Atividades econômicas
O direito de usufruto exclusivo dos índios sobre as riquezas naturais de suas terras, assegurado pela Constituição Federal, deve ser entendido como um benefício aos índios, uma proteção especial, e não como uma restrição às suas atividades produtivas. Com a palavra, Juliana Santilli (Promotora de Justiça do DF e colaboradora do Programa de Política e Direito Socioambiental/ ISA):
As únicas exceções ao direito de usufruto indígena estão previstas na própria Constituição: aproveitamento de recursos hídricos e mineração por terceiros, desde que ouvidas as comunidades indígenas e assegurada a participação nos resultados da lavra (Art. 231, § 3º).
Esse direito se destina a assegurar aos índios meios para a sua subsistência, para que possam se reproduzir, física e culturalmente, e não tolher as suas iniciativas e projetos de auto-sustentação econômica.
Conceito de usufruto exclusivo
O conceito jurídico de usufruto exclusivo é fundamental à compreensão da legislação que regula a exploração dos recursos naturais das Terras Indígenas. Segundo o Código Civil, Art. 713, o usufruto é o "direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa", e o usufruto estende-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos (Art. 716). De acordo com o Art.718 do Código Civil, "o usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos".
O Estatuto do Índio em vigor (Lei 6.001/73) estabelece a seguinte definição do usufruto indígena:
Art. 24 – O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas e utilidades.
§ 1º – Incluem-se no usufruto, que se estende aos acessórios e seus acrescidos, o uso dos mananciais e das águas dos trechos das vias fluviais compreendidos nas terras ocupadas.
§ 2º – É garantido ao índio o exclusivo exercício da caça e pesca nas áreas por ele ocupadas, devendo ser executadas por forma suasória as medidas de polícia que em relação a ele eventualmente tiverem de ser aplicadas."
O direito de usufruto exclusivo, assegurado constitucionalmente aos índios, implica que estes podem tirar dos recursos naturais de suas terras todos os frutos, utilidades e rendimentos possíveis, desde que não lhe alterem a substância ou comprometam a sua sustentabilidade ambiental.
Os índios não podem alienar a terceiros o seu direito de usufruto. Isto não significa, entretanto, que estejam obrigados a gozar direta e imediatamente de seus bens, ou que não possam fazer parcerias ou ser assessorados por terceiros em projetos que visem a exploração de seus recursos naturais. O entendimento contrário transformaria o "usufruto exclusivo" indígena em um verdadeiro "presente de grego" às comunidades indígenas, que estariam impedidas de desenvolver os seus próprios projetos econômicos, conforme salienta Roberto Santos, em artigo sobre a "Parceria Pecuária em Terras Indígenas".
As comunidades indígenas não podem, definitivamente, se envolver em projetos que impliquem a perda da posse de suas terras, ou que comprometam a sustentabilidade de seus recursos, pois estes devem ser preservados para as próximas gerações, por se tratar de direitos coletivos.
A terra indígena, enquanto base do habitat de um povo, e a sustentabilidade das riquezas naturais que delas são extraídas, asseguram a reprodução física e cultural das comunidades indígenas. E foi justamente por reconhecer a dependência das comunidades indígenas de seu habitat natural, que a Constituição impôs ao Poder Público a obrigação de defender e preservar não só as terras habitadas pelos índios, como também as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (Art. 231, caput).
O direito de usufruto exclusivo indígena não pode impedir os índios de desenvolver suas próprias atividades produtivas, ainda que com finalidades comerciais. Fundamental é a preservação dos recursos ambientais existentes nas terras indígenas, de forma a assegurar a sobrevivência das próximas gerações, bem como a manutenção da posse e do controle das comunidades indígenas sobre as atividades e projetos desenvolvidos em suas terras, posto que estes devem promover a sua auto-sustentação econômica e ambiental e não a sua dependência em relação a terceiros. Saliente-se que, em qualquer hipótese, o próprio Estatuto do Índio, em seu Art. 8º, parágrafo único, estabelece a nulidade dos atos negociais praticados entre índios e terceiros que lhe sejam prejudiciais, ou cujos efeitos nocivos sejam desconhecidos pelos índios, devido às suas diferenças culturais.
