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== Introdução ==
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Os Waíkhana, regionalmente conhecidos como Pira-tapuya, vivem na região de fronteira entre o Brasil e a Colômbia, às margens do médio curso do rio Papuri e do baixo e médio curso do rio Uaupés. O etnônimo Waikhana significa “povo peixe” e Pira-tapuya é um apelido que ganharam após a chegada dos colonizadores: uma tradução aproximada do nome do grupo para o ‘’nheengatu’’, língua geral amazônica introduzida na região do rio Negro pelos missionários católicos entre os séculos XVIII e XIX. Eles são também chamados de Pinoã Mahsã, “gente cobra”, por outros grupos da família Tukano Oriental com os quais compartilham territórios e mantêm trocas matrimoniais e culturais.
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Os índios que vivem às margens do Rio Uaupés e seus afluentes – Tiquié, Papuri, Querari e outros menores – integram atualmente 17 etnias, muitas das quais vivem também na Colômbia, na mesma bacia fluvial e na bacia do Rio Apapóris (tributário do Japurá), cujo principal afluente é o Rio Pira-Paraná. Esses grupos indígenas falam línguas da família Tukano Oriental (apenas os Tariana têm origem Aruak) e participam de uma ampla rede de trocas, que incluem casamentos, rituais e comércio, compondo um conjunto sócio-cultural definido, comumente chamado de “sistema social do Uaupés/Pira-Paraná”. Este, por sua vez, faz parte de uma área cultural mais ampla, abarcando populações de língua Aruak e Maku.
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== Língua ==
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A língua waíkhana pertence à família linguística Tukano Oriental. Todas as línguas dessa família compartilham muitas características em comum, mas aquela que tem maior proximidade com o waíkhana é a língua [[Povo:Kotiria#Língua|kotiria]] (wanano). Embora o número exato de falantes do waíkhana seja atualmente desconhecido, a língua é considerada em situação de ameaça (Stenzel, 2018), em razão das dinâmicas de mobilidade de famílias waíkhana entre as aldeias de origem e outras localidades no Alto e Médio Rio Negro e do uso crescente da língua tukano como língua franca na região. Assim como toda a população indígena do Uaupés brasileiro, os Waíkhana são fluentes também na língua portuguesa e os que vivem na fronteira costumam falar ainda o espanhol (na Colômbia todos são fluentes no espanhol).
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As etnias que estão na região do Rio Uaupés são, além dos '''Arapaso, Bará, Barasana, Desana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Kotiria, Tatuyo, Taiwano, Yurut'''i (as três últimas habitam só na Colômbia). Estão no noroeste da Amazônia, às margens do Rio Uaupés e seus afluentes
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== Localização e População ==
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Dividida internamente em vários segmentos ou clãs, a maior parte da população waikhana vive hoje do lado brasileiro da fronteira, atualmente cerca de 850 pessoas. O território tradicional dos Waikhana é o médio rio Papuri e afluentes, onde se concentra grande parte de suas comunidades, tanto do lado brasileiro quanto colombiano – o Papuri serve de linha de fronteira entre os dois países. Mas conforme narram os próprios waikhana, há séculos que alguns de seus subgrupos e clãs saíram do médio Papuri e se dispersaram para outras regiões do Uaupés, sobretudo seu médio e baixo curso, e mesmo pela calha do rio Negro.
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O total populacional é de 11.130 no Brasil (em 2001) e 18.705 na Colômbia (em 2000).
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|Homens cortando e tingindo talos de arumã em frente a maloca da comunidade Waikhana em São Gabriel (Pohsaya Pit), médio Papuri. Foto: Aline Scolfaro, 2010.
Para saber mais informações sobre o Noroeste Amazônico <htmltag href="http://pib.socioambiental.org/pt/povo/etnias-do-rio-negro" tagname="a" target="_blank"><span style="text-decoration: underline;">acesse o verbete especial sobre a região</span></htmltag>
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As principais comunidades e sítios waikhana no Papuri são Japim (Ñohsõ Nõã), São Gabriel (Pohsaya Pitó), Teresita (povoado sede de missão católica do lado colombiano, onde se concentra a maior população waikhana do Papuri), São Francisco (Wunu Peó, já no igarapé Macucu, lado colombiano); Taracuá (Yuhku Pitó), Tucunaré (Beé Peó) e São Paulo (Sana Kohpedi, comunidade hoje esvaziada). Já entre os cursos do baixo e médio Uaupés estão Uriri (Nanasari Ñoa), Açaí-paraná, São Francisco (Mariwá), Aracú Ponta (Bo’tea Pehta, a maior comunidade waikhana no Uaupés) e Miriti. Parte dessas comunidades no Uaupés foram formadas por grupos Waikhana e Tukano e hoje congregam famílias de ambos os povos.
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== Línguas ==
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Nas últimas décadas, muitas famílias também migraram de suas comunidades para outras localidades, como o povoado de Iauaretê, onde hoje vive um grande número de famílias waikhana, e ainda as cidades de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro, além de diversas comunidades multiétnicas no trecho do médio rio Negro. Do mesmo modo, do lado colombiano houve uma migração intensa para a cidade de Mitu. Resulta que os Waikhana constituem hoje um grupo com grande dispersão territorial e com uma população significativa vivendo nos centros urbanos, como acontece com vários outros povos do alto rio Negro. Atualmente estão presentes em sete Terras Indígenas da parte brasileira do Noroeste Amazônico, além das cidades, onde convivem com outros povos tukano e grupos de filiação linguística aruak e [[Povo:Maku#Língua|maku]]: Alto Rio Negro, que concentra a maior parte de sua população; Balaio; Cué-Cué Marabitanas; Médio Rio Negro I; Médio Rio Negro II; Rio-Tea; e Jurubaxi-Tea.
A família lingüística Tukano Oriental engloba pelo menos 16 línguas, dentre as quais o Tukano propriamente dito é a que possui maior número de falantes. Ela é usada não só pelos Tukano, mas também pelos outros grupos do Uaupés brasileiro e em seus afluentes Tiquié e Papuri. Desse modo, o Tukano passou a ser empregado como língua franca, permitindo a comunicação entre povos com línguas paternas bem diferenciadas e, em muitos casos, não compreensíveis entre si.
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== Histórico do Contato ==
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Com uma história de contato de quase três séculos, marcada por muita violência, exploração, escravidão, descimentos e deslocamentos forçados, intolerância e atrocidades de toda ordem, o que hoje é a região do Uaupés guarda, à primeira vista, pouco em comum com uma realidade à qual os Waíkhana costumam se referir como o “tempo dos antigos” ou o “tempo das malocas”. Tais expressões remetem a um período anterior à chegada dos brancos, ou, ao menos, anterior à chegada dos missionários salesianos, ordem religiosa que se estabeleceu no Uaupés nas primeiras décadas do século XX, especificamente na parte brasileira, e que foi responsável por algumas das transformações que afetaram de forma mais drástica o modo de vida dos povos da região.
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Em alguns contextos, o Tukano passou a ser mais usado do que as próprias línguas locais. A língua tukano também é dominada pelos Maku, já que precisam dela em suas relações com os índios Tukano. Já as línguas classificadas como tukano ocidentais são faladas por povos que habitam a região fronteiriça entre Colômbia e Equador, como os Siona e os Secoya.
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Segundo os Waíkhana, o problema foi que os primeiros padres não conseguiram entender os costumes e o modo de vida de seus antepassados, as festas e cerimônias que seus pais e avós faziam, e assim começaram a perseguir suas tradições “como se fossem coisas do diabo”.
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Considerando o significativo número de pessoas da bacia do Uaupés que estão residindo no Rio Negro e nas cidades de São Gabriel e Santa Isabel, estima-se que cerca de 20 mil pessoas falem o Tukano. As outras línguas desta família são faladas por populações menores, predominando em regiões mais limitadas. É o caso dos Kotiria e Kubeo no Alto Uaupés, acima de Iauareté; do Pira-tapuya no Médio Papuri; do Tuyuka e Bará no Alto Tiquié; e do Desana em comunidades localizadas no Tiquié, Papuri e afluentes.
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O antropólogo waíkhana Dorvalino Chagas (2001, p. 50) dá uma ideia da situação de temor em que se encontravam os Waíkhana no período em que os salesianos chegaram à região:
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)|Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)]]. -->
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Os Waíkhana conheceram o homem branco igual a eles, mas de comportamentos diferentes, incompatíveis com seu modo de pensar. Não acatavam a maneira de viver deles. Visto como dono de vários tipos de doenças que lhes causaram o medo excessivo. Esse medo provocado é que fez os antepassados embrenharem na mata ou nas cabeceiras de igarapés para se ocultar do invasor. Pensavam que nesse esconderijo poderiam viver à vontade. Mas não foi bem assim, pois a devastação da população foram as epidemias como a ''bisiká'' (varíola) e o ''sarapu'' (sarampo)... Quando os missionários chegaram nessa terra, a partir da primeira década do século XX, pediram aos Waíkhana para morarem nas margens dos rios onde seria fácil a administração de catequese e garantia de proteção contra os não-índios”.
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== Localização ==
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Além de toda a violência, exploração e desmandos cometidos pelos comerciantes, seringueiros e agentes governamentais que controlaram a região até o início do século XX, a população indígena do Uaupés também foi drasticamente afetada pelas doenças e epidemias trazidas pelos brancos. Há histórias de clãs, ou mesmo de grupos inteiros, que simplesmente desapareceram, pois foram completamente dizimados por epidemias de sarampo e varíola - mas muitos deles ainda têm seus nomes citados nas genealogias waíkhana e na relação de nomes oferecida pelos conhecedores. Neste contexto, não é de se estranhar que a chegada dos missionários salesianos tenha representado uma esperança de proteção contra a violência colonial. É por isso que os Waíkhana, assim como outros grupos do Uaupés, se resignaram em abandonar suas malocas, seus rituais, suas flautas sagradas de ''jurupari'', suas caixas de enfeites de dança, dentre outros elementos centrais de sua vida ritual, em troca da proteção oferecida pelos padres.
O Rio Uaupés tem cerca de 1.375 Km de extensão. De sua foz do Rio Negro até a desembocadura do Rio Papuri, o Uaupés está situado em território brasileiro e percorre cerca de 342 Km. Entre este ponto e a foz do Querari, serve de fronteira entre o Brasil e a Colômbia por mais de 188 Km. A partir daí até as suas cabeceiras se situa em território colombiano e percorre 845 Km. Navegando no Uaupés, H. Rice (1910) contou 30 cachoeiras maiores e 60 menores.
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=== A Relação com os Salesianos ===
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Através de seu programa de civilização e catequese – implantado estrategicamente em um dos momentos mais críticos e violentos da atuação dos comerciantes e “patrões” na região – os salesianos iniciaram uma investida contra tudo aquilo que era visivelmente valorizado pelos povos da região e que constituía o cerne de sua vida ritual. Já de início queimaram quase todas as malocas que havia do lado brasileiro do Uaupés, forçando os índios a viverem em aldeias nucleadas com casas separadas para cada família. As malocas, grandes casas comunais nas quais chegavam a viver até dez famílias, representavam para os índios muito mais do que uma simples moradia. Elas constituíam o centro de sua vida ritual e o coração do grupo local.
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Depois do Rio Branco, o Rio Uaupés é o maior tributário do Rio Negro. Atualmente, o nome Uaupés é o mais usado (no Brasil, já que na Colômbia fala-se mais Vaupés), mas também é conhecido como Caiari. Em seu curso, o Uaupés recebe as águas de outros grandes rios, como o Tiquié, o Papuri, o Querari e o Cuduiari.
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Chamadas de “casa de dança” na maioria das línguas da região (em waíkhana se diz ''bahsali wu’u'') e imbuídas de profundos significados mítico-cosmológicos, eram o espaço por excelência das mais importantes festas, rituais e cerimônias. Percebendo logo a centralidade das malocas para a vida ritual e espiritual nativa, os padres passaram então a combatê-las veementemente, demonizando-as (os religiosos as chamavam de “casas do diabo”) e obrigando os índios a abandoná-las em prol das moradias unifamiliares em aldeias organizadas segundo os preceitos cristãos.
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Os principais núcleos de povoamento do Rio Uaupés são a cidade de Mitu, capital do departamento colombiano do Vaupés, e Iaraueté, que é sede de um distrito do município de São Gabriel. Iaraueté, além de ser um centro de ocupação tradicional dos Tariana, abriga também uma grande missão dos salesianos e um pelotão de fronteira do exército. Existem ainda outras duas missões salesianas na bacia do Uaupés, uma em Taracuá (na confluência desse rio com o Tiquié) e outra no Alto Tiquié, chamada Pari-Cachoeira. Também há um destacamento do Exército na confluência do Querari com o Uaupés e outro em Pari-Cachoeira.
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Junto a isso, os missionários passaram a reprimir duramente, pela chantagem e pela força, importantes rituais até então realizados por todos os povos da região, como o ritual de iniciação masculina, em que eram utilizadas as flautas sagradas de ''jurupari'' (''miniã pona'', na língua waíkhana), e outras cerimônias em que se fazia o uso da bebida ''kahpi'' (produzida a partir do cipó ''Banisteriopsis caapi''). Os mais velhos contam que em dias de festa e cerimônias os padres entravam nas aldeias virando cochos de ''caxiri'' (''paidu'') e potes de ''kahpi'', destruindo cuias de ''ipadu'' (''patu'') e ordenando o cessar de suas danças e cantos (''bahsa''), os quais eram acompanhados pelo som de vários tipos de flautas e trompetes. Contam ainda que os religiosos se utilizaram de todo tipo de chantagem para obrigar os seus pais e avôs a entregarem as suas caixas de enfeites de dança (''bahsa bu’sa ahkadó'' na língua waíkhana) e outros ornamentos e instrumentos sagrados utilizados nas festas e rituais.
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)|Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)]]. -->
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Através de seus sermões, os padres demonizavam os rituais, o xamanismo e os elementos mais visíveis da cultura nativa, impondo rígidas sanções para aqueles que infringissem as novas regras e resistissem em abandonar tais práticas. Uma das estratégias consistia em negar o acesso a certas mercadorias básicas que a esta altura eram já bem conhecidas pelos indígenas, tais como fósforos, sabão e roupas. Do mesmo modo, o acesso ao batismo e aos cultos católicos; à educação escolar e aos conhecimentos que esta possibilitava – itens da sociedade branca já há muito valorizados e desejados pelos índios –; e, de modo importante, a própria garantia de proteção que os religiosos passaram a representar face à violência e atrocidades cometidas pelos comerciantes e ‘patrões da borracha’, foram também, em grande medida, “benefícios” condicionados à obediência e adequação dos índios às novas regras e valores da veiculados pelo missão.
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== Etnias e demografia ==
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== Organização Social e Política ==
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|Moradores Waikhana da comunidade Uriri em exercício de mapeamento de seu território no baixo Uaupés. Foto: Aline Scolfaro, 2010.
No Rio Uaupés e em seus afluentes existem atualmente mais de 200 povoados e sítios. Membros dessas etnias também estão presentes nas cidades da região, sobretudo em São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos. As etnias presentes na bacia do Uaupés são as seguintes:
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No contexto do Noroeste Amazônico, os Waíkhana estão inseridos em um amplo sistema regional indígena, caracterizado pela existência de uma rede de
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relações e alianças interétnicas na qual estão envolvidas diversas modalidades de trocas: econômicas, rituais, matrimoniais. Na bacia do Uaupés, osWaíkhana convivem e mantém relações com vários grupos: com alguns eles trocam mulheres, como os [[Povo:Desana|Desana]], os Tukano e os Tariano (grupo aruak); com outros eles partilham uma “irmandade mítica” que os proíbe de estabelecer trocas matrimoniais, como os Wanano e os [[Povo:Arapaso|Arapaso]]; e com quase todos os outros, mesmo que não haja hoje muita interação direta, eles se relacionam por meio de uma história de origem comum que os colocam enquanto “gentes” (''mahsã'') portadoras de uma mesma condição humana. Assim, muitos destes grupos figuram na mitologia de origem waíkhana, ocupando posições que constituem os fundamentos de suas relações atuais.
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'''1) Arapaso: '''Etnia de origem tukano oriental que atualmente fala apenas a língua tukano. Vivem no Médio Uaupés, abaixo de Iauareté, em povoados como Loiro, Paraná Jucá e São Francisco. Várias famílias também moram no Rio Negro e em São Gabriel.
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Como os demais grupos tukano, os Waíkhana são patrilineares e exogâmicos, isto é, os indivíduos pertencem ao grupo de seu pai e devem se casar com membros de outros grupos, idealmente falantes de outras línguas. Também praticam a patrilocalidade, ou seja, a esposa é quem vai viver e formar a nova família na comunidade do marido. E assim como todos os povos do Uaupés, estão divididos internamente em vários subgrupos (clãs ou ''sibs''), hierarquizados de acordo com uma ordem de senioridade cujos fundamentos se encontram nas narrativas de origem e ocupação do território pelos primeiros ancestrais.
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'''2 ) Bará: '''Autodenominam-se Waípinõmakã. Habitam principalmente as cabeceiras do Rio Tiquié, acima do povoado de Trinidad, já na Colômbia; o Alto Igarapé Inambú (afluente do Papuri) e o Alto Colorado e Lobo (afluentes do Pira-Paraná). Dividem-se em cerca de oito sibs (grupos de descendentes de um ancestral comum que não podem casar entre si). São especialistas no preparo do aturá de turi, muito usado onde não são disponíveis os aturás de cipó maku. Também fabricam o carajuru. São hábeis ainda na confecção de canoas. Atualmente são os principais especialistas na fabricação dos adornos de plumas usados nas grandes cerimônias.
