De Povos Indígenas no Brasil

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Conhecimentos tradicionais

Conhecimentos Tradicionais  Novos Rumos e Alternativas de Proteção por Fernando Mathias', advogado do Programa de Política e Direito Socioambiental. Artigo publicado no livro  Povos Indígenas no Brasil, 2001 a 2005 -  ISA  

Não se pode negar que o conhecimento sobre o meio em que se vive é algo fundamental para a construção da cultura de um povo. Durante milênios, a livre circulação de idéias, experiências e conhecimentos permitiu ao homem aprimorar sua relação com a natureza, recriando paisagens e gerando tecnologia e diversidade ambiental e cultural. A natureza ainda continua a ser o palco da evolução humana, não obstante a irresistível tentação do homem de acreditar que pode dominá-la através de novas tecnologias como a genômica, proteômica ou nanobiotecnologia.

De uns tempos para cá, até bem recentemente em termos históricos, boa parte do conhecimento do homem sobre o meio ambiente passou a ser privatizado através de mecanismos de propriedade intelectual, especialmente patentes. O sistema de propriedade intelectual foi praticamente recriado a partir do advento da biotecnologia, estendendo além dos limites do bom senso o conceito de “invenção”: atualmente, genes, moléculas – inclusive de seres humanos –, micróbios e plantas podem ser patenteados, ou seja, virar propriedade privada de uma empresa farmacêutica, cosmética ou de agricultura.

O valor da natureza e do processo de geração de conhecimento são entendidos distintamente de acordo com diferentes sociedades. Para a sociedade ocidental, a sociobiodiversidade tornou-se valiosa enquanto objeto de pesquisa, fonte de impulsos tecnológicos nas biociências e nas bioindústrias, transformados em vetores de concentração econômica através de patentes. Para outras sociedades culturalmente distintas, essa mesma sociobiodiversidade é valiosa por seus atributos sagrados, por fazer parte de uma cosmologia de pertencimento que enxerga homem e natureza como entidade única.

A privatização do conhecimento científico

A notável evolução da indústria de biotecnologia a patamares há pouco impensáveis se deu em dois campos jurídico-regulatórios distintos, em cuja interface se forjou o termo “biopirataria”: de um lado, o patrimônio genético até recentemente considerado como bem comum da humanidade (até o advento da CDB em 1992, que reconheceu soberanias nacionais sobre esse patrimônio), e de outro lado o sistema de propriedade intelectual, assente sobre a noção individual de propriedade privada sobre o intangível. Essas circunstâncias permitiram um processo de privatização extremamente lucrativo: indústrias de biotecnologia contam com uma fonte gratuita de matéria prima, cujo manual de instrução se encontra no conhecimento de povos indígenas e comunidades locais, e os transformam em propriedade privada através de sua tradução em uma linguagem tecnocientífica passível de ser patenteada, de acordo com critérios cada vez mais distorcidos de inovação, passo inventivo e estado da técnica.

Há uma pressão intensa de países desenvolvidos por uma “harmonização” das legislações de patentes no mundo, nivelando por baixo esses critérios de patenteamento de forma a aumentar a dependência econômica e a perda de soberania alimentar e de saúde de países pobres. Começou com o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), depois veio o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPs) da OMC, agora já se discute um Tratado Substantivo em Matéria de Patentes no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), além dos Tratados Bilaterais ou Regionais de Livre Comércio, que já detêm regras que permitem o patenteamento de descobertas e seres vivos, e que consideram atividades de bioprospecção como “serviços científicos de pesquisa”, transformando autorizações de acesso em “acordos de investimento” e concedendo patentes em remuneração aos “investidores”, como se a espoliação fosse um benefício prestado ao próprio espoliado.

Patentes já viraram instrumento de especulação: a estratosférica curva de crescimento do número de patentes no campo da biotecnologia é inversamente proporcional ao número de invenções e produtos desenvolvidos e colocados a serviço da sociedade. Nas universidades, pesquisadores patenteiam seus trabalhos antes mesmo de os publicar, invertendo completamente a premissa essencial da produção científica acadêmica. Acesso ao conhecimento, mesmo na academia, passa a ser pago.

A maximização do sistema de propriedade intelectual, em vez de promover e divulgar, cerceia o acesso a conhecimentos e inovações pela esmagadora maioria da população no mundo, limitando-o a poucos que detêm condições econômicas de pagar por isso. Como conceber que um sistema desses possa estimular a produção de conhecimento?

