Kamaiurá
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- MT 710 (Siasi/Sesai, 2020)
- Família linguística
- Tupi-Guarani
Os Kamaiurá constituem uma referência importante na área cultural do Alto Xingu, em que povos falantes de diferentes línguas compartilham visões de mundo e modos de vida bastante similares. Estão ainda vinculados por um sistema de trocas especializadas e rituais intergrupais, os quais recebem diferentes nomes no interior de cada etnia, mas que ficaram mais conhecidos (pelos de dentro e os de fora do universo xinguano) justamente pelos termos usados na língua Kamaiurá, tais como o Kwarup e o Jawari.
Para informações gerais sobre o Alto Xingu, vá ao verbete Parque Indígena do Xingu.
Localização e população
Os Kamaiurá jamais se afastaram de sua área de ocupação, na região de confluência dos rios Kuluene e Kuliseu, próxima à grande lagoa de Ipavu, que significa, na língua deste povo, “água grande”. Hoje em dia, a aldeia dos Kamaiurá se localiza cerca de dez quilômetros a norte do Posto Leonardo Villas-Bôas, a aproximadamente 500 metros da margem sul da Lagoa Ipavu e seis quilômetros do rio Kuluene, à sua direita. Constituem o território Kamaiurá imediato a aldeia, formada pelas casas e pelo pátio cerimonial, a mata vizinha, a lagoa de Ipavu e os riachos que nela deságuam.
Sua população, em 2002, somava 355 indivíduos, deflagrando um significativo crescimento demográfico em relação ao início da década de 70, quando eram 131. Em 1954, quando houve uma forte epidemia de sarampo na região, se viram reduzidos a 94, em contraste com 1938, quando eram cerca de 240, e no período em que foram visitados por Von den Stein, 1887, em que somavam 264 pessoas.
Aldeia
A aldeia Kamaiurá segue o modelo alto-xinguano, com casas dispostas mais ou menos circularmente, cobertas de sapê, de teto arredondado até o chão. No centro desse espaço circular encontra-se um pátio ou “praça” (hoka´yterip) para a qual convergem os caminhos, conduzindo tanto às moradias como aos lugares públicos, e onde se ergue a casa das flautas (tapuwí), atravessada medianamente pelo “caminho do sol”. Instrumentos de destaque na cultura Kamaiurá, as flautas (jakui) só podem ser vistas e tocadas por homens.
Em frente a casa das flautas e orientado para o leste, está o banco da roda dos fumantes, onde se reúnem os homens para contar os acontecimentos do dia ou para discutir assuntos específicos - como a preparação de uma pesca coletiva, participação na construção de uma casa, limpeza coletiva da praça, ou preparo de uma festa próxima.
Centro de informações, lugar público, social e masculino por excelência, essa praça é o local onde são recebidos, com discursos públicos, os mensageiros oficiais das outras aldeias, onde se realizam as lutas corporais do Huka-Huka, os cerimoniais intergrupais e a maioria dos rituais e festas da própria aldeia. É lá também que, entre homens, se faz a distribuição de comidas (peixe, beiju, mingau, pimenta, bananas), geralmente em pagamento a serviços prestados (por ocasião da construção de uma casa ou da queimada, limpeza ou plantio comunitário de uma roça), ou simples retribuição do “dono” de uma festa para os que daquela participam. É ainda lá que se enterram os mortos.
Já a casa constitui um local de meia escuridão e de privacidade, sendo ao mesmo tempo um lugar aberto e, fundamentalmente, o domínio das mulheres e das crianças. Em suas laterais habitam várias famílias nucleares e aparentadas, sendo a sua parte central de uso compartilhado, onde ficam os fogos e os depósitos de alimentos.