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De acordo com membros do clã Wehetada Bahuí, que vivem no médio rio Papuri, e com as análises do antropólogo waíkhana Dorvalino Chagas (Chagas, 2001), os Waíkhana se dividem em três subgrupos mais abrangentes, a partir dos quais derivam as suas séries de clãs. Os três subgrupos, chamados Wehetada, Sõãliã e Wehetada Bahuí, são hierarquizados conforme a ordem de senioridade de seus ancestrais fundadores, os quais se originaram a partir de um ancestral comum. E essa mesma lógica se replica para a série de clãs internas a cada subgrupo e para linhas agnáticas dentro do próprio clã. O primeiro clã de cada subgrupo é chamado de “cabeça”, “chefe” (''puhtoro''), enquanto os últimos são reconhecidos como antigos “servidores” (''peona'') do clã de chefes. Os Waíkhana dizem que a relação entre chefes e servidores envolvia respeito e apoio mútuo e os últimos eram os auxiliares dos chefes nos trabalhos das malocas, especialmente na preparação de grandes festas e rituais. Dentre os clãs waíkhanas listados estão: Wehetada, Waikhun (ou Pou), Ñali Pedó, Diami (também chamado de Uhpó, Wayokali ou Shunkumpuã), Manu Kanabudu, Buhkuda, Ñehkantudu, Komepahka, Kãino, Duhkudu, Sõãliã Poné, Wehetada Bahuí, Ñehkantudu Yepupé, Manu Yuhkuphin, Manu Uhashutú, Yehepoali, Bi’kudua, Padakodoa, Ñapa e Poedoa. Mas vale ressaltar que entre os Waíkhana parece haver diferentes formas de apresentar o sistema de clãs, as quais variam conforme o grau de conhecimento do narrador, mas também de sua própria posição dentro desse sistema. Membros de clãs maiores dos Wehetada, por exemplo, parecem levar menos em conta a divisão dos subgrupos e enfatizar uma classificação mais linear dos clãs.
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'''3) Barasana: '''Autodenominam-se Hanera. Vivem nos igarapés Tatu, Komeya, Colorado e Lobo, afluentes do Pira-Paraná, e no próprio Pira-Paraná, em território colombiano. Também encontram-se dispersos na bacia do Uaupés, no Brasil. Registram-se 36 subdivisões nomeadas.
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Conforme contam os mais velhos, no tempo das malocas, os laços agnáticos e o sistema de senioridade eram princípios mais estruturantes das relações sociais, do sistema de prestígio e da posição de chefia no âmbito dos grupos locais do que se verifica hoje. O chefe da maloca era também o irmão maior, o “cabeça” do clã, quem detinha a prerrogativa da chefia. Do mesmo modo, através de seu espírito agregador e de sua capacidade retórica, era ele quem zelava pela união e pela harmonia do grupo (formado idealmente por um conjunto de irmãos, suas mulheres e filhos), organizando festas e trabalhos coletivos e incitando as pessoas a viverem bem e com respeito para com os parentes e cunhados.
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'''4) Desana:''' Autodenominam-se Umukomasã. Habitam principalmente o Rio Tiquié e seus afluentes Cucura, Umari e Castanha; o Rio Papuri (especialmente em Piracuara e Monfort) e seus afluentes Turi e Urucu; além de trechos do Rio Uaupés e Negro (inclusive cidades da região). Existem aproximadamente 30 divisões entre os Desana, entre chefes, mestres de cerimônia, rezadores e ajudantes. Este número pode variar segundo a fonte. Os Desana são especialistas em certos tipos de cestos trançados, como apás grandes (balaios com aros internos de cipó) e cumatás.
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Com a implementação do modelo de comunidade proposto pelos missionários
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em meados da década de 1960, as chamadas “Comunidades Eclesiais de Base”, um novo modo de organização sociopolítica passou a vigorar nos povoados indígenas, o qual teve como pedra de toque a instituição de um sistema de cargos comunitários eletivos e rotativos: os postos de “capitão” e de “vice-capitão”, escolhidos por votação, além dos cargos de “animador” e “catequista”. Com isso, novos padrões de relações sociais começaram a se sobrepor às formas tradicionais de organização sociopolítica, assim como estes novos papéis sociais – que hoje incluem também, conforme sugeriu Lasmar (2005, p. 91), os cargos de professor e agente de saúde –, passaram a constituir uma via alternativa para a obtenção de influência e prestígio.
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'''5) Karapanã:''' Autodenominam-se Muteamasa, Ukopinõpõna. Vivem no caño Tí (afluente do Alto Vaupés) e Alto Papuri, na Colômbia. No Brasil, se encontram dispersos em alguns povoados do Tiquié e Negro. Tinham cerca de oito subdivisões, mas provavelmente apenas quatro delas deixaram descendentes.
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Mas apesar da ideia de comunidade ter sido introduzida pelos missionários, os princípios éticos, políticos e estéticos que os Waíkhana, especialmente os mais velhos, parecem ter em mente quando se referem à noção, remetem ao tempo das malocas e à noção nativa de ''mahka'', palavra waíkhana que designa os sítios habitados e cujos significados transcendem o conceito de comunidade hoje utilizado. Aqui o ideal da agnação e o idioma da senioridade, (ao lado dos princípios da reciprocidade e da aliança), continuam sendo fatores relevantes na política local. Em muitos casos, estes constituem ainda princípios estruturantes do ethos comunitário que informa a vida social, cujos valores são aqueles mesmos que os missionários tentaram neutralizar com a introdução do modelo de comunidade. Em muitas delas, os cargos comunitários foram apropriados e ressignificados pelo próprio sistema tradicional; onde isto não se verifica, o “cabeça” do clã, como os waíkhana costumam chamar aquele que se situa no topo da hierarquia de senioridade, continua sendo reconhecido e respeitado como o “chefe tradicional” e, muitas vezes também, como o “guia” espiritual (''kumu'') do grupo.
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'''6) Kubeo:''' Autodenominam-se Kubéwa ou Pamíwa. Possuem uma língua bem particular da família Tukano Oriental, sendo por isso algumas vezes classificada como Tukano Central. Em sua grande maioria, se encontram residindo em território colombiano, na região do Alto Uaupés, incluindo seus afluentes Querari, Cuduiari e Pirabatón. No Brasil, ocupam três povoados no Alto Uaupés e estão em pequeno número no Alto Aiari. Estão divididos em aproximadamente 30 sibs nomeados. Estes sibs, por sua vez, estão agrupados em três fratrias não nomeadas que funcionam como unidades para trocas matrimoniais; em outras palavras, ao contrário da maioria das outras etnias do Uaupés, os Kubeo costumam casar-se entre si, pessoas que falam a mesma língua. São especializados na fabricação das máscaras de tururi.
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|Cortando e tingindo talos de arumã para fazer balaios. Comunidade São Gabriel (Pohsaya Pit) no médio Papuri. Foto: Aline Scolfaro, 2010.
'''7) Makuna:''' Autodenominam-se Yeba-masã. Vivem principalmente no território vizinho da Colômbia, concentrando-se no Caño Komeya, afluente do Rio Pira-Paraná, no baixo curso deste rio, e no Baixo Apapóris. No Brasil, são encontrados no Alto Tiquié e nos seus afluentes, os igarapés Castanha e Onça. Estão divididos em cerca de 12 sibs. São especializados em zarabatanas e curare, são também hábeis fabricantes de canoas, além de fornecerem remos leves e muito bem acabados aos índios do Alto Tiquié.
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No contexto atual, marcado por um esvaziamento das comunidades em
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decorrência da migração de muitas famílias para os centros urbanos, os que ficaram parecem mesmo se esforçar para que o elo existente entre os membros do grupo agnático continue vivo. Aliás, muitos dizem hoje que, com todas as transformações ocorridas na região desde a chegada dos brancos, é preciso um esforço constante para que aquilo que restou da vida, dos ensinamentos e da riqueza deixada pelos “antigos” não tenha o mesmo destino que tiveram muitos daqueles componentes mais valiosos e visíveis da “cultura” - alvos privilegiados da repressão missionária.
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'''8) Miriti-tapuya ou Buia-tapuya:''' Atualmente falam apenas a língua tukano. São habitantes tradicionais do Baixo e Médio Tiquié, destacando-se as comunidades de Iraiti, São Tomé, Vila Nova e Micura.
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== Cosmologia e Mitologia ==
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Os Waíkhana, assim como a grande maioria dos povos tukano, reconhecem que os seus primeiros ancestrais surgiram no extremo leste da terra, num local chamado ''Ahpenkõ'' Taro, Lago de Leite, ao lado dos ancestrais Tukano e Desana. Criados por ''Uhpó Kõãkhun'', Deus Trovão ou Avô do Universo, a partir de resíduos encontrados nos diferentes domínios do cosmos, estes primeiros ancestrais, que no início eram ''wai mahsã'' (gente peixe) e não propriamente humanos, chegaram ao Uaupés depois de uma longa viagem subaquática a bordo de uma cobra-canoa, denominada ''pamulin yuhkusoa'', “canoa de transformação.
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Constituindo, ao mesmo tempo, uma passagem entre distintas dimensões espaço-temporais, ou entre distintos níveis cósmicos, a viagem ancestral do Lago de Leite até as cabeceiras do Uaupés e afluentes, região considerada como o centro do mundo, representa também um longo processo de transformação e desenvolvimento a partir do qual estes primeiros seres ancestrais puderam finalmente alcançar a forma humana. Por isso, eles mesmos ganharam o nome de ''Pamulin Mahsã'', “Gente da Transformação”, aqueles que passaram pelo processo de humanização.
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'''9) Pira-tapuya: '''Autodenominam-se Waíkana. Estão situados no Médio Papuri (nas proximidades de Teresita) e no Baixo Uaupés. Migraram e vivem também em localidades do Rio Negro e em São Gabriel.
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Ao longo da extensa viagem, os ancestrais pararam em diversos locais que são hoje reconhecidos como “casas de transformação”: locais onde obtiveram uma série de artefatos, capacidades e conhecimentos necessários para a sua transformação em seres humanos e para a vida de seus futuros descendentes. Dentre estas aquisições encontram-se aqueles bens materiais e imateriais, tais como ornamentos de dança, objetos cerimoniais, substâncias rituais, rezas xamânicas, cantos, danças, nomes, a língua e as próprias falas que contam a história desta saga ancestral.
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'''10) Siriano: '''Autodenominam-se Siria-masã. Moram no Caño Paca e Caño Viña, afluentes do Alto Papuri, em território colombiano. No Brasil são encontrados dispersos em rios da bacia do Uaupés e no Rio Negro. Há informações referentes a 27 sibs siriano.
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Transmitida agnaticamente através das gerações, esta riqueza (''doedikhen'') é o que passará a compor o patrimônio ritual de cada grupo de descendência, sendo ao mesmo tempo a manifestação e o veículo dos princípios espirituais e das potência envolvidas no processo de transformação/humanização ancestral. Por isso é que as “casas de transformação”, e as riquezas que foram nelas obtidas, são ainda hoje cruciais nos procedimentos xamânicos de constituição da pessoa e de manutenção da vitalidade do grupo, ainda que grande parte de seu aspecto visível e tangível tenha sido eclipsado com as transformações culturais do último século.
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'''11) Taiwano, Eduria ou Erulia: '''Autodenominam-se Ukohinomasã. Habitam o Caño Piedra e Tatu, afluentes do Rio Pira-Paraná, e o Rio Cananari, afluente do Apapóris. Todas estas áreas estão situadas em território colombiano. Há informações que dão conta de oito subdivisões internas.
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As falas que narram a origem waíkhana possuem três momentos distintos. O primeiro momento narra os passos dados pelo Avô do Universo em seu trabalho de criação e incrementação da vida (''kahtiró'') dos primeiros ancestrais da verdadeira humanidade. Nele encontram-se as bases para alguns dos mais importantes e vitais benzimentos (''bahseye''), bem como trechos ou falas essenciais para uma operacionalização mais completa e potente do benzimento da alma (''hedipona bahseye'', quando as crianças recém nascidas recebem seu nome ritual, que é também sua força vital).
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'''12) Tariana:''' Autodenominam-se Taliaseri. Diferentemente das outras etnias da bacia do Uaupés, a maioria dos Tariana adotaram o Tukano Oriental, mas falavam outrora uma língua pertencente à família Aruak, e algumas comunidades ainda a falam. Atualmente moram no Médio Uaupés, Baixo Papuri e Alto Iauiari. O centro do povoamento fica entre as cachoeiras de Iauareté e Periquito. São especializados em implementos de pesca como caiá, cacuri, matapi.
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O segundo momento remete à grande viagem de transformação dos primeiros ancestrais à bordo da cobra-canoa e é caracterizado por uma fala que refaz todo o percurso da embarcação desde o Lago de Leite até o centro do mundo (no caso dos Waíkhana, a cabeceira do igarapé Macucu, afluente do médio Papuri), passando pelas inúmeras “casas de transformação” existentes ao longo do percurso. O que os ancestrais vivenciam nessas “casas” constitui as bases para a configuração atual do mundo, informando, assim, diversos tipos de procedimentos técnicos, regras sociais e conhecimentos xamânicos hoje fundamentais para a vida das pessoas e dos coletivos waíkhana.
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'''13) Tatuyo:''' Autodenominam-se Umerekopinõ. Habitam uma área situada na Colômbia: o Alto Rio Pira-Paraná, o Alto Tí e o Caño Japu. No Brasil, são representados sobretudo por mulheres casadas com homens de outras etnias. Existem cerca de oito subdivisões internas.
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Já o terceiro momento da narrativa representa uma outra etapa da história ancestral, que marca o fim do que a antropóloga Christine Hugh-Jones (1979) chamou de “era pré-descendência”. Esta se inicia após a chegada dos ancestrais waíkhana à última casa, chamada de ''Hedi Wu’u'' (Casa do Suspiro) e localizada nas cabeceiras do igarapé Macucu, afluente da margem esquerda do médio Papuri (do lado colombiano). Deste ponto em diante o que vemos é a história de um tempo propriamente humano, marcada pelo crescimento dos Waíkhana enquanto um grupo de descendência exogâmico, pelas alianças matrimoniais com grupos afins e pelas segmentações internas. Do mesmo modo, as histórias dos diversos subgrupos e clãs se particularizam, permeadas por brigas, disputas por prerrogativas, rupturas, deslocamentos e migrações – as quais dão conta de explicar a atual configuração socioespacial do povo Waíkhana, isto é, o modo como os subgrupos e clãs estão hoje distribuídos pelo território. Na dissertação de Dorvalino Chagas é possível encontrar uma detalhada descrição dessas dinâmicas socioespaciais dos Waíkhana (Chagas, 2001). Veja, abaixo, como se inicia essa longa narrativa
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'''14) Tukano: '''Autodenominam-se Ye’pâ-masa ou Daséa. É a etnia mais numerosa da família lingüística Tukano Oriental. Concentram-se principalmente nos rios Tiquié, Papuri e Uaupés; mas também estão morando no Rio Negro, a jusante da foz do Uaupés, inclusive na cidade de São Gabriel. É possível que existam mais de 30 subdivisões entre os Tukano, cada qual com um nome e, idealmente, compondo um conjunto hierarquizado. Atualmente, com todas as dispersões ocorridas nos últimos séculos, as posições hierárquicas são razão de polêmicas e versões variadas. Os Tukano são fabricantes tradicionais do banco ritual, feito de madeira (sorva) e pintado, na parte do assento, com motivos geométricos semelhantes àqueles dos trançados. É um objeto muito valorizado, obrigatório nas cerimônias e rituais, onde se sentam os líderes, kumua (benzedores) e bayá (chefes de cerimônia).
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== Tempo da Criação ==
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Texto editado a partir de versão narrada por Laureano Cordeiro e traduzida por seu irmão menor Marcelino Cordeiro, ambos Waikhana Wehetada Bahuí da comunidade São Gabriel (Pohsaya Pitó), médio Papuri. Laureano faleceu em 2020 em decorrência de complicações causadas pela Covid19
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'''15) Tuyuka: '''Autodenominam-se Dokapuara ou Utapinõmakãphõná. Estão concentrados principalmente no Alto Rio Tiquié, entre a Cachoeira Caruru e o povoado colombiano de Trinidad, incluindo os igarapés Onça, Cabari e Abiyú. Estão presentes também no trecho do Rio Papuri próximo à fronteira Brasil/Colômbia e em seu afluente Inambú. Possuem cerca de 15 sibs nomeados. São exímios construtores de canoas e, antigamente, eram especialistas na confecção de redes feitas de fibras de buriti. Também são especializados na confecção do cesto urupema, trançado de finíssimas talas de arumã, usado para coar sumo de frutos.
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Conta-se que, antigamente, num tempo anterior ao surgimento dos primeiros
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ancestrais, o mundo era uma casa, uma maloca, em cujo seio corria um rio. Esta casa, que continha todo o universo, chamava-se ''Tauro Wu’u'' (Casa da Barragem). Foi ''Uhpó Kõãkhun'', Deus Trovão ou Avô do Universo, quem criou ''Tauro Wu’u'' através de seu pensamento. ''Uhpó'' apareceu por si mesmo na Casa de Pedra de Quartzo (''Uhta Boho Wu’u'') e no início era somente ele. Manifestava-se como ‘puro pensamento’ (''tu’otuaye bahueye'') e foi assim que fez aparecer ''Tauro Wu’u'', a casa-universo. Aí viveram as primeiras ‘gentes’ (''mahsã'') criadas por ele através do sopro da fumaça do cigarro. Mas essas ‘gentes’ do início, por não terem conseguido viver de acordo com os ensinamentos de ''Uhpó'', foram exterminadas pelo grande dilúvio que assolou ''Tauro Wu’u'' no início dos tempos. Teria sido o próprio ''Uhpó'' quem decidiu acabar com a sua primeira criação, pedindo a Se’ẽ Pinõ, uma grande cobra que podia também se transformar em pássaro, para que tampasse com o seu rabo a saída de ''Tauro Wu’u''. Com isso, as águas que antes fluíam pela grande maloca se acumularam lá dentro, devastando toda a terra.
