Jê. Outros povos Timbira e Jê também realizam corridas de toras.
ritual_kanela
Entre os Canela (MA), grupo Timbira, os meninos são introduzidos na sua classe de idade por meio de alguns rituais de iniciação. Esses rituais treinam os meninos para se tornarem guerreiros. Tradicionalmente, a maioria das meninas está associada de modo a receber cintos de maturidade, necessários para que elas se casem.
ritual_enawene
No yãkwa, ritual realizado pelos Enawenê-Nawê (MT), os habitantes da aldeia, divididos em clãs, realizam uma troca generalizada de alimentos, cantos e danças. O ritual, que dura vários meses e possui duas fases distintas, visa cumprir os ensinamentos dos espíritos subterrâneos, yakairiti.
ritual_karaja
A primeira iniciação dos meninos Karajá (MT/TO) se dá por volta dos sete ou oito anos de idade. Consiste na perfuração do lábio inferior, que irá receber um adorno. A perfuração é feita com a clavícula de um macaco, e se dá na presença dos pais.
ritual_yanoma
Na maloca Toototobi, dos Yanomami (AM), homens realizam sessão com o pó alucinógeno, yãkuãna. Este é muito presente na iniciação dos pajés Yanomami, e deve sempre se dar sob a condução dos mais velhos.
ritual_huka
Homens xinguanos disputam o huka-huka na aldeia dos Yawalapiti (MT). A luta integra o ritual intertribal kwarúp, que se dá em homenagem aos mortos dos diferentes grupos que habitam a região do alto Xingu.
ritual_kadiweu
Os bobos (bobotegi) são personagens que figuram na Festa do navio, realizada pelos Kadiwéu. Este longo ritual remonta aos tempos da Guerra do Paraguai, quando este povo lutou pelo Brasil.
ritual_pankararu
Apesar de desterrados na cidade de São Paulo, os Pankararu, que migraram do estado de Pernambuco, continuam realizando suas cerimônias, cantos e danças.

== Astronomia Tukano ==

Por Melissa Oliveira, antropóloga, integrante do programa Rio Negro/ISA

constelacoes.tukanoCrédito: AEITY/ACIMET -editoração gráfica: Renata Alves de Souza


Desde 2005 um amplo processo de pesquisa tem sido realizado no âmbito de projetos de educação e manejo ambiental protagonizados por indígenas do médio rio Tiquié, organizados na Associação Escola Indígena Tukano Yupuri (AEITY) e na Associação das Comunidades Indígenas do Médio Tiquié (ACIMET), em parceria com profissionais do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental. Este artigo é fruto desse processo, mais especificamente da experiência de pesquisa sobre astronomia, realizada em parceria com o físico Walmir Thomazi Cardoso da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e SBEA (Sociedade Brasileira para o Ensino de Astronomia). Nesta buscou-se identificar o ciclo de constelações tukano e desana, registrar os mitos de origem destas constelações e observar e descrever os fenômenos ecológicos, econômicos e rituais associados a esse ciclo. A constante interlocução com o conhecedor 'Uremiri José Azevedo, tukano, e seu filho Seribhi Dario Alves Azevedo, da comunidade Bote Pur'ĩ Bua, no médio Tiquié, foi fundamental para o desenvolvimento deste texto.

Através do universo: as constelações na cosmologia dos grupos Tukano do rio Tiquié, alto rio Negro

Os povos indígenas, como outros povos do mundo, possuem conhecimentos específicos em relação ao cosmos - sua origem e configuração - e dão significados próprios aos fenômenos que a ciência ocidental denomina astronômicos.

Os grupos Tukano Orientais1 do alto rio Negro são exímios observadores do céu e não raro procuram mostrar aos que entre eles se encontram as constelações, a lua, o sol, Vênus, a Via Láctea, apontando-os, nomeando-os em suas línguas e contando suas histórias. Talvez seja por isso que as constelações têm sido há muito tempo foco de interesse e de descrição de estudiosos que escreveram sobre esta região. Há registros desse tema em textos produzidos por viajantes, missionários, antropólogos e mais recentemente nas publicações realizadas pelos próprios conhecedores indígenas.

Ñohkoa mahsã - Classificações tukano e desana das constelações

Os Tukano possuem um modo muito próprio de classificar as constelações, que são seres ou gentes, 'gente-estrela (ñohkoa mahsã), que vivem na camada do céu (umuse pati). As constelações são consideradas objetos ou seres da época da Gente do aparecimento (Bahuari mahsã),  a primeira humanidade que surgiu na maloca do Céu (Umuse Wikhã) e que realizou imersões na terra para propiciar as condições de existência da humanidade atual2.

Em certos episódios da mitologia, os seres ou objetos, que hoje formam as constelações, foram lançados ao céu e se transformaram em gente–estrela ('ñohkoa mahsã). Na fala de Kumarõ Guilherme Azevedo (Tukano, sib3 Hausirõ porã) os ñohkoa mahsã são brilhosos e têm objetos de ouro (siõpurĩ) como brincos e os bancos. Segundo Uremiri José Azevedo (Tukano, sib Ñahuri porã) são também seres perigosos e venenosos, por isso não encostam uns nos outros e guardam certa distância entre si no espaço.

Categorizadas como gentes (mahsã), as constelações estão inseridas num sistema de compreensão, classificação e ordenação do mundo no qual uma noção de parentesco marcada pela segmentação e a hierarquia é idioma central de socialidade. Esta noção não se restringe apenas às relações entre os seres humanos, mas se estende a outros domínios, de modo a reger as relações entre as diversas gentes que habitam o cosmos4.

Os Tukano e Desana identificam um grupo de constelações, dentre as quais distinguem algumas que consideram “constelações-chefe” e que são consideradas as “mais importantes”, sendo chamadas Ñohkoa Diarã mahsã. São elas: Aña, Pamo, Muhã, Dahsiu, Yai, Ñohkoa Tero, Wai kahsa, Sio Yahpu, Diayo, Yhe. O termo diarã é comumente traduzido como “reais, puros” e também é usado em referência a questões de definições étnicas, por exemplo, para se referir a alguém considerado um legítimo tukano, usa-se a expressão Yepa mahsu diagu5.

Ao serem perguntados sobre o que caracteriza uma constelação como sendo “importante” ou “chefe”, dizem que são “as maiores” e aquelas cujo ocaso [desaparecimento aparente do astro no horizonte oeste] está relacionado às “grandes chuvas”, ou seja, sua importância está relacionada à sua extensão e à sua associação com a época de inverno.