Para além do círculo das casas, atinge-se, por uma rede de caminhos traçados na capoeira e passando por pequenas roças individuais, o mato e os portos. Lugares da privacidade por excelência e dos encontros amorosos noturnos, eles abrem, antes de tudo, a um mundo híbrido, onde a natureza está impregnada dos espíritos sobrenaturais e onde um homem pode “virar bicho”, da mesma maneira que uma onça aparecer-lhe, de repente, “como gente, bonita e toda enfeitada”, como dizem. A mata é concebida como mundo da transformação radical e do mistério; lugar da liminaridade, do profano e do sagrado, do conhecido e do sempre estranho e desconhecido
Histórico da ocupação no Alto Xingu
Segundo os Kamaiurá, seus antepassados vieram de Wawitsa, região situada no extremo norte do Parque (precisamente onde desembocam os principais formadores do Rio Xingu para constitui-lo) e ao lado de Morená, palco central das ações míticas e “centro do mundo” para eles. É possível que essa ainda seja a principal referência para se definirem enquanto grupo no espaço e no tempo.
Na época em que Von den Steinen encontrou os Kamaiurá, em 1884, eles se encontravam em uma fase final de migração e estavam reunidos às margens de Ipavu. As razões dessa mudança para o sul, próximo ao atual Posto Leonardo, parecem ter sido conflitos com povos que habitavam o norte, particularmente dos Suyá e dos Yudjá.
A história do contato dos Kamaiurá com a sociedade não indígena remonta a 1884, com a expedição de Karl Von den Stein. Daí por diante, várias expedições percorreram a região em visitas intermitentes e de curtas. Em 1942, com a criação do órgão federal Fundação Brasil Central, inicia-se a abertura de estradas e o estabelecimento de acampamentos na área. Em 1946, são os Kamaiurá atingidos por essa penetração e passam a ter contatos regulares com os membros da expedição Roncador-Xingu, liderada pelos irmãos Villas-Bôas. Finalmente, em 1961, o território que habitam converte-se e Parque Nacional, hoje subordinado à Funai (Fundação Nacional do Índio).
Leia abaixo a história desse povo nas palavras do professor indígena Aisanain Kamaiurá:
Antigamente o povo Kamaiurá morava onde era a aldeia velha do Prepori, o lugar que se chamava Krukitsa. Depois eles mudaram para Wawitsa, onde hoje é o posto Pavuru. Nesse lugar os povos Suiá e Yudjá estavam atacando os Kamaiurá.
Depois eles se mudaram para Jacaré e outros atravessaram o rio e foram para a lagoa abrir uma aldeia. De lá eles mudaram para o outro lado do lago. Hoje em dia tem pessoas morando nessa aldeia ainda. Lá eles fizeram cinco aldeias porque eram muitas pessoas.
Passaram-se muitos anos e Orlando Villas-Bôas chegou lá na boca do Tuatuari. Os Kamaiurá foram lá só para ver os brancos. Aí eles fizeram uma aldeia bem grande e metade dos Kamaiurá foi para lá por causa do branco.
Orlando desceu o rio, ele queria fazer um posto lá no Morená.
Ele pensou que era limpo, mas era sujo. Ele desceu para Awara´ï. Lá eles fizeram um pouso de avião. Nesse lugar tem gente morando, é a aldeia Boa Esperança. Os Kamaiurá vieram atrás dos brancos. Depois de dez dias, um Kamaiurá chamado Amarika, que conhecia todos os lugares do Xingu, falou para o Orlando do Jacaré, disse que era um lugar bom. Orlando conversou com o pessoal dele e no outro dia foram lá. Os Kamaiurá que estavam com ele voltaram, saíram do Awara´ï bem cedo, dormiram lá na aldeia do Trumai, uma aldeia que se chamava Inarija.
Hoje em dia ninguém mora mais nesse lugar. De lá eles foram para o posto Leonardo, onde muitos povos se juntaram: Kamaiurá, Yawalapiti, Waurá e Trumai. Eles fizeram uma grande festa no posto Leonardo. Então Orlando pediu para o cacique abrir picada para a aldeia Kamaiurá.
Organização social
A aldeia Kamaiurá é formada por um conjunto de casas, cada qual ocupada por um grupo doméstico composto por um núcleo de irmãos homens, ao qual se somam primos paralelos e eventuais ascendentes. O líder desse grupo doméstico é o “dono da casa”, morerekwat, que coordena as atividades produtivas e outras tarefas cotidianas que contam com a participação de todas as famílias nucleares.
