O marco temporal e a reinvenção das formas de violação dos direitos indígenas
por Juliana de Paula Batista e Maurício Guetta, advogados do ISA. Texto publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016
A teoria do "marco temporal", que vem sendo aplicada para anular demarcações de TIs no Judiciário, mantém o histórico processo de violência e negação dos direitos territoriais indígenas – agora por meio de uma interpretação restritiva da Constituição, que legitima essas mesmas violências
Em entrevista publicada na edição 2001-2006 do livro Povos indígenas no Brasil, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro escrevia sobre “tornar-se índio: um problema para o Judiciário”. Na época, ele mencionava as declarações do então presidente da Fundação Nacional do índio (Funai), Mércio Gomes, para quem o Supremo Tribunal Federal (STF) teria que definir “um ‘limite’ para as reivindicações cada vez mais ‘excessivas’ por novas Terras Indígenas”.
Para Viveiros de Castro, “o Mércio está dizendo a mesma coisa dos governos da ditadura. Em essência, ele está dizendo que tem índio demais”. Castro, então, ironiza: “Sejamos liberais: não é preciso matar ninguém; os índios que temos são bons; são mesmo necessários. Mas, sobretudo, eles são suficientes. Vamos fechar a porteira. Vamos fazer uma escala. (...) Onde vai parar o corte? Na cara de quem vai se fechar a porteira?”.
A resposta a essas indagações veio no julgamento, em março de 2009, do paradigmático caso sobre a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol (RR), pelo STF1. A decisão estabeleceu 19 “condicionantes” ou “salvaguardas”. Nenhuma delas, contudo, refere-se ao “marco temporal de ocupação indígena”.
Não obstante, foi nesse julgamento que o STF aplicou a teoria do “marco temporal de ocupação”, segundo a qual exige-se a presença dos índios na área objeto da demarcação no dia 5 de outubro de 1988 para que sejam reconhecidos seus direitos originários. Noutros termos, o STF interpretou o artigo 231 da Constituição, enunciando que a expressão “terra que tradicionalmente ocupam” deveria ser lida como “terras que tradicionalmente ocupam na data de 5 de outubro de 1988”.
Muito embora a decisão não tenha efeitos vinculantes, ou seja, não obrigue juízes e tribunais a aplicar o mesmo entendimento a outros processos relativos a TIs, a tese do “marco temporal de ocupação” passou a orientar a hermenêutica do artigo 231 da Constituição Federal e constitui precedente judicial que, nessa condição, está a influenciar decisões em todas as instâncias do Poder Judiciário. Os resultados têm sido a anulação de processos de demarcação2, aumento dos conflitos no campo, insegurança jurídica e incertezas sobre os direitos territoriais indígenas.
A tese do “marco temporal de ocupação”, no entanto, é juridicamente questionável sobre diversos aspectos. Primeiramente, porque sempre que as Constituições Federais3, desde 1934 até a de 1988, quiseram trabalhar com “data certa” elas o fizeram de forma expressa: jamais deixaram ao arbítrio do julgador estabelecer quais seriam os “marcos temporais” de sua aplicação.
Sobre o assunto, o constitucionalista José Afonso da Silva bem anotou: “Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data se ela nada diz a esse respeito, nem explícita, nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário se se ler com a devida atenção o caput do art. 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa”. E completa: “Deslocar esse marco para ela [a Constituição de 1988] é fazer um corte na continuidade da proteção constitucional dos direitos indígenas, deixando ao desamparo milhares de índios e suas comunidades, o que, no fundo, é um desrespeito às próprias regras e princípios constitucionais que dão proteção aos direitos indígenas. Vale dizer: é contrariar o próprio sistema constitucional, que deu essa proteção continuadamente”.
Condicionar as demarcações à presença dos índios nas terras em data certa também nega a histórica vulnerabilidade dos indígenas ante as violências que permearam o processo pós-colonial, a abertura das frentes de expansão pelo Brasil e as violações de direitos durante o período da ditadura militar, conforme denunciou, recentemente, o relatório da Comissão Nacional da Verdade4.
Além disso, o “marco temporal” também desconsidera as especificidades culturais de cada etnia, em contrariedade ao que estabeleceu o constituinte originário: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. A genealogia desse reconhecimento precisa considerar os princípios hermenêuticos garantidores da força normativa da Constituição e da máxima efetividade das normas constitucionais, no sentido de respeitar as cosmovisões indígenas garantidas pela Constituição, bem como extirpar imposições culturais etnocêntricas.
Para tanto, a análise do que é uma “terra tradicionalmente ocupada” requer que não se tente definir “o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do modo de produção capitalista ou socialista, a visão do bem-estar do nosso gosto, mas segundo o modo de ser deles, da cultura deles”5, como remarca José Afonso da Silva.