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'''16) Kotiria:''' Autodenominam-se Kótiria. Predominam no Médio Uaupés, entre a cachoeira de Arara e Mitú. Entre Arara e Taracuá (do Alto Uaupés), os Kotiria são hegemônicos; acima daí, convivem em território onde a maioria é Kubeo. Há informações de que existem 25 divisões entre os Kotiria. Sua especialidade no âmbito das relações de troca interétnica é o preparo do carajuru, um pó corante feito com as folhas de um cipó, muito usado na confecção de artefatos rituais e na pintura do banco tukano, bem como para a pintura corporal. Também são hábeis cesteiros e produtores de objetos de tururi.
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Com o desaparecimento de todos os seres, exceto ''Yairo Kõãkhun'', um pássaro-pajé que sobreviveu ao dilúvio protegido sob sua cuia de bronze e pedra de quartzo, ''Uhpó Kõãkhun'' se viu novamente sozinho. E de sua morada na Casa de Pedra de Quartzo ele começou a pensar em como poderia fazer para criar uma nova geração de ‘gentes’. Decidiu que era preciso primeiro limpar e ajeitar a casa ''Dia Tauro'', transformando-a num lugar bom e acolhedor para se viver, pois com o dilúvio muitas doenças e perigos haviam sido disseminados pelo mundo. Em seguida, resolveu mudar o nome da casa-universo para ''Dia Ahpenkõ 'Wu’u'' (Casa do Rio de Leite) e decidiu que seria este o local onde faria aparecer as novas ‘gentes’ que agora povoariam a Terra.
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'''17) Yuruti: '''Autodenominam-se Yutabopinõ. Etnia de língua tukano oriental, ocupa o Alto Paca (afluente do Alto Papuri) e os caños Yi e Tui e áreas vizinhas do Vaupés onde estes igarapés desaguam (em território colombiano). Há informações que possuem nove sibs.
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Com o seu pensamento, ''Uhpó'' começou então a preparar as coisas com as quais daria início à sua nova criação. A primeira coisa que ele preparou foi ''yuido'', o suporte de cuia, que colocou com cuidado no centro do pátio de ''Ahpenkõ Wu’u''. Em seguida fez aparecer a ‘cuia da vida’ (''kahtidi wahastoa''), arrumando-a delicadamente sobre o suporte.
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A seguir, é apresentada uma tabela com a estimativa populacional de cada etnia:
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Depois chamou (''wa’metiaga'') os ‘cigarros da vida’ (''kahtidi munoku''): o ‘cigarro de transformação’ (''pamulin munoku''), o ‘cigarro de leite’ (''ahpenkõ munoku'') e o ‘cigarro de água’ (''ahkó munoku''). E por fim preparou ''sãlinopu'', a forquilha porta cigarros. Depois de arranjar estes objetos cuidadosamente, colocando cada um no seu devido lugar (os cigarros na forquilha, a forquilha na cuia e a cuia no suporte), ''Uhpó'' começou então a benzer, chamando e soprando na ‘cuia da vida’ uma série de substâncias doces, tais como o mel, o leite e o sumo de diversas frutas.
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Assim, teria sido o próprio ''Uhpó Kõãkhun'' o primeiro a fazer o benzimento de
purificação. Mas diz-se que terminando de benzer a ‘cuia da vida’ com leite, mel e sumo de frutas doces, ele ainda não sabia ao certo de que forma poderia fazer para repovoar esta terra, para criar as novas ‘gentes’. Então continuou pensando e resolveu que procuraria por este mundo, pelos quatro cantos da terra, as coisas com as quais poderia criar as novas vidas. E foi procurando por todo o universo, pelos distintos domínios dos cosmos – pelo espaço, pela terra e pela água – que ele finalmente encontrou aquilo que seria o princípio da vida das novas ‘gentes’: o ‘coração’, o ‘sopro de vida’ (''hedipona'') dos primeiros seres que, mais tarde, se multiplicariam e povoariam a terra, dando origem aos atuais seres humanos.
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<tr>
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<td>'''Etnia'''</td>
−
<td>'''População no Brasil'''</td>
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</tr>
−
<tr>
−
<td>
−
−
Arapaso
−
</td>
−
<td>328</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Bará</td>
−
<td> 39</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Barasana</td>
−
<td> 61</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Desana</td>
−
<td>1.531</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Karapanã</td>
−
<td>42</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Kotiria</td>
−
<td>447</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Kubeo</td>
−
<td>287</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Makuna</td>
−
<td>168</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Mirity-tapuya</td>
−
<td>95</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Pira-tapuya</td>
−
<td>1.004</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Siriano</td>
−
<td>17</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Taiwano</td>
−
<td>0</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Tariana</td>
−
<td>1914</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Tatuyo</td>
−
<td>0</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Tukano</td>
−
<td>4.604</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Tuyuca</td>
−
<td>593</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>Yuruti</td>
−
<td>0</td>
−
</tr>
−
<tr>
−
<td>'''TOTAL '''</td>
−
<td>'''11.130'''</td>
−
</tr>
−
</table></div>
−
+
A viagem de Uhpó pelas camadas do cosmos foi narrada assim pelo kumu Laureano Cordeiro e traduzida por seu irmão, Marcelino Cordeiro:
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)|Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)]]. -->
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<blockquote>
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“Então Uhpó Kõãkhun se levantou e no mesmo instante o seu pensamento se elevou às alturas, chegando até a ‘casa do céu’ (''u’muse wu’u''), e depois baixou e correu até o leste, onde o sol nasce e para onde as águas correm (''dia to’pea''). Em seguida, todo o seu pensamento seguiu para a ‘casa do poente’, o oeste, onde os rios nascem e o sol se esconde (''dia po’te''). Por fim, baixou até o sul e na casa do sul procurou. ''Uhpó'' tateava com uma das mãos todo o universo e todos os cantos por onde o seu pensamento corria. E assim ia juntando em sua mão tudo aquilo que conseguia recolher nas casas por onde passava. Quando terminou de procurar, depositou a fina poeira que conseguiu juntar na cuia que havia benzido. E isto era o próprio ‘coração’ (hedipona), a ‘essência da vida’ dos Desana. É por isso que eles são ‘Gente do Espaço’, ‘Gente do Universo’: são os ''Dehkoli Mahsã'', ‘Gente do Dia’. Foi ''Dehkoli'' o primeiro a surgir.
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== Identidade e diferença ==
+
Então, vendo que sua jornada pelo universo havia dado certo, Uhpó resolveu percorrer novamente os quatro cantos da terra para tentar encontrar outras coisas com as quais poderia dar continuidade à sua criação. E mais uma vez subiu até o céu, correu para o leste, para o oeste e para o sul, mas desta vez nada encontrou. Então pensou em procurar na terra, na ‘terra de transformação’ (''yepá pamulin di’ita''). E procurou na terra preta (''di’ita niño''), procurou na terra branca (''di’ita yesedó''), procurou na terra vermelha (''di’ita sõãno''). Em todas essas terras ele procurou, buscando por todo o chão deste mundo as coisas com as quais poderia criar as novas vidas. E enquanto pensava e procurava, foi tateando a terra com uma das mãos, apanhando tudo o que conseguia alcançar. Em seguida, depositou na cuia benzida a poeira de terra que havia recolhido. Fazendo isso, Uhpó estava colhendo o ‘coração’ (''hedipona''), a ‘essência da vida’ de ''Dahseido'', os Tukano. Por isso é que eles serão ''Yepá Mahsã'', ‘Gente Terra’.
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−
|Maloca na região do Uaupés. Foto: Acervo Museu do Índio, 1931.
Junto com seus vizinhos aruak, os Tukano - que serão tratados nesta seção como povos tukano, de modo que o grupo Tukano será diferenciado com letra inicial maiúscula- compõem um sistema sócio-político flexível, cuja integração se dá através de redes de intercâmbio recíproco envolvendo visitas, trocas, casamentos e rituais. A dinâmica desse sistema regional implica a articulação entre semelhança e diferença, entre um repertório comum que confere aos grupos que o compõem alguma medida de identidade e aquilo que os diferenciam uns dos outros, possibilitando a interdependência entre eles. Comecemos com as semelhanças.
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Em seguida, Uhpó se pôs mais uma vez a pensar e sentiu que faltava ainda alguma coisa. Então começou a procurar novamente por todo o universo, por todos os cantos do espaço. Subiu até o céu, correu até o leste, até o oeste e até o sul. Mas nada encontrou. Voltou então a procurar pela terra, pela ‘terra de transformação’. Procurou na terra preta, na terra branca, na terra vermelha. E mais uma vez não encontrou nada. Então decidiu descer até o rio, o rio de ‘água de transformação’ (''pamulin ahkó'') para continuar a sua busca. E procurou por todo o mundo das águas, tateando com uma das mãos. Tateou a foz, na casa do nascente. Depois procurou pelas cabeceiras, na casa do poente. E foi assim que conseguiu encontrar o outro ‘coração’ (''hedipona''), a outra ‘essência de vida’, a qual depositou na cuia benzida. Agora eram três ‘corações’, três ‘elementos de vida’ que logo ‘viriam a ser’. Foi assim que Uhpó criou os seus netos; e foi na água que ele nos encontrou: nós somos netos do Waíkhana, ‘Povo Peixe’. Por isso é que temos esse nome, por esse trabalho que fez Uhpó Kõãkhun. Mas também ali, na beira do rio de ‘água de transformação’, é que apareceu Koleinogu, o Arapaço. E é por isso que Arapaço é por nós considerado irmão menor. Mas foram somente estes que surgiram em ''Dia Ahpenkõ'', somente estes vieram de lá. Pois muitos dos outros [das outras etnias] só apareceram em Ipanoré. Em ''Dia Ahpenkõ Wu’u'' (Casa do Rio de Leite) eram somente Dehkoli, Yepá, Waíkhana e Koleinogu, que apareceu depois”.
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</blockquote>
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|Índio Bara com seu filho no Alto Papuri. Foto: Jean Jackson, 1969.
Os Tukano compartilham uma área geográfica contínua e um mesmo modo de vida básico, que inclui a caça e coleta, mas no qual predomina a pesca e a agricultura de coivara, sendo a "mandioca brava" o principal produto. No passado, todos moravam em casas comunais (ou malocas) de estilo relativamente uniforme: uma grande construção retangular com teto maciço de forma triangular e portas em cada ponta. Falam línguas muito próximas no que diz respeito à gramática e ao vocabulário. Também compartilham convenções sobre o uso dessas línguas: a maioria fala pelo menos duas línguas e freqüentemente compreende outras, privilegiando a língua paterna nas conversas cotidianas. Esses povos têm ainda estilos de ornamentação corporal semelhantes e, embora as palavras e melodias possam ser diferentes, usam os mesmos instrumentos musicais e a sua música, danças e cantos têm uma base comum. Tais convenções relativas ao modo-de-vida, organização espacial, língua, fala, adornos, música e dança integram o sistema comum de comunicação verbal e não-verbal dos povos do Uaupés, que se expressa mais plenamente nos rituais inter-comunitários.
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É, pois, de domínios específicos do cosmos que provém a “essência da vida”, o
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“sopro”, ou a própria “alma” (''hedipona'') dos ancestrais que darão origem a cada um desses povos. E junto com este princípio vital aparecem também os seus nomes. Esses nomes, que serão posteriormente transmitidos aos seus descendentes, carregarão com eles a “potência de vida” (''kahtiró'') desses primeiros ancestrais e todo o poder criativo dos domínios de onde eles provêm. Pois é da água que os Waíkhana tiram sua força, assim como os Tukano (''Yepá Mahsã'') a tiram da terra e os Desana (''Dehkoli Mahsã'') do ar e dos raios de sol. O ancestral Desana terá a capacidade de voar, de viajar pelo ar e pousar nos topos de árvores e montanhas e o ancestral Waíkhana terá a habilidade e a força necessária para comandar a futura viagem pelo rio de água de transformação. Dizem até que a cobra-canoa, na qual todos embarcarão rumo ao centro da terra, era, na verdade, o próprio corpo de 'Waikhun, o primeiro ancestral Waíkhana (também chamado de Kenein em algumas narrativas). É por isso que os Waíkhana, Povo Peixe, são também ''Pinoã Mahsã'', Gente Cobra, aqueles que surgiram no mundo das águas, no rio de água de transformação.
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|Pedro Garcia, da etnia Tariano. Foto: Miguel Chaves, 1998.
Cada grupo tem as suas próprias histórias, mas também compartilham um ''corpus'' mitológico comum. Os mitos explicam as origens do cosmos, descrevendo um mundo perigoso e indiferenciado, sem limites precisos de tempo e espaço, sem diferença entre gente e animal. As narrativas míticas explicam como os feitos dos primeiros seres geraram as feições da paisagem e como o mundo se tornou paulatinamente seguro para a emergência dos verdadeiros seres humanos. Há um mito de origem chave nesse repertório que explica como uma Anaconda-ancestral penetrou o universo/casa através da "porta da água" no leste e subiu os rios Negro e Uaupés com os ancestrais de toda humanidade dentro de seu corpo. Inicialmente, esses ancestrais-espíritos tiveram a forma de ornamentos de pena, mas foram transformados em seres humanos no curso da sua viagem. Quando alcançaram a cachoeira de Ipanoré, o centro do universo, eles emergiram de um buraco nas rochas e se deslocaram para os seus respectivos territórios. Essas narrativas compartilhadas entre os povos do Uaupés expressam uma compreensão comum do cosmos, do lugar dos seres humanos nele e das relações que deveriam existir entre diferentes povos, bem como entre eles e outros seres.
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== Festas e Rituais: Entre o Passado e o Presente ==
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Os Waíkhana mais velhos, tanto homens quanto mulheres, costumam lembrar com nostalgia dos tempos em que seus pais e avôs realizavam grandes festas e cerimônias, nas quais todos se pintavam e se paramentavam para dançar e cantar ao som de vários tipos de instrumentos musicais. Descrevem com saudades como eram os ''dabucuri'' (''pooyé'') de antigamente, cerimônias de oferecimento de alimentos e produtos artesanais entre grupos afins e parentes próximos; as festas de ''kapiwaya'', conjunto muito valorizado de cantos e danças executado em ocasiões rituais em que se faz também o uso da bebida ''kahpi''; as cerimônias de iniciação dos meninos com uso das flautas de ''jurupari''; os ritos de iniciação das meninas e as festas de caxiri que os seus antepassados faziam.
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Em contrapartida, cada grupo tem uma identidade singular e um lugar específico dentro do sistema. A população divide-se em aproximadamente 17 grupos exogâmicos, cada qual com direitos sobre um território específico ou trecho de rio com características e potenciais diferentes. Somado a esses fatores ecológicos de diferenciação, cada grupo é tradicionalmente associado à produção de artefatos específicos; assim, os Tukano fabricam banquinhos, os Desana cestos, os Tuyuka canoas etc. Essa produção especializada constitui um aspecto da identidade grupal e mobiliza os cerimoniais de troca (ou ''dabukuris'') que são um dos principais componentes das atividades rituais características da região. Em tais festas, os diferentes grupos se reúnem para dançar, beber caxiri, exibir os seus ornamentos de penas, recitar as linhagens de seus antepassados e trocar os seus produtos (banquinhos por canoas, peixe por carne de caça etc.).
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As cerimônias de dabucuri e as festas de caxiri constituem ainda hoje elementos centrais da sociabilidade waíkhana para com parentes e cunhados. Também as danças embaladas ao som das flautas cariçu são amplamente praticadas nas comunidades do Papuri e do Uaupés. Alguns grupos locais, especialmente no Papuri, ainda realizam as danças e cantos de kapiwaya, embora em contextos menos ritualizados do que faziam os antigos. Mas outras práticas rituais como o jurupari e a ingestão do kahpi não são mais realizadas pelos Waíkhana. Os mais velhos dizem que esses conhecimentos foram perdidos, que hoje não existe mais entre os Waíkhana quem saiba preparar e benzer o kahpi, nem quem detenha os saberes para realizar a cerimônia de jurupari. E mesmo no contexto de retomada de algumas práticas e no esforço por fortalecer os conhecimentos, a língua e a cultura waíkhana empreendido por alguns de seus clãs nos últimos vinte anos, muitos parecem crer que certas coisas não podem mais ser resgatadas. Pois além dos saberes que se perderam, certas práticas exigem um preparo corporal e espiritual que hoje, segundo dizem, quase ninguém mais possuiria ou estaria disposto a alcançar. Pois com o tipo de vida que agora se leva, seria muito difícil para as pessoas cumprirem certas regras e restrições que estas tarefas e cerimônias exigem, devido às potências que mobilizam.
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Cada grupo tem a sua própria língua, o seu conjunto particular de nomes pessoais, os seus específicos cantos de dança e as suas próprias genealogias e narrativas de origem. Cada um tem um ancestral originário da Anaconda que trouxe o povo para o seu território particular. O corpo dessa Anaconda é replicado no trecho do rio onde esse grupo mora, nas malocas em que habitam e na composição dos grupos. A língua, os nomes próprios, os cantos, as histórias e outras formas de discurso operam como emblemas de identidade, afirmam direitos territoriais e privilégios rituais, assim como manifestam aspectos da vida, alma e espírito do grupo.
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Contudo, mesmo sem os grandes rituais do passado, os Waíkhana vão prosseguindo na constituição de pessoas e no fortalecimento da força de vida do grupo. Isso se dá através da língua, dos benzimentos, dos nomes cerimoniais, da memória social e das narrativas passadas de geração em geração. Assim, mesmo dispersos por um território tão extenso, os Waíkhana mantêm sua identidade cultural e o vínculo espiritual com o passado ancestral, o que os constitui enquanto um grupo de descendência e um coletivo diferenciado na rede intercultural do Noroeste Amazônico.