Idealmente, as regras de residência definem que nos primeiros anos de casamento o marido deve residir na casa dos sogros, pagando em serviços pela cessão de sua filha. Cumprido esse período, o casal pode escolher nova residência, que em geral é a casa de origem do marido. Essa regra não se aplica aos donos de casa, ao líder da aldeia (morerekwaratuwiap) ou àqueles já casados com outra mulher. Nessas situações, desde o início a mulher passa a residir na casa do marido e o pagamento é feito através de bens. O casamento preferencial é, idealmente, entre primos cruzados. O vínculo entre as casas se estabelece pelas alianças concretizadas através de casamentos e pelo apoio comum ao líder da aldeia.
A formação da pessoa Kamaiurá implica um período de reclusão na puberdade. No caso dos homens, passam a receber sistematicamente ensinamentos sobre as técnicas de trabalho masculino. O jovem aprende como costurar a pena na flecha, fazer pente, trançar cesta e fazer cocar. Paralelamente, é treinado regularmente na luta de huka-huka. A reclusão é tanto mais prolongada quanto maiores as responsabilidades sociais que deva assumir na comunidade, de modo que possíveis líderes podem estender seu período de reclusão por até cinco anos, intercalados por curtos períodos de liberdade.
Assim, quanto mais prolongada a reclusão, maiores os benefícios para o rapaz. Nos períodos de liberdade que intercalam o tempo de reclusão, os pais procuram evitar que o jovem tenha experiências sexuais, pois seu vigor pode ser comprometido. Os pais procuram adiar o início da vida sexual do filho até que ele tenha se tornado um bom lutador.
Já a jovem entra em reclusão por ocasião de sua primeira menstruação, quando ela aprende a fazer esteira, tecer rede e a executar tarefas femininas no preparo dos alimentos. Sua reclusão não dura mais do que um ano, período no qual ela não corta os cabelos (ficando a franja crescida por sobre os olhos). Ao sair, com um novo nome, é considerada adulta e pronta para o casamento.
No ciclo de vida Kamaiurá, o índio nasce e recebe do pai um dos nomes de seu falecido avô paterno; da mãe, recebe o nome do avô materno. Na meninice fura a orelha e recebe outro par de nomes, também de seus avós paterno e materno, que o acompanhará por toda vida. Na adolescência entra em reclusão para de lá sair homem. Casa-se e trabalha para alimentar os seus. Derruba mata, planta, pesca, caça, cria objetos. Dança, canta, luta. Morre, deixando para seus futuros netos seus nomes. A mulher segue trajetória igual. Recebe seus primeiros nomes que serão substituídos na puberdade. Casa-se, tem filhos, trabalha para a família, dança, assiste a lutas e festas. Ao morrer, também lega nomes aos netos.
Organização política
A unidade política dos Kamaiurá é a aldeia, cujo líder atua como mediador e regulador dos conflitos, mantendo a harmonia interna do grupo e expressando generosidade. Essas tarefas impõem ao líder uma série de renúncias que desde muito cedo deve aceitar. Nos longos períodos de reclusão pubertária ele é submetido a uma dura disciplina e durante sua vida esteve voltado para as práticas que o levam a se tornar bom índio e poder assim liderar. O poder, de natureza marcadamente pacífica, ele exerce à medida que o grupo aceita e que obtém o apoio necessário dos líderes de grupos familiares. Sua habilidade política se expressa pela palavra, que é, ao mesmo tempo, símbolo de seu status. As regras de sucessão ao status de líder da aldeia são flexíveis e costumam suscitar muita competição pelo cargo.
Já o dono da casa é, em última instância, aquele que tomou a iniciativa de sua construção. Idealmente, seu primogênito deve sucedê-lo. As principais atribuições do dono da casa são: repetir aos seus parentes, caso concorde, as solicitações que o líder da aldeia faz com relação às tarefas de capinar o fundo das casas, o pátio, realizar pescarias etc. Ele se encarrega de coordenar essas atividades e outras, como o armazenamento de alimentos, manutenção da casa, construção de nova casa, moitará (trocas cerimoniais de bens) em outras aldeias etc. Quanto maior o número de moradores de uma casa, maior a importância de seu dono e mais significativo o apoio que possa dar ao líder da aldeia.