Não bastasse tudo isso, o debate em questão ainda impõe outra reflexão. Se a sobrevivência física e cultural dos indígenas depende necessariamente de estarem na posse de suas terras tradicionais, tal como estabelece a própria Constituição, anular processos de demarcação com base no “marco temporal”, além de se mostrar juridicamente questionável, tem como efeito direto e inexorável condenar os indígenas ao relento da assimilação forçada, paradigma que, este sim, a Constituição quis deliberadamente estancar. Em última instância, é, ainda, negar o direito fundamental à identidade étnica, pois sem terras não há índios ou coletividades indígenas.
O renitente esbulho
O “marco temporal”, de acordo com o STF, só não seria aplicável naqueles casos em que se comprove a ocorrência de “renitente esbulho”6, ou seja, em que se demonstre que os indígenas foram retirados à força de suas terras e, por isso, não detinham a posse permanente da área em 5 de outubro de 1988.
Todavia, no julgamento que anulou a demarcação da TI Limão Verde7, ao aplicar o “marco temporal”, a Segunda Turma do STF criou concepção altamente restritiva sobre como deveria ocorrer a prova do “renitente esbulho”. De acordo com esse julgado, a comprovação do “renitente esbulho” pode se dar pela demonstração de duas hipóteses: a primeira, por conflito que tenha perdurado até a promulgação da Constituição Federal de 1988, materializado por “circunstâncias de fato”; a segunda, pela existência de ação judicial possessória.
No tocante à primeira, vincular o direito dos indígenas à manutenção de um conflito até 5 de outubro de 1988 não é nada crível, pois é latente tanto o grau de violência que subjaz estes conflitos quanto a extrema vulnerabilidade das comunidades indígenas. Quem, em pleno gozo de suas faculdades mentais, manter-se-ia em conflito com fazendeiros fortemente armados ou resistiria ao aparato repressivo do Estado?
Ora, exigir a existência de um conflito deforma por completo os fundamentos que justificam a própria existência do Estado, a essência dos princípios republicanos, bem como a base ontológica das garantias fundamentais: exigir conflito é reinstaurar a “guerra de todos contra todos”.
Demais disso, é importante destacar um dos pontos levantados por Deborah Duprat em um artigo que problematiza a ideia de “renitente esbulho” aplicada ao caso da TI Limão Verde, recuperando a obra do antropólogo James Scott. Ela lembra que, conforme o autor, grupos historicamente subordinados costumam travar “pequenas guerrilhas silenciosas”, com impacto maior do que rebeliões, revoltas e levantes: “Ele tem em mente armas comuns, tais como corpo mole, a dissimulação, a submissão falsa, as sabotagens, os saques, os incêndios premeditados, a ignorância fingida, a fofoca. Se nós pegarmos os laudos de todas as áreas indígenas, todos eles relatam vários episódios de quebrar a cerca, do furto do gado, do colocar fogo na área, daquelas pequenas sabotagens cotidianas. Essa é a forma de resistência possível a esses grupos. Então, como considerar que não houve resistência ao esbulho? E só por uma visão hegemônica, por uma visão que referenda uma concepção de posse que é particularidade de um determinado segmento da sociedade. Não faz jus mais ao pluralismo, não faz jus sequer ao direito civil - lembrando que o estatuto da questão indígena é constitucional, não civil”.
Quanto à segunda hipótese, qual seja, a existência de controvérsia possessória judicializada, vale lembrar que os indígenas eram impedidos de figurar como partes em juízo até o advento da Constituição Federal de 1988, quando foram liberados do regime tutelar e tiveram reconhecida sua capacidade processual pelo artigo 232. Aliás, muitas comunidades nem mesmo dispunham de relações com a sociedade nacional ou detinham conhecimento suficiente da legislação para formalizar denúncias ou mover ações judiciais - de modo que não é razoável destituir os índios dos seus direitos em decorrência de eventual omissão da União no exercício da tutela.
Já o Ministério Público sequer tinha atribuição para propor, sem a provocação da União, “as medidas judiciais adequadas à proteção da posse dos silvícolas sobre as terras que habitem” (artigo 36, da Lei n° 6.001/1973), já que a sua estruturação para a defesa dos direitos e interesses coletivos dos indígenas consolidou-se apenas com o advento da Constituição Federal de 1988.
De mais a mais, o Estado, o Serviço de Proteção ao índios (SPI) e sua sucessora, a Funai, muito embora tutelassem os indígenas, eram os principais responsáveis pelas ações ou omissões de violação de seus direitos, de forma que não ajuizaram “demandas possessórias” para resguardar os índios e proteger as TIs.
A decisão restringe, ainda, a amplitude probatória estabelecida pela legislação processual, dado que existem muitas outras formas legítimas de se comprovar a ocorrência do renitente esbulho - documentos, registros históricos, jornalísticos, cartas das comunidades aos órgãos públicos competentes, entre outros documentos, a ser considerados conforme as peculiaridades de cada caso concreto.
A valer a conclusão da Segunda Turma para o caso da TI Limão Verde, as provas disponíveis e a forma encontrada por cada comunidade para documentar as violências das quais foram vítimas não serão consideradas pela mais alta corte do país. Temos que lembrar que a tradição jurídica que privilegia a escrita, a documentação e a judicialização dos conflitos é “natural” para a nossa “metafísica dos costumes”, entretanto, pouco familiar para os povos indígenas, minorias étnicas de tradição eminentemente oral.