Boa parte das pessoas já vem se dando conta disso, e batalhando por uma mais livre circulação da cultura, do conhecimento e da informação para a sociedade em geral. Movimentos importantes como o software livre, as licenças autorais abertas (creative commons), as enciclopédias abertas (wikipedia) e iniciativas de acesso livre (open access) no meio acadêmico envolvem lógicas diferentes, baseadas no resgate de princípios éticos de aprimoramento de sistemas e obras a partir da construção coletiva e do controle social difuso através de redes sociais, virtuais ou não.

A livre circulação do conhecimento e as comunidades tradicionais

Essas iniciativas inovadoras têm raízes antigas. A circulação de conhecimento entre povos indígenas e comunidades locais através de redes sociais de troca é a dinâmica milenar responsável pela manutenção de um sistema cultural de manejo e compreensão do ambiente (ver artigo, pág. 96). No entanto, o embate entre os diferentes valores sobre a biodiversidade, embora pareça distante e etéreo, pois a princípio se dá no campo das idéias, vem tomando representações cada vez mais críticas e concretas, especialmente no campo da agricultura, onde o monopólio econômico do uso de plantas e sementes cria situações sociais de aumento de dependência e perda de soberania alimentar de grande parte da população rural do mundo.

A globalização dos mercados permitiu uma maior penetração de produtos em larga escala em locais remotos. Cachaça, macarrão e cesta básica podem ser encontrados em comunidades cada vez mais isoladas, causando um processo de homogeneização alimentar que resultam na erosão da agrodiversidade cultivada e dos conhecimentos associados, além do aumento de dependência e queda dos indicadores de saúde e nutrição. O modelo econômico baseado na monocultura agrícola e na concentração fundiária, por sua vez, restringe o acesso à terra e a recursos naturais por grande parte da população rural global, o que acarreta também a perda de conhecimentos tradicionais sobre o uso de plantas e animais.

Outras leituras

'''''Saber tradicional x Saber científico''''', de Laymert Garcia dos Santos

Cada vez mais se abandona a roça para comprar comida enlatada, a sabedoria dos anciãos é desprezada, jovens vão para as cidades em busca de emprego, remédios tradicionais são criminalizados, sistemas de educação impõem valores individualistas e competitivos em oposição à solidariedade comunitária que caracteriza a organização social de povos indígenas e comunidades locais.

Para fazer frente a essas ameaças, é importante dar maior ênfase a uma abordagem endógena de proteção dos conhecimentos no seio das aldeias e comunidades, com medidas como valorização de sistemas autônomos de educação e saúde, valorização de mulheres e anciãos e sensibilização dos jovens.

O reconhecimento de direitos territoriais, ambientais e de auto-determinação, bem como o fortalecimento dos sistemas consuetudinários de direito e da organização social dos povos tradicionais são fundamentais para manter as redes de relações e intercâmbios sociais, culturais e ambientais que permitem a reprodução e conservação in situ dos sistemas de conhecimento e de manejo da diversidade biológica, especialmente de plantas cultivadas. Considerando que vivemos em um mundo onde essas duas realidades coexistem – o conhecimento livre essencial a uma realidade cultural e o conhecimento privatizado voltado ao mercado – o desafio que se coloca agora é justamente como buscar caminhos para construir relações positivas entre povos indígenas e locais e o mercado.

Terroir: um conceito socioambiental

O direito à terra é fundamental para a sobrevivência cultural de povos indígenas e comunidades locais, e há muito que caminhar no reconhecimento de direitos territoriais a quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, seringueiros, pequenos agricultores.

No campo da política indigenista, o caminho percorrido é maior, mas está longe de terminar. Ainda assim, povos indígenas com territórios demarcados não raro vivem em completa miséria, em relações de exploração e dependência econômica, diante da total falta de políticas públicas de gestão desses territórios.  Não há incentivo para produção, alternativas econômicas de base sustentável, tampouco acesso a crédito. O desafio da era pós-demarcações é justamente a gestão das Terras Indígenas pelos próprios índios.

Nesse sentido, experiências positivas de certificação ligadas a um conceito de território cultural e ambiental, inspiradas no conceito que forma a base do sistema francês de denominações de origem (terroir), podem ser uma forma de agregar valor de mercado a características culturais e ambientais próprias, que determinam a singularidade de um determinado produto elaborado no âmbito de comunidades tradicionais.