Os Kamaiurá no sistema ritual do Alto Xingu
Mitos e rituais intergrupais expressam a forte articulação entre os povos do Alto Xingu e refletem a crença Kamaiurá em um mesmo ato de criação de todos esses povos, sendo o herói cultural MaWutsinin o responsável pelo sistema uno e coerente que engloba a cultura e a natureza alto-xinguana. O estado ideal da criação é ritualizado no kwarup, que celebra a solidariedade entre os povos do Alto-Xingu. A cerimônia reúne, numa única aldeia, várias etnias alto-xinguanas, que celebram os mortos da aldeia que o realiza, marcando o término do período de luto. Trata-se da dramatização de uma das versões do mito de criação do homem, conjugada com competição na luta corporal huka-huka e trocas eventuais de artesanato.
Entre os rituais intergrupais que ocorrem regularmente, pode-se destacar o Kwarup (a festa dos mortos), o Jawari (festa de celebração dos guerreiros) e o Moitará (encontros para trocas formalizadas).
Essa solidariedade alto-xinguana é, entretanto, negada em outra cerimônia, a festa do Jawari, que enfatiza a distinção e oposição dos grupos participantes. O morto, homenageado no Kwarup, pode vir a receber homenagem menor no Jawari. Para essa festa apenas um grupo é convidado. Seu ponto alto é a competição esportiva de arremesso de flechas com propulsor, que simboliza a atividade guerreira e, nesse sentido, pode ser interpretada como estabilizadora das relações interétnicas, uma vez que canaliza atitudes de rivalidade e tendências agressivas para uma prática esportiva.
Desse modo, confrontando as duas cerimônias, tem-se, de um lado, a expressão ritual de solidariedade (kwarup) e, de outro, a maior manifestação da hostilidade intergrupal (jawari). Ambas podendo ser entendidas como expressões simbólicas de uma realidade social em que o etnocentrismo coexiste com alianças e obrigações assumidas no convívio entre os povos. Assim, apesar de unidos por vínculos estreitos e participando de uma cultura relativamente similar, os alto-xinguanos não abrem mão de suas respectivas identidades étnicas.
É no zelo de manter-se uno que cada grupo se distancia dos demais, ressaltando seus traços diferenciados, competindo para obter maior prestígio, em articulações que resvalam por vezes em hostilidade. O jawari constitui assim a síntese de uma das faces do convívio que marca expressamente a identidade de cada grupo. É no kwarup que os índios se identificam como alto-xinguanos.
A troca de bens, por sua vez, tem sua importância reafirmada no moitará, marco da estreita vinculação econômica entre os grupos (a respeito do moitará, ver item “Reciprocidade Kamaiurá e o Moitará”).
Reciprocidade Kamaiurá e o Moitará
Entre parentes co-residentes ou não há regras preestabelecidas para a retribuição de serviços prestados e a reciprocidade envolvida em atos de presentear. Quanto maior o prestígio da pessoa, mais generosa ela deve ser e maior sua disposição de distribuir presentes. Assim, numa casa, o maior doador tende a ser seu dono, isto é, o líder do grupo de parentes.
Amigos fazem troca de bens sob a forma de presentes, em que a obrigatoriedade da retribuição não é explicitada formalmente. Já a prestação de serviços rituais, como xamanismo e procedimentos ligados ao enterramento de mortos, é retribuída formalmente com artigos de alto valor, usualmente colares de conchas de peças cilíndricas.
O grande xamã tem oportunidade de ter em mãos bens de muito valor em troca dos serviços prestados. Mas será levado a redistribuir o que recebeu, seja porque é chefe da aldeia, dono de casa ou mesmo homem de prestígio. Portanto, o status diferenciado não se coaduna com a acumulação de riquezas. A prática social, ao fornecer ao indivíduo possibilidades de aumento de prestígio, garante que a redistribuição atue como sustentáculo do poder, em forma de generosidade.
