De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Ana Vilacy Galucio, 2007.

Mudanças entre as edições de "Povo:Puruborá"

Autodenominação
Onde estão Quantos são
RO 243 (Siasi/Sesai, 2014)
Família linguística
Puruborá
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Edição das 09h43min de 13 de setembro de 2017

Introdução

Contatados oficialmente por Rondon no início do século XX no vale do rio Guaporé, os Puruborá foram, durante décadas, considerados extintos, misturados às muitas levas de seringueiros que ocuparam a região que futuramente viria a ser conhecida como Rondônia. Mas os Puruborá – o “povo que se transforma em onças” –, embora fragmentados e dispersos, lograram atravessar o século. E, em 2001, realizaram sua primeira assembleia, na qual reuniram os parentes espalhados por diversos lugares no estado de Rondônia e alhures, e reafirmaram sua luta pelo reconhecimento de seu território tradicional nas margens do rio Manoel Correia, luta que segue nos dias de hoje, como um dos povos definidos como “ressurgidos” ou “resistentes” na Amazônia brasileira.

Nome e população

O termo Puruborá é uma autodesignação, que o grupo traduz como “aquele que se transforma em onça para curar” (fazendo referência aos antigos xamãs). De acordo com alguns dos mais idosos, o nome “Puruborá” deriva de puru, “onça” na língua Puruborá, e quer dizer “povo das onças” ou “povo que vira [se transforma em] onça”; a análise linguística da língua Puruborá apresenta o etnônimo como uma composição de puru “onça” + borá “coletivo”. Grafias alternativas (não mais em uso) incluem Borobura (Snethlage), Puru-Borá, Puru-Bora, Borá e Buruborá.

A contabilização da população Puruborá atual encontra algumas dificuldades devido à dispersão sofrida pelo grupo, a partir dos anos de 1940, por diversas localidades no estado de Rondônia e mesmo para fora dele. Dados preliminares recolhidos em campo apontam que os Puruborá residentes na sua única aldeia atual (Aperoi) somam 40 indivíduos (2014), divididos por 10 residências dispersas pela área entre os rios Caio Espíndola, Manuel Correia e Cabixi e a rodovia federal BR-429.

Há outras famílias Puruborá – ligadas ao grupo de Aperoi por laços de parentesco reconhecidos e, na medida do possível, sempre atualizados por visitas e encontros – vivendo em vários municípios rondonienses. Os próprios Puruborá mencionam a existência de entre 200 e 1000 pessoas espalhadas pelos municípios de Seringueiras, São Francisco do Guaporé, São Miguel do Guaporé, Alta Floresta do Oeste, Costa Marques, Rolim de Moura, Ji-Paraná, Ariquemes, Porto Velho e Guajará-Mirim (nesta última cidade há uma significativa população Puruborá, possivelmente em torno de 200 pessoas, incluindo dois dos mais velhos indivíduos deste povo, seu Eliézer e seu Nilo).

O relatório de Ruth Henrique da Silva (2008) fala que os Puruborá “contabilizam cerca de 300 pessoas”. Dados do CIMI de Rondônia dão conta de uma população de 220 indivíduos Puruborá em 2015. O COMIN (Conselho da Missão entre Povos Indígenas, órgão ligado à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB) fala em 400 Puruborá vivendo dispersos por todo o estado de Rondônia.

A única informação histórica a respeito da população Puruborá disponível parece ser a contagem de Olympio da Fonseca Filho, que esteve nas cabeceiras do rio São Miguel em 1924 e contabilizou cerca de 50 pessoas.  


Língua

A língua Puruborá é a única representante conhecida da família linguística Puruborá, do tronco Tupi. É pouco conhecida cientificamente e é um dos exemplos críticos da situação de risco da maioria das línguas indígenas no Brasil. Está entre as línguas do tronco Tupi com maior risco de desaparecimento em um futuro próximo, pois há muito deixou de ser utilizada como veículo de comunicação e deixou de ser ensinada às crianças há pelo menos três gerações. A língua Puruborá não possui mais falantes fluentes, apenas pouquíssimos semi-falantes.

Em 2015, existem somente dois anciãos que falam parcialmente Puruborá, ambos bastante debilitados pela idade e por problemas de saúde. No entanto, a geração jovem, atenta à possibilidade de perda irrecuperável do seu patrimônio linguístico e cultural, está interessada em possíveis ações de revitalização da língua.

Até 2001, as únicas fontes de informação sobre a língua Puruborá eram antigas listas de palavras:

  • Há notícias de que dois missionários teriam visitado os Puruborá na década de 1950 e coletado material linguístico e cultural, porém esse material não foi localizado até o presente.
  • A mais extensa lista de palavras havia sido coletada por Theodore Koch-Grünberg, em 1932, com um adolescente Puruborá, e contém 328 entradas lexicais.
  • A segunda lista é parte do vocabulário padrão do Museu Nacional, contém apenas 49 palavras, e foi coletada por William Bontkes no ano de 1968, com uma falante Puruborá de 65 anos de idade chamada Tereza, na localidade de Limoeiro, no rio São Miguel.
  • A terceira é uma lista de 130 itens lexicais em Puruborá, gravada em 1989 pelo linguista Denny Moore do Museu Paraense Emilio Goeldi com três remanescentes Puruborá que viviam no município de Guajará-Mirim (RO). Cópias dessas fitas e suas respectivas transcrições se encontram no Acervo de Línguas Indígenas do Museu Goeldi. Já em 1989, por ocasião dessa gravação, o três Puruborá relatam que após décadas sem falar a língua, já não conseguiam falar Puruborá fluentemente.
  • Uma lista de palavras (202 itens lexicais), coletada pela linguista Ruth Monserrat, em outubro de 2001, durante um Encontro de Parentes Puruborá, foi publicada em 2005 com algumas informações sobre o grupo e a língua.

Um projeto de Documentação da Língua Puruborá, coordenado por Ana Vilacy Galucio do Museu Paraense Emílio Goeldi, foi desenvolvido no período de 2001 a 2007, com o objetivo de contribuir para a salvaguarda e valorização da língua Puruborá. O material coletado inclui também frases na língua Puruborá. A possibilidade de documentar esse tipo de material foi um grande avanço do projeto, pois nenhuma das listas anteriores continha informação dessa natureza. O material coletado pelo projeto de Documentação da Língua Puruborá compõe o maior acervo disponível sobre a língua Puruborá e encontra-se depositado no acervo permanente do Centro de Documentação de Línguas Indígenas do Museu Paraense Emilio Goeldi.

