Povos isolados
Um panorama sobre os povos indígenas em isolamento
“Autônomos”, “resistentes”, “ocultos”, “não contatados” ou “isolados”. Estes são alguns dos termos utilizados para se referir aos povos indígenas que decidiram viver afastados dos demais grupos, sejam eles indígenas ou não indígenas. A expressão “em isolamento voluntário” também é recorrente e suscita inúmeras discussões conceituais nos campos do indigenismo e da antropologia - ver, por exemplo, Gallois (1992). Até a década de 1980, era comum serem denominados de “arredios” ou “bravos” (arredios ao contato, é bom que se diga).
A ideia de que há povos “isolados” desde a chegada dos colonizadores portugueses ou grupos que vivem à margem de todas as transformações ocorridas desde então é problemática. Como observa Gallois (1992), esses povos “isolados” travaram, muitas vezes, relações com segmentos da sociedade nacional - marcadas, frequentemente, por violência, contágio de doenças e extermínio - e, posteriormente, grupos remanescentes recusaram a situação colonial e fugiram para zonas de refúgio. Não por acaso seus territórios concentram-se majoritariamente na região amazônica, em locais remotos e de difícil acesso.
A despeito das tentativas de categorização, o que interessa destacar é que esses povos compartilham uma condição: buscam permanentemente manter o seu isolamento, isto é, seu afastamento em relação a todos os outros grupos. Tal decisão deve ser respeitada pelos Estados nacionais, como o Brasil, conforme os marcos legais existentes, em especial, a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), garantindo o direito à autodeterminação, protegendo seus territórios dos invasores e assegurando as condições necessárias para que continuem existindo, resistindo.
Ações que promovam contatos forçados com os povos indígenas em isolamento ou que afetem a integridade ambiental e territorial de suas áreas de ocupação são graves violações dos direitos humanos fundamentais e dos direitos dos povos indígenas. É sabido na literatura especializada que experiências anteriores de contato forçado provocaram a morte de milhares de indígenas, dizimando povos inteiros. Recentemente, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) publicizou resultados da primeira grande investigação sobre as violações de direitos humanos ocorridas no país durante a ditadura militar entre 1964 e 1985. Neste período, pelo menos oito mil indígenas foram mortos em massacres ou devido às epidemias decorrentes do contato. No continente americano, o Brasil é o país em que há o maior número de registros da presença de povos indígenas isolados. Existe um conjunto heterogêneo de referências, desde grupos formados por centenas de pessoas; outros, menores, constituídos por dezenas de indivíduos e, noutros casos, há povos indígenas reduzidos a poucos sobreviventes. O Estado brasileiro reconhece a existência de 115 registros de povos isolados que são classificados de acordo com a disponibilidade de informações e o nível de sistematização das mesmas no banco de dados da Fundação Nacional do Índio (Funai). O ISA teve acesso à tabela oficial de 2017 na qual observamos, em todo o país, a existência de 28 “registros de referência confirmada”, 26 “registros de referência em estudo” e 60 “registros de referência em informação”. Além da Terra Indígena Alto Tarauacá, demarcada em função da presença de registros confirmados de isolados.
Povos em isolamento no Amazônia Legal
No atual sistema de classificação adotado pela Funai, os registros “em informação” são relatos informados à CGIIRC sobre a possível existência de um povo indígena isolado e que constam na base de dados da instituição a partir de um processo de triagem. O registro “em estudo” é, por sua vez, um conjunto de dados ou relatos qualificados sobre a presença de grupo isolado, demonstrando fortes evidências da sua existência. A referência “confirmada” pela Funai diz respeito aos registros cujas informações foram comprovadas por meio de trabalhos de localização (sobrevoos), os quais identificaram os territórios ocupados por esses povos e outras informações relevantes.
A listagem da Funai (2017) é a principal fonte de informações para os registros da presença de povos indígenas isolados, contudo, outras fontes são utilizadas. Há décadas, o Instituto Socioambiental (ISA) realiza um monitoramento permanente dos registros de povos indígenas isolados. Em seu banco de dados, construído a partir de informações de uma ampla rede de colaboradores, existem sete registros de “informação” os quais não estão contemplados na listagem da Funai.