Por meio da prática alto-xinguana do Moitará, duas outras formas de transação têm caráter cerimonial: a troca entre casas e entre aldeias. No interior da aldeia, um grupo formado por homens ou mulheres, mas nunca misto, chega à casa onde deverá realizar a troca. As mulheres, mais recatadas, costumam chegar silenciosamente, portando artigos de sua propriedade. São recebidas pela esposa do dono da casa, que faz circular cuias com castanha de pequi e cauim. As visitantes tomam a iniciativa da primeira oferta: depositam no chão, próximo à entrada, o artigo que desejam trocar. O artigo circula pelas mãos das mulheres da casa até que a interessada deposite sua oferta. Procede-se novo exame das qualidades do bem. Concluída a troca, o objeto é retirado do solo. À medida que o entusiasmo toma conta dos participantes, torna-se difícil distinguir de quem são os lances, tal a quantidade de objetos no chão e na mão das mulheres. Esgotados os artigos dos visitantes, estes retornam à sua casa. Posteriormente, dando prosseguimento ao Moitará, as mulheres da casa visitada é que vêm à casa do grupo anteriormente visitante, reiniciando a troca.
Os homens têm procedimento mais ruidoso. Ao chegarem à casa onde pretendem trocar, anunciam à aldeia o evento gritando “Moitará! Moitará!”. Muitos se aproximam. As transações se realizam dentro dos mesmos padrões descritos. Aos brancos que visitam a aldeia freqüentemente é proposto um Moitará.
Já no Moitará interaldeias, homens, mulheres e crianças partem levando tudo que possa ser trocado, sob a chefia do líder. Na aldeia visitada, são acomodados pelo chefe local, de quem recebem beiju e peixe. Todas as trocas são feitas por intermédio desses respectivos chefes de aldeia. Estes recebem os objetos e tomam conhecimento das pretensões de troca de seu proprietário. Feita a oferta, os interessados do outro grupo manifestam-se por meio de seu chefe; não há lugar para as trocas diretas e informais entre os indivíduos. Antes da realização da troca, os homens dos dois grupos lutam huka-huka.
Trocas especializadas
Muitos dos bens trocados no moitará são referentes às especializações de cada etnia. No sistema alto-xinguano de trocas especializadas, a produção de arcos era atribuída aos Kamaiurá, exímios em sua fabricação. Mas a introdução de armas de fogo na área afetou bastante a utilidade do arco, que hoje é mais um símbolo do grupo do que artigo de troca.
Dois tipos de bens de uso corrente entre os Kamaiurá são produzidos por outros grupos da área: panelas de cerâmica e cintos de concha de caramujo. Fruto da especialização wauja, a cerâmica é imprescindível à elaboração de alimentos básicos, como beiju e mohete. Colares e cintos de concha, elaborados pelos Kuikuro e Kalapalo, fazem parte da indumentária nativa. A fim de obter esses produtos, os Kamaiurá realizam visitas esporádicas aos grupos especialistas.
Os Kamaiurá ainda se auto-designam ótimos especialistas em cesta, arremessador de flechas usado no Jawari, canoa de casca de jatobá, rede de dormir e de pescar e flauta jakui. Dizem ainda serem os melhores na construção de casas.
Com relação aos demais bens produzidos pelos alto-xinguanos, os Kamaiurá atribuem valor diferencial a alguns deles: os Wauja são tidos como os melhores produtores de sal, pimenta e panelas de cerâmica; os Kalapalo, de colares de caramujo, cestos e esteiras; os Mehinako, de panela do mesmo tipo wauja e sal; os Kuikuro de flecha com duas pontas para pesca e colares de caramujo.
Depoimento Kamaiurá: um povo ensinando outro povo
Os brancos aprenderam com os índios alguns passos de danças, fumar tabaco, fazer cerâmica, rede, beiju, mingau, motap ou pirão de mandioca, milho, guaraná, tomar banho, remédios, flautas, chocalhos, muitas palavras das línguas indígenas que passaram para a língua portuguesa.