Com base nos dados coletados da língua Puruborá, foi possível comparar com as outras línguas Tupi e ficou evidente a semelhança maior entre as línguas Puruborá e Karo. Em um trabalho preliminar, Galucio e Gabas Jr. propuseram que as famílias Ramarama (língua Karo) e Puruborá (língua Puruborá) são mais próximas entre si do que com as outras famílias Tupi, indicando que elas formam um subgrupo (ou subagrupamento) dentro do tronco Tupi: família Puruborá-Raramara.


Localização e território

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A única aldeia Puruborá atual, a aldeia Aperoi, está localizada às margens da rodovia BR-429, entre esta e o rio Manuel Correia. A aldeia dista cerca de 32 Km de Seringueiras, sentido Costa Marques e seu território se espalha entre os municípios de Seringueiras e de São Francisco do Guaporé,  leste do estado de Rondônia.

A aldeia é margeada, nas suas porções oeste e norte, pelo rio Manuel Correia, bem próxima da confluência deste com o rio Caio Espíndola, que forma o rio São Francisco, afluente do rio São Miguel que, por sua vez, deságua no Guaporé, a oeste.

Há, ainda, muitas famílias Puruborá vivendo em outros municípios rondonienses (São Francisco do Guaporé, São Miguel do Guaporé, Alta Floresta do Oeste, Costa Marques, Rolim de Moura, Ji-Paraná, Porto Velho e, especialmente, Guajará-Mirim).

Os Puruborá ainda não têm sua terra indígena reconhecida, demarcada e homologada. Ainda que espalhados por várias cidades em Rondônia, o grupo reconhece o antigo sítio de D. Emília, onde hoje está a aldeia Aperoi, como centro de referência de seu território atual. Há de se apontar que vários dos terrenos que compõem a aldeia foram adquiridos pelas famílias e são, pois, sítios de propriedade particular. Os trabalhos preliminares de identificação da terra indígena Puruborá apontam para a região compreendida entre os rios Caio Espíndola (a oeste) e Cabixi (a leste), e entre a BR-429 (ao sul) e a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (ao norte) como território tradicionalmente ocupado pelos Puruborá, e reconhecido por eles não apenas como sua principal área de concentração populacional desde o início do século XX (as margens do rio Manuel Correia, que serve como eixo que orienta boa parte dos deslocamentos do grupo ao longo do século passado), mas também como zona de perambulação e de exploração de recursos, especialmente a castanha, uma vez que a região era coberta por extensos castanhais, muitos deles já destruídos hoje com a ocupação da zona por fazendas de gado e plantações de soja. A memória dos Puruborá mais idosos relata a intensa circulação entre as diferentes colocações de seringa ao longo do rio Manuel Correia, desde sua porção mais alta, ao norte, até sua confluência com o Caio Espíndola, ao sul.

As antigas grandes áreas de castanhais também estão presentes na memória Puruborá, bem como o uso que faziam das castanhas. Os Puruborá se orgulham de, no passado, os castanhais fornecerem a base de sua alimentação; as castanheiras suscitam a memória de vários anciãos Puruborá; elas resgatam lembranças de um passado feliz, remetem à vivências de momentos de relativa paz e fartura. O óleo e o leite da castanha eram muito utilizados para cozimento e fritura dos alimentos. Desde os tempos em que viviam na Cigana, os anciões ensinavam os mais jovens a extrair o óleo da castanha, do patuá e do açaí. O óleo da castanha também tinha fins medicinais: passavam o óleo na cabeça e no meio da espinha com a finalidade de abaixar a febre. Várias receitas mais elaboradas têm a castanha como ingrediente principal.

Entre os muitos alimentos de origem vegetal na aldeia e arredores, as castanheiras são as que mais se destacam – pelo fato de remeterem fortemente ao passado. Os castanhais eram utilizados como ponto de referência e localização pelos Puruborá. Os enormes castanhais eram explorados antigamente nos altos cursos dos rios Manuel Correia e Cabixi; no entanto, essas terras foram adquiridas por fazendeiros e suas florestas (incluindo as apreciadas castanheiras) foram derrubadas para a formação de pasto, o que os Puruborá viram, e anda vêem, com muita tristeza.

Há de se apontar que boa parte do território tradicional dos Puruborá (as cabeceiras do rio Manuel Correia) foi incluída dentro dos limites da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (incluindo o local conhecido como Cigana, de grande importância histórica para o grupo). Os Puruborá acordam em abrir mão destas zonas já demarcadas pela FUNAI, sobretudo em respeito aos ‘parentes’ Uru-Eu-Wau-Wau e Amondawa, mas são consistentes em afirmar sua presença e exploração econômica das áreas circunvizinhas, situadas entre a fronteira sul do território Uru-Eu-Wau-Wau e o traçado da BR-429, e tendo o rio Cabixi – local em que usualmente pescavam em tempos antigos, pois considerado curso d’água muito piscoso – como seu limite ocidental extremo.

Com efeito, os dados históricos disponíveis, assim como as narrativas recolhidas entre os Puruborá, autorizam a afirmação de que este povo efetivamente vem ocupando a região entre os rios Caio Espíndola, Manuel Correia e Cabixi (todos formadores do rio São Miguel, e este, tributário do rio Guaporé) desde tempos imemoriais, com breves períodos de afastamento forçado da região.

Nesse sentido, o que os Puruborá denominam hoje de “suas terras” correspondem a um território um pouco maior do que aquele demarcado por Rondon no entorno do antigo Posto Três de Maio. Isso é evidente, em função da trajetória histórica do grupo desde os primeiros contatos no início do século XX: eles foram atraídos, primeiro, para o referido Posto; depois de 1949 espalharam-se pelas regiões vizinhas, voltando a ocupar as imediações do Posto – agora região conhecida como “Colônia” – por períodos diversos, utilizando extensa e intensamente os recursos da região dos formadores do rio São Miguel, até sua completa expulsão em 1994, quando finalmente se estabelecem às margens da rodovia, onde estão até os dias de hoje, seguindo explorando as terras entre a BR-429 e o rio Manuel Correia – que corresponde ao território da aldeia Aperoi – e algumas zonas adjacentes na busca por certos recursos, como caça, pescado, terras agricultáveis e matérias-primas para artesanato.

Cumpre assinalar que a região histórica e atualmente habitada e explorada pelos Puruborá se encontra bastante degradada, do ponto de vista ambiental, por sua ocupação por grandes fazendas de gado. Os únicos trechos preservados de floresta concentram-se quase integralmente nas orlas dos rios e igarapés, e nos confins da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau; mesmo ali, as fazendas, em muitos locais, levaram o desmatamento até a fronteira da referida terra indígena. Estudos recentes apontam, ainda, que a fronteira da soja está chegando rapidamente à região de Seringueiras, e muitos pecuaristas estão deixando a área, vendendo suas propriedades para o cultivo do grão. A relação dos Puruborá com os fazendeiros locais é bastante conflituosa. Logo que começaram a reivindicar suas terras, eles passaram a ser ameaçados com constância, sobretudo nas cidades próximas, e muitos passaram a negar-lhes trabalho nas propriedades rurais da região.  