São 115 registros de povos indígenas vivendo em isolamento, sendo 29 confirmados, outros 86 permanecem em investigação. Entre esses grupos dos quais se tem evidências, apenas um, os Avá-Canoeiro, encontra-se fora da Amazônia Legal. Dos Avá-Canoeiro fala-se que são quatro pessoas, em fuga permanente, evitando o contato, pelo norte de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Além desse pequeno grupo, outros indivíduos Avá-Canoeiro vivem na TI homônima e mais algumas pessoas desse grupo e seus descendentes vivem no Parque Indígena do Araguaia.
Políticas públicas de proteção
No país, a institucionalização de políticas públicas voltadas aos povos indígenas é antiga. No que diz respeito à garantia dos direitos dos povos indígenas em isolamento, um ponto de inflexão na política oficial ocorreu em 1987, após uma reunião com sertanistas, antropólogos e outros especialistas. Foi a partir daí que a política do não contato foi adotada, respeitando o direito à autodeterminação dos povos em isolamento. Tal inflexão foi fruto da pressão do movimento indígena, das organizações da sociedade, antropólogos e etc. que há tempos cobravam do órgão indigenista mudanças na política vigente até então, voltada ao contato, atração e “pacificação” dos povos “arredios”. Eram assim chamados porque se recusavam a abandonar seus territórios, cortados por grandes obras de infraestrutura, como as estradas,ou invadidos por grileiros, posseiros, madeireiros e garimpeiros que chegaram a essas áreas com as frentes de expansão.
Para desenvolver a política do não contato, foi criado um órgão específico na Funai: a Coordenadoria de Índios Isolados (CII). Posteriormente, foi renomeada: Coordenadoria Geral de Índios Isolados (CGII). No lugar das antigas “frentes de atração”, a CGII passou a se organizar em Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), cujo objetivo era monitorar e proteger o entorno da região habitada pelos grupos isolados, além de viabilizar os estudos de identificação e demarcação das terras para esses povos realizados pela Diretoria Fundiária da Funai. Assim, na década de 1980, as primeiras diretrizes para uma política de proteção aos povos indígenas isolados foram estabelecidas com as Portarias no 1900/1987 e no 1901/1987.
Em 2009, ano de reestruturação da Funai, a CGII torna-se a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), vinculada à Diretoria de Proteção Territorial da Funai, com o dever garantir os direitos dos povos isolados e também aqueles recém-contatados. O Sistema de Proteção aos Índios Isolados e de Recente Contato (SPIIRC) compreende o conjunto de ações organizadas por 11 unidades descentralizadas: as Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), unidades de campo que são referência para os trabalhos de localização, monitoramento, vigilância e proteção desses povos . As equipes das FPEs são, em geral, compostas por uma coordenação, auxiliares em indigenismo e colaboradores (indígenas, mateiros, linguistas, entre outros).
É importante destacar que a Funai se vale de um dispositivo legal quando é verificada a presença de povos indígenas isolados fora dos limites de Terras Indígenas (TI) já reconhecidas. Trata-se da “Restrição de Uso”, medida que visa interditar a área de ocupação dos grupos isolados e restringir o ingresso de terceiros, com a finalidade de assegurar a integridade física dos indígenas enquanto são realizadas outras ações de proteção e tramitam processos administrativos para a demarcação da TI. Este dispositivo legal está amparado no artigo 7o do Decreto 1775/96, no artigo 231 da Constituição Federal de 1988 e no artigo 1o, inciso VII da Lei no 5371/67.
A atenção diferenciada à saúde compõe a política voltada aos povos indígenas isolados e de recente contato. Em 2018, a Portaria conjunta da Funai e do Ministério da Saúde passou a regulamentar as ações de atenção à saúde a esses povos, criando diretrizes e estratégias de atuação conjunta da Funai e Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), voltadas ao planejamento, execução e monitoramento das atividades relacionadas à saúde dessas populações.
Apesar da política indigenista federal direcionada aos povos isolados e de recente contato ser considerada vanguarda no cenário mundial, os desafios para a sua implementação são grandes, especialmente, por causa de cortes sucessivos no orçamento da Funai (Mahalem; Almeida, 2017; Cardoso, 2018), além do atual desmantelamento dos órgãos governamentais.