Existem panelas, panelões e tachos de fazer beiju feitos de barro, de origem Waurá. Usamos esses objetos por necessidade própria. Na alimentação usamos sal de aguapé feito pelos Aweti e Mehinako.
Na dança e festa temos Takwara que os povos do Alto Xingu aprenderam com Bakairi. Essa dança se expandiu de aldeia em aldeia até chegar no Kamaiurá. Hoje nessa festa tocamos as músicas de origem Yudjá.
A famosa festa Jawari que é celebrada pelos povos indígenas do Alto Xingu, de ano em ano, é de origem Trumai. Essa festa é celebrada para tirar tristeza ou luto e queimar objetos que eram do parente morto, por exemplo, arco ou lança para flecha.
A influência mais freqüente e mais ameaçadora que vivemos hoje é da cidade. Como exemplo vou citar algumas: máquinas, alimentação, roupas, escolas, unidade básica de saúde, medicamentos, futebol, ouvir música e muitas coisas. Tenho uma observação para colocar a respeito disso: tem algumas coisas que são importantes entre estas que citei, outras não. É bom lembrar que é bom aprender a usar as coisas mais importantes da cidade e é preciso tomar muito cuidado com as outras coisas que não prestam.
Cosmologia
Nos relatos Kamaiurá é possível distinguir três marcos de sua história: o tempo mítico, ocasião em que se deu a criação do homem; o tempo dos avós, no qual o índio ainda não tivera contato com o branco; o tempo presente, que compreende os primeiros encontros com o branco até a época atual. Entretanto, o tempo presente traz em si a essência da visão de mundo tal como concebida no tempo mítico.
Presente em todas as versões do ato de criação está a concepção de que Kamaiurá e branco foram concebidos de forma semelhante. Por vezes, os dois são apresentados como gêmeos. Em outra versão, o herói criador Mavutsinin escarifica o Kamaiurá e põe o sangue vertido no branco. Mavutsinin criou a ambos com a intenção de formar uma grande aldeia no Morená. Quando os dois se tornaram adultos, Mavutsinin fez um arco preto e uma arma de fogo. Chamou os rapazes e colocou-os diante dos objetos. Mandou que o Kamaiurá pegasse a arma de fogo, mas ele encantou-se pelo arco preto e o apanhou. Mavutsinin insistiu para que mudasse sua escolha, mas o índio a manteve. O branco pegou então a arma de fogo para si. Irado com o desfecho dos acontecimentos, Mavutsinin ordenou que o branco fosse para longe e que o Kamaiurá ficasse por ali mesmo. O criador deu ao índio o peixe e o beiju, dando ao branco o porco, o arroz, a gordura, o tijolo, o machado e uma lista interminável de bens. Outros povos alto-xinguanos também foram criados por Mavutsinin. Já os Txucahamãe, os Yudjá e os Suyá são filhos de cobra e por isso são agressivos.
Segundo a mitologia Kamaiurá, o herói cultural Mavutsinin trabalhou a madeira Kwarup e modelou cinco postes. Depois de cantar e tocar maracás um dia e uma noite, os postes começaram a mover-se, de início com dificuldade, até ganharem maior liberdade de movimentos. A esses homens, Mavutsinin ensinou a tomar banho ao amanhecer, a assobiar e ter relações sexuais pela manhã bem cedo, antes de nascer o sol. Em seguida, deu-lhes instrumentos: arcos de madeira preta aos Kamaiurá, panelas aos Wauja, colares aos Kuikuro e Kalapalo.
Para os Kamaiurá, quando o índio morre, sua alma vai para uma aldeia celeste, réplica da aldeia terrena. Mas lá a vida não é como em Ipavu: as almas andam sempre enfeitadas, não trabalham, só dançam e jogam bola; não se come peixe ou beiju, mas grilo e batata. Assim, quando alguém morre, deve-se enterrá-lo enfeitado para que sua alma assim permaneça. Acompanham o corpo flechas, se for homem, e fuso, se for mulher – pois as almas precisam se defender dos ataques dos passarinhos que, em encontros periódicos, tentam arrancar-lhes pedaços para levar ao gavião. Alma sem defesa é morta, acaba de uma vez.
