TIs e outros territórios tradicionalmente ocupados se complementam?
por Leandro Mahalem de Lima, antropólogo, ISA. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.
As duas regiões com a maior quantidade de Terras Indígenas ainda não identificadas na Amazônia brasileira – o Médio Solimões (AM) com 30 e o Baixo Tapajós (PA) com 14 – abrangem diversas sobreposições com outros territórios tradicionalmente ocupados.
Estes casos envolvem povos em processo de renascimento cultural – também chamados de resistentes ou emergentes – que passaram a assumir identidades indígenas desde o marco constitucional de 1988. E também as ditas “comunidades caboclas” ou ribeirinhas – pescadores, lavradores e extrativistas – cujas ocupações, como as dos indígenas, foram regularizadas por meio de reservas de usufruto coletivo sustentável destinadas a populações tradicionais, no âmbito do ICMBio (Resex, RDS, Flona), Incra (PAE, PDS, PAA), e de órgãos estaduais.
Apesar de diferentes, os direitos garantidos a essas populações na CF 88 se assemelham em seus aspectos fundamentais – os arts. 231 e 232 para os indígenas; e os arts. 215, 216 e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para quilombolas e outras comunidades tradicionais. Os indígenas, quilombolas e populações tradicionais também são amparados pela Convenção no 169 da OIT, que, além de garantir a participação em processos que lhes afetem, veda a remoção forçada de territórios tradicionais (art. 16). Terras Indígenas, Territórios Remanescentes de Quilombo e de Uso Sustentável são Áreas Protegidas pela União, indisponíveis ao mercado e destinadas à posse coletiva. A grande diferença é que TIs e TRQs garantem o usufruto permanente, ao passo que, nas de Uso Sustentável, a posse coletiva é condicionada à renovação periódica.
Soluções conjuntas para esses casos são afirmadas em diversos planos e políticas instituídas ao longo das últimas duas décadas. Da Política Nacional da Biodiversidade (Decreto 4.339/2002) consta a orientação de se “promover um plano de ação para solucionar os conflitos devidos à sobreposição de UCs, TIs e de TQs”. O Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (Decreto 5.758/2006) propõe “definir e acordar critérios em conjunto com os órgãos competentes e segmentos sociais envolvidos para identificar os casos e propor soluções” e “apoiar a participação dos representantes das comunidades locais, quilombolas e povos indígenas nas reuniões dos Conselhos das UCs”. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais reafirma a necessidade de “solucionar ou minimizar os conflitos” (Decreto 6.040, 2007) e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Decreto 7.747, 2012) destaca a construção de “planos conjuntos de administração das áreas de sobreposição (...) garantida a gestão pelo órgão ambiental e respeitados os usos costumes e tradições dos povos indígenas”.
A câmara temática “Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais”, a 6a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, vem dedicando atenção especial ao tema. Para a subprocuradora-geral da República e ex-coordenadora da 6a CCR, Deborah Duprat, “ao assumir o caráter pluriétnico da nação, a Constituição de 1988 tornou impositiva a aplicação analógica do tratamento dado à questão indígena e aos demais grupos étnicos” (O Estado Pluriétnico, 2013).
Para a procuradora Maria Luiza Grabner, coordenadora da 6a CCR, “os direitos territoriais dos povos quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais gozam da mesma hierarquia dos povos indígenas, pois ambos desfrutam de estatura constitucional” de modo que “em casos de conflito” faz-se “necessário buscar a harmonização entre estes direitos, consideradas as especificidades de cada situação”. A elaboração de um “plano de ação” é uma “via possível para a resolução de conflitos entre APs, TIs e TQs” (Direitos territoriais, dupla afetação e gestão compartilhada, 2015).
A interpretação legal depende de uma avaliação caso a caso, levando em conta princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, procurando traduzir as formas de entendimento entre indígenas e tradicionais em ações coordenadas nos contextos locais. Conforme o argumento, estas ações são fundamentais para estimular soluções criativas, que visem a complementaridade, a cogestão e mútuo fortalecimento entre as populações. Afinal, as sobreposições são apenas um dos modos de interconexão entre TIs e outros territórios tradicionais. Mesmo que um dia deixem de se sobrepor formalmente, estas zonas de ocupação multicomunitárias continuarão relacionadas, formando extensos corredores de circulação entre bacias hidrográficas.
Não são processos simples. No Médio Solimões, o antropólogo Rafael Barbi relata que “o passar para indígena em uma comunidade depende da formação de um consenso entre seus moradores”, embora a posse e o manejo compartilhado sejam objeto de discórdia influenciados por fatores diversos, como conversões, migrações e cisões (em “Reconhecer-se indígena...”, capítulo Solimões).
Na Resex Tapajós Arapiuns, as audiências mediadas pelo MPF, as reuniões do Conselho Deliberativo da Resex e os seminários conjuntos – ocorridos entre 2013 e 2016 – são ainda situações tensas em que indígenas e tradicionais continuam a “se confrontar como no passado”. Apesar das tensões, o antropólogo indígena Florêncio Vaz e os estudantes indígenas João Tapajós (Arapium) e Luana Cardoso (Kumaruara) (em “Lutando por direitos...”, capítulo Tapajós Madeira) afirmam que não desejam “expulsar os tradicionais”, mas avançar “rumo a soluções mais integradas de uso e gestão comum do território”. Mais do que isso, reconhecem que sua reorganização política como indígenas” se deu no contexto dos trabalhos da Igreja Católica, do movimento sindical e da mobilização pela criação da Resex Tapajós Arapiuns. Assim, para eles, a igreja, o sindicato e o movimento extrativista são componentes fundamentais de sua própria história indígena.
(março, 2017)