Pankará
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- PE 3080 (Siasi/Sesai, 2020)
- Família linguística
No tempo dos nossos antepassados chamavam Pakará e não Pankará, porque quando os Encantos de Luz chegavam, eles davam viva aos Pakará. Isso é porque os índios plantavam muito fumo e quando era no Toré o fumo tinha o nome de Paká, e trazia na sacola chamada Ará pra gente fumar no quaqui. Ciço Domingos, Pankará
Nome e língua
Até dezembro de 2002, os índios que habitam a Serra do Arapuá utilizavam várias categorias identitárias e metafóricas para reafirmar sua distintividade étnica, como “caboclo”, “caboclo-índio”, “braiado”, “pego a dente de cachorro”, “tronco velho” etc. Ao deflagrarem seu processo de reorganização social e étnica, no início de 2003, passaram a adotar o etnônimo Pankará da Serra do Arapuá, através do movimento de consulta aos “encantados” no complexo ritual do toré. Aparecem no cenário nacional com essa denominação durante o I Encontro Nacional de Povos em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial, promovido pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), em maio de 2003 no município de Olinda, Pernambuco.
Assim como os demais povos indígenas na região, à exceção dos Fulni-ô, os Pankará são falantes do Português. Contudo, no seu universo lingüístico apresentam uma série de discursos, palavras e metáforas, que constituem o universo semântico do português falado na Serra do Arapuá. No geral não difere do discurso étnico encontrado entre os demais povos indígenas no Nordeste.
Localização e contexto
A Serra do Arapuá está localizada no município de Carnaubeira da Penha, sertão do semi-árido pernambucano, na meso-região do São Francisco, pertencendo a micro-região de Itaparica. Os principais municípios são Belém do São Francisco (oeste), Carnaubeira da Penha (norte), Itacuruba (sudoeste), Floresta, Petrolândia e Tacaratu (sudeste). Outras referências importantes são a Serra Umã (noroeste) e o Rio São Francisco (sul).
Com uma altitude aproximada de 900 metros, a Serra do Arapuá possuia em 2005 47 núcleos populacionais denominados pelos indígenas de “aldeias”, entre eles a Serra da Cacaria, que geograficamente se distingue dos demais por ser um relevo independente. As aldeias são habitadas tanto pelos Pankará, como por pequenos agricultores não-índios e algumas fazendas de médio porte pertencentes à elite local.
Os Pankará estão em processo de territorialização, portanto, a auto-identificação como indígena para muitas famílias que habitam a Serra é um processo que está em curso, dinamizado em todos os aspectos da vida social, política e cultural do grupo.
A Serra do Arapuá apresenta uma vegetação variada de acordo com a altitude. Nas áreas baixas, denominadas pela população local como “sertão”, predominam os cactos: coroa de frade, facheiro, mandacaru, xiquexique; as bromeliáceas: caroá, macambira; pequenos arbustos: catingueira, faveleira, imbuzeiro, jurema, quixabeira; e poucas árvores: craibeira, aroeira, baraúna, isto para citar apenas algumas. São áreas de pasto e alguns açudes privados.
Nas áreas de maior altitude (a serra propriamente dita), como, por exemplo, nas aldeias Enjeitado (890m), Lagoa (860m) e Cacaria (814m), a caatinga convive com árvores e plantas frutíferas como a pinha, manga, mamão, banana, acerola etc. Os catolezeiros predominam nessa região chamada de agreste e que visualmente se diferencia também pelo verde.
O acesso à Serra é dado pela rodovia federal BR 231, seguida da estadual PE 360 até Floresta, e mais 30 quilômetros de estrada de terra batida, somando um percurso aproximado de 500 quilômetros da capital Recife. A estrada de chão em meio à caatinga é a via principal usada pelo tráfico da maconha no circuito Carnaubeira da Penha–Floresta, com várias ocorrências de assaltos. Por essa estrada também circulam, diariamente, os estudantes e demais habitantes da área pelo meio de transporte mais comum na região: o caminhão “pau de arara”.