As experiências de Apelação de Origem Controlada (AOC), de origem francesa, caracterizam-se pela identificação de um produto agrícola cuja autenticidade e tipicidade estão ligadas à sua região geográfica de origem e às circunstâncias socioambientais que envolvem seu processo de produção. O interessante do sistema AOC é que seu pressuposto emana de uma ligação intrínseca entre um produto e um determinado terroir, conceito que denota um território geográfico com características geológicas, ecológicas e climáticas singulares, bem como fatores humanos e culturais, como práticas de manejo agronômicas, conhecimentos tradicionais, padrões de ocupação, etc. Ou seja, além do território físico e ambiental, a noção de terroir implica também tradições compartilhadas de produção, história comum, identidade coletiva e normalmente cultivos agrícolas tradicionais ou raças e linhagens de animais que conformam um patrimônio cultural e natural vivo e dinâmico. Os produtos advindos de um terroir podem ser passíveis de proteção por uma AOC como parte do patrimônio cultural nacional. Nesse caso, o mercado pode vir a fortalecer, em vez de erodir, os valores socioambientais ligados ao manejo de recursos naturais por povos tradicionais. É possível incorporar a noção de terroir como a unidade institucional sobre a qual se poderia construir uma política pública no Brasil voltada à valorização do patrimônio cultural indígena e da produção agrícola. A partir do reconhecimento de um determinado terroir – que poderia integrar por exemplo um inventário do patrimônio cultural brasileiro –, a produção agrícola tradicional advinda daquela região poderia ser valorizada através do reconhecimento pelo Estado de uma indicação de origem. A oferta reduzida de um produto com forte vínculo territorial, cultural e ambiental agrega valor ao produto no mercado, abrindo portas para, através de mecanismos de incentivo e salvaguardas, a conquista de um nicho de mercado que possa reverter em benefícios voltados à proteção endógena dos conhecimentos tradicionais e das plantas cultivadas de povos indígenas e comunidades locais.

A implementação e o uso desse mecanismo junto a comunidades indígenas poderia ser uma política pública baseada na demanda dos próprios povos indígenas para alternativas econômicas de base sustentável; o papel do governo seria o de fomentar e dar resposta às demandas indígenas, através do reconhecimento oficial de terroirs indígenas que conformassem um arcabouço sobre o qual poder-se-ia fazer um levantamento de potenciais produtos com indicação de origem. 

Outras leituras

'''''A Agrobiodiversidade e os Direitos dos Agricultores Tradicionais''''', de Juliana Santilli e Laure Emperaire

 == Direitos autoral e de imagem ==

Introdução

Quantas vezes alguém interessado em publicar uma fotografia de um indígena em um livro já se fez as seguintes perguntas:  será que devo pedir autorização?  Para quem?  Tenho que pagar por isso?  Devo procurar a Funai? Devo ir até a aldeia?

Vivemos em um país que abriga cerca de <htmltag tagname="a" href="http://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral" target="_self">271 povos indígenas diferentes</htmltag>, que falam cerca de 150 línguas e habitam todas as regiões de nosso território.  Desde há muito tempo a  sociedade nacional  vem buscando conhecer esses povos e compreender suas culturas, o que resultou no  estabelecimento de um conjunto de direitos que tenta lhes garantir a sobrevivência enquanto povos culturalmente diferenciados.

Mostrar a cara dos povos indígenas ao Brasil foi fundamental para que o Estado brasileiro reconhecesse, a partir da Constituição de 88, que este é um país pluriétnico, que abriga uma mosaico de micro-sociedades às quais era necessário garantir o direito à terra e à cultura próprias.

Muitas pessoas não indígenas, que assumiram essa causa com dedicação, mostraram ao resto do Brasil neocolonial – cuja sociedade em geral detém em seu subconsciente a noção de povos indígenas como algo do passado, que já se foi – quem são esses povos, como se parecem, as suas culturas, os seus valores, onde vivem e como se relacionam com a terra e o ambiente.  Fizeram isso através de vários meios, mostrando traços culturais característicos como pinturas corporais e artesanatos, botando no papel línguas que não tinham forma escrita, mostrando o valor das tecnologias indígenas e dos conhecimentos tradicionais sobre plantas e outros recursos naturais, fotografando e filmando esses povos em suas aldeias, enfim, expondo a sua cultura e a sua imagem, bem como as ameaças que pairam sobre eles.