Ademais, ao requerer prova que sequer era exigível ao tempo da ocorrência dos esbulhos, a Segunda Turma se vale da “flecha lançada” e da “oportunidade perdida” para engendrar um alto requinte burocrático na comprovação de violências, transferindo para os violentados o ônus da prova.
Diante do reconhecimento da “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” dos índios, a maneira plausível de se garantir direitos territoriais indígenas seria a partir de um exercício hermenêutico e intercultural que buscasse analisar os esbulhos segundo a lógica própria de cada povo.
Para isso, há de se verificar o histórico de remoção dos índios de suas terras, por que e em que condição saíram delas, os meios dos quais dispunham para denunciar ou resistir aos esbulhos, dentre outras perspectivas, exercício que coloca em diálogo intercultural as sensibilidades jurídicas envolvidas no processo. Senão, ao fim e ao cabo, fecha-se a porteira e legitimam-se no tempo e nos direitos as antigas, e agora reinventadas, formas de exclusão dos direitos indígenas.
E agora, José?
Anuladas as demarcações de TIs com fundamento no “marco temporal” ou na desconsideração da ocorrência do “renitente esbulho”, para onde irão os indígenas?
A teoria do “marco temporal”, tal como está posta, mantém o histórico e secular processo de violência e negação dos direitos territoriais indígenas, agora, por intermédio de uma interpretação constitucional restritiva e que legitima essas mesmas violências. Nesse sentido, é preciso indagar muito seriamente: o que os Poderes da República, diante dos direitos fundamentais garantidos à pessoa humana e aos índios em particular, farão com os índios e seus direitos?
Afinal, a aceitar a teoria do “marco temporal”, então é fundamental que se investigue: se não estavam os índios nas terras que hoje reivindicam, onde estariam em 5 de outubro de 1988?
E por que não estavam a exercer seu direito territorial e a ocupar suas terras tradicionais? As decisões judiciais que consideram o “marco temporal” determinarão providências específicas ao Poder Executivo, tal como a abertura de novos processos de demarcação de terras, para que se possa aferir onde estavam os índios em 5 de outubro de 1988, e, assim, proceder a demarcação? Farão perícias para identificar esses lugares? Assegurarão que os indígenas continuem em suas terras até que se encontre uma alternativa ou solução para os graves conflitos fundiários que envolvem a demarcação? Ou continuarão apenas a condenar os indígenas ao degredo de sua condição étnica e à manutenção, ad eternum, de direitos válidos e jamais eficazes?
Caso seja sedimentada a teoria do “marco temporal” para todas as TIs, a desconsiderar que os índios constituem coletividades reais, vulneráveis, portadoras de identidade étnica minoritária e que dependem de segurança territorial para continuar existindo, estaria a se validar a assimilação forçada que a Constituição Federal quis estancar e, também, todas as violações de direitos fundamentais, notadamente de direitos territoriais, perpetradas historicamente contra os índios no Brasil.
Compreendemos que todo o conjunto de princípios que rege a tradição republicana e democrática, (re)inaugurada a partir de 5 de outubro de 1988, aponta na direção de uma justiça de transição efetiva, que contemple os povos indígenas no âmbito da reparação e da efetividade de seus direitos civis, econômicos, sociais, culturais, tão atrozmente violentados antes e durante a ditadura militar. A prosperar a “linha de corte” imposta pelo “marco temporal”, o direito fundamental de ocupar uma terra segundo usos, costumes e tradições indígenas, reconhecido pela Constituição Federal de 1988, terá tido validade por apenas um dia, não traduzindo garantia permanente de direitos.
Dessa forma, espera-se que nos próximos anos o STF pondere as graves consequências e violações de direitos fundamentais que vêm sendo legitimadas pela teoria do “marco temporal de ocupação” e adote técnica de decisão que possa melhor traduzir o real sentido dos direitos fundamentais garantidos aos índios pelo constituinte originário de 1988.
Notas
1 Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Petição n.° 3.388/RR. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. DJe 01.07.2010.
2 Com fundamento na tese do “marco temporal de ocupação”, o Supremo Tribunal Federal anulou a demarcação da Terra Indígena Guyraroká, no Mato Grosso do Sul. Para maiores informações, vide: Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. RMS n° 29087/DF. Relator para Acórdão Ministro Gilmar Ferreira Mendes. DJe 14/10/2014.
3 Nesse sentido, vide o artigo 119, § 6o e 133, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934; o artigo 242, da Constituição Federal de 1988; os artigos Io, 19, 21, 29, § 3o, 43, 58 e 69, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
4 KEHL, Maria Rita. Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas. Disponível online.
5 SILVA José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38a ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 874-875.
6 Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Pet. n° 3.388/RR. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. DJe: 01/07/2010.
7 Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. ARE n° 803.462-AgR/MS. Relator: Ministro Teori Zawascki. Dje: 12/02/2015.</htmltag>