De Povos Indígenas no Brasil
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Terra Indígena: pela preservação da identidade
22/11/2012
Fonte: Cidade Nova n. 11, nov. 2012, p. 18-22
Documentos anexos
Terra Indígena: pela preservação da identidade
SOCIEDADE A histórica luta dos povos indígenas brasileiros pelo reconhecimento de sua identidade cultural e pela demarcação de terras traz ao debate a necessidade de políticas públicas que levem em conta a diversidade e englobem a autonomia dessa população no gerenciamento do próprio território
Ana Carolina Wolfe
A tríade da Revolução Francesa de 1789 - liberdade, igualdade e fraternidade - é a base para qualquer reflexão sobre a equivalência política dos cidadãos ou seus direitos. Foram esses princípios, em especial a igualdade, que ajudaram a promover avanços sociais significativos primeiramente na França, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. No Brasil, o conceito de igualdade esteve particularmente em evidência, de maneira distorcida, cora o regime militar (1964-1985): a homogeneização cultural era necessária para manter a ordem e o poder vigente.
"Quando era estudante, na época da ditadura, éramos bombardeados pela ideia de que somos um só povo, unia só cultura, uma só língua. Tudo o que percebíamos de diferença no Brasil era rotulado como atraso, que vai ser superado. O índio, nessa consciência, era algo residual. As constituições anteriores previam os direitos dos índios, mas na perspectiva de que eles seriam assimilados", relata José Augusto Sampaio, antropólogo e membro do conselho diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí).
Com o processo de redemocratização, houve um resgate da diversidade cultural brasileira. Além disso, a promulgação da Constituição de 1988 garantiu os direitos humanos no país. O princípio da igualdade continuou presente na abertura do capítulo que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)".
Embora a Constituição brasileira seja considerada internacionalmente uma das mais avançadas no campo dos direitos humanos. "a velha forma de relação do Estado com os povos indígenas ainda continua. Por isso, mesmo que a Constituição Federal os reconheça como autônomos e assegure seus usos, costumes e tradições, a dominação sobre eles permanece", destaca Saulo Feitosa, secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo da Igreja católica que trabalha pela autonomia dos povos indígenas. "No que se refere às estruturas, é preciso que a concepção de Estado-Nação seja substituída pela de Estado Plurinacional, somente assim os vários povos indígenas terão suas nacionalidades específicas contempladas", completa.
De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem no Brasil 817,9 mil indígenas declarados, 305 etnias e 274 línguas. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA) são cerca de 230 os povos indígenas no país, sendo que 180 estão localizados na Amazônia. Os dados diferem devido à contabilização e metodologia utilizadas.
Direito à terra
Para Ana Paula Caldeira, advogada do ISA, as situações das diversas etnias presentes no Brasil variam muito. Algumas, como a Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, não têm terras para a própria sobrevivência. Outras, como a Yanomarni, da fronteira do Amazonas e de Roraima com a Venezuela, contam com a demarcação integral de suas terras. "Existem povos que não têm terra para viver com dignidade e outros que têm problemas para participar da elaboração e implementação de políticas públicas", destaca Ana Paula.
Entretanto, os indigenistas e as lideranças indígenas são unânimes em apontar o problema territorial corno principal dificuldade enfrentada pelos índios no Brasil. O não reconhecimento dos direitos territoriais acontece devido à ausência de demarcação de terras pelo Poder Executivo e também pelas invasões em terras já demarcadas. "Dessa violação decorrem os demais problemas e a esmagadora maioria das violações de outros direitos, como à alimentação (sem território os povos indígenas não têm corno se sustentar), à autodeterminação, entre outros", afirma Sérgio Sauer, professor da Universidade de Brasília e relator do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação da Plataforma Dhesca Brasil.
Segundo Sauer, um dos casos mais emblemáticos em relação à violação dos direitos é o dos guarani-kaiowá do Mato Grosso do Sul, que sofreram diversos processos de ocupação não indígena das terras desde a Guerra do Paraguai, em 1864. O resultado foi o empobrecimento, a perda de identidade cultural, o consumo intenso de bebidas alcoólicas e um elevado número de suicídios. "Só em 2011 foram registrados 13 casos de suicídio, colocando essa situação no rol dos casos de etnocídio", relata Sauer.