A tabela abaixo reproduz o ciclo de constelações dos Tukano e Desana do rio Tiquié e indica também a região do céu em que estão situadas e a época do ocaso de cada uma delas6:

 

Nome da constelação em Tukano7/ Português Área do céu de referência dos não-indígenas Mês do calendário Juliano gregoriano (não-indígena) em que a constelação está se pondo
Aña siõkhã / Estrela que ilumina jararaca Libra Setembro, outubro, novembro - meados desse mês, e eventualmente até dezembro
Aña ñemeturi / Fígado de jararaca Corvo idem
Aña nimaga / Bolsa de veneno de jararaca Escorpião idem
Aña dieripa / Ovos de jararaca Escorpião idem
Aña ohpu / Corpo de jararaca Escorpião idem
Aña pihkorõ / Rabo de jararaca Sagitário idem
Siphe Phairo / Jararaca de ânus grande Ursa maior Cai entre aña siõkhã e diaso.
Pamo oaduhka / Osso de Tatu Águia Dezembro
Pamo duhpoa / Cabeça de Tatu Águia idem
Pamo uhpu / Corpo de Tatu Águia e Vulpécula idem
Pamo pihkorõ / Rabo de Tatu Seta idem
Muhã / Jacundá Estrelas de Aquário Fevereiro - início a meados do mês
Dahsiu / Camarão Catálogo de Hipparcus e Estrelas de Aquário principalmente idem
Yai siõkhã / Estrela que ilumina a onça Não identificado Março até primeira quinzena (barba e início da cabeça da onça); segunda quinzena de março (corpo da onça); rabo da onça se põe até meados para final de abril, bem junto das Plêiades.
Yai duhpoa / Cabeça da onça Hipparcus e Cassiopéia idem
Yai useka poari / Bigode de onça Não identificado idem
Yai ohpu / Corpo da onça Cassiopéia, Andrômeda e Perseu idem
Yai pihkorõ / Rabo da onça Perseu idem
Ñohkoa Tero (Sio yahpu mahkũ) / Aglomerado de estrela (Filho de Cabo de enxó) Plêiades (3 estrelas próximas a Ñohkoa Tero) Abril, meados para o fim do mês
Wai Kahsa / Jirau de peixe Hyades no touro Abril/Maio, fim do mês de abril até meados de maio
Kaĩ Sarirõ / Suporte de cérebro/tipo de armadilha Entre Hyades e Órion  
Sio Yahpu (Ñohkoa tero mahkũ) / Cabo de enxó Órion (3 estrelas próximas a Sio Yahpu) Maio, meados para o final do mês
Diayo / Ariranhas 3 estrelas não identificadas  
Yaka / Peixe Cascudo Possivelmente Cão menor  
Bihpia / Pássaro Possivelmente entre Gêmeos e Cão Maior  
Ñamia / Saúvas da noite Não identificado  
Purĩ / Folhas Não identificado  
Tohto / Árvore matá matá Não identificado  
Uphaigu/ Jabuti Cruzeiro do Sul  
Yhe / Garça Virgem e Cabeleira de Berenice Em Agosto e Setembro ocaso de toda a constelação
Ñamakoro / Não identificado  

Certas constelações, cujo ocaso se realiza concomitantemente ou seguidamente, são consideradas constelações parceiras, nohkoã bahparitirã. Esse é o caso da dupla Muha e Dahsiu e do conjunto Nohkoa tero, Wai Kahsa, Sio Yahpu; e do grupo Diayo e das constelações Yaka, Bihpia, Ñamia e Purĩ.

Outro ponto que merece destaque na classificação das constelações tukano é que algumas delas, mais especificamente Aña (Jararaca), Pamo (Tatu) e Yai (Onça), são concebidas como constelações segmentadas, divididas em partes que correspondem às partes dos corpos dos animais que elas representam.

A constelação Aña (Jararaca) está constituída por: Aña siõkhã (estrela que ilumina a jararaca), Aña duhpoa (cabeça), Aña nimaga (bolsa de veneno), Aña ñemeturi (fígado), Aña dieripa (ovos), Aña ohpu (corpo) e Aña pihkorõ (rabo).

 ana.1.circulos As partes da constelação Aña (Jararaca): a cabeça, a bolsa de veneno, o fígado, os ovos, o corpo e o rabo (da esquerda para a direita). Pamo (Tatu) é composta por: Pamo siõkhã (estrela que ilumina o tatu), Pamo oaduhka (osso), Pamo ohpu (corpo) e pamo pihkorõ (rabo). Já a constelação Yai (Onça), por sua vez está dividida em: Yai siõkhã (estrela que ilumina a onça), Yai useka poari (bigode), Yai duhpoa (cabeça), Yai ohpu (corpo) e Yai pihkorõ (rabo). A segmentação das constelações também pode ser compreendida à luz do sistema de organização social tukano. A sua divisão entre cabeça, corpo e rabo guarda inegável relação com os termos utilizados na classificação e hierarquização dos sibs tukano. Cada sib se originou de uma parte específica do corpo da anaconda ancestral e assim os sibs são considerados da “cabeça”, do “corpo” ou do “rabo”, o que estabelece uma ordem hierárquica entre os mesmos: os sibs de mais alto nível são considerados “cabeça” e os de mais baixo são considerados “rabo”. Os eventos mitológicos relativos à origem destas constelações segmentadas narram histórias de personagens que, de diferentes maneiras, foram mortos, cortados, despedaçados ou segmentados e lançados ao céu, transformando-se em gente-estrela (ñohkoa mahsã), em constelações.

O siõkhã e seus significados

Siõkhã é, para os Tukano e Desana, a estrela que fica próxima ou a frente de uma determinada constelação e que se põe antes desta. Ela está lá para “iluminar”, “guiar o caminho” das constelações no seu movimento de passagem pelo céu [sentido leste-oeste]. O siõkhã é considerado parte das constelações e seu ocaso está associado à ocorrência de invernos.

siokha.onca.circulo Yai siõkhã (estrela que ilumina a onça) e constelação Yai (Onça). AEITY/ACIMET - editoração gráfica: Renata Alves de Souza

No depoimento8 de Uremirĩ José Azevedo (Tukano, sib Ñahuri porã), o siõkhã alcança um significado mais profundo, relacionado ao contexto ritual, pois representam os “irmãos-chefe”, responsáveis por guardar ornamentos cerimoniais que estão dentro das constelações.

“... os siõkhã são as estrelas que estão na frente das constelações e recebem o nome dos “irmãos chefes” [referência aos irmãos ancestrais dos Tukano]. A primeira estrela de Aña [Jararaca] é Yupuri, que está iluminando essa jararaca, Seribhi, irmão menor de Yupuri, vem na frente de Pamo [Tatu], Doe [irmão maior], está na frente de Yai duhpoa [Cabeça da Onça]... Todos os ornamentos que a pessoa usa, seja o kumu [benzedor], ou o pajé, pode ser os ornamentos de cabeça, o colar de quartzo, o cinto de dentes de onça, yuhtasero [faixa de baixo do joelho], kihtio [chocalho que se põe nos tornozelos], até as flautas sagradas, todos os ornamentos deles, isso que eles estão alumiando pra poder proteger mesmo... Eles guardam os ornamentos onde eles moram... Por isso que tem umas estrelas assim perto das constelações... Estas estrelas iluminam estas constelações e dentro destas constelações estão todos estes ornamentos...”9

 

Depoimento de Uremirĩ José Azevedo. Tradução: Seribhi Dario Alves Azevedo.