Com a consolidação desses direitos em 1988, paulatinamente as culturas e a imagem indígenas, nas suas mais variadas formas, vieram sendo absorvidas pela sociedade envolvente através de reportagens jornalísticas, exposições fotográficas, enciclopédias, exposições de arte, publicação de livros e revistas.  Diferentes pessoas (organizações não governamentais, missionários, educadores, mídia em geral, empresas, dentre outros) passaram a se utilizar da cultura e da imagem indígena para as mais diferentes finalidades.

Este amplo universo de atores não indígenas e de formas diferentes de exposição da cultura e da imagem indígena para a sociedade envolvente enseja a existência de direitos muito presentes e ao mesmo tempo pouco conhecidos:  o direito autoral e o direito de imagem dos povos indígenas.

 

Para informar- se  sobre esses direitos, leia a publicação  O''s Povos Indígenas frente ao Direito autoral e de imagem'' (2004) do Instituto Socioambiental. O objetivo desta publicação é aprofundar a discussão a respeito destes dois direitos – autoral e de imagem – dos povos indígenas, trazendo à tona a problemática que a aplicação concreta desses direitos enseja, e tentando responder, na medida do possível, alguns dos questionamentos mais comuns que surgem nessa seara.  

 == Imputabilidade penal ==

Por Ana Paula Caldeira Souto Maior, advogada do Programa de Política e Direito Socioambiental, do Instituto Socioambiental (ISA)  

Para saber se um indígena responderá pela prática de crime, se ele é imputável, é necessário averiguar se, de acordo com sua cultura, costume e tradição, ele entendia o caráter ilícito de determinada conduta considerada crime em lei. Não importa o grau de contato que o individuo pertencente a um povo indígena mantenha com a sociedade envolvente, mas sim determinar se na ocasião da conduta ele tinha entendimento de que ela era considerada ilícita, e portanto, passível de punição, fora da sua cultura, fora do seu direito consuetudinário.

Nem sempre foi esse o entendimento sobre a imputabilidade penal dos índios. Antes da Constituição de 1988, a imputabilidade penal dos indígenas era orientada pela menor ou maior integração à cultura dominante.  Acreditava-se que os índios viviam um estágio transitório e que, mais cedo ou mais tarde, eles deixariam de ser índios. Dessa forma, o Código Civil de 1916, ao tratar da capacidade civil dos índios os considerava relativamente incapazes. Isto influenciou o tratamento dado à imputabilidade penal, regulada no Estatuto do Índio, de 1973, que considerou os índios isolados como inimputáveis e que os integrados à sociedade nacional deveriam ser tratados como qualquer cidadão não indígena.

Em 1988, a Constituição reconheceu aos índios o direito de manter a sua organização social e o direito de ser diferente, abrindo espaço para outro tratamento a respeito da capacidade civil e da responsabilidade criminal dos índios. O novo Código Civil, aprovado em 2002, retirou os indígenas das pessoas consideradas relativamente incapazes e estabeleceu que a capacidade dos índios será regulada em lei específica.

Assim, considera-se hoje, que punir um índio que comete um ato, em situação em que ele desconhece tratar-se de conduta tipificada como crime pela cultura dominante, equivaleria, penalizá-lo por ter uma cultura diferente. O juiz  Eduardo Montealegre, juiz da Corte Constitucional da Colômbia,argumenta que se a lei protege a diversidade cultural não se pode obrigar quem não faz parte da cultura dominante a agir de acordo com ela, segundo citação contida no artigo “Índios e Imputabilidade Penal”, de Roberto Lemos dos Santos Filho.

Além da Constituição, a Convenção 169 da OIT, em vigor no Brasil desde 2003, também reconhece aos índios o direito de manter seus próprios costumes e instituições, inclusive de aplicar medidas punitivas.  A Convenção estabelece para os Estados a obrigação de, ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados levar em devida consideração os costumes indígenas e o  índios de  compreender e se fazer compreendidos em processos legais. Em caso de condenação, o Estatuto do Índio (Lei no 6001/1973) estabelece a atenuação da pena, e que as penas de reclusão e de detenção deverão ser cumpridas em regime especial de semi-liberdade, na sede da FUNAI mais próxima da habitação do condenado.

