A lei de crimes ambientais se aplica aos indígenas?
Neste texto, Juliana Santilli* trata da confusão jurídica e conceitual provocada pela sobreposição dos limites de UCs com TIs, que tem gerado a seguinte dúvida: os indígenas podem ser responsabilizados criminalmente pela prática de condutas lesivas ao meio ambiente?
Antes de mais nada, é preciso esquecer a ideia – totalmente equivocada e sem fundamento jurídico – de que os indígenas são penalmente inimputáveis e, portanto, não respondem pela prática de quaisquer crimes. Não há nada no ordenamento jurídico brasileiro – seja na Constituição, seja no Código Penal, seja no Estatuto do Índio em vigor – que autorize tal entendimento. Nos termos do Código Penal, só são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos e os autores de crimes que, em função de “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, eram, ao tempo da prática do crime, inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento. A lei penal prevê ainda a chamada semi-imputabilidade, permitindo a redução da pena quando o autor do crime é parcialmente capaz.
Obviamente, uma eventual dificuldade dos indígenas de compreender o caráter criminoso de algumas condutas punidas pelas nossas leis não se deve ao seu “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, mas sim a diferenças étnicas e culturais. Entretanto, muitos juízes criminais aplicam analogicamente aos indígenas tal norma penal, entendendo que os indígenas – “quando isolados ou ainda não integrados”, por não serem capazes de entender o caráter ilícito de sua conduta, são inimputáveis. Segundo tal entendimento jurisprudencial, quando se tratar de indígenas “aculturados” ou “integrados”, e, portanto, capazes de entender a ilicitude de sua conduta, os mesmos são imputáveis, e, portanto, podem ser responsabilizados criminalmente. Quando se tratar de indígenas “em vias de integração”, ou seja, semi-imputáveis ou parcialmente capazes de compreender o caráter ilícito de sua conduta, é comum os juízes criminais exigirem laudo pericial (antropológico) para aferir o grau de consciência do indígena acerca do caráter ilícito de sua conduta.
O Estatuto do Índio em vigor (Lei nº 6.001/73), entretanto, em seu art. 56, dispõe apenas que, no caso de condenação criminal de indígena, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o juiz “atenderá ao grau de integração do silvícola”. Ou seja, tudo o que Estatuto do Índio permite é uma atenuação da pena, principalmente quando se tratar de indígena “não-integrado”, determinando ainda que as penas de prisão devem ser cumpridas em regime de semi-liberdade, na sede da Funai mais próxima à aldeia indígena. Ou seja, o que o Estatuto do Índio admite é a atenuação da pena quando ficar evidenciado que o indígena, em função de diferenças culturais, não pode compreender o caráter criminoso do ato que praticou.
Entretanto, a possibilidade de responsabilização criminal de índios por crimes ambientais suscita questões bem mais complexas, principalmente quando há sobreposições de Territórios Indígenas e Unidades de Conservação.
A Constituição reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Assegura ainda aos índios o direito de usufruto exclusivo sobre as riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos, e a posse permanente sobre suas terras tradicionais.
O direito de usufruto exclusivo se destina a assegurar aos índios meios para a sua sobrevivência e reprodução física e cultural. Vê-se, portanto, que a Constituição protege o modo de vida tradicional dos povos indígenas, e que suas atividades tradicionais, desenvolvidas e compartilhadas ao longo de gerações, e reproduzidas segundo usos, costumes e tradições indígenas, estão claramente excluídas da possibilidade de aplicação das normas incriminadoras previstas na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98). Atividades tradicionais como caça, pesca e extrativismo, ainda que realizadas mediante o emprego de técnicas, métodos, petrechos ou substâncias não permitidas pela legislação ambiental, estão isentas das penas cominadas aos crimes ambientais. Diversas são, entretanto, as consequências penais quando se tratar de atividades não-tradicionais, que deverão se submeter à legislação ambiental.
