De Povos Indígenas no Brasil

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“Rio Negro, nós Cuidamos”

por Francy Baniwa

Para meu povo Baniwa, território significa um lugar sagrado, porque o povo Baniwa se originou de um lugar sagrado chamado hipana, que é o umbigo do mundo. É uma cachoeira e, segundo as nossas narrativas, as nossas metodologias, nós nascemos de uma vagina feita de pedra. Então, nossa conexão com o território é sagrada, porque a gente nasceu desse hipana, dessa cachoeira, chamada atualmente uapuí, e a gente está ligada a esse lugar.

A gente tem uma origem e uma narrativa que remete a esse lugar em nossa vida inteira. Então a gente tem uma conexão sagrada entre o ser humano, que é o povo Baniwa, e esse lugar chamado hipana, que é o umbigo do mundo.

Todo benzimento, todo ritual, toda regra que temos está associada a esse lugar de origem. Então o território é um coletivo de lugares sagrados, mas ligado diretamente a essa origem. O território é o que rege nossa vivência, nossa forma de vida, de que modo nossos corpos como mulheres, como homens, como jovens, como crianças, estão ligados a esse lugar de origem, que é o umbigo do mundo. Território é o lugar de origem do mundo, um lugar sagrado para o meu povo Baniwa.

Retrocessos Os anos que se passaram foram muito desafiadores para cada um de nós, principalmente para o Alto Rio Negro.

No Alto Rio Negro, a gente acompanha o que está acontecendo através da mídia, quem nos informa é a televisão, é a internet, a que a gente tem acesso raramente. Mas temos acesso a informações através de professores ou de parceiros, e assim temos a real situação do que está acontecendo dentro do governo, com o governo, o que ele pensa.

É difícil traduzir para os mais velhos, em Baniwa, para minha avó, para os meus tios, para o meu avô, para o meu bisavô, o que está acontecendo. São situações que a gente, como indígena, consegue entender pelo contexto da linguagem do território, da natureza, do impacto que você sente diretamente dentro da comunidade.

Isso vai em direção às mudanças climáticas. Eles conseguem fazer uma análise do que está acontecendo e, com Bolsonaro no governo, a gente sentiu diretamente o retrocesso imediato! Ele ganhou e a gente já sentiu o impacto. A gente tem medo. Eu converso bastante com os mais velhos, e eles têm muito medo de acordar e saber que a gente perdeu nosso território.

Pandemia Imagine chegar uma pandemia de covid-19 e afetar a comunidade toda. Eu particularmente senti muito medo pelos meus parentes – meus pais, parentes, porque a gente é parente do Rio Negro, mas todo mundo é parente! Foi quando houve também esse outro lado, em que, além da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) estar na linha de frente, criaram um comitê em que havia participação de instituições – o Instituto Socioambiental (ISA), a prefeitura, o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), o Exército, os Médicos Sem Fronteiras. Acho que isso fortaleceu também.

O comitê interinstitucional abraçou essa causa para poder, de alguma forma, dar uma assistência de fato. Mesmo que não fosse 100%, mas estavam lá para contribuir. E quando [a doença], de fato, chegou às comunidades, quando disseram que não havia vacina, que não havia remédio, essa mobilização da Foirn, do Rio Negro, inspirou outras organizações em nível nacional a fazerem campanhas para arrecadar recursos para comprar álcool em gel, para divulgar informações, para dar uma assistência às comunidades.

Essa parceria entre pessoas que estavam prontas para contribuir também fez uma grande diferença na vida de cada pessoa indígena. Eu acho que foi muita coragem, porque eles deixaram as lideranças da Foirn e do Departamento de Mulheres do Rio Negro irem para as comunidades entregando cestas básicas. Cada um, quando soube que em algum momento não poderíamos mais descer para São Gabriel, foram para a cidade comprar o que a gente precisava: sal, sabão, coisas de higiene etc.

E cada um foi se organizando como pôde se organizar. E a Foirn teve uma estratégia muito rápida. Traduziu o que era covid-19 nas línguas indígenas: Tukano, Baniwa, Nheengatu, Yanomami e, se não me engano, Dâw também. Ela foi muito rápida na tradução do que se deve fazer para se prevenir. Nas redes de comunicação, criaram pequenos vídeos para enviar pelo WhatsApp. Então acho que a tecnologia também foi favorável na difusão dessas informações, considerando o distanciamento. E imediatamente a gente recorreu ao conhecimento indígena. O que era a covid-19?

Era um pouco de febre, de tosse, dor no corpo, mal-estar, perda de paladar, não sei o que mais. Eles foram ficando atentos aos sintomas. Então, se é uma gripe, vamos recorrer aos outros. Se não temos remédio, a gente vai recorrer aos nossos conhecimentos, que era o uso de plantas, de chás, de casca de árvores, de folhas, plantas para banho. Havia o remédio que você usava para a produção de anticorpos para o seu corpo, e o que você usava também para a cura. E o banho era para ser o escudo, para proteger da doença. E, além disso, a gente recorreu ao benzimento.

Benzimento é outro mundo! É um cigarro, é um breu.... É caranha, que é parecido com o breu, que te dá outro contexto. É como se você estivesse dentro de uma bolha de sabão: o benzimento te protege. Então a doença chega, mas ela não consegue entrar, porque você está com a proteção, com vários escudos de animais também dentro do benzimento. Há filtros que, dentro do benzimento, o benzedor vai deixando como proteção.

Além da bolha, você também se protege com vários escudos indígenas que estão no mundo do benzimento. Acho que isso foi muito favorável também para a gente. A gente recorreu aos benzimentos, às plantas de banho, às plantas que são chás de cura e de proteção. Nesse momento, a gente provou que a gente tinha uma ciência, porque a gente usou nossa sabedoria para se manter vivo e para proteger outros parentes; foi uma proteção coletiva!

Mas a gente está aqui para dizer que a gente está unido e fortalecido, e a gente está aqui para lutar não apenas pelos parentes do Rio Negro, mas outros parentes que precisam ter o território de volta, precisam estar em seu território.

Depoimento registrado por Tainá Aragão em abril de 2022

Da ciência indígena para o mundo ocidental

por Tainá Aragão (jornalista do ISA)

Francineia Bitencourt Fontes, mais conhecida como Francy Baniwa, é da TI Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira, pertencente à comunidade de Assunção do Içana, do Rio Içana. Atualmente, é doutoranda em Antropologia Social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É liderança mulher do povo Baniwa e faz parte da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Também é filiada ao Departamento de Mulheres do Rio Negro e da organização de base Organização das Comunidades Indígenas de Assunção do Içana (Ocidai). Além de seu papel como liderança mulher, também é mãe, filha e neta, carregando a ancestralidade em nome dos 23 povos que representa, mas principalmente em nome do povo Baniwa. Assim, leva os conhecimentos da ciência indígena para o mundo ocidental.