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Cada grupo também possui um ou mais conjuntos de ''Yurupari ''- flautas e trombetes sagrados feitos do tronco da palmeira paxiúba -, que são os ossos de seu ancestral e que incorporam o seu sopro e canto. Junto com as festas e trocas cerimoniais, os rituais envolvendo esses instrumentos musicais - símbolos condensados da identidade, espírito e poder grupal - formam o outro grande componente da vida ritual dos Tukano. Enquanto a troca cerimonial enfatiza a equivalência e interdependência mútua entre grupos diferentes, os rituais de ''Yurupari ''realçam a identidade singular de cada um.
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== Fontes de Informação ==
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* ANDRELLO, G. ''Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê''. São Paulo: Editora UNESP/ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006
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'''[fevereiro de 2003] '''
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* CHAGAS, Dorvalino S. J. V. ''O mundo dos Pamulin Mahsã Waíkhana''. Dissertação de mestrado. UFPE, 2001
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* LASMAR, Cristiane. ''De volta ao lago de leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro''. Unesp, 2005.
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Stephen Hugh-Jones|Stephen Hugh-Jones]]. -->
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* PEREIRA, Rosilene Fonseca et al. ''Criando gente no alto Rio Negro: um olhar waíkhana''. Dissertação de mestrado. Manaus: Ufam, 2013.
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* SILVA, Aline Scolfaro Caetano da et al. ''Falas Waíkhana: conhecimento e transformações no alto rio Negro (rio Papuri)''. Dissertação de mestrado. São Carlos: UFScar, 2012.
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== Organização social ==
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* STENZEL, Kristine; CEZARIO, Bruna. ''WA’IKHANA WEHSEPɄ BUUDE WEHẼ GɄ EHSAMII EMO SAÑODUKUGɄ TɄ’OSUAɄ F''. O. Rio de Janeiro: Revista Linguística, 2019.
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|Piutr Jaxa, antigo habitante de Pari-Cachoeira, no Uaupés, e que atualmente vive na Terra Indígena Balaio.
Os grupos Tukano são patrilineares e exogâmicos, isto é, os indivíduos pertencem ao grupo de seu pai e falam a sua língua, mas devem se casar com membros de outros grupos, idealmente falantes de outras línguas. Externamente, os grupos são equivalentes mas distintos; internamente, cada um consiste em um número de clãs hierarquicamente ordenados. Os ancestrais desses clãs eram os filhos do primeiro ancestral Anaconda e a sua ordem de nascimento, que corresponde à ordem de emergência do corpo de seu pai, determina a sua classificação: os clãs de posição mais alta são coletivamente considerados "irmãos maiores" para aqueles de posição mais baixa. A posição do clã é associada a uma hierarquia, sendo ainda frouxamente correlacionada a residência: os clãs de mais alto grau tendem a viver em lugares mais favoráveis nas partes mais baixas dos rios, enquanto os clãs de menor grau freqüentemente vivem nas áreas de cabeceiras ou as partes mais altas dos rios. A classificação do clã também tem os seus correlatos rituais: os clãs de posição mais alta, as "cabeças da Anaconda", são "chefes" que patrocinam os principais rituais e controlam os ornamentos de dança do grupo e os ''Yurupari''; os clãs de posição mediana são especialistas de danças e cânticos; abaixo deles são os xamãs; e o grau mais baixo é ocupado pelos clãs servos, a "cauda da Anaconda", que por vezes são identificados com os semi-nômades Maku que vivem nas zonas interfluviais.
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|Índios Wanana. Foto: Curt Nimuendaju, década de 1930.
Essa hierarquia de papéis especializados e privilégios rituais fica muito evidente durante os rituais coletivos em que se recitam as genealogias e enfatizam-se as relações hierárquicas e de respeito. De modo mais sutil, essa hierarquia reflete-se também na vida cotidiana. Os habitantes de uma maloca comumente correspondem a um grupo de homens estreitamente aparentados, como os filhos do mesmo pai ou de dois ou mais irmãos, que vivem juntos com as suas esposas e filhos. Quando uma mulher se casa, ela deixa a sua maloca natal e vai morar junto com seu marido.
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Simbolicamente, a maloca reproduz em miniatura o universo e seus habitantes constituem tanto uma réplica quanto um precursor do ideal de organização clânica acima descrita. Assim, o pai da comunidade que habita a maloca seria o ancestral-Anaconda do grupo inteiro e seus filhos seriam os ancestrais dos clãs que dela se originaram. Seguindo essa lógica, o filho mais velho e irmão maior é geralmente o chefe da maloca, e não raro os seus irmãos menores são dançarinos, cantadores ou xamãs, cujos papéis costumam corresponder à ordem de nascimento. Mas poder e posição social dependem de energia e iniciativas pessoais, que não se baseiam apenas em organização formal, parentesco ou ordem de nascimento.
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|Confecção de banco tukano. Foto: Rosa Gauditano, 2002
A maioria dos rituais e da vida religiosa tukano está centrada em objetos (como ornamentos plumários e as flautas ''Yurupari'') e substâncias sagradas - como a pintura vermelha carayuru, cera de abelha, cera de breu (resina vegetal), epadu (feito com variedades de coca), tabaco e ayahuasca -, assim como em bens menos tangíveis, na forma de nomes, cerimoniais, encantações e cantos. Tais itens são propriedade do grupo e constituem expressões de seus poderes espirituais. Em um nível coletivo e estrutural, os rituais que envolvem tais itens podem ser vistos como expressões formais da identidade do grupo e das relações inter-grupais. Ao mesmo tempo, esses rituais constituem expressões das relações políticas em dada conjuntura. Assim, malocas vizinhas são interligadas por intermédio de líderes carismáticos, que comandam a organização de festas e coordenam o trabalho coletivo para a construção de casas maiores que funcionam como centros cerimoniais. Esses líderes são indivíduos que possuem um grande conhecimento esotérico e se mobilizam para manter e aumentar os bens sagrados de sua maloca, podendo disponibilizar os recursos necessários para patrocinar os rituais. Tais capacidades rituais prestam-se a fortalecer sua posição política.'''
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)|Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)]]. -->
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== Os Tukano e os Maku ==
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Os povos das famílias lingüísticas Tukano Oriental e Maku convivem mais intensamente na região de interflúvio entre os rios Tiquié e Papuri e, em menor escala, entre o Papuri e o Médio Uaupés (trecho entre Iauareté e a foz do Querari). Nesta área, desenvolveram uma estratégia de complementaridade, uma vez que tradicionalmente ocupam espaços distintos e adotam práticas de manejo do meio ambiente específicas. Distintamente dos Tukano, que vivem nos rios maiores, os Maku preferem os igarapés menores, mais no centro da floresta. São bons caçadores, coletores de frutas silvestres e conhecem muito bem os caminhos na mata. Os Tukano, por sua vez, são agricultores dedicados e pescadores; mesmo quando caçam, preferem fazê-lo de canoa, surpreendendo pacas e antas que vão até a beira do rio beber água.
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Do ponto de vista dos Tukano, os Maku formam uma categoria sui generis, na medida em que se diferenciam tanto dos afins quanto dos parentes de mesma descendência, pois não são casáveis e não são assimilados a eles através da terminologia de parentesco. Os Maku representam uma referência central no sistema conceitual tukano, estando associados às categorias hierárquicas mais baixas.
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Os Maku mantêm com os Tukano relações de troca e colaboração intermitentes. Em geral, grupos domésticos maku tomam a iniciativa de se associar a grupos domésticos tukano, sendo também eles que decidem quando devem ir embora para seus sítios ou mudar de "patrão" tukano. Eles podem permanecer apenas uma semana ou vários meses com os Tukano, mas existem casos em que a relação é mais estável e certos Maku se acostumam a prestar serviços para grupos domésticos tukano específicos, mantendo a colaboração através de gerações. Mesmo nestes casos, a convivência é interrompida quando os Maku resolvem cuidar de suas próprias casas e roças ou viajar.
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Os Maku procuram trabalho quando estão passando por momentos de maior privação (suas roças são em geral insuficientes e há períodos pouco propícios para a caça). Nestas situações, oferecem seus serviços aos Tukano: as mulheres trabalham nas roças e no processamento da mandioca e os homens caçam, fazem ipadu ou pegam alguma empreitada (troca da cobertura de uma casa, derrubada da mata para roça etc.). Em troca, os Tukano pagam com parte da produção da cozinha (farinha, beiju etc.), os homens recebem ipadu e fumo e ainda roupas usadas, ferramentas, redes, entre outros.
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Quando a família maku é muito grande e o custo, em termos de exploração da roça, é alto para a grupo doméstico tukano que os recebeu, este pode expulsá-los. Mais freqüente, porém, é que os próprios Maku se sintam fartos e desfavorecidos, retirando-se para seu assentamento por conta própria e levando consigo um suprimento de farinha e tapioca. Nesses casos, os Tukano reclamam de que eles saem sem dizer nada, de uma hora para outra.
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O que mais marca a relação entre estes dois grupos é a grande autonomia dos Maku, que os Tukano não podem violar. Os Maku procuram os Tukano visando suprir necessidades imediatas de alimentos; os Tukano aceitam os Maku e lhes encarregam de vários serviços. Algumas vezes os Maku também participam dos multirões para derrubar ou plantar roça promovidos pelos Tukano, quando é oferecido caxiri. Mas nessas ocasiões as relações são distantes e frias, não envolvendo intimidade. De modo geral, os Maku quase nunca comem junto com os Tukano ou se sentam próximos, a não ser nas manhãs em que há refeição comunitária e alguns Maku estão presentes.
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A distância social é marcada pelas atitudes. Quando um Tukano conversa com um Maku, este se posiciona a certa distância, olhando para outro lado. Em outro exemplo, ao devolver um cigarro que um Tukano pediu para “rezar” (para cortar alguma dor que um filho ou a própria pessoa está sentido), o homem Maku, ao invés de entregá-lo na mão, agacha-se próximo e joga o cigarro no chão, perto daquele que o solicitou.
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A relação entre os Tukano e os Maku é celebrada em grandes dabucuris (rituais de oferecimento), realizados na época de coleta de certas frutas do mato (como ingá, cunuri, buriti e açaí silvestre). Nestas ocasiões, os Tukano preparam muito caxiri e ipadu para receber os Maku, que chegam ainda de madrugada, antes do alvorecer, tocando trompetes, pequenos tambores e fazendo muito barulho. Trazem grandes quantidades de frutas que, inicialmente, deixam na beira do rio, para depois conduzi-las para dentro da casa de festa, no momento propício do ritual (quando há um diálogo cerimonial entre um par de homens Tukano e outro Maku). Conjuntos de tocadores de flautas pã maku se revezam ao longo da festa com conjuntos formados por homens e rapazes tukano. Eles formam pares de dança com as mulheres, sejam elas tukano ou maku, indistintamente. A mesma cerimônia também pode ser feita com o oferecimento de carne de caça moqueada; os papéis também podem ser invertidos, passando os Tukano a oferecer beiju e farinha aos Maku. Em geral a festa ocorre no povoado tukano.
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O distanciamento que caracteriza a relação entre os Tukano e os Maku é derivado da forma como os Maku são concebidos. Os Tukano os descrevem como diferentes, estranhos e, em certo sentido, inferiores. Alguns aspectos para os quais os Tukano chamam a atenção:
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<li>moram em pequenos tapiris improvisados, como os que se faz em viagens na floresta e na roça;</li>
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<li>nunca se acomodam em um lugar, estando sempre indo e vindo, inquietos;</li>
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<li>são agricultores displicentes e, além disto, não sabem manejar o cultivo, não esperam o tempo mais produtivo da mandioca, arrancando logo tudo para fazer caxiri; os homens fazem o mesmo com os pés de coca, desfolham sem controle e acabam tendo que apelar para os Tukano para conseguir ipadu (que é uma necessidade diária);</li>
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<li>são vistos com desconfiança, não raro acusados de saquearem as roças tukano e ainda disfarçarem o roubo fincando a haste da maniva no solo depois de arrancar o tubérculo; também lhes são atribuídos o sumiço de ferramentas, roupas e outros;</li>
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<li>a endogamia local e a constante transformação na constituição dos grupos locais são mau vistos pelos Tukano, que ainda enfatizam certos casamentos incestuosos, como se não houvesse regras definidas de casamento;</li>
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<li>os Tukano também dizem que eles não têm higiene, não se limpam nem penteiam o cabelo e andam maltrapilhos, com roupas velhas e encardidas.</li>
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Esta visão dos Maku tem alguns desdobramentos práticos, por exemplo, o casamento com eles é expressamente proibido e uma pessoa que tenha alguma ascendência maku (seja por parte do pai ou da mãe) é estigmatizada. Contudo, o casamento de um homem tukano com uma mulher maku é mais aceitável do que o casamento de um homem maku com uma tukano, que é impraticável. Com o contato, representado pela intensificação do comércio, da catequização e da educação escolar, ocorreram mudanças na relação entre esses povos.
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Os Tukano passaram a intermediar a entrada e troca de mercadorias industrializadas. Ao passo que os Tukano aderiram à prática, hoje muito valorizada e difundida, de mandar seus filhos para a escola até o final do ensino fundamental e, menos freqüentemente, para o ensino médio na cidade, os Maku jamais se adaptaram ao sistema escolar e as tentativas promovidas pelos missionários foram todas fracassadas. Mesmo as escolas criadas nos povoados Maku, com professores tukano, raramente dão bons resultados.
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Atualmente, a intensa migração dos Tukano para os centros missionários ou urbanos, como as cidades de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel, tem levado a um processo de esvaziamento de algumas áreas. Isto tem propiciado o estabelecimento de povoados maku no curso principal dos rios, como é o caso do Tiquié.'''
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Aloisio Cabalzar|Aloisio Cabalzar]]. -->
Como princípio básico, a cosmologia tukano combina perspectiva móvel, replicação da organização social em diferentes escalas da existência - corpo, communidade, casa e cosmos, e organização análoga entre níveis diferentes da experiência. O universo é feito de três camadas básicas: céu, terra e "mundo inferior". Cada camada é um mundo em si, com seus seres específicos e podendo ser entendidos tanto em termos abstratos como concretos. Em contextos diferentes, o "céu" pode ser o mundo do sol, da lua e das estrelas, ou o mundo dos pássaros que voam alto, ou os topos achatados dos tepuis (topos achatados das montanhas) dos quais descem as águas ou o mundo dos topos das árvores da floresta, ou mesmo uma cabeça enfeitada com um cocar de penas vermelhas e amarelas de arara, que são as cores do sol. Do mesmo modo, o "mundo inferior" pode ser o Rio dos Mortos debaixo da terra, o barro amarelo debaixo da camada do solo onde enterram-se os mortos, ou o mundo aquático dos rios subterrâneos.
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De toda forma, o que define o "céu" ou o "mundo inferior" depende não somente da escala e do contexto, mas também da perspectiva: à noite o sol, o céu e o dia ficam debaixo da terra e o escuro mundo inferior fica acima. Há uma história sobre um homem que encontra o cadáver de uma mulher-estrela que caiu na terra quando fora enterrada por sua família no céu: para seus parentes ela está morta no mundo inferior; para o homem, ela está viva na terra. O homem casa com a mulher-estrela e vai com ela visitar sua família no céu. Para o homem, as estrelas são os espíritos dos mortos que vivem à noite; para as estrelas, ele que é um espírito, e o dia para ele corresponde à noite para elas.
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Os diferentes grupos tukano também participam desse esquema. Assim, por exemplo, os Bará são Povo de Peixe (ou da Água), os Barasana são Povo da Terra e os Tatuyo estão na categoria de Povo do Céu. Cada um desses grupos tem um ancestral-Anaconda, mas anacondas na água são outra versão de jaguares na terra ou de harpias no céu (harpy-eagles?) - em um mundo transformacional e perspectivista, os maiores predadores do céu, da terra e da água são equivalentes e complementares. Assim como pessoas que estão na mesma "camada" são do mesmo tipo (from the same level are of the same kind) e não podem casar entre si, os casamentos entre diferentes grupos exogâmicos possuem dimensões cósmicas. Os Barasana, por exemplo, tendem a casar-se com os Bará, e estes também costumam casar-se com os Tatuyo. É possível vislumbrar esse sistema em um mito barasana que tematiza sua origem. Yeba, ou "Terra", o ancestral Barasana em forma de jaguar, casa-se com ''Yawira'', uma mulher -peixe guaracu, filha da Anaconda Peixe, o ancestral dos Bará. ''Yawira ''então abandona seu marido ''Yeba ''e foge com ''Yuka'', o urubu-rei que é uma manifestação do ancestral Tatuyo, que é também a Anaconda do Céu e Jaguar (Eagle-Jaguar). Outros grupos tukano têm diferentes versões para esse mito, nas quais os nomes dos personagens podem mudar, mas a lógica é a mesma.
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Em termos simbólicos, a maloca é o universo e o universo é uma maloca. O teto de palha é o céu, os esteios de suporte são as montanhas, as paredes são as cadeias de serras que parecem cercar a paisagem visível na beira do mundo, e sob o chão corre o Rio dos Mortos. A maloca tem duas portas: uma no leste que é a dos homens, ou a "porta da água"; outra das mulheres a oeste, com uma longa cumeeira que corre ao longo do teto da casa entre as duas portas, que é "o caminho do Sol". Nessa região equatorial, os rios subterrâneos correm do oeste para o leste, ou da porta das mulheres para a porta dos homens; completando um circuito fechado da água, o Rio dos Mortos corre do leste para o oeste.