Outro caso importante de disputa territorial é a dos xavantes da região do Araguaia (MT). A retirada dos índios começou em 1966, cora a implantação da Fazenda Suiá-Missú dentro do território indígena. Após anos de disputa, em 1998, os xavantes tiveram 165.241 hectares homologados e, a partir de 2004, iniciaram o retorno às Terras Marãiwatsédé. Mas somente em agosto deste ano foi ordenado judicialmente aos não indígenas a desocupação do território. A devolução é lenta e há muita resistência. As terras xavantes estão ocupadas há mais de 30 anos por 6.000 pessoas, entre elas posseiros da região que se recusam a deixar o local.
Cidade Nova não conseguiu entrar em contato com a Associação dos Produtores Rurais da Área de Suiá-Missú (Aprosum), que move ação contra a retirada dos não índios e que obteve, em setembro, a suspensão da desocupação.
Para Marcos Sabaru, do povo Tingui Botó, coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e membro da executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a disputa por terras pode ser classificada como guerra civil. E, apesar da mobilização indígena, "as lideranças estão sendo criminalizadas", pois quase 800 líderes indígenas estão presos e ainda há vários mandatos judiciais a serem cumpridos. Segundo ele, os principais problemas enfrentados pelos índios são os programas governamentais e as tentativas de definir novas normas legais sobre o processo de regularização das terras.
Entraves jurídicos
Dois importantes marcos legais asseguraram os direitos dos povos indígenas no Brasil: a Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada em 2003 no país. Na Constituição, 17 artigos tratam da questão indígena. O artigo 231 fala especificamente dos direitos e da demarcação de terras, enfatizando que é "vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras" e que são nulos judicialmente "os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes". Já a Convenção 169 trata diretamente dos direitos dos povos indígenas e tribais, tais como o direito de autonomia e controle de suas próprias instituições, formas de vida e desenvolvimento econômico.
No entanto, tramitam no Congresso propostas de emendas constitucionais e projetos de lei que propõem uma limitação à regularização, posse e usufruto de terras indígenas para que estas áreas possam ser ocupadas com outros fins. Entre estes projetos, o mais contestado é a Portaria 303, da Advocacia-Geral da União, estipulando que a "exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico" será implementada "independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à [Fundação Nacional do índio] Funai".
Como explica Felício Pontes, procurador da República no Pará, o problema desta portaria, "que praticamente anula os direitos indígenas", é a demarcação territorial. Atualmente, este processo é feito pela Funai e pelo Poder Executivo. Mas a nova norma prevê que o Poder Legislativo dê o acordo para que as terras indígenas sejam demarcadas. "Do ponto de vista prático, eles [os índios] vão ter muitas dificuldades se essa portaria entrar em vigor, no que toca o reconhecimento de qualquer outra terra indígena; e aquelas já reconhecidas podem ser contestadas", destaca Pontes.
A assessoria da Funai elucida que "levar ao Poder Legislativo a decisão de reconhecer ou não o direito à terra de determinado povo indígena pode significar uma ingerência entre poderes e levar à politização de um processo administrativo que é essencialmente técnico".
A Portaria 303, de julho de 2012, chegou a entrar em vigor, mas foi suspensa e só começará a valer após o julgamento de um recurso do Superior Tribunal Federal.
Necessidade de diálogo
A consulta aos povos indígenas e sua participação no processo de autorização do uso de recursos dentro de território demarcado é prevista na Constituição. José Augusto Sampaio, da Anaí, cita o caso da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, contestada juridicamente pelo fato de, no processo de licitação, não ter contemplado este item. Segundo Sampaio, mais do que uma consulta, o governo deveria promover o diálogo com esses povos.