Conforme já dito acima, a Constituição veda a transferência da posse da terra indígena a terceiros e o Art. 24, também já transcrito acima, deve ser entendido em sintonia com o Art.18 do Estatuto:
Art. 18 – As Terras Indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas.
§ 1º – Nessas áreas, é vedada a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa."
Necessidades internas e comercialização
Dentro do conceito de usufruto exclusivo, entretanto, há que se fazer distinções entre o uso de recursos naturais para o atendimento de necessidades internas de uma comunidade indígena, segundo seus usos, costumes e tradições, e a produção de excedentes para comercialização, ainda que vise a sua própria subsistência. Sobre esta distinção, Carlos Frederico Marés de Souza Filho (em seu livro "O Renascer dos Povos para o Direito") afirma que:
O usufruto de suas terras (indígenas), segundo seus usos, costumes e tradições, implica a possibilidade de, sem restrições, utilizar os bens e recursos da área. Portanto, os indígenas podem fazer roça, aldeia, extrair lenha e alimentos para o uso da comunidade, sem qualquer restrição, porque restrições impostas administrativamente ou por lei, implicariam inconstitucionalidade"
Por outro lado, as populações indígenas produzem excedentes que comercializam para a aquisição de bens e serviços de que não dispõem internamente. A extração destes excedentes deve ser orientada segundo os padrões legais de proteção ambiental nacional, levando-se em conta as normas gerais aplicáveis. Assim, a caça somente está permitida para seu consumo interno, se pretenderem vender carne de caça, devem ter criadeiros inscritos e autorizados; somente podem vender madeira ou minerais extraídos conforme as normas específicas para tal fim, mas podem fazer roças e aldeias mesmo nas áreas consideradas de preservação permanente".
Em outras palavras: as atividades tradicionais das comunidades indígenas, voltadas para a sua subsistência ou consumo interno, não estão sujeitas a qualquer restrição ou condicionadas por qualquer autorização do Poder Público. Já as atividades de exploração comercial de recursos naturais dependem do cumprimento das exigências e normas legais específicas, inclusive das normas ambientais aplicáveis.
O usufruto exclusivo dos índios sobre os recursos naturais de suas terras não impede que os índios realizem parcerias ou sejam assessorados por terceiros na elaboração e desenvolvimento de projetos econômicos em suas terras, desde que não transfiram a posse das mesmas e nem alienem definitivamente o uso ou fruição de suas riquezas naturais.
Garimpagem por terceiros
A Constituição Federal e a legislação ordinária são absolutamente claras em relação à proibição da garimpagem por terceiros dentro de Terras Indígenas. Nenhuma das disposições constitucionais que procuraram legitimar o garimpo organizado se aplicam às terras indígenas, por expressa ressalva constitucional.
As Terras Indígenas foram expressamente excepcionadas e excluídas da incidência das normas constitucionais que procuraram legitimar as atividades das cooperativas de garimpeiros. O Art. 231, §7º, da Constituição, estatui que: "Não se aplica às Terras Indígenas o disposto no Art. 174, §3º e §4º".
A Constituição estabeleceu uma clara distinção no tratamento jurídico dado à mineração e ao garimpo em Terras Indígenas. Se, por um lado, a mineração por terceiros está sujeita a condições específicas, por outro lado, o garimpo em Terra Indígena por terceiros é absolutamente proibido.
Garimpagem pelos próprios índios
A garimpagem pelos próprios índios é expressamente permitida pelo Estatuto do Índio de 1973:
Art. 44 – As riquezas do solo, nas áreas indígenas, somente pelos silvícolas podem ser exploradas, cabendo-lhes com exclusividade o exercício da garimpagem, faiscação e cata das referidas áreas."