Nas palavras de Fernando Mathias Baptista:
Na medida em que a exploração (de recursos naturais) se dê de acordo com os usos e costumes dos povos indígenas, não estão eles obrigados a cumprir com as normas e padrões ambientais exigidos para a população não indígena, pois a Constituição respalda seus usos e costumes como legítimos e reconhecidos pelo Estado brasileiro. Caso passem a explorar seus recursos naturais de forma diversa do que dita suas tradições e costumes de manejo, então passariam a estar sob o crivo da legislação ambiental, devendo observar as restrições ambientais para cada atividade pretendida" (2002: 186)
Deve ser salientado que a prática, pelos indígenas, de atividades não-tradicionais, tais como pesca comercial, exploração florestal etc., sem o cumprimento da legislação ambiental enseja não só a responsabilidade criminal – quando estiver caracterizado algum dos crimes ambientais previstos na Lei 9.605/98 ou em outras leis penais – como também a responsabilidade civil e administrativa pelos danos ambientais. A responsabilidade civil implica a obrigação de reparar os danos ambientais provocados pela conduta ilícita ou indenizá-los e a responsabilidade administrativa implica a imposição de penalidades administrativas pelo órgão ambiental, tais como multas, embargos, interdição etc., através de processo administrativo que se instaura com a lavratura de auto de infração pela fiscalização ambiental.
Outra questão é a caracterização do crime previsto no art. 40 da Lei de Crimes Ambientais: aquele que causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação ou ao seu entorno está sujeito a pena de reclusão de um a cinco anos. Se há uma superposição dos limites de Unidades de Conservação sobre terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, não há como alegar que os indígenas, ao praticarem atividades tradicionais incompatíveis com a natureza da Unidade de Conservação – por exemplo, caçar ou pescar, ou coletar plantas ou sementes dentro de um Parque Nacional ou Reserva Biológica cujos limites incidem sobre Terras Indígenas – estejam praticando o referido crime (de dano a Unidade de Conservação). Se a Constituição assegura aos indígenas direitos originários sobre suas terras tradicionais, não há como responsabilizá-los quando praticam atividades tradicionais, segundo seus usos, costumes e tradições, dentro de Unidades de Conservação cujos limites incidem sobre suas terras tradicionais – mesmo quando se trate de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, em que aquela atividade é vetada pela legislação ambiental. Se a categoria de Unidade de Conservação criada sobre os limites das Terras Indígenas é incompatível com as atividades tradicionais desenvolvidas pelos povos indígenas, não há como sustentar a sua validade jurídica em face dos direitos originários assegurados constitucionalmente aos povos indígenas.
Suponhamos, entretanto, que os indígenas pratiquem atividades não-tradicionais predatórias (ex.: exploram ilegalmente madeira) dentro dos limites da Unidade de Conservação que incidem sobre o território indígena. Poderão ser responsabilizados pelo crime de “causar dano a Unidade de Conservação”? Parece-nos que não, pois não estarão causando dano propriamente a uma Unidade de Conservação, e sim a seu território tradicional, e, portanto, sua conduta não se amolda a tal tipo penal específico. Poderão, entretanto, ser responsabilizados por crimes contra a flora, em geral (destruir ou danificar florestas de preservação permanente, impedir a regeneração natural de florestas etc.), pois a sua conduta certamente se encaixará dentro de tal norma incriminadora.
Em suma, quando os indígenas promovem a exploração de recursos naturais voltada para a comercialização, têm que se adaptar às normas ambientais em vigor. Se, por exemplo, resolvem explorar a pesca comercial, precisarão de autorização do Ibama e terão que respeitar as normas que restringem a pesca em período de reprodução. Da mesma forma, eventual exploração madeireira dependerá da aprovação de plano de manejo florestal sustentável e do cumprimento da legislação florestal.
* Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e sócia-fundadora do ISA. Artigo publicado no livro Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza, o Desafio das Sobreposições, ISA, nov.2004
Referência bibliográfica
- BAPTISTA, Fernando Mathias. “A gestão dos recursos naturais pelos povos indígenas e o Direito Ambiental”. In: LIMA, A. (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo, Instituto Socioambiental; Porto Alegre, Antônio Fabris Editor, 2002.
Outras leituras
Acesse o site sobre Unidades de Conservação na Amazônia Legal do Instituto Socioambiental