"Este é um dos desafios da atualidade. Não existem mecanismos próprios que permitam aos povos indígenas discutir e influenciar a elaboração de políticas públicas adequadas à diversidade social do país", lembra Ana Paula Caldeira, do ISA.
Entretanto a assessoria da Norte Energia, empresa responsável pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, afirma que a Funai promoveu "mais de 30 reuniões, encontros e audiências com as comunidades indígenas, abrangendo todas as aldeias na área de influencia de Belo Monte".
Criada em 1967, a Funai tem a missão de coordenar o processo de formulação e implementação da política indigenista no Brasil. Entretanto, na análise de Felício Pontes, sua atuação no estado do Pará está sendo nula, pois há um desmonte do órgão. Procurada pela Cidade Nova, a assessoria da Funai enviou um comunicado com a situação dos povos indígenas, pois, devido a mudanças na equipe, estava "sem indicação de responsável para responder à entrevista".
Sérgio Sauer, da Dhesca Brasil, enfatiza que "há muitas informações desencontradas sobre a extensão dessas violações, mas não há dúvidas de que os investimentos provocarão muitos problemas e a violação de direitos indígenas". No caso de Belo Monte, o Ministério Público já entrou com 16 ações judiciais.
Megaempreendimentos
O Conselho Indigenista Missionário identificou, segundo Saulo Feitosa, mais de 430 investimentos que impactam as terras indígenas. Entre eles, Belo Monte e a transposição do Rio São Francisco, em Pernambuco.
De acordo com dados do Plano Decenal de Energia para o período 2012-2021, realizado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), as 34 hidrelétricas listadas deverão alagar 6.456 km2, com perda de 3.450 km2 de vegetação nativa, afetando diretamente 62 mil habitantes.
A assessoria da hidrelétrica no rio Xingu afirma que "a construção de Belo Monte não afeta nenhum centímetro de terra indígena" e destaca que "não há maneira mais viável para um país que necessita de energia para crescer do que desenvolver de modo sustentável seu potencial hidroelétrico".
Entretanto, para José Augusto Sampaio, Belo Monte deveria ser contestada também sob outra ótica: o gasto energética visando a exportação. "Por que não podemos produzir menos energia e ter uma terra mais confortável?". Sauer é do parecer que "as lutas indígenas por seus direitos territoriais afetam a histórica cultura patrimonialista brasileira, ou seja, questionam a relação entre terra e poder".
Pacha Mama
Também chamado de "Mãe Terra" pelos índios do Brasil, o território de origem é considerado sagrado para os povos indígenas. Daí a estreita relação com a terra. "Isso é o que constrói a identidade coletiva dos povos indígenas", explica Sampaio.
Por ser de uso comum, a posse é coletiva e o título de propriedade pertence à União. Eles apenas reivindicam o direito ao usufruto exclusivo sobre seus territórios tradicionais, para que neles possam viver conforme suas próprias culturas. Como o território é repleto de significação e é meio de sobrevivência física e cultural, a sua violação "pode implicar o fim de um povo, de modo especial daqueles que vivem em situação de isolamento voluntário", como argumenta Feitosa.
Foi o que aconteceu com os guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, onde estudos antropológicos comprovaram a relação direta entre a falta de terra - ou o não acesso aos territórios ancestrais - e os suicídios, inclusive de jovens das aldeias.
Na língua guarani - conta Carolina Bellinger, advogada e assessora de projetos da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) - o conceito de "Tekoha" quer dizer "o lugar onde é possível realizar o modo de ser guarani". Para isso é necessário ter a mata preservada, que servirá à caça, a área a ser cultivada com plantações e o espaço social das casas.
Outra característica marcante desses povos é o aspecto solidário e o tratamento familiar, de parentesco entre eles, desde o índio que está no Rio Grande do Sul ao da Amazônia. "Somos diferentes, mas somos iguais", ressalta Sabaru.