 

O ciclo de constelações e os demais ciclos

Para os Tukano Orientais, os movimentos leste-oeste que as constelações realizam conformam um ciclo astronômico anual. Os Tukano e Desana do médio Tiquié atribuem grande importância ao movimento de ocaso das constelações, concebendo-o como marcador da ocorrência de invernos ou enchentes, designados como poero (enchente de rio). Os invernos levam os nomes das constelações que estão “baixando” em determinada época. Atualmente também são utilizados eventos do calendário cristão para definir os invernos, por exemplo, Yai poero (enchente de onça) também é chamada enchente da páscoa, sendo muito comum o uso destes termos no dia-a-dia. O ocaso de cada parte de uma constelação é associado à ocorrência de um período de chuvas, que pode ser curto ou longo, dependendo da extensão de sua parte. As enchentes relacionadas ao ocaso do corpo da onça e do corpo da jararaca, por exemplo, são longas, visto que estão associadas às partes grandes destes animais.

Esses invernos são intercalados por verões curtos ou mais longos, chamados kuma ou wetiro (vazante do rio). Os verões mais longos são nomeados de acordo com outros fenômenos, como períodos dos ciclos de determinada fruta, ou animal. Já os pequenos verões, muitas vezes, recebem o nome da constelação vigente. Os invernos e verões marcam a ocorrência de uma série de fenômenos ecológicos que por sua vez determina a realização de atividades econômicas e rituais. A inter-relação de todos estes ciclos de fenômenos constitui um calendário astronômico, ecológico, econômico e ritual.

Tanto na fala dos conhecedores tukano e desana como na literatura, Ñohkoa Tero (Plêiades) é a constelação mais diretamente relacionada ao ciclo ritual. Para os Tuyuka, por exemplo: “o ano é definido pelo ciclo da grande constelação de Plêiades. Quando ela aponta no nascente de madrugada é sinal de ano novo. Neste período as madrugadas têm um nevoeiro frio (y'u's'u'are), é tempo de iniciação masculina, coincidindo aproximadamente com o mês de julho. O ano começa, portanto, com o fim das enchentes [em geral segunda metade de julho]” (AEITU: 2005).

Segundo Hugh-Jones (1979), o timing do ritual de jurupari dos Barasana está intimamente relacionado com os movimentos da constelação Plêiades no céu. Os Barasana dizem que o jurupari deve ser realizado quando a pupunha está madura (fevereiro-março), também dizem que deveria ocorrer antes da chegada da chuva de Plêiades, aquela que marca o início da principal estação chuvosa e causa um aumento dramático do nível dos rios.

Imagens das constelações na mitologia tukano

As constelações estão atreladas a eventos vividos pelos personagens míticos que constituíram a primeira humanidade. Nessa época não havia a divisão nítida entre grupos étnicos e sibs e, portanto, as regras de parentesco e de casamento não estavam bem estabelecidas. As narrativas relativas à vida destes personagens falam muitas vezes de sua desobediência ou mau comportamento ou de seus casamentos com mulheres não-humanas, que fracassaram por motivos diversos: morte das esposas, incompatibilidade entre os modos de vidas da esposa e do esposo.

Os relatos sobre a origem das constelações estão presentes em narrativas mais amplas sobre a época da Gente de Aparecimento e, na maioria das vezes, se intercruzam. As constelações não possuem um significado único ou fixo, podem ter vários significados e corresponder a múltiplas imagens de acordo com as diferentes versões de um mito, ou até mesmo ao longo de uma única narrativa.

Um exemplo ilustrativo é a história que relata a origem da constelação Aña (Jararaca). Sua origem está indiretamente inserida na história de Yepa Oakhu (ancestral dos Tukano, também chamado Yepa Muhipũ ou Lua), seu irmão menor e as filhas de Buhpo, o Trovão - que são Aña mahsã (gente-jararaca). Nesta narrativa também está presente a imagem de Sio Yahpu (cabo de enxó).

Veja a seguir um resumo do mito narrado por Yupuri Feliciano Azevedo (Tukano, sib Ñahuri Porã).

Yepa Oakhu vivia na sua casa yohkoãdiakawi (casa das estrelas). Todo dia via o reflexo da constelação Sio Yahpu (cabo de enxó) e havia uma estrela que era a mais bonita dessa constelação. Um dia ela apareceu fisicamente e ele casou com ela. Buhpo, o Trovão, tinha inveja dele pelo fato deste não querer se casar com suas filhas, Aña mahsã (gente-jararaca).

 

Buhpo convidou Yepa Oakhu para ir a um caxiri com intuito de matar sua esposa. A esposa não foi à festa, mas foi morta por uma cobra no porto. Yepa Oakhuuhpo, que morreu. Oakhu decide ir embora, mas seu irmão menor fica, pois está namorando uma filha de Buhpo.

 

Oakhu chega em casa e vê sua esposa morta transformada em peixe pirarara e seu filho transformado em pássaro pusikhá. Decide voltar para buscar seu irmão. A filha de Buhpo já havia matado seu irmão. Chegando lá é convidado pela filha do Buhpo (gente-jararaca) para ir tomar banho no porto. Ela estava tecendo yuhtasero (tornozeleira). A filha do Buhpo tenta matá-lo transformando um toco de pau em jararaca. Yepa Oakhu corta a cabeça da jararaca com Sio yahpu (cabo de enxó). Era o irmão maior dela. Depois sai mais uma cobra de dentro do pau oco. Yepa Oakhu decepou a cabeça da cobra. Era o irmão menor dela.

 

Narrativa publicada na Coleção Narradores Indígenas, volume 5, 2003.

Uremirĩ Aprígio Azevedo e Ahkuto Mariano Azevedo (Tukano, sib Ñahuri porã) ao narrarem a mesma história explicam que: “(...) Yepa Oakhu corta a jararaca com Sio Yahpu (cabo de enxó), e ela é lançada ao céu, tornando-se a constelação de Aña (Jararaca)”.

Segundo Diakuru e Kisibi (Desana, sib Wahari Diputiro porã), as histórias dessas constelações se articulam e fazem parte de uma narrativa semelhante, mas aqui é o herói que usa uma jararaca para vingar a morte de sua esposa.

A constelação Aña surge para Deyubari Goãmu10 vingar-se de seus cunhados (neká masã, gente-estrela) que causaram a morte de sua esposa enquanto recolhia peixes. Durante a festa, Deyubari Goãmu tirou as cordas dos pelos de onça e de macacos presas nos seus ornamentos de cabeça e com elas formou o corpo de uma cobra jararaca. Com seu enfeite da canela (waituru) fez a cabeça da jararaca, com fio de tucum formou o dente da cobra e com o caapi 11 fez o veneno dela. Enrolou a jararaca no yegu (cetro-maracá) e com ele tocou o pé do segundo e do terceiro bayá (mestre de dança) para que a cobra os mordesse. O segundo bayá morreu na hora, o terceiro foi salvo com orações e remédios do mato.