Histórico do contato

As primeiras referências aos Puruborá datam do início do século XX. Darcy Ribeiro os considerou ainda “isolados’ (isto é, sem contato) em 1900. Segundo os anciãos Puruborá, o Marechal Cândido Rondon teria contatado o grupo em 1912, nas proximidades do rio São Miguel. Outros idosos afirmam que Rondon já os teria encontrado em 1909, nas imediações dos rios São Miguel e do seu afluente rio Manuel Correia.

Os Puruborá afirmam que são originários da região do rio Branco, onde viviam em contato com os Makurap, Aruá e Tupari, mas, em função de desavenças, migraram, ainda em tempos recuados, para o vale do rio São Miguel; Emil-Heirich Snethlage, viajando pelo vale do rio Guaporé em 1934, confirma esta afirmação de que os Puruborá moravam antigamente no rio Branco, mas se deslocaram posteriormente para o rio São Miguel.

De acordo com o Sr. Celestino (que vive em Porto Murtinho), antes do contato com Rondon os Puruborá viviam no local que denominam ‘Maloquinha’, junto com os índios Cabixi, na margem direita do rio Manuel Correia; depois disso, passaram a ocupar uma única aldeia no igarapé Paulo Velho, afluente do Manuel Correia, bem perto da Colônia, local para onde foram após a nucleação promovida por Rondon. O grupo conhecido como Cabixi teria sido rapidamente extinto, embora haja notícias, em Rondônia, da existência da alguns remanescentes.

Os Puruborá possuem sua própria versão sobre a chegada de Rondon ao seu território, narrativa expressa não sem uma pitada de crítica aos trabalhos da Comissão que dirigia: segundo eles, ao explorarem a região em que estavam situados os Puruborá, um dos cachorros de Rondon – que, de acordo com os Puruborá, o Marechal estimava demasiadamente, até mesmo preferindo seus companheiros caninos aos trabalhadores humanos sob suas ordens – desapareceu na floresta. Consternado, Rondon mandou que seus homens explodissem fogos de artifício na tentativa de fazer com que o cão, seguindo o barulho, reencontrasse os homens da expedição. O barulho ensurdecedor e estranho na floresta atraiu não apenas o cachorro fugido, mas também os Puruborá que, intrigados com aqueles ruídos incomuns, se aproximaram com curiosidade e estabeleceram os primeiros contatos amistosos com os não índios.

De acordo com uma carta do Marechal Rondon datada de 23 de junho de 1921 (localizada nos Arquivos do SPI/Museu do Índio), uma área de terra para uso dos índios do rio São Miguel (entre eles os Puruborá) foi delimitada na margem direita do rio Manuel Correia, abaixo da foz do igarapé da Cigana. Por isso este local ficou conhecido pelos Puruborá como a Cigana (local que foi assim denominado devido à abundância, ali, da ave conhecida popularmente como “cigana”, Opisthocomus hoazin). A área abrangia um raio de duas léguas (cerca de 67.600 há), com centro no Posto Indígena Três de Maio (outros informantes afirmam que o nome do posto era Dois de Maio), conforme foi denominado por Rondon no ato de sua fundação em 1919, ocasião em que os marcos de delimitação foram assentados, tendo sido confirmados por Benjamin Rondon, filho do marechal, em 1925. Rondon deixou o Posto Três/Dois de Maio aos cuidados do Sr. José Félix Alves do Nascimento, “que por minha ordem vai se estabelecer definitivamente n’aquelle lugar [e] leva amplos poderes para exercer sua função”, nas palavras do próprio então General de Brigada Cândido Mariano da Silva Rondon. Foi provavelmente nestas condições que Olympio da Fonseca Filho, epidemiologista ligado à Escola de Manguinhos, deve ter encontrado, em 1924, os cerca de 50 Puruborá que ele relata vivendo “junto às cabeceiras do rio São Miguel”; Fonseca deixou breve relato sobre uma dermatose endêmica entre os Puruborá (chamada de “chimberê” na língua indígena) que foi observada por ele in loco, tendo tomado o que parecem ser as mais antigas fotografias conhecidas de indivíduos Puruborá, o rosto de um jovem, o torso nu de uma mulher e as costas de um homem, todos visivelmente acometidos pela tal doença de pele. Fonseca Filho, neste seu estudo sobre o “chimberê”, relata que os Puruborá haviam sido contatados pelo “pessoal do Serviço Nacional [sic] de Proteção aos Índios” em 1921, no alto rio São Miguel; o parasitologista informa, ainda, que em 1924 os Puruborá que conheceu constituíam “um grupo populacional completamente segregado de contactos [sic] com os representantes da nossa civilização”.

Num primeiro momento, o posto abrigaria, de acordo com os velhos Puruborá, cerca de 600 pessoas, que teriam sido reduzidas a apenas 150 em função das epidemias (gripe, sarampo, catapora e caxumba) que assolaram a região logo após os primeiros contatos. Além disso, o Posto Três de Maio teria como moradores, além dos Puruborá, os índios Gavião que ocupavam a mesma região, tendo recebido, posteriormente, índios Cabixi e Migueleno que também habitavam o vale do rio Manuel Correia. Outros relatos dão conta de que José Felix usou os Puruborá – que teriam sido contatados primeiro – como ajudantes para estabelecer contatos pacíficos com outros povos vizinhos – Migueleno, Cabixi, Makurap e Tupari – e trazê-los para concentrá-los no Posto Três de Maio, colocando-os todos, ato contínuo, no trabalho de extração da seringa.

O mecanismo adotado por José Félix – que, segundo consta, teria aprendido a língua indígena e se casado com uma índia Puruborá – na administração do Posto parece ter sido, a crer nas narrativas dos Puruborá contemporâneos, decisivo para a desarticulação social deste povo e para a extinção rápida de sua língua. José Félix atuou como um patrão de seringal, obrigando os índios a cortarem seringa e coletarem castanha em troca de mercadorias. Além disso, ele instituiu a prática de ceder uma mulher indígena em casamento como prêmio aos homens que mais se destacavam na produção do látex. Segundo consta, os migrantes recém-chegados ganhavam de José Felix uma ‘colocação de seringa’ caso aceitassem se casar com mulheres indígenas. Com isto, praticamente todas as mulheres Puruborá ao longo dos anos de 1919 a 1949 (da fundação do Posto até a morte de José Félix) foram forçadamente casadas com seringueiros (inclusive a anciã D. Emília) o que implicou na desagregação do grupo que vivia, até então, reunido em torno do Posto Três de Maio. Além disso, nas famílias pluriétnicas que se formaram – mãe Puruborá e pai seringueiro (em sua maioria, amazonenses, cearenses e acreanos) – era proibido o uso da língua indígena, o que parece ter levado o Puruborá à quase completa extinção em somente uma geração. Ademais, boa parte das práticas e conhecimentos indígenas foram paulatinamente deixando de ser transmitidos, incluindo a língua, os rituais, as festas e o xamanismo.