O município de Floresta é a zona urbana de referência para os índios e demais habitantes da Serra do Arapuá, e a ela recorrem para atendimento médico e hospitalar, participam da feira (comércio e consumo), vão aos bancos para receber a aposentadoria rural, freqüentam a escola de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental e uma minoria, o ensino médio. No tempo da seca se empregam como pedreiros, serventes e empregados domésticos [dados de 2005].
Em 2004, as escolas da primeira etapa do ensino fundamental dentro da área indígena passaram a ser mantidas pelo Estado. Foram reconhecidas como escolas indígenas em atendimento à reivindicação dos Pankará e da Comissão de Professores Indígenas em Pernambuco (Copipe), conforme Resolução 003/99 do Conselho Nacional de Educação. Em 2005, eram 18 escolas com aproximadamente 10 anexos, 62 professores/as indígenas, atendendo em média 450 alunos.
No campo da saúde, em 2004 passaram a integrar o Conselho Distrital de Saúde Indígena da Funasa. Possuem duas equipes atuando na área com agentes de saúde e auxiliares de enfermagem indígenas. O pólo base fica localizado em Carnaubeira da Penha. Enfrentam sérios problemas com a prefeitura municipal, que resiste à contratação dos indígenas indicados pela comunidade e lideranças para as referidas funções, segundo denúncia das lideranças.
A eletrificação foi instalada no ano de 1990, sendo a única área não eletrificada a serra da Cacaria. O meio de comunicação mais comum era o rádio e havia em 2005 apenas um aparelho de telefone público.
A região também é caracterizada pela antiga presença da mão-de-obra escrava, como nas fazendas Água Branca e Água Grande, e pela resistência negra como na Cacaria. Os negros foram trazidos à região para trabalhar como escravos nas fazendas do Pajeú e São Francisco.
Uma outra característica da Serra do Arapuá é a presença de um sítio arqueológico, onde são encontrados fragmentos de cerâmica e de artefatos de pedra. Há cachimbos de cerâmica e material lítico. A Serra da Cacaria é uma das áreas de maior concentração desse material e segundo a versão dos índios:
“lá na Serra da Cacaria, que chama Serra da Cacaria porque quando botaram os índios de lá pra correr, que eles correram tudo, que ficou cachimbo, pote, panela, essas coisas de barro lá, eles quebraram tudo, deixaram lá só a cacaria, aí ficaram chamando Serra da Cacaria”.
História
O povo Pankará, semelhante a outros povos situados na região Nordeste, passou por um processo histórico não linear, caracterizado pelo fluxo constante de grupos indígenas nos sertões do Pajeú e adjacências como conseqüência do esbulho de suas terras por tradicionais invasores presentes no cenário político desde o período colonial, retratando, de certo modo, o contexto de dominação política e econômica presente nessa região até os dias atuais.
Todo o período do século XVII até início do século XVIII foi marcado pela expansão da pecuária nos Vales do Pajeú e São Francisco promovida pela Casa da Torre, comandada pelos Garcia D’Ávila. Neste período, descendentes de fundadores da Casa da Torre concederam a familiares dotes de terras por todo o riacho do Pajeú, estabelecendo-se as primeiras fazendas sob o controle de famílias de coronéis.
Em decorrência, durante todo o século XVIII é comum encontrar referências sobre os índios dessa região como “revoltados”, “dispersos”, “ladrões de gado”, “bárbaros”. As perseguições e guerras contra os índios se estenderam até o século XIX. Neste período também se legaliza o domínio territorial das famílias tradicionais através do Registro de Terras – Lei Imperial de 1850, para garantir a propriedade imobiliária; as do atual município de Floresta foram registradas, pela primeira vez, em 1858 (Ferraz,1999).
Com a Lei do Registro de Terras, o Estado Brasileiro favoreceu os grandes proprietários que eram também os chefes políticos locais. Pressionado pelas Câmaras Municipais, reduto do coronelismo no Sertão pernambucano, o Governo Imperial decreta oficialmente a extinção dos aldeamentos em Pernambuco entre os anos de 1860 e 1880, sob o argumento da “ausência da pureza racial”. Neste século os índios desta região eram tidos como “misturados”, caboclos”, “confundidos” com a população local. Em fins do século XIX, muda o discurso nos documentos da época, de índios bárbaros a “descendentes”, “criminosos” e até mesmo a total negação da identidade desses povos (Silva,1996:17).