Competência legal na proteção dos isolados
Compete à Funai, através da CGIIRC/FPEs, garantir aos povos isolados o pleno exercício de sua liberdade e de seus modos de vida tradicionais sem que seja necessário contatá-los (art.2o, inciso II, alínea “d”, Decreto no 7778/2012). A política do não contato tem como premissa não ir ao encontro dos povos isolados e agir apenas em casos pontuais, quando o grupo isolado estiver em uma situação de risco, sofrendo alguma ameaça concreta.
O reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam está garantido nos artigos 231 da Constituição Federal, e o direito dos indígenas às terras que ocupam independentemente da sua demarcação deve ser assegurado pela Funai, segundo já determinava o artigo 25 da Lei n° 6.001/1973 e demais atos legais: Lei n° 5.371/1967; Decreto no 1.775/1996 e Decreto no 9.010/2017.
Territórios ameaçados
Os registros dos povos indígenas isolados estão distribuídos em um conjunto de 86 territórios: 54 Terras Indígenas e 24 Unidades de Conservação (15 federais e nove estaduais). Há, ainda, oito áreas sem nenhum mecanismo de proteção.
Das 54 Terras Indígenas com presença de grupos isolados, 44 estão homologadas, cinco possuem Portaria de restrição de uso, três estão declaradas (Kawahiva do Rio Pardo, Kaxuyana-Tunayana e Uneiuxi) e duas identificadas (Sawré Maybu e Apiaká do Pontal e Isolados). Sete registros da Funai (dois “em estudo” e cinco “em informação”) e um registro “em informação” do banco de dados do ISA encontram-se em territórios sem nenhum tipo de proteção. No caso das 15 Unidades de Conservação federais, sete são de proteção integral e oito, de uso sustentável. 12 estão implementadas com, ao menos, um dos instrumentos de gestão (conselho gestor e/ou plano de manejo). Duas Unidades de Conservação federais (Flona de Urupadi e Rebio do Manicoré) não possuem nenhum instrumento de gestão. No que se refere às nove Unidades de Conservação estaduais, seis são de proteção integral e três de uso sustentável. Destas, oito estão implementadas com, ao menos, um dos instrumentos de gestão. Uma Unidade de Conservação estadual (PES do Sucunduri) não possui nenhum instrumento de gestão.
É importante destacar que cinco das unidades de uso sustentável são Florestas Nacionais ou Estaduais, categoria passível de concessões, inclusive, para exploração madeireira. Além disso uma delas é Área de Proteção Ambiental, categoria com menor restrição de uso, que permite propriedades privadas e uso intensivo dos recursos, como desmatamento, agricultura, pecuária e mineração. Ou seja, embora sejam Unidades de Conservação, podem não estar garantindo a proteção necessária aos povos indígenas isolados.
Pressões e Ameaças
Atualmente, existem 56 obras de infraestrutura em operação pressionando 50 territórios com presença de povos indígenas isolados. A incidência desses empreendimentos já implementados foi analisada a partir das distâncias definidas pela Portaria Interministerial no 60 (24/03/2015). A partir desse critério, foram identificados 14 trechos de linhas de transmissão, 16 rodovias, duas ferrovias, nove hidrelétricas, 13 pequenas centrais hidrelétricas e duas instalações portuárias, as quais incidem sobre 28 TIs, 13 UCs federais, quatro UCs estaduais e cinco áreas sem proteção. Nestes territórios, a Funai reconhece 67 registros de povos isolados (nove confirmados, 15 em estudo e 44 informações).
Até 2018, os 86 territórios com presença de grupos isolados registravam cerca de 900 mil hectares de desmatamento. Esse conjunto de territórios contempla 120 registros de povos indígenas isolados (28 confirmados, 25 em estudo e 67 informações). Além de obras, metade das áreas com presença de povos indígenas isolados ainda sofre com algum outro tipo de pressão. O banco de dados do ISA reúne informações sobre a incidência de garimpeiros, madeireiros, grileiros, outros ocupantes ilegais que possam ocorrer nessas áreas, além de pretensão de exploração minerária. Dos 28 registros de povos indígenas confirmados, 14 sofrem com alguma dessas pressões. As ocorrências são, sobretudo, ligadas à extração ilegal de madeira e ao garimpo. Entre os registros confirmados, em estudo e em informação, 40 áreas sofrem com a ação de madeireiros. Existe, ainda, informações sobre a presença de garimpos ilegais em ao menos 28 territórios habitados por grupos isolados. Essas pressões, quando combinadas, aumentam o perigo para os povos isolados na Amazônia brasileira.