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A maloca tanto é o universo, como também é um corpo, ao mesmo tempo o "corpo canoa" do ancestral-Anaconda e os corpos de seus filhos nele contidos. Esses filhos são os habitantes da casa, réplicas do ancestral original, receptáculos de futuras gerações e, eles mesmos, futuros ancestrais. Mas, se a maloca é um corpo humano, sua feição também é uma questão de perspectiva. Do ponto de vista masculino, a frente pintada da maloca é um rosto de homem, a "porta dos homens" é sua boca, a viga mestra e as laterais são a sua coluna e costelas, o centro da casa é seu coração, e a porta das mulheres o seu ânus. Do ponto de vista das mulheres, a coluna, as costelas e o coração permanecem os mesmos, mas o resto do corpo é invertido: a porta das mulheres é a sua boca, a porta dos homens a sua vagina e o interior da casa o seu ventre.
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De tais princípios de replicação e transformação dão-se uma série desdobramentos. Se os rios correm através da casa-universo e o corpo é uma espécie de casa, segue-se que as tripas e os genitais humanos são "rios"; e, ainda, que os vermes parasitas são "anacondas". Há uma história divertida que descreve o universo do ponto de vista de um verme: quando o seu hospedeiro humano bebe caxiri (cerveja de mandioca), a chuva fica grossa e pegajosa; quando ele ingere farinha, chove pedras; e quando ele come beiju, chove grandes rochas. Essa narrativa ilustra um ponto importante: por vezes os mitos explicitam a cosmologia, mas com mais freqüência a cosmologia simplesmente está subentendida ou implícita e as pessoas devem pô-las em prática por conta própria. Especialistas religiosos são aqueles que possuem maior habilidade para "ler" o que está por trás das narrativas sagradas.'''
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Stephen Hugh-Jones|Stephen Hugh-Jones]]. -->
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== O ciclo da vida ==
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|Índia Tuyuka com seu filho em um evento cultural em São Paulo. Foto: Miguel Chaves, 1998.
Tendo em mente os princípios cosmológicos sintetizados no item anterior, podemos começar a perceber como alguns processos vitais são elaborados em termos cosmológicos e como se relacionam a práticas rituais associadas ao ciclo de vida.
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A digestão, evacuação, decomposição e morte envolvem um fluxo passivo do alto para o baixo, de rio acima para rio abaixo, do Oeste para o Leste. A vida em si é um movimento, às vezes uma luta, de acordo com esse fluxo: as plantas crescem em direção ao sol e as pessoas devem crescer para cima enquanto amadurecem. O Sol, ou ''Yeba Hakü'' (na língua barasana), o "Pai do Universo", fonte de luz e da vida, move-se constantemente contra a corrente, subindo os rios da terra do Leste para o Oeste durante o dia e subindo o rio do "mundo inferior" durante a noite, para aparecer de novo no Leste. O ancestral-Anaconda que trouxe a humanidade para o mundo também viajou como o Sol, no sentido Leste para o Oeste, parando quando alcançou o meio do universo. Esse mesmo movimento de Leste a Oeste foi também uma ascensão da água para a terra.
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O ancestal-Anaconda, um ser aquático, é o próprio rio no qual ele viajou, e os seres em seu interior somente assumiram a forma humana quando emergiram na terra firme; antes disso, eram "gente peixe", espíritos na forma de ornamentos de penas. Os animais são chamados ''wai-bükürã'', "peixes maduros"; e, logicamente, entre eles estão os seres humanos, seres que estão a meio-caminho entre os "peixes-espíritos" que eram antes e os "espíritos-pássaros" que se tornarão.
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A história do ancestral-Anaconda é uma narrativa sagrada sobre os primórdios e, provavelmente, uma versão das migrações históricas dos povos Tukano. Também pode ser entendida como uma história sobre a ecologia, sobre as migrações anuais rio acima de peixes amazônicos que vêm desovar nas cabeceiras; e uma história sobre a reprodução humana, que também envolve uma penetração ascendente, no sentido "Leste-Oeste", rumo a uma "porta da água", num fluxo ascendente de sêmen, e uma passagem do mundo aquático do ventre para o mundo seco da existência humana na terra. Não é de se admirar então que "nascer" é ''hoe-hea'' (em barasana), que significa "atravessar rumo a um nível mais alto". Mas o nascimento também envolve um movimento de descida pelo canal do corpo feminino - cosmologicamente um movimento do Oeste para o Leste e, em termos sociais, um movimento da mãe para o pai ou das mulheres para os homens.
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Para entender esses movimentos, porém, é preciso começar pela morte. Alguns índios do Uaupés, os Kubeo em particular, encenam rituais elaborados de luto em que dançarinos com máscaras pintadas e feitas de casca de árvore se tornam peixes, animais, e outros seres da floresta para dar boas-vindas à alma do morto no mundo dos espíritos. Mas o enterro tukano em si é um evento simples: a cova é o chão da maloca e o caixão uma canoa cortada ao meio. Esse sepultamento simples é o prelúdio para um futuro nascimento.
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Os tukano compartilham uma noção de reencarnação segundo a qual, quando uma pessoa morre, um aspecto de sua alma volta para a "casa de transformação", local de origem do grupo. Depois, a alma volta ao mundo dos vivos encarnada em um recém-nascido que recebe o seu nome. As pessoas recebem o nome de um parente recentemente falecido do lado paterno, o avô paterno para um menino ou a avó paterna para uma menina. Cada grupo possui um conjunto limitado de nomes pessoais que vão sendo retransmitidos a cada geração. O aspecto visível dessas "almas-nomes" são os cocares de penas usados pelos dançarinos, que também são enterrados com os mortos. O rio do "mundo inferior" é descrito como repleto de ornamentos, assim como na história de origem os espíritos dentro da canoa-Anaconda tiveram a forma de ornamentos de dança.
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Sepultadas em canoas, as almas dos mortos caem para o rio do "mundo inferior". De lá, são levadas pela correnteza do rio subterrâneo para o Oeste e às regiões rio acima deste mundo. As mulheres não dão à luz na maloca, mas numa roça no interior da floresta, rio acima e atrás da casa - também ao Oeste. O recém-nascido é primeiramente lavado no rio e depois levado para dentro da maloca pela porta traseira, a "porta das mulheres". Confinado dentro da casa por cerca de uma semana com seu pai e mãe, ele é então banhado de novo no rio e recebe um nome. Assim, em termos cosmológicos, os bebês de fato vêm das mulheres, da água, do Oeste.
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Stephen Hugh-Jones|Stephen Hugh-Jones]]. -->
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== Pessoas, animais e objetos ==
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Um componente crucial das idéias religiosas tukano são as relações entre os seres humanos, os animais e a floresta.
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|Índio Tukano no Rio Uaupés. Foto: Acervo Museu do ìndio, 1928.
Masa (em barasana), a palavra para "gente", é um conceito relativo. Pode se referir a um grupo em contraposição a outro, a todos os tukano em contraste a seus vizinhos, a índios ''versus ''brancos, a seres humanos ''versus ''animais e, finalmente, a coisas vivas, inclusive árvores, ''versus ''objetos inanimados. Em discursos míticos e xamânicos, os animais são gente e habitam mundos aparentemente semelhantes ao mundo dos seres humanos: vivem em comunidades organizadas em malocas, plantam roças, caçam e pescam, bebem caxiri, usam ornamentos, participam de festas inter-comunitárias e tocam seus próprios Yurupari (flautas sagradas que representam os primeiros ancestrais).
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Todas as criaturas que podem ver e ouvir, que se comunicam com os do seu grupo e que agem intencionalmente são "gente" - mas gente de espécies diferentes. São diferentes porque têm corpos, costumes e comportamentos diferentes e vêem as coisas de perspectivas corporais distintas. Assim como as estrelas vêem os humanos como espíritos mortos, os animais vêem themselves as humans and see os humanos como animais. Aos olhos do urubu, quando os humanos vão pescar, eles pescam cadáveres apodrecendo e fisgam tapuru (conhecido como "bicho de pau"); aos olhos do jaguar, os humanos são predadores perigosos que bebem sangue como se fosse caxiri; para os peixes, para quem a água é seu "ar", é impressionante que os humanos não saibam respirar "debaixo da água". Os humanos, por sua vez, logicamente vêem as coisas de outra perspectiva.
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|Índios Bara no Alto Papuri. Foto: Jean Jackson, 1969.
Se o denominador comum de todas essas "gentes" é a sua subjetividade e para elas, na condição de sujeitos, seu próprio modo de vida é aquele da cultura humana, as diferenças entre tais "gentes" repousam em seus diferentes corpos: em sua forma, cor, sons, hábitos corporais e dieta.
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Essas diferenças estão culturalmente representadas em diferentes gêneros alimentícios de uso ritual, tais como coca, tabaco e a ayahuasca, bem como tintas corporais distintas, ornamentos e roupas, ou como diferentes armas e equipamento ritual. Os índios se referem a todos esses itens como ''küni-oka'', "armas ou escudos", idéia que faz lembrar os uniformes de exército com seus brasões - ao mesmo tempo identidade, vestimenta e arma de defesa. Nessa lógica, as diferenças entre os grupos humanos são representadas como naturais e inerentes. Conceitualmente, os vários grupos tukano constituem tantas "espécies" diferentes quanto as múltiplas espécies animais são "povos" diferentes.
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Na vida cotidiana, as pessoas enfatizam sua diferença dos animais, mas no mundo dos espíritos, ao qual se tem acesso pelos rituais, pelo xamanismo, pelos sonhos e pelas visões de ayahuasca, as perspectivas se fundem, as diferenças são abolidas, o passado é presente, e pessoas e animais voltam a ser um. Isto tem importantes repercussões práticas, pois, onde os animais são pessoas, caçá-los e ingerir sua carne é equivalente à guerra e canibalismo. Muitas doenças são assim diagnosticadas como a vingança dos animais que os humanos matam e comem. O risco advindo dos animais é proporcional a seu tamanho e habitat: as antas são mais perigosas do que os macacos, os animais terrestres são mais perigosos do que os peixes, e peixes grandes mais perigosos do que os pequenos.
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O perigo também está relacionado ao contato com o domínio metafísico. Um nascimento neste mundo provoca ressentimento entre os espíritos-animais - para eles, representa uma morte. Os bebês humanos, recém-migrantes do mundo dos espíritos, não estão ainda firmemente ancorados a seus corpos e, portanto, precisam ser protegidos das antas ciumentas que ameaçam ingeri-los através de seus ânus - um nascimento ao avesso. Enquanto visitantes do mundo dos espíritos, as mulheres menstruadas e os homens que tomam parte nos rituais ganham temporariamente ''status ''de criança e devem restringir sua dieta, evitando alimentos perigosos. Para cozinhar o peixe ou a carne com segurança, um xamã deve primeiro soprar encantações para remover os seus "escudos de proteção" ou "armas" (tintas, peles, dentes, espinhos, escamas e outros atributos corporais identificados aos animais ou peixes) que podem comprometer a identidade especificamente humana do consumidor.
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As qualidades de personificação, subjetividade e intencionalidade que os índios aplicam aos animais e os peixes também se estendem ao cosmos como um todo. Os mitos dos povos do Uaupés também são mitos sobre a paisagem, cujos traços distintivos - as serras e montanhas, os rios, as rochas e cachoeiras -, têm nomes que evocam as histórias de sua criação ancestral. Viajar por terra ou canoa é seguir essas histórias e compartilhar os atos de criação descritos por elas. Muitas histórias contam sobre as antigas migrações, atribuindo à paisagem uma dupla dimensão - a dos atos primordiais de criação e a dos atos mais recentes, como a construção de casas e abertura de roças.
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Os poderes de criação ancestral incutidos na paisagem se estendem às plantas, peixes, animais e seres humanos que a habitam e também aos objetos confeccionados a partir dos materiais que dela provêm. Nos mitos, os objetos cotidianos tais como canoas, bancos, cestos e potes, emergem como seres animados e autônomos - como visto, do mesmo modo que os animais podem ser gente, as malocas podem ser os corpos dos ancestrais ou daqueles que as construíram. Os objetos confeccionados condensam dois tipos de potência: os poderes de sua matéria-prima e as habilidades e intenções de seus fabricantes. Conseqüentemente, o processo de fabricação dos objetos tem uma importante dimensão religiosa. Durante os ritos de iniciação, os homens e mulheres jovens são sistematicamente treinados na confecção de artesanato, um treinamento que é a um só tempo intelectual, espiritual e técnico. Fazer artesanato é concomitantemente confeccionar a si mesmo e o mundo, numa forma de meditação que traz à tona as interconexões entre objetos, corpos, casas, e o universo.
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)|Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)]]. -->
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== Especialistas religiosos ==
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Entre os Tukano, a religião não é concebida como um domínio discreto, mas sim como uma dimensão de todo conhecimento, experiência e prática. Isso também se explica porque a vida numa paisagem impregnada de poderes ancestrais e onde a vida cotidiana tem uma dimensão extraordinária e metafísica é potencialmente perigosa. Para sobreviver e prosperar, bem como assegurar o bem-estar de si e de sua família, todos os adultos precisam de alguma habilidade para manejar e controlar as forças de criação e destruição que os cercam. Os conhecimentos técnicos e metafísicos não possuem fronteiras precisas. Os homens adultos devem conhecer tanto os recursos naturais do território quanto suas propriedades espirituais, combinando afazeres rotineiros com procedimentos rituais, com competência tanto para caçar e pescar quanto para fazer encantações para que a carne e o peixe possam ser comidos com segurança. De modo semelhante, as mulheres, "mães da alimentação" cujos tubérculos de mandioca são "filhos", devem controlar a esfera material e espiritual de produção e reprodução de suas roças, cozinhas e corpos, como uma totalidade integrada.
Na Amazônia, freqüentemente se referem aos especialistas rituais com poderes especiais e acesso a conhecimentos esotéricos como "xamãs", rótulo que pode tanto confundir como revelar. Como indicado, para agir com êxito todos os homens adultos devem ser em alguma medida xamãs. Aqueles que são reconhecidos publicamente como tal têm maior conhecimento ritual e uma habilidade especial para "ler" o que está por trás das narrativas sagradas, optando por desenvolver habilidades e conhecimento em favor dos outros, sendo reconhecidos como especialistas. Assim, os "xamãs" são aqueles que se destacam dos demais - mas sempre há outros esperando nos bastidores.
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Um segundo aspecto está relacionado ao gênero. Com raras exceções, os especialistas rituais são homens - mas a capacidade das mulheres de menstruar e gerar filhos é considerada como o equivalente feminino ao poder dos homens sobre os ornamentos de penas e os ''Yurupari''. Assim, é possível dizer que se os homens adquiram as suas habilidades xamânicas através da cultura, as mulheres já são "xamãs" por natureza. Não é de se admirar então que, na mitologia tukano, o Povo do Universo, os heróis ancestrais que abrem o caminho para a criação da humanidade, sejam gerados por uma divindade feminina que os Barasana chamam de ''Romi Kumu'' ou "Mulher Xamã"; conhecida como "A Velha da Terra" (''Ye'pa Büküo, Yeba Büro'') em Tukano e Desana.
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Finalmente, o rótulo "xamã" nubla uma distinção importante entre dois especialistas rituais, os ''yai ''e os ''kumu''. Os ''yai ''correspondem ao xamã típico da Amazônia ou o pajé. Suas principais tarefas envolvem lidar com as pessoas e o mundo dos animais e da floresta. Ele desempenha um papel importante na caça por soltar os espíritos dos animais das suas casas nas serras, atividade potencialmente perigosa, que pode demandar compensações no mundo humano como a conversão da vida em morte. O pajé é um especialista na cura de moléstias causadas pela feitiçaria de criaturas vingativas e seres humanos ciumentos, doenças que tipicamente se manifestam como espinhos, cabelo, e outros objetos alojados no corpo. A cura se dá jogando água sobre o corpo do paciente ou soprando-lhe fumaça de tabaco e depois manipulando-o com as mãos, mas sempre envolvendo a sucção de objetos ou substâncias do corpo do paciente.
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''Yai ''significa "jaguar", termo que dá alguma indicação do status do pajé na sociedade tukano. O Jaguar é um animal poderoso e potencialmente perigoso, assim como aqueles que têm poder e conhecimento para agir contra a feitiçaria podem também praticá-la. Um pajé é considerado "bom" ou "mal" dependendo se ele é um parente ou vizinho de confiança. O termo ''yai ''também tem conotação de selvageria e descontrole, que alude à posição marginal de muitos pajés e ao caráter individual e idiossincrático de seus poderes, freqüentemente associados ao uso de alucinógenos.
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Embora tanto o ''yai ''como o ''kumu ''sejam especialistas, o ''kumu ''é mais um sábio e sacerdote do que propriamente um xamã. Seus poderes e autoridade são baseados no conhecimento exaustivo da mitologia e dos procedimentos rituais, resultado de anos de treinamento e prática. Conseqüentemente, aqueles que são reconhecidos como ''kumu ''geralmente são homens mais velhos, cujos pais ou tios paternos muitas vezes tinham o mesmo status.
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Como homem experiente e sábio, o ''kumu ''comumente é também um líder político de sua comunidade e com autoridade considerável sobre uma área mais ampla. Comparados ao yai, figura por vezes moralmente ambígua, o ''kumu ''goza de um status mais alto e um maior grau de confiança, fundamentada em seu papel ritual proeminente.