Para o período de 1920 a 1940 dispomos de outras informações sobre os Puruborá, então situados no vale do rio São Miguel e de seu afluente, o rio Manuel Correia. Curt Nimuendajú, em seu famoso Mapa Etno-histórico (1981), localiza os Puruborá no alto rio São Miguel; entretanto, não fornece a data desta localização. Credita esta afirmação às informações de Emil Snethlage (provavelmente em comunicação pessoal) e ao livro deste mesmo autor, Atiko-Y, a uma publicação de Theodor Koch-Grümberg (1932) que traz uma das listas de palavras que permitem o estudo atual da língua Puruborá. O próprio Koch-Grümberg afirma ter recolhido a lista de verbetes em agosto de 1924, na cidade de Manaus, com um rapaz Puruborá de nome Atekáte, de cerca de 10-12 anos, que tinha um pequeno furo no lábio superior e que ‘vinha do rio Manuel Corrêa, afluente do Rio Guaporé’ (Er stammte vom Rio Manuel Corrêa, Nebenfluss des Rio Guaporé).

Em junho de 1934 os Puruborá (então denominados Purus-Borás) são visitados, no local conhecido como ‘Colônia’, pelo bispo de Guajará-Mirim, Dom François Xavier Rey. O religioso, em visita de desobriga pelas vastas e inóspitas regiões do vale do Guaporé nos anos 30, assim deixou registrada sua estadia entre eles:

Os índios Purus-Boras - rio São Miguel

11/06/1934

Chegamos à Colônia de José Felix às duas horas da tarde, após uma boa viagem e duas noites passadas em uma pascana [acampamento na mata] à luz das estrelas. À nossa chegada, os índios Purus Boras, que José comanda e que ele ‘civilizou’, aparecem todos para nos saudar. Bem vestidos, com boas maneiras, saudáveis, compreendendo e falando algumas palavras em português, respeitadores da família, trabalhadores, tendo certas noções do ‘Papai do Céu’, imitando os gestos e as atitudes dos católicos, de caráter jovial, pacíficos: tais são os índios Purus Boras. Eles não utilizam mais arcos e flechas, apenas armas de fogo. À noite, oração. Todos cantam a Ave Maria e o ‘Bendita seja’. Seus olhos brilham quando começo a falar do ‘Papai du Céu’."

 

12/06/1934

Missa. Rosário. Cantos. Depois veio até aqui Heliodoro de Albuquerque, pai da aluna Olga. Ele é caucheiro. Vive em um barraco a seis horas de viagem rio abaixo de José Félix, no rio Manoel Corrêa. Eu copio uma lista de palavras do dialeto dos índios Purus-Boras. 19 batismos. Oração e confissões."

 

Em 1949, com a morte de José Félix do Nascimento, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) extingue o Posto – recusando-se a enviar novo encarregado – com a alegação de que ali não havia mais índios, e que ‘o povo já era mestiçado’ ou que os índios ali já eram ‘mestiços’ ou ‘civilizados’. Nesta ocasião, a maioria das famílias deixou a região de origem, passando a residir em Limoeiro (que era, na época, um seringal), no rio São Miguel, ao sul (hoje no interior da Reserva Biológica do Guaporé), passando a trabalhar para seringalistas locais. Em 1982 os Puruborá que viviam no povoado de Limoeiro são dali expulsos com a criação da Reserva Biológica (REBIO) do Guaporé. Sobre isso, Mauro Leonel aponta que ‘o IBAMA os expulsou do local, desnecessariamente e sem qualquer indenização, por situarem-se nos limites da Reserva Biológica do Guaporé’. Apenas as famílias de Paulo Aporete Filho e Dona Emília permaneceram no local do antigo posto do SPI (que reconhecem como seu território tradicional) por mais tempo. O Sr. Paulo permaneceu ali até 1983 (outros afirmam que em 1984 ou 85), quando deixou a região em função dos problemas de saúde.

A família de Dona Emília retornou, em 1955 (após muitas idas e vindas), ao local conhecido como Cigana, no rio Manuel Correia, e desta época os Puruborá filhos de Dona Emília (e outros na faixa dos 40-50 anos de idade) se recordam de um conjunto de colocações que habitaram ao longo daquele rio, antes de sua expulsão definitiva em 1994. Os Puruborá relatam os nomes de pelo menos 25 desses locais de habitação e exploração de seringa, castanha e poaia ao longo do rio, desde sua confluência com o rio Caio Espíndola (ao sul, colocação Porto Olga), até a colocação Vai-quem-quer, no alto Manuel Correia; entre estas estão as colocações chamadas Colônia (onde funcionava a sede do Posto Três de Maio), Cigana (que os Puruborá ocupavam antes de sua expulsão em 1994) e Bicentenário, onde se localizava o Porto Bicentenário, que servia às atividades comerciais (comércio de borracha e castanha) do seringal administrado por José Felix do Nascimento.

Entretanto, algumas famílias resistiram aos impactos da desarticulação social e étnica trazidos pela situação de Posto, e foram (e vêm sendo ainda) fundamentais para a reorganização dos Puruborá como coletividade etnicamente diferenciada aos olhos do estado nos últimos anos. (Note-se que os Puruborá sempre se reconheceram como coletividade singular frente a outros grupos indígenas e não indígenas na região; só deixaram, em algum momento, de serem assim reconhecidos pelo estado). Um dos mais importantes desses ‘núcleos’, constituído em torno de dona Emília Puruborá (falecida em 2013) e que deu origem à atual aldeia Aperoi, condensa a história dos Puruborá antes de sua ‘extinção’ como etnia indígena diferenciada, durante este período de sua invisibilidade  e após sua reorganização étnica. É este ‘núcleo’ que, hoje, confere substância e forma aos Puruborá como um povo indígena reconhecido local, estadual e nacionalmente.

Em 1957, Darcy Ribeiro localiza entre 50 e 100 Puruborá vivendo nas cabeceiras do rio São Miguel, caracterizando-os como ‘grupo indígena com contato intermitente’ com a sociedade nacional. Provavelmente Ribeiro faz referência, com base em documentos do SPI, ao grupo de Dona Emília residindo no rio Manuel Correia, um dos formadores do rio São Miguel.