A Constituição Federal promulgada em 1988 manteve o usufruto exclusivo das comunidades indígenas sobre os recursos do solo, conforme já explicitado. Portanto, o Art. 44 do Estatuto do Índio foi por ela recepcionado e mantido. É evidente a distinção entre o tratamento constitucional conferido à mineração e ao garimpo. A Constituição trata as duas atividades de forma diferenciada, referindo-se às mesmas em dispositivos diferentes. A mineração é regulada pelo Art. 231, §3º, da Constituição, ao passo que o dispositivo que se refere ao garimpo é o 7º, que exclui a possibilidade de garimpagem por terceiros em Terras Indígenas. Portanto, as normas constitucionais que estabelecem condições específicas para a mineração em Terras Indígenas – necessidade de autorização do Congresso Nacional, consulta às comunidades afetadas e sua participação nos resultados da lavra – obviamente não se aplicam à garimpagem pelos índios.
O Estatuto das Sociedades Indígenas, em tramitação no Congresso Nacional, mantém a mesma orientação, estabelecendo que:
"Art. 14 – Integram o patrimônio indígena: II – o usufruto exclusivo de todas as riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos existentes nas Terras Indígenas, incluídos os acessórios e os acrescidos e o exercício de caça, pesca, coleta, garimpagem, faiscação e cata."
A Lei 7.805/89, ao regulamentar o regime de permissão de lavra garimpeira, dispõe expressamente, em seu Art. 23, que:
"A permissão de lavra garimpeira de que trata esta lei: a) não se aplica a Terras Indígenas."
Portanto, não se aplicando às terras indígenas as regras gerais que disciplinam a permissão de lavra garimpeira, normas específicas regulamentando as condições para o exercício de atividades garimpeiras pelos próprios índios devem ser editadas pelo Poder Público. Por outro lado, os índios não podem ser impedidos de exercer um direito (ao usufruto exclusivo de seus recursos naturais e à própria garimpagem, faiscação e cata, atividades permitidas pela Constituição e pelo atual Estatuto do Índio) devido à ausência de regulamentação legal. As leis em vigor que regulamentam as atividades minerárias simplesmente não dispõem sobre o procedimento e as exigências que as comunidades indígenas devem cumprir para requerer autorização do Poder Público para garimpar em suas terras.
Até que exista uma regulamentação legal específica para a garimpagem em Terras Indígenas, pelos próprios índios, os projetos experimentais de garimpo em terras indígenas devem ser objeto de autorizações ad hoc, concedidas pelo DNPM, caso a caso, que deverá ouvir o órgão ambiental, nos termos da legislação pertinente, e que poderá consultar o órgão indigenista sobre os possíveis impactos do projeto de garimpagem sobre a comunidade indígena.
Esse era o entendimento sobre este tema do garimpo indígena até 2004, quando veio à cena pública um conflito dramático envolvendo garimpeiros e os índios Cinta-Larga. Este acontecimento fez com que o Governo Federal promulgasse um decreto em 17 de setembro de 2004 (publicado no Diário Oficial de 20/09/2004), criando um Grupo Operacional para fiscalizar e coibir exploração mineral em terras indígenas, em especial nas terras dos Cinta Larga, localizadas nos Estados de Rondônia e Mato Grosso, até que a matéria seja regulamentada por lei, nos termos do art. 231, § 3 o , da Constituição, bem assim para preservar a ordem pública nestas localidades.
Exploração florestal madeireira
Conforme já salientado anteriormente, a Constituição Federal, em seu Art. 231, §2º, assegura aos índios a posse permanente de suas terras e o "usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes". Portanto, a utilização das riquezas do solo de suas terras tradicionais é expressamente permitida aos índios, e, de acordo com o Código Civil, Art. 43, I, são bens imóveis: "o solo com a sua superfície, os seus acessórios e adjacências naturais, compreendendo as árvores e frutos pendentes". Não resta dúvida, portanto, que os recursos florestais existentes nas Terras Indígenas estão entre as riquezas naturais que são objeto do usufruto exclusivo assegurado constitucionalmente aos índios.