O líder indígena destaca ainda a presença nos centros urbanos, que não afeta a cultura tradicional. Ao contrário, ali se formam também as aldeias, apesar da referência continuar sendo a terra de origem. Muitas vezes não se sabe se foi o índio que migrou para a cidade ou se foi a cidade que incorporou uma propriedade indígena. De acordo com o Censo de 2010, 36% da população indígena vive na área urbana, com maior concentração na cidade de São Paulo.
Para a assessoria da Funai, o fato de os índios se vestirem com roupas iguais às dos outros membros da sociedade, de falarem português e usarem as modernas tecnologias não os faz perder a identidade cultural. Como em qualquer outra cultura, a sociedade indígena passa por modificações e reelaborações, que aconteceriam "mesmo que não houvesse ocorrido o contato com as sociedades de origem europeia e africana".
Sampaio vai além e diz que "as grandes preservações da cultura se dão no embate com outras culturas". Quanto maior o envolvimento com a realidade dos outros povos, mais apto se está para defender a própria cultura, enfatiza o antropólogo.
Política de autonomia
Apesar do forte caráter cultural, há pouco espaço político para projetos voltados às comunidades autônomas, como os índios. Apesar disso, estima-se que 40% do território nacional esteja nas mãos de povos tradicionais (quilombolas, indígenas, ribeirinhos etc.), que vivem do que produzem, dos recursos naturais e possuem economia autônoma, arrecadando, com isso, pouco ao Estado.
Sonia Guajajajara, vice-coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), destaca que um dos problemas enfrentados por essa população é "a política de desenvolvimento do governo, que prima pelo crescimento econômico do país em detrimento da dignidade social e cultural de sua população, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que prevê construções de estradas, ferrovias, hidrelétricas próximas ou dentro das terras indígenas".
Estudo inédito divulgado há pouco mais de um mês pelo Observatório de Investimentos na Amazônia (Inesc) reuniu dados sobre as obras de infraestrutura do PAC e sua influência nas terras indígenas da Amazônia brasileira. Segundo o Inesc, no eixo dos transportes, há 82 obras terrestres e fluviais, sendo 37 no Amazonas. Dessas, ao menos 43 estão afetando uma ou mais terras indígenas, direta ou indiretamente.
A falta de políticas públicas adequadas e adaptadas à realidade dessa parcela da população é um dos pontos principais das reivindicações indígenas. Ao se enquadrar o índio nos programas sociais já existentes, acaba havendo unia monetarização das comunidades. "São estendidos aos índios, de forma generalizada, benefícios sociais de caráter individual que não vão ao encontro da realização de direitos coletivos que estes povos possuem", diz Ana Paula Caldeira.
Se, por um lado, o governo tenta democratizar o atendimento aos índios, por outro, a visão de desenvolvimento acaba dificultando a melhoria de qualidade de vida desses povos. "As mudanças dos mecanismos legais ora apresentadas pecam por não considerar, como condição para alcançar o almejado avanço econômico e social, o diálogo permanente e respeitoso entre as partes interessadas. Estamos ainda em meio a um longo processo de aprendizado sobre o respeito à diferença e às diferentes formas de compreender e vivenciar o mundo", realça o comunicado da Furai enviado à Cidade Nova.
Além disso, não há a inclusão do ensino de culturas tradicionais na educação ou o reconhecimento do ensino realizado entre as comunidades. "Existem casos de professores que estão cursando a universidade, mas não têm certificado do curso fundamental porque a Secretaria Estadual de Educação não reconhece a formação realizada por uma organização não governamental, apesar da Lei de Diretrizes Básicas da Educação garantir isso", destaca Caldeira.
Entretanto, a Constituição assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Para Sabaru, a autonomia passa pelo conhecimento da cultura indígena. "Os nossos heróis não estão nos livros", diz. Segundo os indigenistas, seria necessário incluir matérias relacionadas ao ensino dessas culturas tradicionais.
José Augusto Sampaio é enfático: "Uma sociedade plural, justa, fraterna, que possa conviver com sua diversidade, com suas diferenças, é um ganho para todos e não só para os índios. E é essa a ideia que eles querem vender. Esse é o modo com que o Brasil pode contribuir para os direitos indígenas: tendo consciência de que os direitos deles são também direitos nossos".