Com a demarcação da Terra Indígena Uru-Eu-Uau-Uau em 1994 a família de Dona Emília foi expulsa da Cigana, uma vez que grande parte dela – incluindo a foz do igarapé da Cigana, local de grande importância para os Puruborá – foi incluída na referida terra indígena (mais de 50% da antiga área do Posto Três de Maio). Os técnicos da FUNAI não viram ali índios, apenas um grupo de seringueiros muito próximos das zonas habitadas pelos Uru-Eu-Uau-Uau e pelos grupos sem contato que ainda hoje perambulam pela Terra Indígena. Os muitos anos de deslocamentos pela região e os muitos casamentos interétnicos tornaram os Puruborá de certo modo ‘invisíveis’ aos técnicos da FUNAI, o que não significa, claro está, que o grupo não se reconhecia como Puruborá; apenas os sinais diacríticos usualmente empregados pelo estado brasileiro para definir quem era índio estavam ausentes naquele momento dos instrumentos de identificação dos funcionários do órgão indigenista.

Dali, da Cigana, os Puruborá desceram o rio Manuel Correia, passando a viver nas margens da BR-429, próximo do ponto em que os rios Manuel Correia e Caio Espíndola se juntam para formar o rio São Francisco, afluente do rio São Miguel, local que ocupam até o presente momento, denominado aldeia Aperoi. As terras foram adquiridas por compra pela família de D. Emília e herdada por seus familiares. Quase todos os Puruborá que vivem na aldeia descendem da anciã.

Durante todo o período, que vai dos relatos de Darcy Ribeiro até o início dos anos 2000, praticamente desapareceram as referências ao povo Puruborá, a ponto de terem sido considerados extintos, assim como sua língua. Até o início do século XXI, quando iniciaram os primeiros movimentos políticos contemporâneos dos Puruborá, os registros oficiais não faziam referência ao grupo no quadro de povos indígenas atuais do país nem à língua Puruborá entre as línguas indígenas faladas no estado de Rondônia.

O marco da revitalização contemporânea do povo indígena Puruborá ocorreu entre os dias 16 e 18 de outubro de 2001, quando, com o patrocínio da regional rondoniense do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), realizou-se o “Encontro de Parentes Puruborá”, que reuniu cerca de 40 pessoas no sítio de Dona Emília, local onde hoje é a aldeia Aperoi. Na ocasião, chamada hoje de “1ª. Assembleia do Povo Puruborá”, os Puruborá deram início à luta por seus direitos, produzindo um documento “reivindicando junto às autoridades competentes uma área no território original Puruborá”, segundo nos informa Gilles de Catheu, do CIMI de Guajará-Mirim. Desde então, os Puruborá vêm se reunindo anualmente no mesmo local, mesmo após o falecimento de Dona Emília, em 2013. As reuniões agora seguem organizadas por sua filha, Hozana Puruborá, uma das importantes lideranças do grupo, e vêm arregimentando cada vez mais parentes provenientes de diversas partes do estado de Rondônia. Em todas essas assembleias os Puruborá produzem documentos reafirmando suas reivindicações territoriais e seus direitos específicos como mais um povo indígena em Rondônia.


A aldeia Aperoi

A aldeia Aperoi, única aldeia do povo Puruborá nos dias correntes, localiza-se às margens da BR-429, entre os municípios rondonienses de Seringueiras e São Francisco do Guaporé. Trata-se do que parece ser um típico bairro rural, originado em torno do sítio da falecida Dona Emília, espécie de matriarca deste povo indígena, cujas terras foram compradas depois da expulsão do grupo das cabeceiras do rio Manuel Correia com a demarcação dos limites da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em 1994 (o sítio possui cerca de 59 há, e é garantido legalmente por título do INCRA). Com efeito, a antiga casa ocupada por Dona Emília segue funcionando como uma espécie de porta de entrada para a aldeia, que se constitui em um conjunto de casas – em sua maioria construídas de madeira – dispersas por uma área contornada, a oeste e ao norte, pelo rio Manuel Correia, bem próxima da confluência deste com o rio Caio Espíndola, que forma o rio São Francisco (o encontro dos dois rios se dá bem debaixo de uma das pontes da BR-429). Consta que a aldeia propriamente dita foi fundada em 2004, durante a quarta assembleia do povo Puruborá (13 a 15 de julho daquele ano). No entanto, este território vem sendo percorrido e explorado pelos Puruborá desde tempos imemoriais, e habitado continuamente pela família de Dona Emília (além de outros parentes) desde 1994, quando adquiriu, por compra, as terras na região.

A entrada do sítio é margeada por frondosas mangueiras, que conduzem à antiga casa de Dona Emília, hoje ocupada por um jovem casal Puruborá e, mais ao fundo, ao rico quintal e à casa da cacique Hozana Puruborá, principal liderança Puruborá atualmente. O complexo que envolve a casa de Hozana, a antiga residência de Dona Emília e o galpão onde acontecem as assembleias, encontros e reuniões (onde antigamente também funcionou a escola indígena), parece operar, enfim, como uma espécie de centro simbólico da vida social, ritual e política dos Puruborá, bem como cenário privilegiado para o desenvolvimento de suas lutas em torno de seu reconhecimento étnico e da identificação e demarcação de suas terras de ocupação tradicional. A partir deste centro organizam-se as demais residências familiares, todas localizadas a uma certa distância umas das outras, como sítios: desta forma, cada casa abriga uma família, e se faz cercar tanto por roçados (geralmente nos fundos) como por quintais, áreas em que uma enorme variedade de plantas de espécies comestíveis, medicinais, úteis para artesanato ou simplesmente ornamentais (o que é muito apreciado pelas mulheres Puruborá) são cultivadas com muito cuidado e atenção.

Os terreiros são os espaços de maior destaque na aldeia, em consequência da rarefação das matas circunvizinhas e do cultivo de poucos roçados. Assim, as mulheres da aldeia dedicam a eles um cuidado específico. O espaço do terreiro é uma espécie de repositório para a grande variedade de plantas existentes; as plantas circulam por vários lugares, mas é no terreiro que encontram abrigo e se estabelecem, e é também lá que mudas e sementes são trocadas. As mulheres são as responsáveis pelo cuidado e cultivo das plantas do terreiro, e estes são varridos e carpidos regularmente. Às vezes os homens ajudam as mulheres na limpeza do terreiro, mas a tarefa é predominantemente feminina.

Os terreiros da aldeia estão quase sempre floridos, e a grande diversidade de plantas reflete o desejo de sempre incrementá-los com novas espécies. As plantas frutíferas são indispensáveis na alimentação Puruborá, tanto que os terreiros são constituídos por várias fruteiras. De acordo com os Puruborá, havia na Cigana uma imensa diversidade de plantas e, no que diz respeito a essa variedade, a aldeia Aperoi se espelha naquela região. “Tudo que tem aqui tinha na Cigana”, dizem os Puruborá. As plantas são parte de uma memória e reconstituição do espaço do passado. O sonho da demarcação das terras Puruborá está vinculado ao cultivo de mais e mais plantas.