Diante desse contexto, as estratégias encontradas pelos indígenas eram continuar se deslocando para locais de difícil acesso e trabalhar como agricultores, pagando a renda para os “proprietários” das terras ou altos impostos à prefeitura municipal, a exemplo das Serras Umã e Arapuá, uma vez que todo pedaço do território no Sertão do Pajeú já estava de posse dos grandes latifundiários, os mesmos que exercem hoje o domínio político e econômico na região.
Etnogênese
Se ao final do século XIX os povos indígenas em Pernambuco eram tidos como extintos ou incorporados à sociedade nacional, endossando o contingente de trabalhadores rurais, no século XX reaparecem no cenário político da região reivindicando direitos ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), entre eles, na década de 1940, um grupo que se auto denominava pelo etnônimo “Atikum” (Grünewald,1993), formado por “caboclos” das Serras Umã, Arapuá e adjacências. Assim começa a se delinear a (re)construção histórica dos Pankará, dando feições ao grupo como o percebemos hoje, visualizada em três fases:
A primeira fase compreende o período anterior a etnogênese do grupo Atikum, quando vários grupos indígenas se estabeleceram nas serras, interagindo com camponeses e negros quilombolas, dando visibilidade às unidades étnicas que vieram a emergir. Na Serra do Arapuá, uma rede de relações sociais já era movimentada em torno da dança do toré:
Eles trouxeram de lá da Serra Negra, o começo que eles vieram pra treinar na Serra do Arapuá, o toré era de Serra Negra. E uma descendência velha que tinha na Cacaria também, que já sabia o que era brincar o toré, tinha um terreirinho deles lá que eles brincavam, só eles mesmos, não saiam pra canto nenhum. Era dos Limeira. Pedro Limeira, o bisavô de Pedro Limeira, aí os Limeira lá se encontraram com os Amansos e com os Rosa aí rendeu mais. Antonio Amanso, liderança Atikum na Serra Umã
Entretanto, a maior parte do território já estava ocupada pelas “famílias tradicionais” de Floresta e os índios continuavam sujeitos aos conflitos com os fazendeiros que proibiam a prática do toré:
E aqui teve muitos problemas pesados pra gente, porque o civilizado nunca gostou desse tipo de trabalho, num gosta mesmo. Então teve uma ocasião aí, nós batemos aqui em três lugares e expulsaram. E teve ocasião que nós perdemos tudo, e dançando, não parava não, botaram até fogo na casa, só ficamos com a roupa do corpo, ficamos sem nada, mas dançando, não parava não (risos), a gente gosta do trabalho, né? Pedro Limeira, Pankará
A segunda fase da reconstrução histórica dos Pankará é expressa por um movimento que pode ser compreendido como políticas de aliança e ruptura, cuja base de cooperação resultou na constituição do povo indígena Atikum Umã, segundo a versão dos Pankará.
Na década de 1940, os “caboclos da Serra Umã”, representados por Manoel Bezerra, com o apoio de Maria Antonia, Pedro Dama e outros, recorrem ao SPI no Recife, por orientação dos índios Pankararu de Brejo dos Padres, para solicitar providências em relação aos conflitos com os fazendeiros que soltavam o gado em suas roças e em relação à prefeitura de Floresta que cobrava altos impostos. Ouvidas as insatisfações, Dr.Raimundo Dantas Carneiro da Inspetoria do SPI no Recife se compromete em enviar funcionários para a comprovação de uma identidade indígena na Serra Umã. Desta forma, solicitou aos índios que ao retornarem “se organizassem no toré” (Grünewald,1993). Contudo, apenas alguns conheciam a dança, então convidaram os índios Tuxá de Rodelas, os caboclos da Serra do Arapuá e Cacaria.