Cidade Nova n. 11, nov. 2012, p. 18-22
SOCIEDADE A histórica luta dos povos indígenas brasileiros pelo reconhecimento de sua identidade cultural e pela demarcação de terras traz ao debate a necessidade de políticas públicas que levem em conta a diversidade e englobem a autonomia dessa população no gerenciamento do próprio território
Ana Carolina Wolfe
A tríade da Revolução Francesa de 1789 - liberdade, igualdade e fraternidade - é a base para qualquer reflexão sobre a equivalência política dos cidadãos ou seus direitos. Foram esses princípios, em especial a igualdade, que ajudaram a promover avanços sociais significativos primeiramente na França, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. No Brasil, o conceito de igualdade esteve particularmente em evidência, de maneira distorcida, cora o regime militar (1964-1985): a homogeneização cultural era necessária para manter a ordem e o poder vigente.
"Quando era estudante, na época da ditadura, éramos bombardeados pela ideia de que somos um só povo, unia só cultura, uma só língua. Tudo o que percebíamos de diferença no Brasil era rotulado como atraso, que vai ser superado. O índio, nessa consciência, era algo residual. As constituições anteriores previam os direitos dos índios, mas na perspectiva de que eles seriam assimilados", relata José Augusto Sampaio, antropólogo e membro do conselho diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí).
Com o processo de redemocratização, houve um resgate da diversidade cultural brasileira. Além disso, a promulgação da Constituição de 1988 garantiu os direitos humanos no país. O princípio da igualdade continuou presente na abertura do capítulo que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)".
Embora a Constituição brasileira seja considerada internacionalmente uma das mais avançadas no campo dos direitos humanos. "a velha forma de relação do Estado com os povos indígenas ainda continua. Por isso, mesmo que a Constituição Federal os reconheça como autônomos e assegure seus usos, costumes e tradições, a dominação sobre eles permanece", destaca Saulo Feitosa, secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo da Igreja católica que trabalha pela autonomia dos povos indígenas. "No que se refere às estruturas, é preciso que a concepção de Estado-Nação seja substituída pela de Estado Plurinacional, somente assim os vários povos indígenas terão suas nacionalidades específicas contempladas", completa.
De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem no Brasil 817,9 mil indígenas declarados, 305 etnias e 274 línguas. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA) são cerca de 230 os povos indígenas no país, sendo que 180 estão localizados na Amazônia. Os dados diferem devido à contabilização e metodologia utilizadas.
Direito à terra
Para Ana Paula Caldeira, advogada do ISA, as situações das diversas etnias presentes no Brasil variam muito. Algumas, como a Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, não têm terras para a própria sobrevivência. Outras, como a Yanomarni, da fronteira do Amazonas e de Roraima com a Venezuela, contam com a demarcação integral de suas terras. "Existem povos que não têm terra para viver com dignidade e outros que têm problemas para participar da elaboração e implementação de políticas públicas", destaca Ana Paula.
Entretanto, os indigenistas e as lideranças indígenas são unânimes em apontar o problema territorial corno principal dificuldade enfrentada pelos índios no Brasil. O não reconhecimento dos direitos territoriais acontece devido à ausência de demarcação de terras pelo Poder Executivo e também pelas invasões em terras já demarcadas. "Dessa violação decorrem os demais problemas e a esmagadora maioria das violações de outros direitos, como à alimentação (sem território os povos indígenas não têm corno se sustentar), à autodeterminação, entre outros", afirma Sérgio Sauer, professor da Universidade de Brasília e relator do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação da Plataforma Dhesca Brasil.
Segundo Sauer, um dos casos mais emblemáticos em relação à violação dos direitos é o dos guarani-kaiowá do Mato Grosso do Sul, que sofreram diversos processos de ocupação não indígena das terras desde a Guerra do Paraguai, em 1864. O resultado foi o empobrecimento, a perda de identidade cultural, o consumo intenso de bebidas alcoólicas e um elevado número de suicídios. "Só em 2011 foram registrados 13 casos de suicídio, colocando essa situação no rol dos casos de etnocídio", relata Sauer.