Durante a viagem de volta pegou a jararaca que carregava nas costas e jogou-a para o céu. Quando ele estava dançando na maloca de neká masá (gente-estrela), a corda ficou toda banhada de suor, por isso ela se transformou em chuva (inverno). Como Deyubari Goãmu jogou a jararaca para longe dele, o inverno associado a ela é comprido. Deyubari Goãmu amaldiçoou a humanidade e escondeu os peixes no ânus da jararaca para que a humanidade não pudesse mais encontrar peixes e ficasse triste junto com ele, é por isso que nessa enchente é difícil encontrar peixes (Fernandes e Fernandes, 2006).

Uma leitura interessante de se fazer dos mitos de origem de constelações é privilegiar, dentre as múltiplas imagens e significados das constelações, aqueles relativos ao contexto ritual. Esta leitura não é única possível, mas detém inegavelmente uma riqueza ímpar tanto em termos estéticos como cosmológicos.

A constelação Aña (Jararaca), por exemplo, possui diversas imagens e significados a ela associados, como pudemos descobrir ao longo deste texto. Na história de Yepa Oakhu há a tornozeleira Yuhtasero que corresponde ao corpo de Aña; os dentes de cobra que estão associados à cabeça de jararaca e os filhos de Buhpo que são gente-jararaca. Já na história de Deyubari Goãmu aparecem o fio de tucum, como dente da jararaca, e o caapi, o veneno da cobra, como imagens associadas a Aña.

Há um outro mito, sobre a origem da noite, que demonstra mais claramente que um dos modos de se compreender a correlação entre constelações, contexto ritual e adornos cerimoniais é atentar ao fato de que, na mitologia tukano, a “caixa da noite” pode ser interpretada como uma caixa de adornos cerimoniais. Neste mito os irmãos-chefe, correlacionados anteriormente aos siõkhã, desempenham papel fundamental. A análise de diferentes mitos torna evidente a relação entre as constelações, os ornamentos rituais e as estrelas siõkhã, delineando-se, assim, um significado profundo para as constelações na cosmologia tukano.

Veja aqui a versão resumida da narrativa de Ñahuri Miguel Azevedo (Tukano, do sib Hausirõ porã).

Os Pamuri mahsã (Gente da Transformação) ainda viviam na casa do Rio de Leite, e não tinham a divisão do tempo em dia e noite. Por isso vão até a Ñamiriwi (Casa da Noite) pedir ao Dono da noite (Ñamirisota) a caixa da noite. A caixa da noite consiste numa caixa de adornos cerimoniais, que contém todos os ornamentos e enfeites de danças. Para entregá-la a Doetiro, Yupuri e Yepasuria (ou Ñamisuria), o Dono da Noite prepara uma cerimônia. Ao entregá-la ele explica a eles cada objeto que contém a caixa e como eles devem ser utilizados posteriormente.

 

Diz ainda que nos quatro pontos cardeais existem ganchos que pendem a noite. Ensina, depois da meia-noite, a desmanchar a amarração dos ganchos que seguram a caixa, e como eles deveriam guardar os instrumentos e ornamentos, depois de um movimento de dança. Isso foi feito até o amanhecer e é por isso que os bayá dançam até hoje durante toda a noite. Daí segue-se o evento em que eles abrem a caixa antes do combinado e deixam sair uma nuvem escura, chuvisco e temporal. O único que conseguiu seguir as recomendações do Dono da Noite foi Yepasuria, que se ornamentou, pronunciando o nome de cada enfeite e juntando-os. À meia-noite começou a reza desmanchando os ganchos presos nas quatro direções. Começou a tirar e guardar os ornamentos, assim o dia começou a chegar. Assim que começou o dia e a noite

 

Narrativa publicada na Coleção Narradores Indígenas, volume 5, 2003.

 

Notas

1. Quando utilizo Tukano Orientais me refiro de maneira geral à família lingüística que abrange etnias como: Tukano, Desana, Tuyuka, Barasana etc. Quando utilizo apenas Tukano me refiro ao grupo étnico.

 

2. Na mitologia tukano 'U'mukho Ñehk'u, o Avô do Universo criou este mundo e através do sopro do cigarro, a primeira humanidade, Gente do Aparecimento: Yepa Oãkh'u, ou Yepa Muhipu (Lua), Dehsubari Oãkh'u', Warãri Oakh'u', Yupuri Basebo, Buhtuiari Oãkh'u (homens) e Amõ ou Yepario, Yupahkó, Yepáñiõ, Pirõ Duhigó (mulheres). Yepa Oãkh'u através dos conhecimentos obtidos com o Avô do Universo criou a segunda humanidade: Doetiro, Yupuri e Buú (homens) e Yepario, Yupahko, Duhigo (mulheres). No processo de formação da humanidade atual, os primeiros humanos se transformaram primeiramente em pássaros, atravessaram o céu pela Via Láctea, adentraram no Lago de Leite, se transformaram em peixes, realizaram uma viagem no ventre de uma Cobra Canoa - a anaconda ancestral, ao longo do Rio de Leite - e finalmente emergiram na terra através do Buraco da Transformação, como Pam'u'ri mahsã, Gente da Transformação.

 

3. Termo antropólogico usado para designar grupos de descendência em linha paterna, nomeados e hierarquizados.

 

4. Não faltam exemplos para ilustrar esta extensão do sistema terminológico e de parentesco a outros domínios que não o dos seres humanos. Alguns exemplos: segundo depoimentos dos kumua (especialistas xamânicos ou benzedores) tukano do alto Tiquié, entre as várias espécies de manivas que eles identificam, algumas são consideradas “manivas-chefe”, pois são aquelas que surgiram no início do mundo. Em relação aos peixes, Cabalzar afirma que “assim como os homens, organizados em grupos nomeados e hierarquizados, os peixes também estão agrupados, têm seus chefes, bayaroa e kumua (...)” (2005: 76).

 

5. Ver verbete di’a no dicionário Tukano-Português de Ramirez (1997).

 

6. Tabela adaptada de Cardoso (2007). Para a descrição detalhada da composição de cada uma das constelações, consultar esta referência.

 

7. Os nomes das constelações foram registrados na língua Tukano que é a língua atualmente falada pelos Tukano e Desana do rio Tiquié.

 

8. Depoimento traduzido por Seribhi Dario Alves Azevedo.

 

9. Estes “irmãos-chefe” ou ancestrais dos Tukano também são associados ao planeta Vênus. Na versão de Ñahuri Miguel Azevedo (Tukano, sib Hausirõ Porã) a aparição matutina de Vênus corresponde a Seribhi, “irmão menor”, e a aparição noturna corresponde a Doe, “irmão maior”. Os irmãos, por não obedecerem aos conselhos de seu pai, foram jogados por seu pai Basebo, o dono da alimentação, em lugares opostos do mundo, leste e oeste. Ao serem colocados em seus lugares se transformaram em Ñohkoa Mahsã, gente-estrela, Seribhi siõkha e Doe siõkha (Ñahuri e Kumarõ, 2003: 97).