Aí Joaquim Amanso sabia do nosso trabalho aqui e mandou buscar, nós fomos pra Serra do Umã (...) Era Zé Brasileiro, Sampaio e Dr.Tuba, eram três que tinha. Entramos no terreiro e entramos dançando na batida do pé: pam, pam, pam. Pedro Dama mais Mané Bezerra disseram: ói caboco é desse jeito aí, podem tirar a cela do animal. Eu sei que foi três dias; de noite teve o oculto lá e aí fundaram Serra do Umã.” Pedro Limeira,Pankará
A princípio essa política de alianças entre os grupos da Serra Umã e da Serra do Arapuá, favoreceu a ambos: aos Atikum foi garantido o direito sobre 18.000 ha, a criação do Posto Indígena em 1949 e outros benefícios, como o açude, escola, casa de farinha etc. (Grünewald; 1993: 49), quanto aos índios que habitavam na Serra do Arapuá, afirmam que passaram a receber assistência de Zé Brasileiro, o chefe do Posto Indígena, pois “sabia ele que nós tinha o direito em Serra Umã” (Pedro Limeira, Pankará). Através da história oral, é possível apreender que durante algum tempo os dois grupos mantiveram uma relação marcada pelas visitas do toré, com registros de “noites de fuga” quando viajavam de uma serra a outra, “escondidos dos brancos” para dançarem juntos o toré, e a assistência do SPI que alinhavava a unidade entre os dois grupos.
Deflagrado o processo de territorialização dos Atikum, parte da família Amanso, Rosa e Cacheado se estabeleceu na Serra Umã incorporando-se ao sistema político e cultural Atikum; outra parte permaneceu na Serra do Arapuá. Na década de 1950, com a saída de Zé Brasileiro do Posto Indígena se deu início a ruptura em um processo social que se estende até o início deste século. Com a ruptura processual, os índios que habitavam a Serra do Arapuá passaram a se mobilizar internamente acionando um sistema político próprio através do toré. Durante os anos 50 até fins dos 80 do século XX, existem registros orais sobre mobilização dos núcleos populacionais na Serra do Arapuá em torno dos rituais:
“Fui muito na Lagoa, era lá em Maria Cacheado e Valente. Eles dançavam, eu dancei muito na década de 70, usando o maracá. Como eu era professora da localidade, eles achavam que eu era muito importante e me davam o maracá e eu ficava atrás do primeiro da fila, com todo respeito, tomava da jurema e partilhava tudo, até hoje é a religião deles” (M.G, não-índia, pequena proprietária no sítio Lages / Serra do Arapuá).
No final da década de 1980, aproximadamente, pessoas importantes na condução dos rituais responsáveis pelos terreiros foram morrendo e muitos terreiros ficaram parados, a exemplo da aldeia Lagoa. Por outro lado, na Serra Umã, o narcotráfico já estava estabelecido dentro da área indígena e havia uma acirrada disputa interna pelo poder na Serra, que culminou com o assassinato do líder Abdon Leonardo da Silva em 1991. Esse contexto favoreceu o afastamento processual que já vinha ocorrendo entre os dois grupos.
E, por fim, a ruptura tomou forma quando no ano de 1989 foi instaurada uma ação administrativa por parte da Funai para a demarcação do território Atikum. Neste processo, os índios localizados na Serra do Arapuá foram excluídos:
“Antigamente a área de Atikum era muito maior. Fazia parte o Brejo do Gama, o Poço da Clara, a Serra da Raposa, a Serra do Arapuá e a Cacaria. Mas no tempo de Gomes, que era o administrador da Funai na época da demarcação, mais ou menos em 94 e 95, tudo isso ficou de fora, porque ele achou que ia ser muito difícil, podia haver muito conflito, e aí ele fez reunião de conchavo para que aceitassem a diminuição” (liderança Atikum).
Em 5 de janeiro de 1996, foi publicada no Diário Oficial a demarcação administrativa da Terra Indígena Atikum com uma superfície de 16.290.1893 ha. Em 1999, alguns representantes da Serra do Arapuá, aldeia Enjeitado, foram até a aldeia-sede, onde está situado o Posto Indígena, pedir para serem reconhecidos pelas lideranças Atikum, mas “ao chegarem no terreiro para dançar o Toré foram expulsos”. Este foi um primeiro movimento de retorno à Serra Umã de que se tem conhecimento desde o período de fundação do Posto Indígena na década de 1940.
