De Povos Indígenas no Brasil
The printable version is no longer supported and may have rendering errors. Please update your browser bookmarks and please use the default browser print function instead.

"Se não tiver mais reza o mundo vai acabar"

por Estela Vera

Foto: Lauriene Seraguza, 2016
Foto: Lauriene Seraguza, 2016


Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar. Tudo vai acabar, os sinais de que o mundo está acabando já estão aparecendo. Hoje temos menos rezadores (opuraheiva), chuvas sem limite. Está tudo fora do tempo.

No mundo todo está acontecendo isso, não é só no Brasil. Aqui estamos um pouco mais protegidos porque ainda temos opuraheiva. Tudo vai estar perdido. Os cantos hoje estão muito mais curtos (mbyky) do que eram antes e os seres humanos estão morrendo muito antes nos tempos de hoje. Pelo jeito vai continuar assim, por causa do canto curto, que não é mais como o antigo (longo, puku).

Vivo com a minha reza ainda pela vida dos inocentes, pois ainda aparecem crianças que esperam muitas coisas de mim. Por isso tenho forças para continuar a minha vida como opuraheiva.

Se hoje o mundo ainda não acabou é pela vida destes inocentes, pois, do mesmo jeito que o Kuarahy (Sol) ilumina a gente, ele pode sumir e acabar com tudo. Isso vai acontecer quando acabarem os opuraheiva. Kuarahy pode fazer uma troca e nos devolver o que fizemos contra terra, para então, renovar e começar tudo de novo. […]

Nós opuraheiva somos diferentes dos crentes, dos evangélicos. Nós pedimos pela vida de todas as pessoas, pedimos para melhorar cada vez mais o nosso mundo. Os crentes pedem para Jesus vir logo, acabar com tudo e levá-los embora para junto dele.

Não é o mundo que precisa de solução, somos nós que estamos fazendo tudo errado. Nós é que não obedecemos mais as inspirações que Kuarahy nos deixou, não estamos sendo obedientes a ele e por isso, ele já se cansou de nós.

Temos que obedecer o hembijoykue, as inspirações que Kuarahy nos deixou. Jasy e Kuarahy são como açúcar pra nós: Jasy é responsável pela gravidez das mulheres; nos torna doces. Jasy é como açúcar e Kuarahy é como uma flor. O batismo deles se chama: Kaaguy yvoty, Kuarahy e Kaaguy açuca´i, Jasy. Por isso ainda hoje tem mulheres com filhos gêmeos: Jasy e Kuarahy são gêmeos e deixaram para ser assim na terra.

Eu me sinto muitas vezes presa, pois não sei onde vou fazer a minha reza, para quem vou contar os meus cantos, o meu conhecimento. Durante os meus sonhos, sou cobrada para fazer a minha reza e os meus cantos. Sonho sempre que tenho que rezar com dois meninos e duas meninas moça, durante quinze dias, para continuar a saber o que vai acontecer no nosso mundo. Mas acordo e penso: pra quem vou fazer meus cantos, minhas rezas? Para quem vou contar minhas histórias. Quem será que está interessado?

No Paraná, um vento forte levou um pindó (coqueiro) e o deixou em cima de um rio. Nós estamos assim, em cima de um rio, e a qualquer momento vamos saber o que vai nos acontecer. Eu me comparo com este pindó: a qualquer momento Ñandejara (“Nosso Deus”) pode vir e tirar minhas raízes, me levar embora pra sempre, sem deixar semente nenhuma. [...]

Esta é minha palavra.

Depoimento recolhido e transcrito por Lauriene Seraguza (Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo) e traduzido em conjunto com Jacy Caris Duarte Vera (Licenciada em Ciências da Natureza, professora Ava Guarani), em fevereiro de 2016

Uma mulher contra o fim do mundo

por Lauriene Seraguza

Estela Vera tem cerca de 70 anos e é uma opuraheiva (rezadora/xamã) do povo Ava Guarani. Ela vive no tekoha (território tradicional) Potrero Guasu, no município de Paranhos, em Mato Grosso do Sul – uma área declarada como Terra Indígena desde o ano 2000, mas ainda não demarcada pelos órgãos oficiais, apesar de historicamente pertencer aos povos falantes de guarani. Com uma população atual de 200 pessoas, o tekoha está na região de fronteira seca com o Paraguai.

À espera da demarcação e proibidos de usufruir plenamente de seu território, os Ava Guarani em Potrero Guasu vivem obrigados a uma relação desigual com o mundo não indígena e expostos a violências e pressões desmedidas de fazendeiros, de igrejas e do Estado, em detrimento de suas práticas de conhecimento e do bem viver.

Segundo Estela, o fim do mundo já está acontecendo; seus indícios e consequências são a desvalorização das rezas/cantos, a diminuição dos rezadores, a aceleração do tempo, as mudanças climáticas, em virtude da impossibilidade de circulação dos conhecimentos xamânicos e da oguata porã, a mobilidade desejada no território.

Desafiando o que dizia Egon Schaden nos anos 1940 – sobre a cultura guarani ser marcadamente masculina –, a voz de Estela vem se somar às de outras mulheres: com sua reza/canto que “levanta” e com sua fala “afiada”, ela evidencia ser possuidora de uma ne’ẽ (palavra/alma) eminente – como também são percebidas as mulheres Guarani e Kaiowa. Sua fala acentua a importância da ação política das mulheres na produção da vida social e de mundos Guarani e Kaiowa nutridos pela complementariedade nas relações entre mulheres e homens. Sem mulher não há tekoha.