Atividades produtivas
No processo de produção de alimentos, a agricultura ocupa lugar de destaque. Dela provém os ingredientes fundamentais para a elaboração do beiju, produto básico da alimentação Kamaiurá.
Os moradores de uma casa organizam o trabalho de produção de mandioca sob a coordenação do dono da casa. Tanto na abertura da roça como na colheita, o trabalho pressupõe cooperação entre o grupo doméstico, mesmo que cada família nuclear possua sua própria roça.
Os homens preparam a roça e as mulheres retiram a mandioca do solo. Várias delas participam da colheita de uma mesma roça. Na aldeia, a mandioca é processada pela mulher, que dela extrai a poupa e o polvilho, ambos ingredientes fundamentais para o preparo do beiju. Outro alimento que se obtém da mandioca é o mohete, caldo grosso e adocicado que resulta da fervura da água que lavou a polpa.
Depois de secos, a polpa de mandioca e o polvilho são armazenados dentro da casa em depósitos cilíndricos que variam de 2,40m a 2,60 m de altura por 0,80m a 0,85 m de diâmetro. Constitui reserva para uso diário e para a alimentação durante as chuvas. Caso algum membro residente tenha de assumir a responsabilidade de distribuir beiju em situações cerimoniais, inicia-se produção extra, que fica em recipiente distinto. O produto derivado da mandioca é armazenado em lugar comum dentro da casa, sendo portanto de consumo coletivo, independente da participação que cada um teve na sua produção.
Assim como o processamento da mandioca, a elaboração do beiju é tarefa feminina. Várias vezes por dia, ativa-se o fogo sob a chapa de cerâmica onde se assa o beiju. Ali mulheres se alternam, ora assando apenas para o marido e filhos, ora para todos os moradores. Come-se beiju a toda hora: com peixe assado ou ensopado, apenas com pimenta, puro ou dissolvido na água, ou ainda sob a forma de cauim.
Há ainda uma distribuição de beiju entre as casas da aldeia que não reflete uma necessidade de consumo, uma vez que todas produzem o alimento, mas que põe em evidência a fartura e a generosidade do grupo doméstico doador, características bastante valorizadas por essa sociedade. Mesmo durante as chuvas, quando a pesca é pouco produtiva e é baixo o estoque de mandioca, por vezes leva-se beiju com peixe ensopado a outras casas. A distribuição de alimento ultrapassa os limites da aldeia, uma vez que nos encontros cerimoniais cabe sempre ao grupo hospedeiro fornecer farta alimentação aos convidados.
O peixe, juntamente com o beiju, constitui primordial alimento Kamaiurá (assim como dos demais alto-xinguanos), sendo a única fonte regular de proteína animal. São várias as técnicas utilizadas, cada qual exigindo diferentes formas de cooperação. Assim, a técnica do timbó, que consiste no envenenamento de águas previamente represadas, envolve a participação da maioria dos homens da aldeia. Os peixes mortos, quer pelo efeito do veneno, quer flechados, são moqueados no próprio local da pescaria. Menor número de homens participa da pesca com rede de nylon, cujas operações dispensam cooperação mais ampla. Já as várias formas de pesca com arcos e flecha, pequenas redes nativas, armadilhas e anzol são realizadas por um ou dois indivíduos, ou entre os membros da família nuclear.
Enquanto na seca o peixe faz parte da dieta de todo dia, nas chuvas sua relativa escassez é compensada com alimentação mais variada, como milho, mamão, abóbora, melancia, entre outros. A agricultura Kamaiurá ainda inclui o cultivo de outras plantas tanto para fins cerimoniais (urucu e fumo), como para atender à produção de diversos bens artesanais (cabaça e algodão). Nesses casos, o trabalho de plantio e colheita é usualmente individual, sendo que homem cuida do fumo e mulher do algodão.
A caça de algumas aves e pequenos animais, assim como a coleta de frutos silvestres, colaboram também para uma alimentação variada, mas desempenham papel secundário no que diz respeito à produção de alimentos. Com relação à caça, o trabalho masculino é quase sempre individual, os principais objetivos são garantir alimento para a harpia (cuja presença é característica das aldeias alto-xinguanas e que fica presa numa grande gaiola cônica, feita de varas), substituir o peixe na dieta de pessoas atingidas por tabus alimentares e obter penas para a produção de artesanato.