A partir deste episódio, percebe-se algumas nuances de mobilização deste grupo para serem reconhecidos indicando uma terceira fase desse processo de reconstrução. No ano de 2001, os índios “da Serra do Arapuá” ressurgem no cenário político indigenista, identificados pela Funasa sob a categoria “desaldeados”. O programa governamental de saúde implementado pela Funasa na forma de Distrito Sanitário Indígena (DSEI), que já atuava na área Atikum desde 1999, realiza um cadastro na Serra do Arapuá de 55 famílias, como “desaldeados da etnia Atikum” gerando conflitos entre os dois grupos, pois as lideranças Atikum, munidas de autonomia e controle social sobre as políticas públicas, impediram a Funasa de realizar atendimento na Serra do Arapuá, sob o argumento da escassez de recursos, que estava comprometendo a qualidade do atendimento na Serra Umã.
Contudo, por reconhecerem que, de fato, a Serra do Arapuá é “área de caboco”, autorizaram que estes fossem atendidos na sede do Pólo Base em Carnaubeira da Penha, o que praticamente não aconteceu, segundo informações das funcionárias do Pólo.
Estes últimos (ou penúltimos) acontecimentos fortaleceram as alianças internas entre as lideranças indígenas da Serra do Arapuá, que retomaram uma série de articulações que estavam em suspenso, como os encontros para o toré.
Após dois anos desses episódios, a dinâmica muda de configuração e os “índios da Serra do Arapuá” recebem uma proposta de aliança dos Atikum através de um convite para o “Recadastramento dos Indígenas da Serra do Arapuá”. Junto ao convite veio a cópia de um ofício, enviado à Funasa, na qual as lideranças da Serra Umã afirmam que as “aldeias” Cacaria, Lagoa e Enjeitado são de “descendentes Atikum”.
Entretanto, depois das constantes investidas desses índios, observadas nos últimos três anos, na possibilidade de transpor as fronteiras e se incorporarem ao grupo Atikum, responderam: “Tem que ser descendente de onde nós somos, não emprestado” (Pedro Limeira, Cacaria)
Este depoimento de Sr. Pedro Limeira demonstra o caráter dinâmico dessa realidade, na qual os índios se colocam como sujeitos ativos de sua história, reafirmando a crença na descendência de povos pré-colombianos, reatualizando-a no presente sob o viés de uma identidade indígena que se mantém viva na Serra do Arapuá. Sendo este o território escolhido pelo grupo para a sua existência enquanto coletividade. Desta forma, a etnicidade dos índios que hoje se identificam como Pankará, pode ser vista como uma construção social da pertença, situacionalmente determinada pelos atores, no sentido de organizar significativamente o seu mundo social:
“Mas que eu acho que o pau quando ele nasce assim ele tem gaia pra todo canto(...) eu sei que tem gaia pra lá, tem gaia pra Serra do Umã (...) Agora o tronco, nem ele sabe onde é, nem eu sei também e sei mais ou menos(...) vai ter que nascer é um pé de pau aqui mesmo”(Pedro Limeira, Pankará)
As situações acima descritas fazem parte de um processo histórico que vem se desenrolando durante todo o século XX e que impulsionou uma outra dinâmica na organização social dos Pankará. É no conjunto desse sistema pluriétnico e dessa dinâmica social que esses índios estabelecem suas fronteiras e deflagram um processo de territorialização se constituindo como o grupo étnico Pankará.
Religiosidade e rituais
O aspecto ritual é uma das questões-chave na manutenção da identidade indígena na Serra do Arapuá e os fios através dos quais tecem uma rede de relações internas. A partir dos rituais, é possível apreender o sistema simbólico que rege a cosmologia dos Pankará.
A “ciência”, o “trabalho” ou a “brincadeira” do índio, como chamam, é uma das formas de expressão da cosmologia do grupo, manifestada em três tipos: Terreiro, Gentio e Reinado. É importante salientar que esta divisão é apenas analítica, o grupo não a percebe desta forma, mas como um todo integrado e interdependente representado pelo toré, no qual o simbólico e o concreto se confundem.
O Terreiro corresponde a um local de ritual marcado por um cruzeiro, em cuja base são colocados artefatos sagrados como imagens de santos, peças encontradas nos sítios arqueológicos e a jurema. Podem estar localizados bem próximos às casas, como no Enjeitado e Lagoa, ou mais próximo às matas, como na Cacaria.