Entretanto, na prática, o que acontece no Brasil é bem diferente. Atualmente, a quantidade  precisa de índios de diversas etnias encarcerada nos estados do Brasil é ainda desconhecida, mas estima-se que  o número seja bem maior do que se poderia imaginar.  É o que demonstra a pesquisa “Criminalização e Situação Prisional de Índios no Brasil”, realizada pelo Ministerio Público Federal, em 2008. É de grande repercussão a grave situação de perseguição ao povo Guarani no estado do Mato Grosso do Sul. Em 2006, estudo coordenado pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) em parceria com a Universidade Dom Bosco, demonstrou a violação de direitos de índios detidos em unidades prisionais naquele estado.  Mais recentemente as organizações indígenas tem denunciado a criminalização de lideranças indígenas, destacando-se os casos do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, no sul da Bahia.

Outras leituras

Para saber mais sobre o assunto, leia na íntegra o relatório sobre a Situação dos Detentos Indígenas no Estado do Mato Grosso do Sul e o relatório elaborado pela Procuradoria Geral da República-PGR em parceria com a Associação Brasileira de Antropologia-ABA

Junho de 2011== O Estado longe de ser democrático e de direito ==

Por Juliana de Paula Batista, Advogada, ISA e Maurício Guetta, Advogado, ISA. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016

Atualmente, tramitam 103 proposições legislativas na Câmara dos Deputados, e outras 86 no Senado Federal, relacionadas aos povos indígenas. A maioria delas pretende suprimir ou restringir direitos dos índios sobre suas terras tradicionais.


Não é de hoje que o Congresso Nacional, com suas maiorias parlamentares de ocasião vinculadas a interesses eminentemente privados, vem atuando no sentido de vilipendiar e impor retrocessos a direitos conquistados pelos povos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro.

Atualmente, tramitam 103 proposições legislativas na Câmara dos Deputados e outras 86 propostas no Senado Federal relacionadas às questões de interesse dos povos indígenas, incluídas nestes dados propostas de emenda à Constituição Federal, projetos de lei, projetos de decretos legislativos, entre outros. Em sua maioria, tais proposições pretendem suprimir ou restringir direitos dos índios sobre suas terras tradicionais, classificadas pela própria Carta Constitucional como essenciais para a sua sobrevivência física e cultural.

São propostas sobre temas variados, como alterações constitucionais voltadas a paralisar a demarcação das Terras Indígenas ainda pendentes de reconhecimento estatal, anular Terras Indígenas já demarcadas, homologadas e implantadas, bem como permitir o desenvolvimento de atividades minerárias, hidrelétricas e agropecuárias dentro de territórios tradicionais. Há, ainda, propostas destinadas a enfraquecer e flexibilizar o licenciamento ambiental, as quais, caso aprovadas, resultariam em impactos negativos aos povos indígenas, notadamente no que diz respeito ao licenciamento para obras de infraestrutura, causadoras de significativa degradação socioambiental.

Não obstante as evidentes contrariedades à Constituição Federal contidas nessas proposições legislativas, sua tramitação segue sem grandes entraves – ressalvada a atuação de alguns parlamentares aliados dos povos indígenas, em número minoritário, e a ampla resistência oferecida pelo movimento indígena e por organizações indigenistas.

A maior ameaça: PEC Nº 215/2000

De todas as ameaças legislativas, a mais danosa aos povos indígenas do Brasil é a PEC n.o 215/2000, uma vez que objetiva impor drásticas e substanciais alterações no artigo 231 da Constituição Federal, no qual estão previstos os direitos e garantias fundamentais indígenas, além dos artigos 45 e 61 do texto constitucional, bem como dos artigos 67 e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Nesse sentido, o que se propõe na PEC 215/2000 e suas propostas apensas é, em resumo: (1) a alteração da sistemática de reconhecimento das Terras Indígenas, transferindo do Executivo ao Legislativo o poder de decisão final sobre as demarcações, o que imporia significativas dificuldades para a conclusão de processos demarcatórios; (2) a abertura das Terras Indígenas a empreendimentos econômicos e atividades de impacto, como aquelas definidas em lei complementar como sendo de relevante interesse público da União (abrindo margem, tal como definido no Projeto de Lei Complementar n.o 227/2012, à exploração mineral e de potenciais hidrelétricos e à construção de oleodutos, gasodutos, portos, aeroportos, linhas de transmissão de energia, dentre outros), bem como assentamentos rurais de não indígenas e atividades agropecuárias, inclusive mediante arrendamento de terras; e (3) a inserção da tese do “marco temporal da ocupação”, aplicada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação sobre a demarcação da TI Raposa Serra do Sol (RR), no texto da Constituição Federal, como fator temporal limitador do direito originário indígena às terras que tradicionalmente ocupam.