 

10. Este personagem corresponde a Dehsubari Oãkhu na mitologia tukano e é da primeira humanidade, Gente do Aparecimento.

 

11. Bebida alucinógena ingerida em contexto ritual, feita a base de Banisteriopsis sp.

 

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 == Artes ==

O conceito de arte e os índios

 

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Arte é uma categoria criada pelo homem ocidental. E, mesmo no Ocidente, o que deve ou não deve ser considerado arte está longe de ser um consenso. O que não dizer da aplicação desse termo em manifestações plásticas de povos que nem ao menos possuem palavra correspondente em suas respectivas línguas?

O assunto é complexo e, a despeito da inadequação do termo, muitas obras indígenas têm impactado a sensibilidade e/ou a curiosidade do “homem branco” desde o século XVI, época em que os europeus aportaram nas terras habitadas pelos ameríndios. Nesse período, objetos confeccionados por esses povos eram colecionados por reis e nobres como espécimes “raros” de culturas “exóticas” e “longínquas”.

Até hoje, uma certa concepção museológica dos artefatos indígenas continua a vigorar no senso comum. Para muitos, essas obras constituem “artesanato”, considerado uma arte menor, cujo artesão apenas repete o mesmo padrão tradicional sem criar nada novo. Tal perspectiva desconsidera que a produção não paira acima do tempo e da dinâmica cultural. Ademais, a plasticidade das obras resulta da confluência de concepções e inquietações coletivas e individuais, apesar de não privilegiar este último aspecto, como ocorre na arte ocidental. Confeccionados para uso cotidiano ou ritual, a produção de elementos decorativos não é indiscriminada, podendo haver restrições de acordo com categorias de sexo, idade e posição social. Exige ainda conhecimentos específicos acerca dos materiais empregados, das ocasiões adequadas para a produção etc.

A Arte Baniwa, marca criada por índios Baniwa do alto rio Negro (AM), é um exemplo bem sucedido dessa empreitada.

As formas de manipular pigmentos, plumas, fibras vegetais, argila, madeira, pedra e outros materiais conferem singularidade à produção ameríndia, diferenciando-a da arte ocidental, assim como da produção africana ou asiática. Entretanto, não se trata de uma “arte indígena”, e sim de “artes indígenas”, já que cada povo possui particularidades na sua maneira de se expressar e de conferir sentido às suas produções.

Os suportes de tais expressões transcendem as peças exibidas nos museus e feiras (cuias, cestos, cabaças, redes, remos, flechas, bancos, máscaras, esculturas, mantos, cocares...), uma vez que o corpo humano é pintado, escarificado e perfurado; assim como o são construções rochosas, árvores e outras formações naturais; sem contar a presença crucial da dança e da música. Em todos esses casos, a ordem estética está vinculada a outros domínios do pensamento, constituindo meios de comunicação – entre homens e mulheres, entre povos e entre mundos – e modos de conceber, compreender e refletir a ordem social e cosmológica.

Nas relações entre os povos, os artefatos também são objeto de troca, inclusive com o “homem branco”. Ultimamente, o comércio com a sociedade envolvente tem apontado uma alternativa de geração de renda por meio da valorização e divulgação de sua produção cultural.

Outras leituras

Para saber mais sobre o assunto, ver o artigo de Lúcia Hussak van Velthen, “Em outros tempos e nos tempos atuais: arte indígena”, no catálogo Artes Indígenas - Mostra do Redescobrimento, Fundação Bienal de SP (2000), e o livro Grafismo Indígena: Estudos de Antropologia Estética, organizado por Lux Vidal, Edusp/Nobel (2001)

 

Panorama da diversidade

arte_bakairi
Motivo gráfico que os Bakairi (MT) utilizam na fabricação de uma máscara do ritual yakuygâde. Retangular e entalhada em madeira, a máscara representa espíritos tutores relativos ao mundo aquático.
arte_karaja
Esta tatuagem facial faz parte do segundo ritual de iniciação dos Karajá (MT/ TO), que se dá quando a menina está por volta dos 11 anos.
arte_tikuna
Hilda Tomás do Carmo, índia tikuna (AM), mostra o desenho que representa a “festa da moça nova”.
arte_karaja_2
 A cerâmica Karajá é arte exclusiva das mulheres.
 
arte_kadiweu
Desenhos minuciosos e simétricos, traçados com tinta obtida da mistura do suco do jenipapo com pó de carvão, marcam, até hoje, a pintura corporal dos Kadiwéu.
 
arte_kadiweu_2
Entre os Kadiwéu (MS), também são as mulheres que decoram a cerâmica. Elas utilizam padrões que seguem um repertório rico, mas fixo, de formas preenchidas com variadas cores.
 
arte_ticuna
As máscaras Tikuna, que guardam características essenciais do sobrenatural, "dançam" no pátio da aldeia.
 
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As máscaras Matis (AM) representam os espíritos mariwin, cujo papel consiste em bater nas crianças com o objetivo de endurecer, disciplinar e torná-las mais ativas e vigorosas.
 
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Entre os Xikrin, a qualidade de pintura é considerada atributo inerente à natureza feminina.
 
arte_xikrin_2
No ritual de nominação dos Xikrin do Cateté, as meninas são, por meio da pintura corporal e da elaborada arte plumária, literalmente transformadas em pássaros.
 
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Índio Baniwa do alto Içana (Amazonas) coloca etiqueta com a logomarca “arte baniwa” num urutu de arumã, cestaria que é comercializada em São Paulo.
 
arte_wayana
A maruana, roda-de-teto com pinturas que representam lagartas sobrenaturais, está presente em todas casas Wayana. Desenho de Yeyé.
 
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Esta peça de cestaria dos Wayana (PA) guarda o motivo kaikui, a onça pintada que representa simbolicamente os guerreiros.
 
arte_wari
O towa, instrumento de percussão dos Wari´ (RO), é feito de argila revestida de caucho de seringueira.

cesto_baniwa== Poéticas indígenas == por Pedro Cesarino fotos Claudia Andujar

Yanomami

 

A educação formal brasileira, como se sabe, possui uma base euroamericana. Quando terminamos o segundo grau, adquirimos uma noção geral sobre as artes e literaturas francesas, inglesas ou norte-americanas, que constituem assim o repertório cultural de qualquer cidadão. Os pressupostos que aí se formam sobre expressões estéticas e intelectuais são marcados, porém, por uma imensa e antiga lacuna. Não sabemos praticamente nada sobre os povos indígenas (para não falar dos africanos), ignoramos completamente os seus regimes de pensamento e de criação. Se estivéssemos no México, teríamos no meio da praça central da capital uma imensa pirâmide de pedra azteca. Sua imponência serve como advertência para o processo de dominação (física e espiritual) que se iniciou há cinco séculos. Com exceção, talvez, do que acontece na Amazônia contemporânea, onde os índios têm uma presença maior nas cidades, o Brasil permanece ignorando as produções culturais de seus povos indígenas.