O Gentio são pequenos abrigos, geralmente em taipa, construídos próximos das residências, com um cruzeiro semelhante ao do terreiro posicionado ao centro. É o local da “ciência oculta” com uma participação restrita da comunidade, sendo proibida a presença de não-índios. O Gentio é, ao mesmo tempo, o lugar e o encanto, como explica e canta Senhora - Pankará:
“A gente pôs Gentio porque quando ele chegou, que ele baixou, aí ele deu o nome de Gentio, aí ficou o Gentio. E tem a linha do Gentio:
Gentio chegou na aldeia, o que foi que ele veio buscar. Ele veio trazer ciência pra os índios trabalhar. O reina reina roa, o reina, reina rá
Já tem outra linha também do Gentio, aqui quando ele chegava que aqui falava com a gente dizia:
Ô meu Gentio, ô meu Gentio
eu quero força do meu bravio
Ô meu Gentio, ô meu Gentio
eu quero força pra nós trabalhar
Eu quero força do meu Gentio
eu quero força do meu bravio”
Na Serra do Arapuá, apenas no Enjeitado tem Gentio. Este é também um espaço onde se realizam curas, principalmente de doenças mentais. O processo de cura é acompanhado pelo uso do defumador e remédios naturais que chamam de “garrafada das montanhas” e também medicação alopática. A receita é definida pelo “mestre”. Pode durar dias e até meses; contam que a cura mais demorada durou um período de nove meses. O paciente fica hospedado nas casas da comunidade e são pessoas de lugares variados da região do sertão do São Francisco.
Os Reinados são pedras em locais de difícil acesso e também são destinados a “ciência oculta”. São freqüentados durante o dia e é proibida a presença de crianças, por afirmarem ser um “trabalho muito forte” além da dificuldade de acesso.
Esses rituais são atos religiosos nos quais os índios louvam e se comunicam com os antepassados que estão sob a forma de “encantados” e “mestres”. A comunicação se dá através da possessão mediúnica, evocando-os através do canto (linha ou toante), da música sonorizada pelo maracá, da dança (circular), e da ingestão da bebida que consideram sagrada a jurema (Mimosa hostilis benth).
Por serem ritos sagrados, envolvem toda uma mística que, no caso do Terreiro e do Gentio, compreende a escolha do local, a posição do cruzeiro, até o preparo da jurema. Já os Reinados sempre existiram e a localização destes aos índios é anunciada através de sonhos ou durante os “ocultos”. Todo esse movimento é definido pelos mestres e encantos, os verdadeiros “chefes” do ritual.
O ritual do toré tem uma estrutura básica: abertura, louvação, distribuição da jurema, chamamento das divindades, recebimento das “instruções” e o fechamento. Tem dias determinados que são a quarta-feira e o sábado, e é composto por uma hierarquia que em escala decrescente de superioridade começa no campo espiritual. A principal autoridade é um encanto ou um mestre que nomeia o lugar-ritual, seguido da liderança religiosa que é o responsável pela manutenção, mobilização e condução dos trabalhos. Depois vem o caboclo mestre e a cabocla mestra e mais dois contramestres, mantendo a divisão de gênero; este quarteto é responsável pela “linha de frente” e durante a dança do toré vai ao centro representar o sinal do cruzeiro e, por último, os demais membros da comunidade.
A condução e o tempo do ritual varia de acordo com o líder e o tipo de trabalho (Gentio, Terreiro, Reinado), mas, seja qual for, o mais significativo é que o toré opera como um agente articulador interno e promove o fluxo entre as aldeias. Essa relação religiosa é que determina uma rede social na Serra do Arapuá e fomenta a manutenção da identidade dos Pankará.
Organização política
Após deflagrarem o movimento para o reconhecimento oficial, os Pankará, a partir de uma necessidade que surge do contato com a agência indigenista oficial – Funai e outros órgãos governamentais, como a Funasa, estão vivendo um processo de redefinição da sua organização política. Elegeram uma cacique: Maria das Dores Limeira, conhecida por Dorinha, um vice-cacique: Osmar da família Amanso e quatro pajés: Pedro Limeira, Manoel Cacheado, João Miguel e Pedro Leite – sendo estes lideranças antigas instituídas através do sagrado –, um corpo de representantes por aldeia, um Conselho de Saúde Local (exigência da Funasa); dois representante na Copipe (Comissão de Professores Indígenas em Pernambuco) e dois representantes na Articulação dos Povos Indígenas Nordeste,Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).