Na coleta, o trabalho é usualmente coletivo e envolve a participação de mulheres e crianças. Os principais produtos são mel, pequi, jenipapo, mangaba, formigas, ovos de tracajá e lenha. Dentre eles, a castanha extraída do pequi destaca-se dos demais como alimento cerimonial distribuído por ocasião do Kwarup.
Em relação à produção de artefatos e indumentária, ainda que boa parte da matéria-prima usada na elaboração seja fruto de trabalho cooperativo no grupo familiar, os artigos finais são criados através de operações individuais. Mas o artesão nem sempre se torna o proprietário do novo bem, principalmente em relação aos instrumentos de trabalho.
Artigos de metal, dos quais depende a quase totalidade das atividades produtivas masculinas, não substituíram integralmente o artesanato indígena usado pelas mulheres na produção de alimentos. Assim, panelas e caldeirões de metal competem com as cuias usadas no transporte e armazenamento de água, sem entretanto, ameaçar a posição das panelas de cerâmica, elemento central da cozinha Kamaiurá, obtidas através da troca com o grupo wauja.
Grande parte dos materiais empregados na elaboração do artesanato é de origem nativa – madeira, embira, fibra de buriti, algodão etc. Mas usam-se também produtos industrializados, como contas e miçangas de porcelana e vidro, fio de lã e de algodão, lata, prego, corante etc. Dentre esses itens, o fio de lã compete com o de algodão nativo e tende em alguns casos (como para a confecção de redes de dormir) a substituí-lo integralmente. Outros, como as contas e miçangas, altamente valorizadas na elaboração de colares e cintos, não diminuíram a importância dos similares nativos – de contas de caramujo – produzido pelos Kalapalo e Kuikuro.
Educação indígena
Desde 2000, dois jovens participam do '''Curso de Formação de Professores''', projeto do Instituto Socioambiental no Parque Indígena do Xingu. Além disso, os Kamaiurá estão organizando a Associação Mavutsinin para desenvolver projetos específicos, como a Escola da Cultura, que tem apoio da Funai, em que homens e mulheres mais velhos ensinam as crianças e jovens a dançar, cantar, fazer artesanato e conhecer as histórias do povo.
Fontes de informação
- AGOSTINHO DA SILVA, Pedro. Mito e outras narrativas Kamayura. Salvador :Editora da UFBA, 1974.
- BASSO, Ellen B. The last cannibals : a South American oral history. Austin : Univ. of Texas Press, 1995. 335 p.
- BASTOS, Rafael José de Menezes. Exegeses Yawalapití e Kamayurá da criação do Parque Indígena do Xingu e a invenção da saga dos irmãos Villas-Bôas. Rev. de Antropologia, São Paulo : USP, n.30/32, p. 391-426, 1992.
- --------. Indagação sobre os Kamayurá, o Alto-Xingu e outros nomes e coisas : uma etnologia da sociedade Xinguara. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, n. 94, p. 227-69, 1995.
- --------. Musical cognition and structure : the case of the Yawari of the Kamayura indians of Central Brazil, Xingu Indian Park, Mato Grosso. La Educación, Washington : OEA, v. 36, n. 111/113, p. 227-33, 1992.
- --------. A musicológica Kamayura : para uma antropologia da comunicação no Alto Xingu. Brasília : UnB, 1976. (Dissertação de Mestrado). Publicada com o mesmo título em 1978 pela Funai.
- --------. O “Payemeramaraaka” Kamayurá : uma contribuição à etnografia do xamanismo do Alto Xingu. Rev. de Antropologia, São Paulo : USP, n. 27/28, p.127-38, 1984/1985.
- --------. Ritual, história e política no Alto-Xingu : observação a partir dos Kamayura e da festa da Jaguatirica (Yawari). Florianópolis : UFSC, 1998. 42 p. (Antropologia em Primeira Mão, 27)
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