Todos os Puruborá residentes na aldeia Aperoi reconhecem laços próximos de parentesco entre si, ainda que existam vários indivíduos casados com não índios vivendo na região. Há uma intensa sociabilidade comunitária, feita de visitas frequentes, refeições festivas, intercâmbio de alimentos (especialmente de frutas) e de plantas e, em determinados momentos, de atividades políticas, com a realização das assembleias anuais do povo Puruborá, que, desde 2001, vem se reunindo anualmente na aldeia.

A Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental Ywará Puruborá funcionou, desde sua fundação, em 2005, numa construção de madeira coberta de palha, em frente à antiga residência de Dona Emília. Desde 2014, contudo, um novo prédio – feito em madeira e composto de sala de aula, cozinha, dispensa e banheiro – mais equipado, foi erguido nas proximidades da antiga escola, local em que as aulas acontecem hoje, sob a responsabilidade de três professores indígenas.


Cultura material

Nos dias de hoje, a cultura material dos Puruborá pouco se diferencia daquela em produção e uso pela população regional circunvizinha, excetuando-se o artesanato fabricado por algumas mulheres, especialmente pela cacique Hozana Puruborá, e que faz abundante uso de matérias-primas locais (penas de aves silvestres, sementes, palha). A confecção de ‘maricos’ (bolsas de fibra de tucumã), redes de algodão e de tucumã, colares, brincos e anéis, situam o artesanato Puruborá no conjunto das tradições artesanais dos povos indígenas no vale do Guaporé (conjunto de sociedades que Denise Maldi Meireles agrupou sob o rótulo de, justamente, complexo cultural do marico). Muitas das casas da aldeia Aperoi são enfeitadas com tapetes de retalho, de cores, formatos e tamanhos variados, feitos pelas mulheres.

É comum encontrar-se antigos artefatos indígenas espalhados pelo território da aldeia. Ao abrirem parte de seus roçados para plantar alimentos, os Puruborá às vezes encontram cacos de cerâmica, pontas de fecha e pedaços dos chamados “pães de índio”, feitos de massa de farinha de mandioca e enterrados antigamente no chão para o consumo de grupos em deslocamento, tendo sido, posteriormente, esquecidos. Ao que tudo indica os Puruborá eram grandes ceramistas, mas infelizmente, a arqueologia em terras rondonienses ainda é quase totalmente ausente e não há estudos na região.


Atividades produtivas

A maioria das residências dos Puruborá na aldeia Aperoi cultiva roçados mais ou menos extensos, e neles produzem culturas de subsistência (macaxeira, feijão, milho, abóbora, batata-doce, café). Algumas famílias plantam comercialmente o inhame (a região de Seringueiras é importante produtora do tubérculo), de onde aferem uma renda adicional; muitos reclamam, no entanto, que as terras que ocupam hoje não são boas para plantar, argumentando que os fazendeiros ocuparam as melhores terras agrícolas da região. Algumas residências também possuem pequenas criações de gado. Quase todas as famílias da aldeia vendem leite, que é armazenado em recipientes próprios de refrigeração localizados na casa de uma família; o leite é entregue nesta casa pela manhã, e comprado por um caminhão leiteiro ao longo do dia. Há de se fazer referência a enorme riqueza de plantas que os Puruborá cultivam nos arredores de suas casas, entre elas muitas espécies frutíferas, temperos e ervas medicinais, além de plantas ornamentais e outras destinadas à confecção de artesanato. A caça é raramente praticada hoje em dia, sobretudo em função da diminuição drástica das áreas de floresta locais; mas alguns animais – principalmente tatus, cutias, pacas e porcos-do-mato – ainda podem ser encontrados. O consumo de carne de caça na aldeia não é a principal fonte de proteína dos Puruborá e assume uma posição apenas complementar na alimentação. A pesca também rende pouco, mas melhora na época do verão (período seco).

A coleta resume-se a certas frutas e matérias-primas para a confecção de artesanato: sobre isso, os Puruborá se ressentem bastante da derrubada ou morte da maior parte das castanheiras que existiam em seu território, posto que apreciavam muito as castanhas (especialmente o “leite”, usado em várias receitas culinárias) e usavam percorrer extensamente, no passado, o território em busca dos grandes castanhais do vale do Manuel Correia. Contudo, apesar das atividades produtivas realizadas na aldeia, muitos Puruborá possuem empregos na cidade ou trabalham para os fazendeiros regionais.  


Organização social e política

Pouco pode ser dito da organização social e política dos Puruborá, na carência de estudos antropológicos mais aprofundados deste povo. Atualmente, à primeira vista, a comunidade Puruborá que reside na aldeia Aperoi pouco se diferencia, conforme já dito, das populações camponesas circunvizinhas, inclusive com respeito ao parentesco. Muitos Puruborá, inclusive, são casados com regionais não índios, mas todos os Puruborá reconhecem o parentesco entre si, traçado genealogicamente a partir de um ancião (geralmente uma mulher) que teria vivido no tempo de José Félix. Dentre todos os Puruborá vivos hoje, apenas seis são considerados realmente idosos, tendo memórias dos tempos passados e conhecimentos das práticas nativas desaparecidas e algo da língua indígena (palavras e algumas poucas frases). Dois vivem em Costa Marques (Sr. Paulo Aporete e D. Adélia), dois no Porto Murtinho (D. Marta e Sr. Celestino), e dois em Guajará-Mirim (Sr. Nilo e Sr. Eliézer).

Duas instituições, contudo, parecem apontar para alguma singularidade da organização social e política do grupo.

A primeira delas se refere às múltiplas relações de comensalidade e reciprocidade encontradas em Aperoi. Os produtos da roça e do terreiro inserem as Puruborá nas redes de reciprocidade, na partilha de alimento, e em processos de mútua identificação. A variedade e a qualidade dos produtos cultivados dependem de seus conhecimentos e habilidades como cultivadoras, assim como de sua capacidade de obter espécies novas para cultivo. O sucesso dos cultivos reside, então, na diversidade de espécies, mas depende, também, das redes de relações sociais nas quais se situam as pessoas: cultivar mandioca ou milho significa cultivar suas relações. Nesse sentido, as mulheres Puruborá sustentam os corpos de seus parentes “mais próximos”, mas as redes de reciprocidade podem se estender, conectando residências ora doadoras, ora receptoras de alimentos. Tendo em vista que todos os Puruborá da aldeia são aparentados, no caso, os parentes “mais próximos” são pai e mãe, filhos e irmãos. Dentro dessas categorias de parentes, há liberdade para pegar frutas e outros alimentos nos terreiros e roçados sem qualquer tipo de receio ou restrição. Apesar de haver grande circulação de pessoas em todas as casas da aldeia, as visitas entre os parentes próximos são mais frequentes. É bastante comum os parentes mais próximos almoçarem junto nos finais de semana. Outro laço forte de parentesco é o amadrinhamento. O carinho e o cuidado entre madrinhas e afilhadas traça uma relação de parentesco e proximidade muito forte, tanto que, uma afilhada não se dirige à sua madrinha pelo nome, mas simplesmente a chama de “madrinha”.