Historicamente, ritual e autoridade estiveram estritamente ligados e constituem a dinâmica política entre os Pankará. Cada pajé possui um círculo de relacionamentos mais próximos, dentro da própria família, que consolida e legitima a autoridade de cada um. No caso de Sr.Pedro Limeira, sua autoridade político-religiosa é mais estável por ser também o patriarca. São muito recentes as mobilizações conjuntas para a resolução dos problemas comuns, embora sempre tenha existido uma articulação permanente que gira em torno do ritual, sendo este o espaço principal dos encontros e socialização das informações.
Organização social
A organização social dos Pankará caracteriza-se por famílias extensas com base na filiação cognática. Não há regra de residência preestabelecida, mas é comum a residência bilocal, o que caracteriza os núcleos populacionais que residem em núcleos familiares, sendo os de maior concentração familiar a Cacaria, o Enjeitado e a Lagoa, sendo que cada um destes resguarda certa distintividade em relação ao outro pela consangüinidade.
Contudo, em razão das alianças com os locais, tanto de matrimônio como de compadrio, se estabelecem por diversas outras aldeias, de forma que estão presentes por quase toda a Serra. Outro aspecto diz respeito ao fato de serem um grupo predominantemente de agricultores, daí a ocupação e distribuição territorial ocorrer também em função da necessidade de terra, estando ele sujeito à disponibilidade destas, uma vez que grande parte do território está nas mãos de fazendeiros.
Apesar de considerarem o duplo parentesco, cada família recebe a nomeação de um ancestral que crê ser originário da Serra Negra. São eles Amanso, Limeira, Cacheado, Rosa e Mergeli. A partir do quadro de genealogia, observamos que até os últimos 20 anos, havia uma predominância no matrimônio entre primos cruzados. Os Limeira admitem casamento entre primos paralelos, já entre os Amansos este tipo de aliança é proibido: “os primos se casam, agora os legítimo não” (Ciço Domingo, Pankará). Os casamentos interétnicos eram proibidos, mas ocorriam com certa freqüência através dos “furtos”.
À geração atual de jovens entre 15 e 25 anos é permitido esse tipo de aliança matrimonial, não sendo mais necessário o advento dos “furtos”; agregando muitos moradores locais às famílias consideradas indígenas. Este tipo de casamento interétnico permite que o agregado participe tanto do ritual, adquirindo assim um status de indígena, como do usufruto da terra, seja esta arrendada ou de domínio próprio da família.
Situação territorial
Até maio de 2005, a Funai não havia tomado providências quanto ao reconhecimento territorial dos Pankará, tampouco havia registro de qualquer procedimento administrativo em curso. Contudo, os indígenas utilizam-se dos locais sagrados espalhados por toda a Serra para a manutenção da sua identidade e para demarcar seu território.
São os Terreiros de toré, os Gentios, os Reinados, presentes por todo o território assim como toda a mobilização em torno desses rituais, somada à qualidade de agricultores que desempenham no processo produtivo, que os índios Pankará expressam simbólica e objetivamente a posse sobre a terra tradicional face ao contexto de violência e opressão no qual estão inseridos.
Contudo, a Serra do Arapuá como elemento geográfico e político é parte de um sistema mais amplo e heterogêneo de relações. Existe um poder econômico e político na região que se sobrepõe ao poder simbólico que os índios exercem sobre a terra que tradicionalmente ocupam. Os Pankará estão permanentemente pressionados pelo poder público municipal que tenta interferir na sua organização interna e por fazendeiros que os proíbem de ter acesso à terra e aos recursos naturais.