As lacunas de nosso sistema educacional não são responsáveis apenas pelo desconhecimento sistemático dos universos indígenas, mas também pela disseminação de uma série de estereótipos que inviabilizam uma compreensão, ainda que mínima, de tais povos. Imaginamos assim (e mesmo quando simpatizamos com os habitantes da floresta) que eles ainda permanecem no estado de natureza, que são primitivos, simplórios, pouco sofisticados, repetitivos ou mesmo ingênuos. Donde a razão para publicar e traduzir as suas histórias em livros infanto-juvenis, aproximados automaticamente de toda aquela cultura popular genérica povoada pelos sacis, cecis, peris e mulas sem cabeça. Imaginamos, assim, que se trata de algo bastante distinto das literaturas clássicas, provenientes da Grécia antiga e do velho continente, produzidas pela civilização por meio da escrita. Este panorama, claramente etnocêntrico, serve para justificar, ainda que silenciosamente, a submissão dos povos indígenas aos nossos critérios políticos, econômicos e culturais. Mas o que, afinal, eles têm a ver com isso? Que espécie de pensamento criativo produziram nos últimos milênios?

Antes de mais nada, é preciso esclarecer um ponto: existem inesgotáveis maneiras de se produzir complexidades (de pensamento, de sentido), a despeito daquela com a qual estamos acostumados, derivada da escrita e de uma civilização que se destaca pelo domínio da tecnologia. Sob o aparente despojamento de suas construções e artefatos, os povos indígenas construíram sistemas de pensamento e expressões criativas que, ainda hoje, escapam à compreensão dos melhores cientistas das principais universidades do Ocidente. Trata-se de sistemas que não têm exatamente a ver com a nossa imagem genérica da cultura popular (que, evidentemente, tem também o seu inestimável valor). Os sistemas indígenas se aproximam bastante, diga-se de passagem, dos pensamentos e das artes chinesas ou japonesas.1

Vamos partir aqui do princípio de que há poesia por toda parte. Mesmo assim, não se pode tomar as experiências poéticas indígenas pelo gênero literário que estudamos através de Camões ou de Fernando Pessoa. As poesias de toda parte implicam, portanto, em formas diversas de experiência e de criação. Estas são marcadas por distintas estruturas de língua e de pensamento, mas também por instituições políticas, processos de educação, entre outras características. Por conta disso, os problemas de interpretação e de tradução se multiplicam, mas não a ponto de se tornarem um impedimento para a compreensão das poéticas da floresta. Suas artes verbais, ou artes da palavra, são bastante distintas, portanto, do que estamos acostumados a ver como literatura escrita. Seguem outros critérios de composição, de criação, de autoria, de recepção e de fruição estética. Fazem sentido em um outro registro de realidade que tendemos a rotular como "mítico" ou "fictício" por contraposição aos conhecimentos científicos modernos.

yanomami_2

 

Entre os povos indígenas, é possível aprender cantos com os espíritos dos animais. Aliás, grande parte da cultura dos povos da floresta veio deles. Os Marubo, por exemplo, um povo do Vale do Javari (Amazonas), dizem que seu antepassado Vimi Peiya aprendeu a fazer grandes malocas e cestarias, bem como a caçar com arco e flecha, com o povo que vive nos rios. Tratam-se, a rigor, dos espíritos das sucuris e demais habitantes das águas, que concebem a si mesmos como pessoas. Muitos de nós, ocidentais, vamos às universidades à procura de conhecimento. Na Amazônia, um xamã (ou pajé) pode obter seus cantos dos espíritos das árvores, que são imortais, mais sabidos e belos do que nós, os viventes. Para compreender as narrativas e os cantos indígenas, torna-se então necessário conhecer um pouco mais dos mundos em que eles são criados. Veja a tradução do canto de um xamã marubo, Armando Cherõpapa. O canto pertence ao espírito do gavião preto, que visita o corpo de Armando e canta através dele. É por isso que, na Amazônia, os povos indígenas costumam dizer que os xamãs (ou pajés) "são como um rádio". Eles são os responsáveis por transmitir as falas e cantos dos espíritos dos animais, das árvores e de outros elementos disso que chamamos de "natureza". Armando, na verdade, não é exatamente o autor do canto que segue, mas o seu transportador:

    koin rome owaki         flor de tabaco-névoa menokovãini            caindo e planando         naí koin shavaya        à morada do céu-névoa  shavá avainita          vai mesmo voando     ave noke pariki        assim sempre fomos         yove mai matoke     na colina terra-espírito           koin mai matoke        na colina da terra-névoa        shokoivoti               há tempos moramos 2

 

O espírito do gavião está aí dizendo como surgiu: a partir das flores de tabaco desprendidas que vão voando para o Céu-Névoa, o último dos patamares celestes da cosmologia marubo. Sim, neste mundo há diversos patamares ou estratos celestes, que possuem os seus diversos habitantes, aldeias, festas e cantos. Os espíritos que ali vivem são mais antigos do que os Marubo; existem desde os tempos do surgimento. Este tipo de canto que aí está traduzido pode, então, ser chamado genericamente de "canto xamanístico" ou de "canto de pajé". Muitos povos indígenas possuem cantos similares, tais como os Araweté e os Kayabi (do Xingu), os Yanomami de Roraima, entre tantos outros.

Aos cantos xamanísticos somam-se, ainda, diversos outros gêneros, tais como as falas de chefe, os cantos de cura, os diversos cantos de festas e rituais, as narrativas míticas, entre outros. Cada povo tem as suas próprias artes verbais, todas elas sofisticadas, diversificadas e bastante vivas ainda nos dias de hoje. Faltam, no entanto, livros e traduções que revelem isso também para nós, não-índios. A antropóloga e lingüista Bruna Franchetto, uma das maiores especialistas em línguas indígenas do Brasil, traduziu este belo canto tolo dos Kuikuro (Xingu), aqui reproduzido parcialmente:

Que nasçam asas em nós para aportar atrás da beira d'água irei feito beija-flor Não podes ficar aqui para namorarmos leve-me contigo vamos para a tua aldeia 'Vou contigo' disse-me a mulher de canoa ela se foi na nossa frente Lá, em Aitolóu sentirei saudades de ti lá, na terra dos bakairí sentirei saudades de ti (...) 3

 

Este canto-poema, referente às relações entre amantes, é um bom exemplo do lirismo que se encontra em muitas poéticas indígenas. Elas costumam ser marcadas pelas distâncias e separações que marcam as relações de parentesco, muitas vezes estendidas entre aldeias distintas, separadas por longas viagens pelos rios. Isso confere uma certa qualidade nostálgica a muitas de suas criações verbais, que pode ser encontrada também nas narrativas míticas. Estas, porém, não se referem apenas a sentimentos ou impressões de sujeitos determinados, tal como nos dois cantos acima citados. Elas tratam de temas diversos tais como o surgimento do céu e da terra, dos antepassados, dos animais e dos próprios brancos, entre outros episódios que constituem a base dos conhecimentos indígenas.