Outro caso importante de disputa territorial é a dos xavantes da região do Araguaia (MT). A retirada dos índios começou em 1966, cora a implantação da Fazenda Suiá-Missú dentro do território indígena. Após anos de disputa, em 1998, os xavantes tiveram 165.241 hectares homologados e, a partir de 2004, iniciaram o retorno às Terras Marãiwatsédé. Mas somente em agosto deste ano foi ordenado judicialmente aos não indígenas a desocupação do território. A devolução é lenta e há muita resistência. As terras xavantes estão ocupadas há mais de 30 anos por 6.000 pessoas, entre elas posseiros da região que se recusam a deixar o local.
Cidade Nova não conseguiu entrar em contato com a Associação dos Produtores Rurais da Área de Suiá-Missú (Aprosum), que move ação contra a retirada dos não índios e que obteve, em setembro, a suspensão da desocupação.
Para Marcos Sabaru, do povo Tingui Botó, coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e membro da executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a disputa por terras pode ser classificada como guerra civil. E, apesar da mobilização indígena, "as lideranças estão sendo criminalizadas", pois quase 800 líderes indígenas estão presos e ainda há vários mandatos judiciais a serem cumpridos. Segundo ele, os principais problemas enfrentados pelos índios são os programas governamentais e as tentativas de definir novas normas legais sobre o processo de regularização das terras.
Entraves jurídicos
Dois importantes marcos legais asseguraram os direitos dos povos indígenas no Brasil: a Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada em 2003 no país. Na Constituição, 17 artigos tratam da questão indígena. O artigo 231 fala especificamente dos direitos e da demarcação de terras, enfatizando que é "vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras" e que são nulos judicialmente "os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes". Já a Convenção 169 trata diretamente dos direitos dos povos indígenas e tribais, tais como o direito de autonomia e controle de suas próprias instituições, formas de vida e desenvolvimento econômico.
No entanto, tramitam no Congresso propostas de emendas constitucionais e projetos de lei que propõem uma limitação à regularização, posse e usufruto de terras indígenas para que estas áreas possam ser ocupadas com outros fins. Entre estes projetos, o mais contestado é a Portaria 303, da Advocacia-Geral da União, estipulando que a "exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico" será implementada "independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à [Fundação Nacional do índio] Funai".
Como explica Felício Pontes, procurador da República no Pará, o problema desta portaria, "que praticamente anula os direitos indígenas", é a demarcação territorial. Atualmente, este processo é feito pela Funai e pelo Poder Executivo. Mas a nova norma prevê que o Poder Legislativo dê o acordo para que as terras indígenas sejam demarcadas. "Do ponto de vista prático, eles [os índios] vão ter muitas dificuldades se essa portaria entrar em vigor, no que toca o reconhecimento de qualquer outra terra indígena; e aquelas já reconhecidas podem ser contestadas", destaca Pontes.
A assessoria da Funai elucida que "levar ao Poder Legislativo a decisão de reconhecer ou não o direito à terra de determinado povo indígena pode significar uma ingerência entre poderes e levar à politização de um processo administrativo que é essencialmente técnico".
A Portaria 303, de julho de 2012, chegou a entrar em vigor, mas foi suspensa e só começará a valer após o julgamento de um recurso do Superior Tribunal Federal.
Necessidade de diálogo
A consulta aos povos indígenas e sua participação no processo de autorização do uso de recursos dentro de território demarcado é prevista na Constituição. José Augusto Sampaio, da Anaí, cita o caso da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, contestada juridicamente pelo fato de, no processo de licitação, não ter contemplado este item. Segundo Sampaio, mais do que uma consulta, o governo deveria promover o diálogo com esses povos.
"Este é um dos desafios da atualidade. Não existem mecanismos próprios que permitam aos povos indígenas discutir e influenciar a elaboração de políticas públicas adequadas à diversidade social do país", lembra Ana Paula Caldeira, do ISA.