Sistema produtivo
Os índios compõem o segmento da população de baixa renda na Serra do Arapuá. Desprovidos do recurso básico, a terra, não possuem qualquer controle sobre os recursos ambientais. São obrigados a trabalhar como rendeiros, com um pagamento estimado entre 10% e 30% da produção, como meeiros, e os que se apropriam de pequenos lotes de terras sem título, mas pagam um valor ao Incra. A produção é familiar e de subsistência. Raramente conseguem produzir excedente, por vários fatores:
a) os melhores trechos de terra estão sob o controle dos fazendeiros; b) técnicas agrícolas rudimentares e conseqüente desgaste do solo; c) falta de recursos para a compra de sementes; d) dificuldades de financiamento; e) presença de plantio de maconha. Isto para citar os principais problemas.
Contudo, com exceção da Cacaria, a Serra do Arapuá não apresenta graves problemas com água, o que é muito raro nessa região e ameniza as maiores dificuldades, possibilitando a manutenção dos pomares que incrementam a alimentação. As principais culturas são feijão de arranca, batata, abóbora, jerimum, macaxeira, fava, andu, mandioca, milho, banana, mamão, caju, pinha, goiaba, abacate, jaca, graviola e manga.
O andu e a fava também são plantados, mas não tem época certa. Quando há excedente, comercializam na feira de Floresta. Na Cacaria, durante o inverno, resistem com a água das cacimbas e os caldeirões. Possuem pequenos criatórios de bode, porco e galinha e criam vaca, em pequena quantidade, cerca de seis cabeças. No Enjeitado, há uma pequena produção artesanal com a palha e o talo do catolezeiro: vassouras, cestos, esteiras, caçoás, aribés. Todos dominam a técnica, homens, mulheres e crianças, mas o retorno financeiro não corresponde ao valor agregado da mercadoria, sendo comercializada a baixo custo ou usada como moeda de troca entre vizinhos. Aliás, é através das trocas que os jovens estabelecem relações entre si. Geralmente ajudam a família na roça e não possuem nenhum tipo de renda, assim é comum trocarem roupas e acessórios e, ao mesmo tempo que diversificam seus objetos pessoais, começam a exercer um tipo de autonomia em relação aos pais.
As feiras nas cidades mais próximas são um espaço importante de encontros e socialização. Em Carnaubeira, é na segunda-feira e em Floresta, na sexta e sábado. Os Pankará freqüentam mais o município de Floresta, onde compram os suprimentos que não produzem como arroz, fósforos, macarrão, óleo comestível, vestimentas e remédios. Por serem filiados ao sindicato dos trabalhadores rurais, contam ainda com alguns benefícios como aposentadoria e auxílio maternidade. Mas os que não possuem o registro da terra, enfrentam dificuldades com a previdência social.
As dificuldades típicas das camadas empobrecidas do sertão fazem com que os indígenas, apesar da forte ligação cultural e religiosa com o seu território, migrem para Floresta ou grandes centros como Recife e São Paulo em busca de oportunidade de trabalho. A baixa escolaridade e a falta de qualificação profissional os colocam em desvantagem no mercado de trabalho com um destino já conhecido: as periferias urbanas ou retorno à Serra.
Existe uma forte unidade cooperativa nos núcleos familiares, toda a produção é compartilhada entre as famílias e mesmo na Cacaria, cuja posse é dominial, percebem a propriedade como local de retorno para os que estão distantes: “pode vir caboco de todo canto, que o local tem para trabalhar” (Sr. Pedro Limeira).
Fontes de informação
- FERRAZ, Carlos Antonio de Souza. História Municipal de Floresta – os vales, o povo, a evolução sociocultural e econômica. Prefeitura Municipal de Floresta: FIDEM, 1999.
- GRUNEWALD, Rodrigo de Azeredo. ‘Regime de Índio’ e faccionalismo: os Atikum da Serra Umã. Rio de Janeiro, 1993. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Museu Nacional, UFRJ .
- OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A Viagem da volta – Etnicidade, política e reelaboração cultural no nordeste indígena. Rio de Janeiro:Contra Capa Livraria, 1999.
- ROSA. Hildo Leal. A Serra Negra: refúgio dos últimos “bárbaros” do sertão de Pernambuco. Recife, 1998. Monografia do bacharelado em História. Centro de Filosofia e Ciências Humanas, UFPE.
- SILVA, Édson. Confundidos com a massa da população: o esbulho das terras indígenas no Nordeste no século XIX. Revista do Arquivo público, Recife, n. 46, Vol. 42, 1996.