Os Guarani possuem também uma rica mitologia, bem como um vasto conjunto de rezas e cantos cerimoniais. São provas vivas de que as mudanças sociais não levam necessariamente ao desaparecimento dos conhecimentos tradicionais, muito embora dificultem bastante suas vidas e os processos de transmissão de seus cantos. O problema, aliás, não escapa à reflexão dos próprios cantadores-poetas, como vemos nessa tradução feita pelo poeta Douglas Diegues (a partir de um canto coletado por Guilhermo Sequera). Reproduzo, novamente, apenas um trecho:

Queremos Encher a terra de vida Nós os poucos (Mbyá) que sobramos Nossos netos todos Os abandonados todos Queremos que todos vejam Como a terra se abre como flor4

 

yanomami_2

Yanomami    

 

Notas

1. Como exemplo, veja o que diz o antropólogo Claude Lévi-Strauss em um artigo chamado "O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América" (publicado em Antropologia Estrutural. São Paulo, Cosac Naify, 2008).

  2. Tradução de Pedro Cesarino.

  3. Franchetto, Bruna. "Tolo Kuikúro: Diga cantando o que não pode ser dito falando”. in Invenção do Brasil, Revista do Museu Aberto do Descobrimento, Ministério da Cultura, 1997: 57-64.

  4. Diegues, Douglas (Org.). Kosmofonia Mbya-Guarani. São Paulo, Mendonça & Provazi editores, 2006.

 

== Habitações ==

Panorama da diversidade

 

habi_panara
Os Panará, como a grande maioria dos povos da família lingüística Jê, vivem em aldeias circulares na divisa dos estados de Mato Grosso e Pará. As residências encontram-se situadas na periferia do círculo. No centro, espaço para atividades políticas e rituais, localiza-se a Casa dos Homens.
habi_kraho
As aldeias dos Krahô (TO), povo da família lingüística Jê, seguem o ideal timbira de disposição das casas ao longo de uma larga via circular, cada qual ligada por um caminho radial ao pátio central.
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Os Gavião Parkatêjê (PA) são falantes do Timbira oriental (família Jê). Esta é uma de suas aldeias, a Kaikotore. Composta por 33 casas de alvenaria dispostas em círculo, possui cerca de 200 metros de diâmetro. Há um largo caminho ao redor, em frente às casas, e vários caminhos radiais que conduzem ao pátio central, onde se desenvolvem todas as atividades cerimoniais.
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Entre os Marubo, grupo da família lingüística Pano que habita o Vale do Javari (AM), a única construção habitada é a casa alongada, coberta de palha e de jarina da cumeeira ao chão, que se localiza no centro da aldeia. As construções que ficam ao redor, erguidas por pilotis, servem mais como depósitos e são de propriedade individual.
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Os Enawenê-Nawê (MT), grupo da família lingüística Aruaque, vivem em aldeias formadas por grandes casas retangulares e uma casa circular, localizada mais ou menos no centro, onde ficam guardadas as suas flautas. No pátio central, são realizados diversos rituais e jogos.
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Os Yanomami orientais e ocidentais costumam viver em uma casa agregando várias famílias, a maloca Toototobi (AM). Lá reúnem-se todos os membros da aldeia, sendo considerada como entidade política e econômica autônoma.
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Aqui, uma habitação coletiva Yanomami vista de seu interior.
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A maloca-museu São João, no rio Tiquié (AM), é um exemplo de como os chamados "índios da floresta", falantes de línguas das famílias Aruak e Tukano, da região da bacia do alto rio Negro, costumavam viver. Não é uma simples moradia comunitária, mas, também, um espaço fundamental para a realização de cerimônias, a trajetória primordial dos antepassados míticos.
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Os Palikur (AP) também são falantes de uma língua da família Aruak. Suas aldeias são construídas voltadas para o rio. A maior delas, Kumenê, tem suas casas dispostas em duas ruas paralelas.

 == Índios e o meio ambiente ==

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Foto: diversos autores, veja aqui         Mesmo não sendo “naturalmente ecologistas”, aos povos indígenas se deve reconhecer o crédito histórico de terem manejado os recursos naturais de maneira branda. Souberam aplicar estratégias de uso dos recursos que, mesmo transformando de maneira durável seu ambiente, não alteraram os princípios de funcionamento e nem colocaram em risco as condições de reprodução deste meio.

Diferentes concepções de "natureza"

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Muitas vezes somos levados a pensar que as sociedades indígenas que vivem nas florestas tropicais são povos isolados, intocados, e que vivem “em harmonia” com os seus ambientes.A dificuldade em se compreender as concepções e as práticas indígenas relacionadas ao “mundo natural” e a tendência em aprisionar estes modos de vida extremamente complexos e elaborados na imagem idealizada de uma relação harmônica homem-natureza são exemplos de etnocentrismo.

A visão dos índios como homens "naturais", defensores inatos da natureza, deriva de uma concepção de natureza que é própria ao mundo ocidental moderno: a natureza como algo que deve permanecer intocado, alheio à ação humana. Mas o que os povos indígenas têm a dizer sobre o assunto é bem diferente.

As concepções indígenas de “natureza” variam bastante, pois cada povo tem um modo particular de conceber o meio ambiente e de compreender as relações que estabelece com ele. Porém, se algo parece comum a todos eles, é a idéia de que o “mundo natural” é antes de tudo uma ampla rede de inter-relações entre agentes, sejam eles humanos ou não-humanos. Isto significa dizer que os homens estão sempre interagindo com a “natureza” e que esta não é jamais intocada. Os Yanomami, por exemplo, utilizam a palavra urihi para se referir à "terra-floresta": entidade viva, dotada de um "sopro vital" e de um "princípio de fertilidade" de origem mítica. Urihi é habitada e animada por espíritos diversos, entre eles os espíritos dos pajés yanomami, também seus guardiões.

A sobrevivência dos homens e a manutenção da vida em sociedade, no que diz respeito, por exemplo, à obtenção dos alimentos e a proteção contra doenças, depende das relações travadas com esses espíritos da floresta. Dessa maneira, a natureza, para os Yanomami, é um cenário do qual não se separa a intervenção humana.

 

Parceiros na preservação ambiental

Apesar de não serem "naturalmente ecologistas", os índios têm consciência da sua dependência – não apenas física, mas sobretudo cosmológica – em relação ao meio ambiente. Em função disso, desenvolveram formas de manejo dos recursos naturais que têm se mostrado fundamentais para a preservação da cobertura florestal no Brasil.

Trata-se de um fato visível nas regiões onde o desmatamento tem avançado com maior rapidez, como nos estados do Mato Grosso, Rondônia e sul do Pará. Em levantamento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), por exemplo, as Terras Indígenas aparecem como verdadeiros oásis de florestas.