As referidas propostas, contudo, encontram obstáculo intransponível na própria Constituição Federal, uma vez que esbarram em matérias classificadas pelo artigo 60, § 4.o, como cláusulas pétreas - isto é, que se encontram no núcleo intangível da Lei Maior, sobre os quais nem mesmo o Poder Legislativo pode deliberar. Entre essas limitações aplicáveis ao Congresso Nacional figura a impossibilidade de abolir ou violar o núcleo essencial de direitos e garantias fundamentais, devido ao reconhecimento de sua importância vital para a manutenção dos valores mais elevados estatuídos Constituição, pilares do Estado Democrático de Direito.

Ao pretender subordinar o reconhecimento de Terras Indígenas a uma decisão política de maiorias parlamentares de ocasião, bem como abrir tais territórios à exploração de atividades de impacto alheias aos usos costumes e tradições dos povos indígenas, a PEC n.o 215/2000 acaba por atingir gravemente o mais relevante dos direitos fundamentais dos povos indígenas: o seu direito às terras tradicionais, classificado pela própria Constituição como sendo originário, inalienável, indisponível e imprescritível, além de imprescindível para o seu bem-estar e para a sua sobrevivência física e cultural ¹.

Tal conclusão foi respaldada pelo Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, que, ao apreciar o pedido liminar em mandado de segurança contra a tramitação da PEC n.o 215/2000, bem afirmou: “condicionar o reconhecimento de um direito fundamental à deliberação político-majoritária parece contrariar a sua própria razão de ser. Com efeito, tais direitos são incluídos na Constituição justamente para que as maiorias de ocasião não tenham poder de disposição sobre eles. (...) O ponto é particularmente relevante quando a tutela se volta a grupos minoritários e/ou historicamente marginalizados, os quais, como regra, não dispõem de meios para participar em condições adequadas do debate político. É esse o caso dos índios, no Brasil e em diversas outras partes do mundo ².”

Além disso, a pretensão de transferir do Poder Executivo ao Poder Legislativo a competência para a deliberação final sobre os processos de demarcação de Terras Indígenas também viola o princípio da separação de poderes, igualmente alçado à condição de cláusula pétrea pela Constituição Federal. Nesse sentido, o documento intitulado “Senadores apoiam sociedade civil contra a PEC 215/2000” ³, assinado por 48 Senadores da República, afirma: “A confirmação de direitos de minorias não pode ficar suscetível a maiorias temporárias. A demarcação é um ato técnico e declaratório. Não há sentido em introduzir o componente político neste ato. É incabível trazer essa matéria para o âmbito do Congresso, um equívoco político e jurídico, um atentado aos direitos dos povos indígenas.” Na mesma direção da PEC no 215/2000, há projetos de lei, propostos por deputados integrantes da bancada ruralista, destinados a alterar o procedimento de demarcação de TIs e para conferir interpretações restritivas ao artigo 231 da Constituição Federal, que trata deste tema. Os exemplos mais drásticos em termos de violação de direitos são os Projetos de Lei (PL) no 1216/2015 e no1218/2015. Apenas para se ter uma ideia, o último prevê que apenas serão consideradas Terras Indígenas aquelas que tiveram seu processo de demarcação devidamente concluído até 04/10/1993, excluindo os demais territórios de tal reconhecimento.

O mote ruralista para paralisar e anular demarcações de TIs: CPI da Funai/Incra

O ano de 2015 foi marcado, entre outras polêmicas, pela adoção de uma nova estratégia de parlamentares da bancada ruralista: a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar atos da Funai e do Incra. A intenção central dessa estratégia consiste em enfraquecer a atuação desses órgãos, notadamente no que diz respeito aos processos de reconhecimento de TIs e Territórios Remanescentes de Quilombo (TRQs), visando criar um “ambiente argumentativo” para justificar as pretendidas alterações legislativas.

Trata-se de uma resposta às vitoriosas estratégias dos movimentos indígena e indigenista, além de parlamentares aliados e outros relevantes segmentos públicos e sociais.

No afã de se apropriar das TIs, parte do setor do agronegócio, por intermédio das bancadas parlamentares por eles financiadas, decidiram seguir a linha da criminalização de órgãos públicos de proteção dos índios e dos quilombolas, bem como dos seus funcionários, além de lideranças do movimento indígena, de organizações indigenistas e também da classe dos antropólogos como um todo, através de descabidas e ilegais ofensivas contra a atuação de profissionais que participaram de processos demarcatórios e da própria Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Tudo em nome da apropriação indevida e inconstitucional das Terras Indígenas.