Outra instituição social e política importante para os Puruborá, hoje e, aparentemente, também no passado, é o que podemos chamar de “protagonismo feminino”. Os Puruborá têm, atualmente, como principal representante uma figura feminina. Como líder, a cacique Hozana Puruborá participa de inúmeros eventos e já esteve em diversas cidades e estados do Brasil. Ela assume um papel de mediadora com a sociedade não indígena, e sua experiência no meio urbano tem sido essencial nessa relação. Foi durante as primeiras assembleias que a comunidade decidiu que Hozana representaria os Puruborá como cacique. E, mesmo tendo autonomia para falar em nome dos Puruborá diante da sociedade envolvente e de outras etnias indígenas, a cacique procura sempre conhecer a opinião das pessoas da aldeia, das lideranças residentes em outros lugares e, principalmente, da opinião do ancião Paulo Aporete Filho (que é pajé).

É nítida a atuação feminina na aldeia Aperoi, mesmo porque, na aldeia, os Puruborá adultos e jovens são, em sua grande maioria, mulheres, e essas fazem política em espaços como a casa, a cozinha, o terreiro – um lugar comum das pessoas se encontrarem – e nas assembleias anuais do povo Puruborá. Nesse sentido, as mulheres participam muito ativamente da política, o que gera um cenário em que a tradicional divisão entre os espaços femininos (casa/roça) e masculinos (política) na visa sociopolítica não se sustenta.

Se outrora os Puruborá foram oprimidos, violentados e expulsos de suas terras tradicionais, hoje, a cacique e as mulheres da aldeia vivenciam um processo histórico diferente: as mulheres são bem articuladas na luta pela demarcação territorial; participam de cursos, seminários, e congressos; fazem faculdade, escolhem o marido. O catastrófico impacto do contato nesta sociedade não pode, claro, ser negado, mas hoje as Puruborá têm mais autonomia e são protagonistas de suas vidas. Como vimos, tal processo parece ter começado com a criação do posto, em que a maioria dos homens Puruborá desaparece, restando as mulheres que acabam por desposar seringueiros não indígenas: assim, virtualmente todas as genealogias traçadas pelos Puruborá começam por uma mulher. Este protagonismo feminino teve como grande continuadora D. Emília, que, até seu falecimento em 2013, esteve no cerne da reorganização social e política dos Puruborá e no centro das negociações e lutas pela identificação e demarcação de seu território (como está, nos dias de hoje, sua filha Hozana).


Ritual e xamanismo

Tudo o que resta de práticas rituais e conhecimentos xamânicos dos Puruborá está na memória dos mais idosos, e os registros etnográficos e históricos feitos nos últimos cem anos – depois do contato – são totalmente silenciosos a respeito.

Sabe-se que, no xamanismo Puruborá, os “pajés” – que é como denominam hoje o especialista na arte de curar – empregavam pó de sementes de angico misturado com fumo, e inalado com a ajuda de um parceiro que sopra uma taboca curta. O uso do pó de angico coloca o xamanismo Puruborá ao lado das tradições xamânicas de outras sociedades vizinhas no vale do Guaporé.

O ancião Paulo Aporete Filho conta que, nos seus tempos de juventude, recebeu treinamentos de seu tio (considerado como pai, devido ao fato de ter sido criado por ele) para se tornar pajé.  Assim, “para se formar como pajé, o iniciado tinha que saber pelo menos umas cinco línguas, se não soubesse, não passava” (o grupo vinha lutando com muitas outras etnias e era importante compreender suas respectivas línguas). No entanto, o treinamento não foi concluído. Contudo, o Sr. Paulo Aporete é um guardião de vários saberes, e tem conhecimento de grande número de plantas medicinais. Contudo, o pajé não partilha muitas de suas experiências e saberes, pois eles devem ser transmitidos apenas de pai para filho.

Segundo os Puruborá, quando o pajé era mais novo, ele gostava muito de caçar. Certo dia as pessoas abriram um “barreiro” (depósito de lama com grande concentração de sal que atrai os animais) para caçar nos arredores da casa do pajé, e se depararam com uma onça, que era o pajé metamorfoseado. A fala de uma Puruborá caminha ao encontro dessas concepções: “o pajé sempre anda doente, às vezes ele está quase pra morrer, mas de repente fica bem de novo. Qualquer hora ele vai sumir dali, vai morrer e virar onça”. Conforme os mais idosos, todos os Puruborá, quando morrem, viram onça. Existe também um relato de que, logo depois que D. Emília faleceu, apareceu uma onça em um dos terreiros da aldeia; algumas pessoas acreditaram fosse a falecida, tendo em vista que aquela onça em particular era muito mansa.

Conforme relatos, antes do contato com os brancos, os Puruborá enterravam seus mortos e ateavam fogo sobre a sepultura durante alguns dias. Passados cerca de quatro meses, eles cavavam o buraco, e retiravam os ossos. Os ossos eram colocados em potes de barro e enterrados novamente no mesmo buraco. Nas palavras do Sr. Paulo Aporete Filho: “até hoje nesses cantos onde trabalharam muitos índios tem aqueles potes de barro aparecendo na beira do chão... hoje, onde passam muitos carros, aparece a boca dos potes, que era onde eles enterravam a gente”.

Os guerreiros Puruborá levavam consigo a cabeça do inimigo, do “chefe-comandante”; esta, depois de raspada (limpa), era secada ao sol, pintada de branco e guardada. A cabeça decapitada do guerreiro simbolizava a vitória dos Puruborá, e mostrava às demais etnias “quem eram os bons guerreiros da história”. Utilizavam arco e flecha para guerrear, e, por vezes, os Puruborá usavam espadas (bordunas) feitas de madeira da pupunha. O arco também era feito da mesma madeira, e sua corda era confeccionada de madeira de embaúba; já a emplumação das flechas era feita de penas de pássaros como mutum, arara e cujubim. 

Os Puruborá usavam se enfeitar com pintura corporal, até mesmo no cotidiano. Uma pessoa era pintada com até três tipos de pintura diferentes, nas cores preto, azul, amarelo e branco. Para cada ocasião, os Puruborá se pintavam de um modo diferente, mas os grafismos eram desenhados nos padrões onça e cobra: “eles pintavam a pessoa tipo uma onça”. Conforme a mitologia Puruborá, uma cobra adentrou na vagina de uma mulher, e assim, a criança nasceu com o grafismo da onça e da cobra.