É fato que muitos povos indígenas, como os Suruí, Cinta-Larga e os Kayapó, tenham se atrelado ativamente a formas predatórias de exploração dos recursos naturais hoje em vigor na Amazônia, fazendo alianças principalmente com empresas madeireiras. Todavia, é preciso reconhecer que eles o fizeram submetidos a pressões concretas, contínuas, ilegais e como sócios menores desses negócios.

Hoje e no futuro, é preciso procurar mecanismos para potencializar as chances de os índios equacionarem favoravelmente o domínio de terras extensas com baixa demografia. Um desses mecanismos são as ainda incipientes formas de articulação de projetos indígenas com estratégias não-indígenas de uso sustentado de recursos naturais, sejam públicas ou privadas. 

 

Panorama da Diversidade

meio_xingu

Vista aérea do posto Diauarum: cerrado e floresta de transição (Alto Xingu – MT). Foto: Abril Imagens,1999.

 

 

 

 

 

 

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A volta da caçada na floresta amazônica (Araweté – PA).  Foto: Eduardo Viveiros de Castro, s/d.

 

 

 

 

 

 

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Vista da aldeia do Meruri no cerrado (Bororo – MT). Foto: Luís Donisete B. Grupioni, s/d.

 

 

 

 

 

 

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Serra da Bodoquena: vegetação de cerrado e mata calcária (Kadiwéu – MS). Foto: Correio do Estado, s/d.

 

 

 

 

 

 

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Voltando da roça entre a savana e os campos alagados (Galibi Marworno – AP). Foto: Vincent Carelli, s/d.

 

 

 

 

 

 

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Aldeia Rio Branco em Itanhaém: Mata Atlântica (Guarani –SP).  Foto: José Novaes, s/d.== Redes indígenas de relações ==

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Foto: Beto Ricardo, 2002         

Introdução

As sociedades indígenas não se encontram em estado de total isolamento. Isso significa dizer que, antes de manterem relações com a sociedade brasileira, elas sempre mantiveram relações entre si. Em várias regiões, e de diversas maneiras, povos diferentes se inter-relacionavam por meio de guerras, de troca de objetos, de casamentos, de convites para festas, rituais etc.

Apesar de terem se transformado com o tempo, essas redes de relações não cessaram nos dias de hoje. Podem compreender tanto um pequeno grupo de povos vizinhos, como estender-se por toda uma região. Em alguns casos, são redes de troca muito complexas, nas quais cada sociedade possui um papel especializado. Em outros, as relações ocorrem apenas eventualmente.

Veja abaixo alguns exemplos:

Waiwai

Os Waiwai, localizados no norte do Pará e em Roraima, sempre travaram relações de várias naturezas – matrimonial, comercial e cerimonial – com as populações vizinhas. Tanto que, atualmente, depois do acirramento do contato com os não-índios, passaram a viver junto com outros povos, dentre eles, os Katuena, os Xereu e os Hixkaryana. Nas comunidades Waiwai, apesar de todos se designarem em certos momentos como Waiwai, cada grupo não abre mão de marcar a sua diferença, acentuando, quando preciso, até mesmo posições de rivalidade.

Região das Guianas

A região das Guianas se localiza no extremo norte da América do Sul e abrange, além do Brasil, a Guiana Francesa, o Suriname, a Guiana (ex-Guiana Inglesa) e parte da Venezuela. Essa região é também conhecida como “ilha guianense”, pois é circunscrita pelos rios Amazonas e Orinoco - ligados entre si pelo canal Casiquiare - e pelo Oceano Atlântico.

Uma miríade de povos indígenas habita essa região, produzindo um mosaico de línguas e culturas que se comunicam por meio de redes de relações que tem se mantido ao longo dos séculos, mesmo sofrendo transformações bruscas. Navegando em grandes canoas, as populações guianenses do passado cruzavam rios e mares em expedições guerreiras, trocavam mercadorias, esposas, víveres e toda sorte de serviços rituais. Com a colonização européia e a drástica redução da população indígena em toda Amazônia, essas redes foram fragmentadas e redirecionadas, dando a impressão de que os grupos que lá habitam hoje em dia não passam de sombras de um passado glorioso. No entanto, as populações de língua Karib e Aruak, os pequenos grupos Tupi e os Yanomami, entre tantos outros, mantém vivas suas redes, incorporando, além das populações indígenas, espíritos xamânicos e todos os tipos de não-índios que compõem seus universos.

Alto rio Negro

A região do alto rio Negro revela vastas redes de relações entre os diversos povos indígenas que lá habitam. A começar pelo fato de que é regra nessas sociedades cada homem casar-se com uma mulher de outro grupo, que, necessariamente, deve falar uma língua diferente. Desse modo, os Tukano, os Arapaso, os Desana, os Tariana, os Tuyuka, entre tantos outros, não podem ser considerados como grupos fechados, e sim como unidades sempre abertas e dispostas à troca.

As relações entre os grupos do alto rio Negro não têm apenas o aspecto de aliança. Revelam também um complexo sistema hierárquico. Casam-se entre si aqueles que são considerados “índios do rio”, por habitarem regiões navegáveis, geralmente falantes de línguas da família Tukano ou Aruak. Por sua vez, os índios de língua Maku (“índios da floresta”), que habitam os interflúvios da região, são relegados por estes a uma posição de marginalidade. 

Os “índios do rio” não se casam com os Maku e tampouco se prestam a aprender a sua língua, alegando que estes não seguem os padrões corretos de residência e se casam com pessoas que falam a mesma língua, o que lhes soa absurdo. No entanto, ambos mantêm relações constantes. Por exemplo, os “índios do rio” fornecem peixe e mandioca aos Maku, recebendo, em troca, carne e serviços. 

Alto Xingu

A região do alto Xingu representa, no território brasileiro, o cenário das mais intensas redes de relações entre diferentes povos indígenas, agrupando sociedades de línguas Jê, Tupi, Karib, Aruak e Trumai. 

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No alto Xingu, antigos conflitos deram lugar a relações pacíficas, que incluem trocas de objetos e rituais. Como observou o antropólogo Eduardo Galvão, na época de criação do Parque Indígena do Xingu (início da década de 1960), os diferentes povos acabaram por se especializar na confecção ou extração de um determinado item, de modo a poder ingressar na rede de trocas. Assim, os Waujá confeccionavam peças de cerâmica; os Kamayurá, arcos de madeira preta; os Kuikuro e os Kalapalo, colares de caramujo, e assim por diante.

Até hoje, são os rituais que sedimentam uma linguagem comum entre todos. No kwarup, rende-se homenagem a um chefe falecido recentemente, que se estende a outros falecidos estimados. O yawarí se realiza a propósito de mortos mais antigos e também da iniciação dos rapazes. Ambos os rituais fortalecem a articulação entre os diversos povos, marcando de modo simbólico a oposição entre a ferocidade guerreira (convidados simulam ataques à aldeia dos anfitriões) e a reciprocidade regrada (troca de objetos e serviços).