O avanço sobre os recursos naturais

Não bastassem as ameaças legislativas ao processo demarcatório, também tramitam no Congresso Nacional projetos de lei destinados a permitir o uso e a exploração de recursos naturais incidentes dentro de Terras Indígenas.

Nesse sentido, uma das proposições mais preocupantes é o PL no 1610/1996, que pretende permitir a exploração de minérios localizados dentro de Terras Indígenas por meio da regulamentação do § 3o do artigo 231 da Constituição. Entre as várias disposições contrárias aos direitos dos índios, o projeto de lei lhes nega o direito de vetar atividades minerárias em suas terras; ou seja, permite que atividades de mineração sejam realizadas dentro de territórios indígenas, a despeito da contrariedade dos índios que detêm o direito sobre a terra.

Apesar da atividade ser proibida atualmente, em 2016, Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) registrava 4181 processos minerários incidentes sobre 177 TIs. O ouro é o mineral mais pesquisado, além de ser um dos mais danosos, devido ao seu processo de exploração. Só na TI Yanomami constam 678 processos minerários.

A exploração de potenciais energéticos é outra ameaça constante. Há, hoje, no Congresso Nacional, sete projetos de decretos legislativos tendentes a autorizar tais atividades dentro de TIs.

Um longo caminho a percorrer

Os direitos e garantias fundamentais previstos pela Constituição Federal constituem o fundamento máximo do Estado Democrático de Direito. Sua principal finalidade é justamente garantir que os direitos mínimos do cidadão e da coletividade não sejam alterados pelo legislador e não possam ser objeto de violação por parte dos demais membros da sociedade ou do próprio Estado.

Em verdade, “os direitos fundamentais são hoje o parâmetro de aferição do grau de democracia de uma sociedade <sup>4</sup>.” Aliás, a doutrina e jurisprudência afirmam e reafirmam que “a própria existência dos direitos fundamentais seria colocada em risco caso fosse admitida restrição contra eles, sob o argumento de que tal restrição traria benefício geral para a maioria da sociedade ou então para o próprio governo, ou ainda viabilizaria a preservação do interesse público <sup>5</sup>.” Os direitos fundamentais, portanto, devem ser amplamente resguardados, ainda que sua efetividade esbarre em interesses da maioria da população ou do Poder Público.

Tais premissas basilares do Estado Democrático de Direito, instaurado pela Constituição Federal de 1988, se aplicam com maior rigor quando se está a tratar de direitos fundamentais de grupos minoritários da sociedade, como é o caso dos povos indígenas no Brasil.

Apesar disso, esses direitos são alvo de violações rotineiras por parte do Poder Legislativo, atualmente dominado por bancadas parlamentares que mais representam setores empresariais (bancadas da mineração, do agronegócio, das empreiteiras, dos bancos etc.) do que setores político-ideológicos. Como nos mostram as ofensivas parlamentares contra os direitos fundamentais dos povos indígenas, nossa jovem democracia ainda tem muito a se aperfeiçoar. Quando o Brasil passar a respeitar os direitos de grupos minoritários, como os povos indígenas, poderemos, enfim, celebrar a existência de um verdadeiro e pleno Estado Democrático de Direito.

(outubro, 2016)

NOTAS

¹ Tal como decidido em diversas oportunidades pelo Supremo Tribunal Federal. Como exemplo, vide: Supremo Tribunal Federal. 1.a Turma. Recurso Extraordinário n.o 183.188/MS. Relator: Ministro Celso de Mello. D.J. 14.02.1997.

² Supremo Tribunal Federal. Decisão monocrática. Medida Cautelar em Mandado de Segurança n.o 32.262/DF. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. D.J. 24.09.2013.

³ Disponível em: <http://www.socioambiental.org/pt-br/noticiassocioambientais/numero-de-senadores-contra-a-proposta-deemenda-constitucional-215-ja-chega-a-48>.

4 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. “Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais.” In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. (Coords.) Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 104.

5 ABBOUD, Georges. “O mito da supremacia do interesse público sobre privado. A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se autorizar restrição a direitos fundamentais.” In: Revista dos Tribunais, 2011, n.o 907, p. 95/97.