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O ''kumu ''desempenha um papel importante na prevenção de doenças e infortúnio. Ele é um especialista na arte de soprar encantações sobre a carne de peixe e animais para converter a sua substância em uma forma similar ao vegetal. Tem papel proeminente nos ritos de passagem, realiza as principais cerimônias por ocasião do nascimento, iniciação e morte, transições que asseguram a socialização do indivíduo e a passagem das gerações, assim como ordena as relações entre os ancestrais e seus descendentes vivos. É o ''kumu ''que nomeia os bebês recém-nascidos e é ele que conduz os ritos de iniciação, públicos e coletivos, para os jovens e os ritos mais individuais e privados realizados quando moças atingem a idade de puberdade. Tais transições envolvem um contato necessário e potencialmente benéfico entre os vivos, os espíritos e os mortos. Esse contato pode ser perigoso e é o ''kumu ''que assume a responsabilidade de proteger as pessoas. Para aqueles que gozaram da proteção de um ''kumu ''durante o seu nascimento ou iniciação, ele é seu guu ou "tartaruga", em alusão à carapaça dura e protetora desse animal.
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A outra importante função do ''kumu ''é presidir as festas de dança, as festas de caxiri e intercâmbios cerimoniais, e de conduzir e supervisionar os rituais em que se tocam os instrumentos de ''Yurupari'', rituais que envolvem um contato direto com os ancestrais mortos. Aqueles que participam desses rituais colocam as suas vidas nas mãos do ''kumu ''e é somente os mais sabidos e respeitados que são encarregados desse papel. Do mesmo modo, patrocinar tais rituais significa reivindicar reconhecimento como ''kumu''.
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Como "gente" e parte integrante de um cosmo vivo, os seres humanos, os animais, as plantas e os peixes participam de um mesmo sistema, que é engajado e revitalizado durante os rituais de ''Yurupari''. Esses rituais fomentam a reprodução das plantas e dos animais, asseguram o ordenamento normal das estações e a fertilidade contínua da natureza. Ao supervisionar e promover esses rituais, os ''kumus'' mais importantes chegam a incorporar os poderes e identidades de Yeba Hakü, o "Pai do Universo", de ''Romi Kumu'', "''Kumu ''Mulher" e de ''Yurupari'', fonte e espírito da vida vegetal. Como mestres do ritual, eles mesmos se tornam criadores.
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Stephen Hugh-Jones|Stephen Hugh-Jones]]. -->
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== Ritual ==
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O ciclo anual é pontuado por uma série de festas coletivas, cada uma com seus cantos, danças e instrumentos musicais apropriados, que marcam eventos importantes do mundo humano e natural - nascimentos, iniciações, casamentos e mortes, a derrubada e o plantio de roças e a construção de casas, as migrações dos peixes e pássaros, e a disponibilidade de frutas silvestres e outros alimentos colhidos. Essas assembléias rituais são denominadas "casas", termo que significa ao mesmo tempo um evento ritual, um grupo de pessoas e um mundo simbólico.
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|Índios Tukano. Foto: Curt Nimuendaju, década de 1930.
As festas assumem três formas básicas: caxiris (festas de cerveja), dabukuris ou intercâmbio cerimonial, e os ritos de ''Yurupari ''envolvendo flautas e trombetes sagrados. Os caxiris são fundamentalmente ocasiões sociais quando uma comunidade convida os seus vizinhos a dançar e beber caxiri, às vezes como um agradecimento pela sua ajuda na abertura de uma roça ou na construção de uma casa nova, às vezes para marcar a nomeação de uma criança, o casamento de uma mulher, ou a etapa final de iniciação dos meninos, e às vezes somente por divertimento e reforço dos laços sociais. Os convidados são os principais dançarinos, e em troca de suas danças, os anfitriões lhes oferecem grandes quantidades de caxiri preparado pelas suas mulheres.
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Com cocares de penas e outros ornamentos, os dançarinos dançam a noite inteira em volta do recipiente (cuja forma é semelhante a uma canoa) de caxiri, que constitui o foco central da celebração; é uma questão de honra que todo o caxiri seja consumido antes dos visitantes partirem pela manhã. Há dois tipos de danças, ou relativamente lentas, no caso de danças formais em que os homens se dispõem em uma linha entrecruzada por mulheres, ou danças mais rápidas e menos formais em que cada dançarino dança sozinho, tocando um conjunto de flautas de pã como parte de um coro, e competindo com os outros para atrair a parceira de sua escolha. Entre essas sessões de dança, os anfitriões e convidados se sentam frente a frente e trocam presentes como coca e charutos, enquanto recitam as suas genealogias em cânticos coletivos conduzidos por um especialista. O kumu se senta à parte, soprando encantações sobre cuias de coca, tabaco e ayahuasca; então as oferece aos participantes para protegê-los e permitir aos dançarinos que vejam e experimentem em suas danças as viagens dos primeiros ancestrais e os eventos míticos que os seus cantos e cântico relatam.
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|Dabukuri entre os tukano. Foto: Renato Aguirre, 1988.
Os caxiris podem envolver comunidades de irmãos e cunhados, já os dabukuris são, sobretudo, ocasiões que celebram e reforçam os laços de matrimônio e afinidade. As dádivas são dadas em nome de um homem para seu cunhado ou sogro: no mito barasana da origem do dabukuri, cujos personagens são Yeba Yamira (ver item "Aspectos cosmológicos"), a dádiva era do Yeba para seu sogro Anaconda Peixe. O ritual começa com a chegada dos convidados ao anoitecer. Tratados como estranhos e inimigos potenciais pelos seus anfitriões, eles não entram na maloca, dançando e cantando por iniciativa própria do lado de fora. De manhã, eles desfilam dentro da maloca vestidos com elegância e soprando trombetes de cerâmica ou embaúba. Apresentam suas dádivas aos seus anfitriões e então iniciam uma dança que continuará o dia inteiro e a noite também. Os anfitriões se mantém distantes, continuam lhes servindo caxiri, mas enquanto o dia vai se passando, eles se misturam cada vez mais com os convidados, dançando e cantando junto com eles, quebrando assim as barreiras que foram estabelecidas, de forma dramática, no começo do ritual. Pela manhã, quando a dança termina, convidados e anfitriões comem em uma enorme refeição comunal, como se fossem uma comunidade única e integrada.
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Esses intercâmbios têm uma dupla lógica e movimento: a curto prazo, os convidados dançam e oferecem peixe ou carne em troca do caxiri fornecido pelos anfitriões; a longo prazo, as comunidades trocam um tipo de produto por outro - peixe por carne ou carne por peixe - e alternam os papéis de anfitrião e convidado. Ambos os casos estão relacionados a matrimônio, o primeiro refletindo a troca de carne ou peixe por produtos de mandioca (o beiju e o caxiri) entre marido e mulher; o segundo refletindo a troca de diferentes tipos de mulheres entre os grupos ligados por inter-casamentos. Em termos cosmológicos, essas trocas estão intimamente ligadas aos ciclos de procriação e à disponibilidade sazonal de espécies de peixes e animais. As danças remetem não apenas às dramatizações e movimentos relativos a peixes e pássaros migrantes, como garantem a fertilidade continuada da natureza e a disponibilidade de espécies das quais dependem.
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|Dabukuri entre os tukano. Foto: Renato Aguirre, 1988.
Os rituais envolvendo os instrumentos musicais sagrados de ''Yurupari ''são a expressão mais plena da vida religiosa dos índios, pois englobam e sintetizam vários temas-chave: ancestralidade, descendência e identidade grupal, sexo e reprodução, relações entre homens e mulheres, crescimento e amadurecimento, morte, regeneração e integração do ciclo de vida humano com o tempo cósmico. Em relação de complementariedade com os dabukuris, esses rituais são concernentes à identidade masculina e às relações intra-grupais em oposição ao casamento e às relações inter-grupais; do mesmo modo, dizem respeito à fertilidade das árvores e plantas em oposição aos ciclos de vida dos animais.
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As flautas e os trombetes de tronco de palmeira pertencentes a cada grupo são uma entidade ao mesmo tempo única e múltipla: o ancestral do grupo e seus ossos aos pares, que são também seus filhos; e os ancestrais dos clãs componentes do grupo. Quando os instrumentos estão juntos e são tocados, o ancestral volta à vida, de modo que aqueles que os tocam assumem as identidades dos ancestrais clânicos e entram em contato direto com seus respectivos pais (originários). Esse processo anula a separação vigente entre passado e presente, mortos e vivos, ancestrais e descendentes, restabelecendo a ordem primordial dos mitos de origem. Os ritos normalmente envolvem um clã ou o segmento de um clã, que age como um grupo isolado e assim pode estabelecer a sua identidade enquanto unidade coletiva indiferenciada em contraposição ao mundo de fora, mas segmentada internamente por uma hierarquia ordenada.
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Os instrumentos ''Yurupari ''somente podem ser vistos e manuseados pelos homens adultos. De acordo com os mitos, originalmente eram as mulheres quem possuíram as flautas enquanto os homens se encarregavam do processamento da mandioca e outras tarefas femininas. Os mitos acrescentam outro detalhe importante: quando as mulheres tinham a posse das flautas, os homens menstruavam e, quando tiraram as flautas delas, fizeram com que as mulheres menstruassem. Esses mitos, e os rituais que os dramatizam, podem ser entendidos como um discurso complexo e ambíguo sobre os respectivos poderes e capacidades de homens e mulheres, tal como aquele que se refere aos poderes xamânicos femininos, já mencionados. Isso implica que os órgãos reprodutivos e as capacidades reprodutivas complementares de homens e mulheres, isto é: as suas "flautas", são simultaneamente idênticas e opostas, iguais e desiguais, invertidas e equivalentes.
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|Índios Bara no Alto Papuri. Foto: Jean Jackson, 1969.
Há dois tipos de ritual de ''Yurupari'', um evento anual mais sacralizado e elaborado que marca o começo do ano, e o outro realizado periodicamente durante o ano para marcar a maturação de diferentes espécies de frutos de árvores. No segundo, os homens de uma comunidade presenteiam os de uma outra - geralmente os seus irmãos - com grandes quantidades de frutos silvestres, trazendo-os para o interior da casa acompanhados dos sons berrantes dos trombetes enquanto as mulheres e crianças permanecem atrás de telas nos fundos. Ao anoitecer, as telas são removidas e as mulheres voltam a se juntar aos homens. Eles dançam a noite inteira até amanhecer e então distribuem os frutos entre os presentes.Os mais grandiosos ritos de ''Yurupari'', quando instrumentos diferentes e mais sacralizados são tocados, estão vinculados aos movimentos do sol e da constelação de Plêiades, realizando-se no final do verão e começo da estação chuvosa, que é a época em que abundam os frutos do mato. Eles elaboram ainda mais os temas de crescimento, maturação e periodicidade, bem como a integração entre os ciclos temporais humanos e cósmicos, mas aqui o enfoque imediato está no crescimento e amadurecimento de jovens que passam por um processo de iniciação que os conduz a sua integração como adultos no grupo.
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No começo do ritual, os meninos são apartados de suas mães e trazidos para a extremidade masculina da casa, longe da vista das suas mães, que são confinadas na parte traseira. Sob o cuidado de guardiões rituais e um kumu oficiante, recebem ayahuasca para beber e são-lhes mostrados os instrumentos ''Yurupari ''pela primeira vez, enquanto eles ficam sentados imóveis e agachados como fetos no chão. À medida que os instrumentos são tocados sobre as suas cabeças, corpos e genitais, os rapazes são chicoteados pelos kumu nos seus corpos e pernas, ações que transmitem a vitalidade e as forças espirituais dos ancestrais e fazem com que os meninos cresçam resistentes, fortes e viris. Os homens dão então um banho nos meninos junto com os instrumentos no rio, despejando água das flautas sobre as cabeças dos iniciados. Essa ação alude ao ancestral Anaconda vomitando as primeiras pessoas da sua boca - e também ao primeiro banho dos bebês depois de nascer, como descrito anteriormente. Mas dessa vez o nascimento é um renascimento orquestrado pelos homens mais velhos e, como o ancestral Anaconda que entrou no mundo através da "porta da água" no Leste, os iniciandos renascidos agora entram na casa pela porta dos homens. No final do ritual, os iniciandos permanecem em reclusão por um mês em um compartimento especial longe da vista das mulheres. Rigidamente supervisionados pelo kumu, eles tomam banho todos os dias, observam uma dieta rigorosa e aprendem a fazer cestos. A reclusão termina com uma grande dança. Como sinal de que estão prontos para se tornarem maridos e pais, os iniciandos presenteiam com os seus cestos as suas parceiras femininas, que pintam os corpos deles com tinta vermelha em retribuição.
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Como muitos ritos de iniciação, este é repleto de símbolos de morte, renascimento e regeneração. No começo do ritual, os meninos são pintados de preto e ritualmente "mortos" com doses de rapé de tabaco; após seu renascimento no rio, são mantidos em reclusão como bebês recém-nascidos, então emergem para serem pintados de vermelho. No mito associado ao ritual, ''Yurupari'', na forma de anaconda, engole os iniciandos, os digere dentro de sua barriga (cujo equivalente no ritual é o período de reclusão), então os devolve a seus pais, vomitando-os como ossos. Para puni-lo, os pais incendeiam ''Yurupari ''para que ele morra. Mas ele não morre: sua alma sobe ao céu e de suas cinzas nasce uma palmeira, protótipo das frutas da floresta e matéria-prima dos instrumentos ''Yurupari''.
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Como na agricultura de coivara, na qual a fertilidade e a vida humana vêm da queima anual da floresta, esse conjunto de mito e ritual significa que vida e morte se sucedem como as estações, que os humanos mortais alcançam a imortalidade através de seus filhos, que a periodicidade das mulheres é como a das estações, que o crescimento dos homens e das árvores resultam de um único processo, e que, no final das contas, a fertilidade dos seres humanos e do cosmos estão interligadas em um grande sistema. Ao expandir a maloca a proporções cósmicas, ao abolir as separações entre os seres humanos e o mundo dos espíritos, e ao articular as capacidades reprodutivas de homens e mulheres, os rituais de ''Yurupari ''englobam e colocam em movimento boa parte da cosmologia acima esboçada.
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== Missionários, colonos e a modernidade ==
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A história de contato dos povos do Uaupés com os não indígenas é muita antiga, bem anterior ao grande auge da borracha na virada do século XX, remetendo às incursões maciças dos portugueses em busca de escravos na primeira metade do século XVIII. Embora o impacto desses raptores e o contato traumático e duradouro com os seringalistas, esses comerciantes estavam mais interessados nos corpos dos índios do que nas suas almas; em termos religiosos, e talvez em termos sociais também, foram os missionários que provocaram as maiores transformações.
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A penetração efetiva dos missionários começou ao final do século XIX, com a chegada dos Franciscanos. Estes, e os Salesianos que os seguiram, viram a cultura dos povos do Uaupés através das lentes de suas próprias categorias religiosas: as malocas dos índios eram consideradas "antros licenciosos e promíscuos", as suas festas de dança ocasiões de "indecência e embriaguez", os pajés eram "charlatões" que aliciavam o povo, e o culto de ''Yurupari ''nada mais era do que o "culto ao Diabo" em pessoa. Sem conhecer e sem a mínima intenção de saber o quê essas coisas realmente significavam, os missionários começaram a destruir uma civilização em nome de outra, queimando as malocas dos índios, destruindo os seus ornamentos de penas, quebrando seus recipientes de caxiri, perseguindo os pajés e expondo os ''Yurupari ''às mulheres e crianças reunidas na igreja.
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Enquanto os padres atacavam os fundamentos da cultura indígena, transformaram as suas sociedades, encurralando as pessoas em vilas com casas rigidamente ordenadas, uma para cada família, e removendo à força seus filhos para serem educados nas escolas ou internatos. Sob o regime estrito dos internatos, as crianças foram ensinadas a rejeitar os valores e os modos de vida dos seus pais, incentivadas a casar-se dentro de seus próprios grupos, e proibidas de falar as línguas que lhes conferiam identidades múltiplas e interligadas. Para os missionários, somente uma identidade importava, a identidade indígena genérica, que impedia o progresso da "civilização".
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Como reação inicial contra a exploração pelos comerciantes, as pressões dos missionários e as epidemias que dizimaram a população indígena, irrompeu uma série de movimentos milenaristas na região do Uaupés durante a segunda metade do século XIX. Vestindo-se de padres e identificando-se com Cristo e os santos, os pajés-profetas conduziram o povo na "Dança da Cruz", uma fusão dos rituais de caxiri e dabukuri tradicionais com elementos do catolicismo, que prometiam a libertação da opressão dos brancos e o alívio dos "pecados" que acreditavam ser a causa das epidemias.
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Se os missionários foram rechaçados por seus ataques contra a cultura indígena, também foram bem recebidos como fonte de bens manufaturados, como defensores dos índios contra os piores abusos dos seringalistas e como provedores da educação que as crianças indígenas precisariam para se sair bem nas novas circunstâncias. Dos anos 1920 em diante, os Salesianos estabeleceram uma cadeia de missões pela região no lado brasileiro da fronteira, alcançando o alto Tiquié no começo dos anos 40 e destruindo a última maloca nos anos 60. Hoje, a despeito do número crescente de evangélicos, a maioria dos índios do Uaupés se considera católico. Enquanto aumenta cada vez mais o número de pessoas que estão deixando suas aldeias para ir a São Gabriel em busca de educação e emprego, a vida nas malocas e a rica diversidade ritual que a acompanhava persiste agora somente na memória dos mais velhos.
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Nos povoados, um centro comunitário substituiu a maloca como foco de atividades coletivas. O centro serve ao mesmo tempo para as orações matutinas conduzidas por um Capitão e catequista, e para as refeições comunitárias, caxiris e dabukuris que marcam eventos importantes nas vidas dos aldeões: expedições de pesca, trabalho coletivo em projetos comunitários, os dias de santo do calendário católico, formaturas escolares, eventos esportivos, reuniões políticas etc. Transformações das antigas festas, esses caxiris e dabukuris de hoje em dia ainda incluem danças e bebidas - mas as danças não são mais acompanhadas pela música nativa e as flautas de pã, mas sim pelo forró e, ao invés da relativa moderação do passado, a cachaça é livremente consumida e seu freqüentemente consumo leva a discussões e brigas. Com níveis crescentes de alcoolismo, a embriaguez que os missionários imaginavam ver nas festas tradicionais hoje tem se tornado uma realidade cruel da civilização que os missionários trouxeram consigo.