As antigas danças rituais Puruborá foram descritas da seguinte forma: “eles faziam a roda, com uma coivara ao meio, e saíam dançando, rodeando e cantando. Eles batiam os pés tudo igual, a mulherada ia à frente, elas se agarravam no braço de outra mulher, e os homens iam atrás, ou ao contrário, homens na frente e mulheres atrás”. Todos esses conhecimentos (entre muitos outros) ainda estão guardados nas memórias dos mais idosos, e vêm sendo paulatinamente recuperados pelos Puruborá de hoje, na sua estratégia de luta pela terra e pelo reconhecimento étnico.


Notas sobre as fontes

O material bibliográfico disponível a respeito dos Puruborá é bastante reduzido, e não existe, até o momento, um trabalho de pesquisa de fôlego que aborde a história, a cultura ou a situação atual deste povo indígena em Rondônia. As referências históricas são esparsas e sucintas, mesmo porque a sociedade Puruborá parece ter sido rapidamente desarticulada a partir do contato e do momento seguinte, em que se torna absorvida pelos trabalhos no seringal dirigido por José Félix do Nascimento. Com a extinção do seringal em 1949, os Puruborá, dispersados pelo vale do Guaporé e seus tributários, praticamente desaparecem da literatura, até a retomada de suas reivindicações políticas no início do século XXI.

As primeiras informações sobre os Puruborá aparecem em documentos não publicados escritos por Rondon na década de 1920, e que constam nos arquivos do Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Ana Vilacy Galucio, no seu artigo Puruborá: notas etnográficas e linguísticas recentes (publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Série Ciências Humanas, em 2005) coligiu a maioria das fontes mais antigas que trazem esparsas informações a respeito dos Puruborá; a maior parte dos dados de interesse, nestes materiais, são listas de palavras na língua indígena, com pouquíssimas informações de natureza histórica ou etnográfica.

Olympio da Fonseca Filho, epidemiologista ligado à Escola de Manguinhos, deixou breve estudo (às páginas 195-204 do livro Estudos de pré-história geral e brasileira) sobre uma dermatose endêmica entre os Puruborá (chamada de “chimberê”, conforme sua grafia, na língua indígena) que pode observar in loco em 1924. O grupo estava, a esta altura, ainda localizado junto às cabeceiras do rio São Miguel, e com pouco contato com a população não indígena. O texto de Fonseca Filho traz as mais antigas fotografias conhecidas de indivíduos Puruborá – três pessoas acometidas pela doença de pele – tiradas, ao que tudo indica, em 1924, três anos após os primeiros contatos com o grupo, que teriam ocorrido em 1921.

O antropólogo alemão Emil-Heirich Snethlage, viajando pelo vale do Guaporé nos anos de 1930, deixou preciosas informações sobre os povos indígenas na região. Ele não esteve propriamente entre os Puruborá, mas encontrou alguns indivíduos dispersos, tendo tomado fotografias e coletado uma lista de palavras. Snethlage relata que os Puruborá, em 1934, viviam no rio Manuel Correia, um tributário do rio São Miguel. O diário de pesquisa Snethlage no Brasil, com seus riquíssimos dados etnográficos, é ainda inédito, mas deve ser publicado em alemão ainda em 2015. Não há previsão para uma possível edição em língua portuguesa.

As notícias do “reaparecimento” dos Puruborá nos chegam em 2001 e, com elas, os primeiros estudos linguísticos e antropológicos contemporâneos, embora seja necessário assinalar que muito pouco ainda foi produzido sobre este povo. Em 2005 Ruth Monserrat dá, em um capítulo de livro, as primeiras informações sobre o que restou da língua Puruborá. Desde este mesmo ano (2001) a linguista Ana Vilacy Galucio, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), vem trabalhando com os Puruborá, tendo coletado extenso material linguístico, além de narrativas sobre a história e cultura do grupo. Galucio também foi pioneira em coligir as informações bibliográficas a respeito dos Puruborá, e os resultados de seu envolvimento com o grupo podem ser conferidos em suas publicações. Em conjunto com dois anciões Puruborá ainda vivos – Sr. Paulo Aporete Filho (em Costa Marques) e Sr. José Evangelista (Seu Nilo, morador de Guajará-Mirim – a linguista organizou o Vocabulário ilustrado – animais na língua Puruborá, publicado em 2013 pelo Museu Goeldi, e que vem sendo utilizado como instrumento para a recuperação da língua, por meio, especialmente, de seu uso como material didático de apoio à alfabetização na Escola Indígena Ywará.

O Relatório Final – Estudo do Componente Indígena – BR-429, avaliação realizada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) para avaliar o impacto causado pelo asfaltamento da rodovia federal BR-429 sobre as sociedades indígenas na região, traz relevantes informações sobre os Puruborá no ano de 2008 (ano da realização da visita do grupo técnico encarregado da pesquisa) nas suas páginas 225 a 233.

José Joaci Barboza, no campus de Ji-Paraná da Universidade Federal de Rondônia, vem produzindo, junto a seus alunos, uma série de trabalhos explorando diversos aspectos da história e da cultura (relações de gênero, educação, narrativas, mobilização política) dos Puruborá, desde 2011, no âmbito do seu projeto Resgatando a Memória e a História do Povo Puruborá. O primeiro trabalho de maior fôlego deste grupo apareceu em 2015, com a dissertação de mestrado em psicologia de Anatália Daiane de Oliveira (Escolarização indígena e identidade Puruborá: contribuições da escola para um povo ressurgido/resistente na Amazônia), defendida na Universidade Federal de Rondônia e focada nas atividades da Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental Ywará Puruborá. O artigo de Anatália Daiane de Oliveira e José Joaci Barbosa, publicado na revista eletrônica P@rtes (número 15, de dezembro de 2014) traz um inventário destes trabalhos apresentados em diversos congressos, a maioria em Rondônia. O número 27 da revista Tellus (na seção “Escrito Indígena”) traz um artigo de Gisele Montanha (em coautoria com Barboza e Daiane de Oliveira), professora da escola indígena Puruborá, que reflete sobre os “mitos tradicionais” deste povo a partir da perspectiva da luta pelo reconhecimento étnico. É importante destacar que Gisele montanha é filha de Hozana Puruborá, e vem sendo responsável, juntamente com outros jovens Puruborá, por pesquisar (e publicar) a história e os conhecimentos tradicionais de seu povo.

Mais recentemente, Tarsila Menezes está preparando dissertação de mestrado sobre as relações entre as mulheres Puruborá e as plantas de seus terreiros e roçados. Informações mais atualizadas (2015) podem ser conferidas no volume Panewa Especial, editado pela Regional Rondônia do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), às páginas 117-118.


Fontes de informação

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