Entretanto a assessoria da Norte Energia, empresa responsável pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, afirma que a Funai promoveu "mais de 30 reuniões, encontros e audiências com as comunidades indígenas, abrangendo todas as aldeias na área de influencia de Belo Monte".
Criada em 1967, a Funai tem a missão de coordenar o processo de formulação e implementação da política indigenista no Brasil. Entretanto, na análise de Felício Pontes, sua atuação no estado do Pará está sendo nula, pois há um desmonte do órgão. Procurada pela Cidade Nova, a assessoria da Funai enviou um comunicado com a situação dos povos indígenas, pois, devido a mudanças na equipe, estava "sem indicação de responsável para responder à entrevista".
Sérgio Sauer, da Dhesca Brasil, enfatiza que "há muitas informações desencontradas sobre a extensão dessas violações, mas não há dúvidas de que os investimentos provocarão muitos problemas e a violação de direitos indígenas". No caso de Belo Monte, o Ministério Público já entrou com 16 ações judiciais.
Megaempreendimentos
O Conselho Indigenista Missionário identificou, segundo Saulo Feitosa, mais de 430 investimentos que impactam as terras indígenas. Entre eles, Belo Monte e a transposição do Rio São Francisco, em Pernambuco.
De acordo com dados do Plano Decenal de Energia para o período 2012-2021, realizado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), as 34 hidrelétricas listadas deverão alagar 6.456 km2, com perda de 3.450 km2 de vegetação nativa, afetando diretamente 62 mil habitantes.
A assessoria da hidrelétrica no rio Xingu afirma que "a construção de Belo Monte não afeta nenhum centímetro de terra indígena" e destaca que "não há maneira mais viável para um país que necessita de energia para crescer do que desenvolver de modo sustentável seu potencial hidroelétrico".
Entretanto, para José Augusto Sampaio, Belo Monte deveria ser contestada também sob outra ótica: o gasto energética visando a exportação. "Por que não podemos produzir menos energia e ter uma terra mais confortável?". Sauer é do parecer que "as lutas indígenas por seus direitos territoriais afetam a histórica cultura patrimonialista brasileira, ou seja, questionam a relação entre terra e poder".
Pacha Mama
Também chamado de "Mãe Terra" pelos índios do Brasil, o território de origem é considerado sagrado para os povos indígenas. Daí a estreita relação com a terra. "Isso é o que constrói a identidade coletiva dos povos indígenas", explica Sampaio.
Por ser de uso comum, a posse é coletiva e o título de propriedade pertence à União. Eles apenas reivindicam o direito ao usufruto exclusivo sobre seus territórios tradicionais, para que neles possam viver conforme suas próprias culturas. Como o território é repleto de significação e é meio de sobrevivência física e cultural, a sua violação "pode implicar o fim de um povo, de modo especial daqueles que vivem em situação de isolamento voluntário", como argumenta Feitosa.
Foi o que aconteceu com os guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, onde estudos antropológicos comprovaram a relação direta entre a falta de terra - ou o não acesso aos territórios ancestrais - e os suicídios, inclusive de jovens das aldeias.
Na língua guarani - conta Carolina Bellinger, advogada e assessora de projetos da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) - o conceito de "Tekoha" quer dizer "o lugar onde é possível realizar o modo de ser guarani". Para isso é necessário ter a mata preservada, que servirá à caça, a área a ser cultivada com plantações e o espaço social das casas.
Outra característica marcante desses povos é o aspecto solidário e o tratamento familiar, de parentesco entre eles, desde o índio que está no Rio Grande do Sul ao da Amazônia. "Somos diferentes, mas somos iguais", ressalta Sabaru.
O líder indígena destaca ainda a presença nos centros urbanos, que não afeta a cultura tradicional. Ao contrário, ali se formam também as aldeias, apesar da referência continuar sendo a terra de origem. Muitas vezes não se sabe se foi o índio que migrou para a cidade ou se foi a cidade que incorporou uma propriedade indígena. De acordo com o Censo de 2010, 36% da população indígena vive na área urbana, com maior concentração na cidade de São Paulo.