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No lado colombiano, sob o regime dos Monfortianos, o policiamento e a inserção dos missionários foram muito parecidos às dos Salesianos mas, no final dos anos 50, os Monfortianos foram substituídos pelos mais liberais Javerianos. Estes eram identificados com a nova Teologia da Libertação, que pregava a tolerância com a cultura indígena e acomodação com seus valores e crenças; isto, junto com o isolamento da região, explica porque os habitantes do Pira-Paraná ainda conseguem conservar boa parte da sua religião tradicional e do seu modo de vida. No lado brasileiro, a mudança foi mais lenta, mas, depois que a os Salesianos foram denunciados no Tribunal Russell em 1980 pelo crime de etnocídio, eles finalmente começaram a adotar uma linha mais liberal e progressista.
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<!-- Seção escrita por [[Usuário:Stephen Hugh-Jones|Stephen Hugh-Jones]]. -->
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Gain Panan : e a origem da pupunheira. Dir.: Luiz Fernando Perazzo. Filme Cor , 35 mm, 9 min. e 36 seg., 1995. Prod.: Laboratório de Animação/CPM da Escola de Comunicação da UFRJ.
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Edição atual tal como às 14h26min de 11 de fevereiro de 2021
Os Waíkhana, regionalmente conhecidos como Pira-tapuya, vivem na região de fronteira entre o Brasil e a Colômbia, às margens do médio curso do rio Papuri e do baixo e médio curso do rio Uaupés. O etnônimo Waikhana significa “povo peixe” e Pira-tapuya é um apelido que ganharam após a chegada dos colonizadores: uma tradução aproximada do nome do grupo para o ‘’nheengatu’’, língua geral amazônica introduzida na região do rio Negro pelos missionários católicos entre os séculos XVIII e XIX. Eles são também chamados de Pinoã Mahsã, “gente cobra”, por outros grupos da família Tukano Oriental com os quais compartilham territórios e mantêm trocas matrimoniais e culturais.
Língua
A língua waíkhana pertence à família linguística Tukano Oriental. Todas as línguas dessa família compartilham muitas características em comum, mas aquela que tem maior proximidade com o waíkhana é a língua kotiria (wanano). Embora o número exato de falantes do waíkhana seja atualmente desconhecido, a língua é considerada em situação de ameaça (Stenzel, 2018), em razão das dinâmicas de mobilidade de famílias waíkhana entre as aldeias de origem e outras localidades no Alto e Médio Rio Negro e do uso crescente da língua tukano como língua franca na região. Assim como toda a população indígena do Uaupés brasileiro, os Waíkhana são fluentes também na língua portuguesa e os que vivem na fronteira costumam falar ainda o espanhol (na Colômbia todos são fluentes no espanhol).
Localização e População
Dividida internamente em vários segmentos ou clãs, a maior parte da população waikhana vive hoje do lado brasileiro da fronteira, atualmente cerca de 850 pessoas. O território tradicional dos Waikhana é o médio rio Papuri e afluentes, onde se concentra grande parte de suas comunidades, tanto do lado brasileiro quanto colombiano – o Papuri serve de linha de fronteira entre os dois países. Mas conforme narram os próprios waikhana, há séculos que alguns de seus subgrupos e clãs saíram do médio Papuri e se dispersaram para outras regiões do Uaupés, sobretudo seu médio e baixo curso, e mesmo pela calha do rio Negro.
As principais comunidades e sítios waikhana no Papuri são Japim (Ñohsõ Nõã), São Gabriel (Pohsaya Pitó), Teresita (povoado sede de missão católica do lado colombiano, onde se concentra a maior população waikhana do Papuri), São Francisco (Wunu Peó, já no igarapé Macucu, lado colombiano); Taracuá (Yuhku Pitó), Tucunaré (Beé Peó) e São Paulo (Sana Kohpedi, comunidade hoje esvaziada). Já entre os cursos do baixo e médio Uaupés estão Uriri (Nanasari Ñoa), Açaí-paraná, São Francisco (Mariwá), Aracú Ponta (Bo’tea Pehta, a maior comunidade waikhana no Uaupés) e Miriti. Parte dessas comunidades no Uaupés foram formadas por grupos Waikhana e Tukano e hoje congregam famílias de ambos os povos.
Nas últimas décadas, muitas famílias também migraram de suas comunidades para outras localidades, como o povoado de Iauaretê, onde hoje vive um grande número de famílias waikhana, e ainda as cidades de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro, além de diversas comunidades multiétnicas no trecho do médio rio Negro. Do mesmo modo, do lado colombiano houve uma migração intensa para a cidade de Mitu. Resulta que os Waikhana constituem hoje um grupo com grande dispersão territorial e com uma população significativa vivendo nos centros urbanos, como acontece com vários outros povos do alto rio Negro. Atualmente estão presentes em sete Terras Indígenas da parte brasileira do Noroeste Amazônico, além das cidades, onde convivem com outros povos tukano e grupos de filiação linguística aruak e maku: Alto Rio Negro, que concentra a maior parte de sua população; Balaio; Cué-Cué Marabitanas; Médio Rio Negro I; Médio Rio Negro II; Rio-Tea; e Jurubaxi-Tea.
Histórico do Contato
Com uma história de contato de quase três séculos, marcada por muita violência, exploração, escravidão, descimentos e deslocamentos forçados, intolerância e atrocidades de toda ordem, o que hoje é a região do Uaupés guarda, à primeira vista, pouco em comum com uma realidade à qual os Waíkhana costumam se referir como o “tempo dos antigos” ou o “tempo das malocas”. Tais expressões remetem a um período anterior à chegada dos brancos, ou, ao menos, anterior à chegada dos missionários salesianos, ordem religiosa que se estabeleceu no Uaupés nas primeiras décadas do século XX, especificamente na parte brasileira, e que foi responsável por algumas das transformações que afetaram de forma mais drástica o modo de vida dos povos da região.
Segundo os Waíkhana, o problema foi que os primeiros padres não conseguiram entender os costumes e o modo de vida de seus antepassados, as festas e cerimônias que seus pais e avós faziam, e assim começaram a perseguir suas tradições “como se fossem coisas do diabo”.
O antropólogo waíkhana Dorvalino Chagas (2001, p. 50) dá uma ideia da situação de temor em que se encontravam os Waíkhana no período em que os salesianos chegaram à região:
Os Waíkhana conheceram o homem branco igual a eles, mas de comportamentos diferentes, incompatíveis com seu modo de pensar. Não acatavam a maneira de viver deles. Visto como dono de vários tipos de doenças que lhes causaram o medo excessivo. Esse medo provocado é que fez os antepassados embrenharem na mata ou nas cabeceiras de igarapés para se ocultar do invasor. Pensavam que nesse esconderijo poderiam viver à vontade. Mas não foi bem assim, pois a devastação da população foram as epidemias como a bisiká (varíola) e o sarapu (sarampo)... Quando os missionários chegaram nessa terra, a partir da primeira década do século XX, pediram aos Waíkhana para morarem nas margens dos rios onde seria fácil a administração de catequese e garantia de proteção contra os não-índios”.
Além de toda a violência, exploração e desmandos cometidos pelos comerciantes, seringueiros e agentes governamentais que controlaram a região até o início do século XX, a população indígena do Uaupés também foi drasticamente afetada pelas doenças e epidemias trazidas pelos brancos. Há histórias de clãs, ou mesmo de grupos inteiros, que simplesmente desapareceram, pois foram completamente dizimados por epidemias de sarampo e varíola - mas muitos deles ainda têm seus nomes citados nas genealogias waíkhana e na relação de nomes oferecida pelos conhecedores. Neste contexto, não é de se estranhar que a chegada dos missionários salesianos tenha representado uma esperança de proteção contra a violência colonial. É por isso que os Waíkhana, assim como outros grupos do Uaupés, se resignaram em abandonar suas malocas, seus rituais, suas flautas sagradas de jurupari, suas caixas de enfeites de dança, dentre outros elementos centrais de sua vida ritual, em troca da proteção oferecida pelos padres.
A Relação com os Salesianos
Através de seu programa de civilização e catequese – implantado estrategicamente em um dos momentos mais críticos e violentos da atuação dos comerciantes e “patrões” na região – os salesianos iniciaram uma investida contra tudo aquilo que era visivelmente valorizado pelos povos da região e que constituía o cerne de sua vida ritual. Já de início queimaram quase todas as malocas que havia do lado brasileiro do Uaupés, forçando os índios a viverem em aldeias nucleadas com casas separadas para cada família. As malocas, grandes casas comunais nas quais chegavam a viver até dez famílias, representavam para os índios muito mais do que uma simples moradia. Elas constituíam o centro de sua vida ritual e o coração do grupo local.
Chamadas de “casa de dança” na maioria das línguas da região (em waíkhana se diz bahsali wu’u) e imbuídas de profundos significados mítico-cosmológicos, eram o espaço por excelência das mais importantes festas, rituais e cerimônias. Percebendo logo a centralidade das malocas para a vida ritual e espiritual nativa, os padres passaram então a combatê-las veementemente, demonizando-as (os religiosos as chamavam de “casas do diabo”) e obrigando os índios a abandoná-las em prol das moradias unifamiliares em aldeias organizadas segundo os preceitos cristãos.
Junto a isso, os missionários passaram a reprimir duramente, pela chantagem e pela força, importantes rituais até então realizados por todos os povos da região, como o ritual de iniciação masculina, em que eram utilizadas as flautas sagradas de jurupari (miniã pona, na língua waíkhana), e outras cerimônias em que se fazia o uso da bebida kahpi (produzida a partir do cipó Banisteriopsis caapi). Os mais velhos contam que em dias de festa e cerimônias os padres entravam nas aldeias virando cochos de caxiri (paidu) e potes de kahpi, destruindo cuias de ipadu (patu) e ordenando o cessar de suas danças e cantos (bahsa), os quais eram acompanhados pelo som de vários tipos de flautas e trompetes. Contam ainda que os religiosos se utilizaram de todo tipo de chantagem para obrigar os seus pais e avôs a entregarem as suas caixas de enfeites de dança (bahsa bu’sa ahkadó na língua waíkhana) e outros ornamentos e instrumentos sagrados utilizados nas festas e rituais.
Através de seus sermões, os padres demonizavam os rituais, o xamanismo e os elementos mais visíveis da cultura nativa, impondo rígidas sanções para aqueles que infringissem as novas regras e resistissem em abandonar tais práticas. Uma das estratégias consistia em negar o acesso a certas mercadorias básicas que a esta altura eram já bem conhecidas pelos indígenas, tais como fósforos, sabão e roupas. Do mesmo modo, o acesso ao batismo e aos cultos católicos; à educação escolar e aos conhecimentos que esta possibilitava – itens da sociedade branca já há muito valorizados e desejados pelos índios –; e, de modo importante, a própria garantia de proteção que os religiosos passaram a representar face à violência e atrocidades cometidas pelos comerciantes e ‘patrões da borracha’, foram também, em grande medida, “benefícios” condicionados à obediência e adequação dos índios às novas regras e valores da veiculados pelo missão.
Organização Social e Política
No contexto do Noroeste Amazônico, os Waíkhana estão inseridos em um amplo sistema regional indígena, caracterizado pela existência de uma rede de
relações e alianças interétnicas na qual estão envolvidas diversas modalidades de trocas: econômicas, rituais, matrimoniais. Na bacia do Uaupés, osWaíkhana convivem e mantém relações com vários grupos: com alguns eles trocam mulheres, como os Desana, os Tukano e os Tariano (grupo aruak); com outros eles partilham uma “irmandade mítica” que os proíbe de estabelecer trocas matrimoniais, como os Wanano e os Arapaso; e com quase todos os outros, mesmo que não haja hoje muita interação direta, eles se relacionam por meio de uma história de origem comum que os colocam enquanto “gentes” (mahsã) portadoras de uma mesma condição humana. Assim, muitos destes grupos figuram na mitologia de origem waíkhana, ocupando posições que constituem os fundamentos de suas relações atuais.
Como os demais grupos tukano, os Waíkhana são patrilineares e exogâmicos, isto é, os indivíduos pertencem ao grupo de seu pai e devem se casar com membros de outros grupos, idealmente falantes de outras línguas. Também praticam a patrilocalidade, ou seja, a esposa é quem vai viver e formar a nova família na comunidade do marido. E assim como todos os povos do Uaupés, estão divididos internamente em vários subgrupos (clãs ou sibs), hierarquizados de acordo com uma ordem de senioridade cujos fundamentos se encontram nas narrativas de origem e ocupação do território pelos primeiros ancestrais.
De acordo com membros do clã Wehetada Bahuí, que vivem no médio rio Papuri, e com as análises do antropólogo waíkhana Dorvalino Chagas (Chagas, 2001), os Waíkhana se dividem em três subgrupos mais abrangentes, a partir dos quais derivam as suas séries de clãs. Os três subgrupos, chamados Wehetada, Sõãliã e Wehetada Bahuí, são hierarquizados conforme a ordem de senioridade de seus ancestrais fundadores, os quais se originaram a partir de um ancestral comum. E essa mesma lógica se replica para a série de clãs internas a cada subgrupo e para linhas agnáticas dentro do próprio clã. O primeiro clã de cada subgrupo é chamado de “cabeça”, “chefe” (puhtoro), enquanto os últimos são reconhecidos como antigos “servidores” (peona) do clã de chefes. Os Waíkhana dizem que a relação entre chefes e servidores envolvia respeito e apoio mútuo e os últimos eram os auxiliares dos chefes nos trabalhos das malocas, especialmente na preparação de grandes festas e rituais. Dentre os clãs waíkhanas listados estão: Wehetada, Waikhun (ou Pou), Ñali Pedó, Diami (também chamado de Uhpó, Wayokali ou Shunkumpuã), Manu Kanabudu, Buhkuda, Ñehkantudu, Komepahka, Kãino, Duhkudu, Sõãliã Poné, Wehetada Bahuí, Ñehkantudu Yepupé, Manu Yuhkuphin, Manu Uhashutú, Yehepoali, Bi’kudua, Padakodoa, Ñapa e Poedoa. Mas vale ressaltar que entre os Waíkhana parece haver diferentes formas de apresentar o sistema de clãs, as quais variam conforme o grau de conhecimento do narrador, mas também de sua própria posição dentro desse sistema. Membros de clãs maiores dos Wehetada, por exemplo, parecem levar menos em conta a divisão dos subgrupos e enfatizar uma classificação mais linear dos clãs.
Conforme contam os mais velhos, no tempo das malocas, os laços agnáticos e o sistema de senioridade eram princípios mais estruturantes das relações sociais, do sistema de prestígio e da posição de chefia no âmbito dos grupos locais do que se verifica hoje. O chefe da maloca era também o irmão maior, o “cabeça” do clã, quem detinha a prerrogativa da chefia. Do mesmo modo, através de seu espírito agregador e de sua capacidade retórica, era ele quem zelava pela união e pela harmonia do grupo (formado idealmente por um conjunto de irmãos, suas mulheres e filhos), organizando festas e trabalhos coletivos e incitando as pessoas a viverem bem e com respeito para com os parentes e cunhados.
Com a implementação do modelo de comunidade proposto pelos missionários
em meados da década de 1960, as chamadas “Comunidades Eclesiais de Base”, um novo modo de organização sociopolítica passou a vigorar nos povoados indígenas, o qual teve como pedra de toque a instituição de um sistema de cargos comunitários eletivos e rotativos: os postos de “capitão” e de “vice-capitão”, escolhidos por votação, além dos cargos de “animador” e “catequista”. Com isso, novos padrões de relações sociais começaram a se sobrepor às formas tradicionais de organização sociopolítica, assim como estes novos papéis sociais – que hoje incluem também, conforme sugeriu Lasmar (2005, p. 91), os cargos de professor e agente de saúde –, passaram a constituir uma via alternativa para a obtenção de influência e prestígio.
Mas apesar da ideia de comunidade ter sido introduzida pelos missionários, os princípios éticos, políticos e estéticos que os Waíkhana, especialmente os mais velhos, parecem ter em mente quando se referem à noção, remetem ao tempo das malocas e à noção nativa de mahka, palavra waíkhana que designa os sítios habitados e cujos significados transcendem o conceito de comunidade hoje utilizado. Aqui o ideal da agnação e o idioma da senioridade, (ao lado dos princípios da reciprocidade e da aliança), continuam sendo fatores relevantes na política local. Em muitos casos, estes constituem ainda princípios estruturantes do ethos comunitário que informa a vida social, cujos valores são aqueles mesmos que os missionários tentaram neutralizar com a introdução do modelo de comunidade. Em muitas delas, os cargos comunitários foram apropriados e ressignificados pelo próprio sistema tradicional; onde isto não se verifica, o “cabeça” do clã, como os waíkhana costumam chamar aquele que se situa no topo da hierarquia de senioridade, continua sendo reconhecido e respeitado como o “chefe tradicional” e, muitas vezes também, como o “guia” espiritual (kumu) do grupo.
No contexto atual, marcado por um esvaziamento das comunidades em
decorrência da migração de muitas famílias para os centros urbanos, os que ficaram parecem mesmo se esforçar para que o elo existente entre os membros do grupo agnático continue vivo. Aliás, muitos dizem hoje que, com todas as transformações ocorridas na região desde a chegada dos brancos, é preciso um esforço constante para que aquilo que restou da vida, dos ensinamentos e da riqueza deixada pelos “antigos” não tenha o mesmo destino que tiveram muitos daqueles componentes mais valiosos e visíveis da “cultura” - alvos privilegiados da repressão missionária.