Saiba mais
- Acesse a seção específica sobre os direitos constitucionais dos índios
- Veja o resumo dos principais instrumentos de proteção dos direitos humanos dos povos indígenas
- Saiba o que são terras indígenas
Assim, os índios podem usar livremente os recursos florestais de suas terras em atividades tradicionais, voltadas para a subsistência ou consumo interno, podendo cortar árvores para construir casas, fazer utensílios domésticos, móveis, instrumentos de trabalho, cercas, canoas e barcos, e usar seus recursos florestais para quaisquer outros fins que visem possibilitar a sobrevivência física e cultural da comunidade indígena. No desenvolvimento de suas atividades tradicionais, as comunidades indígenas não estão sujeitas a quaisquer limitações legais, pois a Constituição Federal lhes assegura o reconhecimento de sua "organização social, costumes, línguas, crenças e tradições" e direitos "originários" sobre as terras que tradicionalmente ocupam (Art. 231, caput). Portanto, não incidem sobre as atividades tradicionais desenvolvidas pelas comunidades indígenas as limitações gerais estabelecidas pelo Código Florestal. Assim, podem plantar, fazer roças e aldeias mesmo nas áreas de preservação permanente estabelecidas pelo Código Florestal.
Diversas são, entretanto, as condições jurídicas para a exploração de recursos florestais de Terras Indígenas visando a sua comercialização. Tais atividades madeireiras comerciais devem se submeter à legislação ambiental aplicável. Assim, estarão sujeitas a todas as restrições impostas pelo Código Florestal, pela Lei 7.754/89, pela legislação que regula a exploração de recursos florestais sob a forma de manejo florestal sustentável e proíbe o corte e a comercialização de determinadas espécies.
Salienta-se, finalmente, que a exploração florestal realizada por terceiros em áreas indígenas viola flagrantemente o direito de usufruto exclusivo assegurado constitucionalmente às comunidades indígenas. Tal conduta ilegal é passível de ser responsabilizada tanto no plano administrativo (através de multas, apreensões e outras sanções administrativas impostas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama), quanto no plano cível (pagamento de indenizações às comunidades indígenas) e no plano criminal.
[Juliana Santilli – abril/ 2000]
Mineração
por Ana Paula Caldeira Souto Maior, advogada do Programa de Política e Direito Socioambiental, do Instituto Socioambiental (ISA)
A Constituição estabelece em capítulo destinado aos índios, no artigo 231 que são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (Art. 231, § 2º). Em capítulo destinado a princípios gerais da atividade econômica, no artigo 176, diz que para efeito de exploração ou aproveitamento, os recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica são considerados como propriedade da União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais hídricos somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas (Art. 176, § 1º).
Para harmonizar os direitos garantidos aos índios e a possibilidade de exploração de recursos minerais e hídricos existentes em suas terras, a Constituição criou condicionantes. Assim, o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei (Art. 231, § 3º). Em resumo, a exploração de recursos minerais e hídricos em terras indígenas para acontecer precisa de:
- Lei que estabeleça as condições específicas de como pode se dar a exploração ou aproveitamento;
- Autorização do Congresso Nacional;
- Ouvir as comunidades indígenas.
Está em tramitação na Câmara dos Deputados o PL 1610/96, de autoria do Senador Romero Jucá, que regulamenta a exploração de minerais em terras indígenas. O movimento indígena tem pleiteado que o tema seja regulamentado no texto do Estatuto dos Povos Indígenas (PL 2057/91) , que regulamenta a relação dos índios com o Estado, que está parado também na Câmara, deste 1994.
Outras leituras
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