Para a assessoria da Funai, o fato de os índios se vestirem com roupas iguais às dos outros membros da sociedade, de falarem português e usarem as modernas tecnologias não os faz perder a identidade cultural. Como em qualquer outra cultura, a sociedade indígena passa por modificações e reelaborações, que aconteceriam "mesmo que não houvesse ocorrido o contato com as sociedades de origem europeia e africana".
Sampaio vai além e diz que "as grandes preservações da cultura se dão no embate com outras culturas". Quanto maior o envolvimento com a realidade dos outros povos, mais apto se está para defender a própria cultura, enfatiza o antropólogo.
Política de autonomia
Apesar do forte caráter cultural, há pouco espaço político para projetos voltados às comunidades autônomas, como os índios. Apesar disso, estima-se que 40% do território nacional esteja nas mãos de povos tradicionais (quilombolas, indígenas, ribeirinhos etc.), que vivem do que produzem, dos recursos naturais e possuem economia autônoma, arrecadando, com isso, pouco ao Estado.
Sonia Guajajajara, vice-coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), destaca que um dos problemas enfrentados por essa população é "a política de desenvolvimento do governo, que prima pelo crescimento econômico do país em detrimento da dignidade social e cultural de sua população, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que prevê construções de estradas, ferrovias, hidrelétricas próximas ou dentro das terras indígenas".
Estudo inédito divulgado há pouco mais de um mês pelo Observatório de Investimentos na Amazônia (Inesc) reuniu dados sobre as obras de infraestrutura do PAC e sua influência nas terras indígenas da Amazônia brasileira. Segundo o Inesc, no eixo dos transportes, há 82 obras terrestres e fluviais, sendo 37 no Amazonas. Dessas, ao menos 43 estão afetando uma ou mais terras indígenas, direta ou indiretamente.
A falta de políticas públicas adequadas e adaptadas à realidade dessa parcela da população é um dos pontos principais das reivindicações indígenas. Ao se enquadrar o índio nos programas sociais já existentes, acaba havendo unia monetarização das comunidades. "São estendidos aos índios, de forma generalizada, benefícios sociais de caráter individual que não vão ao encontro da realização de direitos coletivos que estes povos possuem", diz Ana Paula Caldeira.
Se, por um lado, o governo tenta democratizar o atendimento aos índios, por outro, a visão de desenvolvimento acaba dificultando a melhoria de qualidade de vida desses povos. "As mudanças dos mecanismos legais ora apresentadas pecam por não considerar, como condição para alcançar o almejado avanço econômico e social, o diálogo permanente e respeitoso entre as partes interessadas. Estamos ainda em meio a um longo processo de aprendizado sobre o respeito à diferença e às diferentes formas de compreender e vivenciar o mundo", realça o comunicado da Furai enviado à Cidade Nova.
Além disso, não há a inclusão do ensino de culturas tradicionais na educação ou o reconhecimento do ensino realizado entre as comunidades. "Existem casos de professores que estão cursando a universidade, mas não têm certificado do curso fundamental porque a Secretaria Estadual de Educação não reconhece a formação realizada por uma organização não governamental, apesar da Lei de Diretrizes Básicas da Educação garantir isso", destaca Caldeira.
Entretanto, a Constituição assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Para Sabaru, a autonomia passa pelo conhecimento da cultura indígena. "Os nossos heróis não estão nos livros", diz. Segundo os indigenistas, seria necessário incluir matérias relacionadas ao ensino dessas culturas tradicionais.
José Augusto Sampaio é enfático: "Uma sociedade plural, justa, fraterna, que possa conviver com sua diversidade, com suas diferenças, é um ganho para todos e não só para os índios. E é essa a ideia que eles querem vender. Esse é o modo com que o Brasil pode contribuir para os direitos indígenas: tendo consciência de que os direitos deles são também direitos nossos".
Cidade Nova n. 11, nov. 2012, p. 18-22
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