Cosmologia e Mitologia
Os Waíkhana, assim como a grande maioria dos povos tukano, reconhecem que os seus primeiros ancestrais surgiram no extremo leste da terra, num local chamado Ahpenkõ Taro, Lago de Leite, ao lado dos ancestrais Tukano e Desana. Criados por Uhpó Kõãkhun, Deus Trovão ou Avô do Universo, a partir de resíduos encontrados nos diferentes domínios do cosmos, estes primeiros ancestrais, que no início eram wai mahsã (gente peixe) e não propriamente humanos, chegaram ao Uaupés depois de uma longa viagem subaquática a bordo de uma cobra-canoa, denominada pamulin yuhkusoa, “canoa de transformação.
Constituindo, ao mesmo tempo, uma passagem entre distintas dimensões espaço-temporais, ou entre distintos níveis cósmicos, a viagem ancestral do Lago de Leite até as cabeceiras do Uaupés e afluentes, região considerada como o centro do mundo, representa também um longo processo de transformação e desenvolvimento a partir do qual estes primeiros seres ancestrais puderam finalmente alcançar a forma humana. Por isso, eles mesmos ganharam o nome de Pamulin Mahsã, “Gente da Transformação”, aqueles que passaram pelo processo de humanização.
Ao longo da extensa viagem, os ancestrais pararam em diversos locais que são hoje reconhecidos como “casas de transformação”: locais onde obtiveram uma série de artefatos, capacidades e conhecimentos necessários para a sua transformação em seres humanos e para a vida de seus futuros descendentes. Dentre estas aquisições encontram-se aqueles bens materiais e imateriais, tais como ornamentos de dança, objetos cerimoniais, substâncias rituais, rezas xamânicas, cantos, danças, nomes, a língua e as próprias falas que contam a história desta saga ancestral.
Transmitida agnaticamente através das gerações, esta riqueza (doedikhen) é o que passará a compor o patrimônio ritual de cada grupo de descendência, sendo ao mesmo tempo a manifestação e o veículo dos princípios espirituais e das potência envolvidas no processo de transformação/humanização ancestral. Por isso é que as “casas de transformação”, e as riquezas que foram nelas obtidas, são ainda hoje cruciais nos procedimentos xamânicos de constituição da pessoa e de manutenção da vitalidade do grupo, ainda que grande parte de seu aspecto visível e tangível tenha sido eclipsado com as transformações culturais do último século.
As falas que narram a origem waíkhana possuem três momentos distintos. O primeiro momento narra os passos dados pelo Avô do Universo em seu trabalho de criação e incrementação da vida (kahtiró) dos primeiros ancestrais da verdadeira humanidade. Nele encontram-se as bases para alguns dos mais importantes e vitais benzimentos (bahseye), bem como trechos ou falas essenciais para uma operacionalização mais completa e potente do benzimento da alma (hedipona bahseye, quando as crianças recém nascidas recebem seu nome ritual, que é também sua força vital).
O segundo momento remete à grande viagem de transformação dos primeiros ancestrais à bordo da cobra-canoa e é caracterizado por uma fala que refaz todo o percurso da embarcação desde o Lago de Leite até o centro do mundo (no caso dos Waíkhana, a cabeceira do igarapé Macucu, afluente do médio Papuri), passando pelas inúmeras “casas de transformação” existentes ao longo do percurso. O que os ancestrais vivenciam nessas “casas” constitui as bases para a configuração atual do mundo, informando, assim, diversos tipos de procedimentos técnicos, regras sociais e conhecimentos xamânicos hoje fundamentais para a vida das pessoas e dos coletivos waíkhana.
Já o terceiro momento da narrativa representa uma outra etapa da história ancestral, que marca o fim do que a antropóloga Christine Hugh-Jones (1979) chamou de “era pré-descendência”. Esta se inicia após a chegada dos ancestrais waíkhana à última casa, chamada de Hedi Wu’u (Casa do Suspiro) e localizada nas cabeceiras do igarapé Macucu, afluente da margem esquerda do médio Papuri (do lado colombiano). Deste ponto em diante o que vemos é a história de um tempo propriamente humano, marcada pelo crescimento dos Waíkhana enquanto um grupo de descendência exogâmico, pelas alianças matrimoniais com grupos afins e pelas segmentações internas. Do mesmo modo, as histórias dos diversos subgrupos e clãs se particularizam, permeadas por brigas, disputas por prerrogativas, rupturas, deslocamentos e migrações – as quais dão conta de explicar a atual configuração socioespacial do povo Waíkhana, isto é, o modo como os subgrupos e clãs estão hoje distribuídos pelo território. Na dissertação de Dorvalino Chagas é possível encontrar uma detalhada descrição dessas dinâmicas socioespaciais dos Waíkhana (Chagas, 2001). Veja, abaixo, como se inicia essa longa narrativa
Tempo da Criação
Texto editado a partir de versão narrada por Laureano Cordeiro e traduzida por seu irmão menor Marcelino Cordeiro, ambos Waikhana Wehetada Bahuí da comunidade São Gabriel (Pohsaya Pitó), médio Papuri. Laureano faleceu em 2020 em decorrência de complicações causadas pela Covid19
Conta-se que, antigamente, num tempo anterior ao surgimento dos primeiros
ancestrais, o mundo era uma casa, uma maloca, em cujo seio corria um rio. Esta casa, que continha todo o universo, chamava-se Tauro Wu’u (Casa da Barragem). Foi Uhpó Kõãkhun, Deus Trovão ou Avô do Universo, quem criou Tauro Wu’u através de seu pensamento. Uhpó apareceu por si mesmo na Casa de Pedra de Quartzo (Uhta Boho Wu’u) e no início era somente ele. Manifestava-se como ‘puro pensamento’ (tu’otuaye bahueye) e foi assim que fez aparecer Tauro Wu’u, a casa-universo. Aí viveram as primeiras ‘gentes’ (mahsã) criadas por ele através do sopro da fumaça do cigarro. Mas essas ‘gentes’ do início, por não terem conseguido viver de acordo com os ensinamentos de Uhpó, foram exterminadas pelo grande dilúvio que assolou Tauro Wu’u no início dos tempos. Teria sido o próprio Uhpó quem decidiu acabar com a sua primeira criação, pedindo a Se’ẽ Pinõ, uma grande cobra que podia também se transformar em pássaro, para que tampasse com o seu rabo a saída de Tauro Wu’u. Com isso, as águas que antes fluíam pela grande maloca se acumularam lá dentro, devastando toda a terra.
Com o desaparecimento de todos os seres, exceto Yairo Kõãkhun, um pássaro-pajé que sobreviveu ao dilúvio protegido sob sua cuia de bronze e pedra de quartzo, Uhpó Kõãkhun se viu novamente sozinho. E de sua morada na Casa de Pedra de Quartzo ele começou a pensar em como poderia fazer para criar uma nova geração de ‘gentes’. Decidiu que era preciso primeiro limpar e ajeitar a casa Dia Tauro, transformando-a num lugar bom e acolhedor para se viver, pois com o dilúvio muitas doenças e perigos haviam sido disseminados pelo mundo. Em seguida, resolveu mudar o nome da casa-universo para Dia Ahpenkõ 'Wu’u (Casa do Rio de Leite) e decidiu que seria este o local onde faria aparecer as novas ‘gentes’ que agora povoariam a Terra.
Com o seu pensamento, Uhpó começou então a preparar as coisas com as quais daria início à sua nova criação. A primeira coisa que ele preparou foi yuido, o suporte de cuia, que colocou com cuidado no centro do pátio de Ahpenkõ Wu’u. Em seguida fez aparecer a ‘cuia da vida’ (kahtidi wahastoa), arrumando-a delicadamente sobre o suporte.
Depois chamou (wa’metiaga) os ‘cigarros da vida’ (kahtidi munoku): o ‘cigarro de transformação’ (pamulin munoku), o ‘cigarro de leite’ (ahpenkõ munoku) e o ‘cigarro de água’ (ahkó munoku). E por fim preparou sãlinopu, a forquilha porta cigarros. Depois de arranjar estes objetos cuidadosamente, colocando cada um no seu devido lugar (os cigarros na forquilha, a forquilha na cuia e a cuia no suporte), Uhpó começou então a benzer, chamando e soprando na ‘cuia da vida’ uma série de substâncias doces, tais como o mel, o leite e o sumo de diversas frutas.
Assim, teria sido o próprio Uhpó Kõãkhun o primeiro a fazer o benzimento de
purificação. Mas diz-se que terminando de benzer a ‘cuia da vida’ com leite, mel e sumo de frutas doces, ele ainda não sabia ao certo de que forma poderia fazer para repovoar esta terra, para criar as novas ‘gentes’. Então continuou pensando e resolveu que procuraria por este mundo, pelos quatro cantos da terra, as coisas com as quais poderia criar as novas vidas. E foi procurando por todo o universo, pelos distintos domínios dos cosmos – pelo espaço, pela terra e pela água – que ele finalmente encontrou aquilo que seria o princípio da vida das novas ‘gentes’: o ‘coração’, o ‘sopro de vida’ (hedipona) dos primeiros seres que, mais tarde, se multiplicariam e povoariam a terra, dando origem aos atuais seres humanos.
A viagem de Uhpó pelas camadas do cosmos foi narrada assim pelo kumu Laureano Cordeiro e traduzida por seu irmão, Marcelino Cordeiro:
“Então Uhpó Kõãkhun se levantou e no mesmo instante o seu pensamento se elevou às alturas, chegando até a ‘casa do céu’ (u’muse wu’u), e depois baixou e correu até o leste, onde o sol nasce e para onde as águas correm (dia to’pea). Em seguida, todo o seu pensamento seguiu para a ‘casa do poente’, o oeste, onde os rios nascem e o sol se esconde (dia po’te). Por fim, baixou até o sul e na casa do sul procurou. Uhpó tateava com uma das mãos todo o universo e todos os cantos por onde o seu pensamento corria. E assim ia juntando em sua mão tudo aquilo que conseguia recolher nas casas por onde passava. Quando terminou de procurar, depositou a fina poeira que conseguiu juntar na cuia que havia benzido. E isto era o próprio ‘coração’ (hedipona), a ‘essência da vida’ dos Desana. É por isso que eles são ‘Gente do Espaço’, ‘Gente do Universo’: são os Dehkoli Mahsã, ‘Gente do Dia’. Foi Dehkoli o primeiro a surgir.
Então, vendo que sua jornada pelo universo havia dado certo, Uhpó resolveu percorrer novamente os quatro cantos da terra para tentar encontrar outras coisas com as quais poderia dar continuidade à sua criação. E mais uma vez subiu até o céu, correu para o leste, para o oeste e para o sul, mas desta vez nada encontrou. Então pensou em procurar na terra, na ‘terra de transformação’ (yepá pamulin di’ita). E procurou na terra preta (di’ita niño), procurou na terra branca (di’ita yesedó), procurou na terra vermelha (di’ita sõãno). Em todas essas terras ele procurou, buscando por todo o chão deste mundo as coisas com as quais poderia criar as novas vidas. E enquanto pensava e procurava, foi tateando a terra com uma das mãos, apanhando tudo o que conseguia alcançar. Em seguida, depositou na cuia benzida a poeira de terra que havia recolhido. Fazendo isso, Uhpó estava colhendo o ‘coração’ (hedipona), a ‘essência da vida’ de Dahseido, os Tukano. Por isso é que eles serão Yepá Mahsã, ‘Gente Terra’.
Em seguida, Uhpó se pôs mais uma vez a pensar e sentiu que faltava ainda alguma coisa. Então começou a procurar novamente por todo o universo, por todos os cantos do espaço. Subiu até o céu, correu até o leste, até o oeste e até o sul. Mas nada encontrou. Voltou então a procurar pela terra, pela ‘terra de transformação’. Procurou na terra preta, na terra branca, na terra vermelha. E mais uma vez não encontrou nada. Então decidiu descer até o rio, o rio de ‘água de transformação’ (pamulin ahkó) para continuar a sua busca. E procurou por todo o mundo das águas, tateando com uma das mãos. Tateou a foz, na casa do nascente. Depois procurou pelas cabeceiras, na casa do poente. E foi assim que conseguiu encontrar o outro ‘coração’ (hedipona), a outra ‘essência de vida’, a qual depositou na cuia benzida. Agora eram três ‘corações’, três ‘elementos de vida’ que logo ‘viriam a ser’. Foi assim que Uhpó criou os seus netos; e foi na água que ele nos encontrou: nós somos netos do Waíkhana, ‘Povo Peixe’. Por isso é que temos esse nome, por esse trabalho que fez Uhpó Kõãkhun. Mas também ali, na beira do rio de ‘água de transformação’, é que apareceu Koleinogu, o Arapaço. E é por isso que Arapaço é por nós considerado irmão menor. Mas foram somente estes que surgiram em Dia Ahpenkõ, somente estes vieram de lá. Pois muitos dos outros [das outras etnias] só apareceram em Ipanoré. Em Dia Ahpenkõ Wu’u (Casa do Rio de Leite) eram somente Dehkoli, Yepá, Waíkhana e Koleinogu, que apareceu depois”.
É, pois, de domínios específicos do cosmos que provém a “essência da vida”, o
“sopro”, ou a própria “alma” (hedipona) dos ancestrais que darão origem a cada um desses povos. E junto com este princípio vital aparecem também os seus nomes. Esses nomes, que serão posteriormente transmitidos aos seus descendentes, carregarão com eles a “potência de vida” (kahtiró) desses primeiros ancestrais e todo o poder criativo dos domínios de onde eles provêm. Pois é da água que os Waíkhana tiram sua força, assim como os Tukano (Yepá Mahsã) a tiram da terra e os Desana (Dehkoli Mahsã) do ar e dos raios de sol. O ancestral Desana terá a capacidade de voar, de viajar pelo ar e pousar nos topos de árvores e montanhas e o ancestral Waíkhana terá a habilidade e a força necessária para comandar a futura viagem pelo rio de água de transformação. Dizem até que a cobra-canoa, na qual todos embarcarão rumo ao centro da terra, era, na verdade, o próprio corpo de 'Waikhun, o primeiro ancestral Waíkhana (também chamado de Kenein em algumas narrativas). É por isso que os Waíkhana, Povo Peixe, são também Pinoã Mahsã, Gente Cobra, aqueles que surgiram no mundo das águas, no rio de água de transformação.
Festas e Rituais: Entre o Passado e o Presente
Os Waíkhana mais velhos, tanto homens quanto mulheres, costumam lembrar com nostalgia dos tempos em que seus pais e avôs realizavam grandes festas e cerimônias, nas quais todos se pintavam e se paramentavam para dançar e cantar ao som de vários tipos de instrumentos musicais. Descrevem com saudades como eram os dabucuri (pooyé) de antigamente, cerimônias de oferecimento de alimentos e produtos artesanais entre grupos afins e parentes próximos; as festas de kapiwaya, conjunto muito valorizado de cantos e danças executado em ocasiões rituais em que se faz também o uso da bebida kahpi; as cerimônias de iniciação dos meninos com uso das flautas de jurupari; os ritos de iniciação das meninas e as festas de caxiri que os seus antepassados faziam.
As cerimônias de dabucuri e as festas de caxiri constituem ainda hoje elementos centrais da sociabilidade waíkhana para com parentes e cunhados. Também as danças embaladas ao som das flautas cariçu são amplamente praticadas nas comunidades do Papuri e do Uaupés. Alguns grupos locais, especialmente no Papuri, ainda realizam as danças e cantos de kapiwaya, embora em contextos menos ritualizados do que faziam os antigos. Mas outras práticas rituais como o jurupari e a ingestão do kahpi não são mais realizadas pelos Waíkhana. Os mais velhos dizem que esses conhecimentos foram perdidos, que hoje não existe mais entre os Waíkhana quem saiba preparar e benzer o kahpi, nem quem detenha os saberes para realizar a cerimônia de jurupari. E mesmo no contexto de retomada de algumas práticas e no esforço por fortalecer os conhecimentos, a língua e a cultura waíkhana empreendido por alguns de seus clãs nos últimos vinte anos, muitos parecem crer que certas coisas não podem mais ser resgatadas. Pois além dos saberes que se perderam, certas práticas exigem um preparo corporal e espiritual que hoje, segundo dizem, quase ninguém mais possuiria ou estaria disposto a alcançar. Pois com o tipo de vida que agora se leva, seria muito difícil para as pessoas cumprirem certas regras e restrições que estas tarefas e cerimônias exigem, devido às potências que mobilizam.
Contudo, mesmo sem os grandes rituais do passado, os Waíkhana vão prosseguindo na constituição de pessoas e no fortalecimento da força de vida do grupo. Isso se dá através da língua, dos benzimentos, dos nomes cerimoniais, da memória social e das narrativas passadas de geração em geração. Assim, mesmo dispersos por um território tão extenso, os Waíkhana mantêm sua identidade cultural e o vínculo espiritual com o passado ancestral, o que os constitui enquanto um grupo de descendência e um coletivo diferenciado na rede intercultural do Noroeste Amazônico.
Fontes de Informação
ANDRELLO, G. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. São Paulo: Editora UNESP/ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006
CHAGAS, Dorvalino S. J. V. O mundo dos Pamulin Mahsã Waíkhana. Dissertação de mestrado. UFPE, 2001
LASMAR, Cristiane. De volta ao lago de leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro. Unesp, 2005.
PEREIRA, Rosilene Fonseca et al. Criando gente no alto Rio Negro: um olhar waíkhana. Dissertação de mestrado. Manaus: Ufam, 2013.
SILVA, Aline Scolfaro Caetano da et al. Falas Waíkhana: conhecimento e transformações no alto rio Negro (rio Papuri). Dissertação de mestrado. São Carlos: UFScar, 2012.
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