"Em vez de desenvolvimento, envolvimento"
por Timóteo Verá Popyguá
Minha tia, que morreu com 120 anos, morava na aldeia do Itariri no começo do século passado. Ela me contava que na subida pelo litoral, à margem do rio Capivari, tinha um descanso Guarani que chamava Guyra Pytã por causa de uma garça vermelha que morava por lá. Essa rota continuava até chegar no rio Pinheiros e subia pela margem até Bauru. Grupo de cinco, seis famílias ia pra Bauru e depois voltava. Então ela dizia assim que uma vez vieram de novo as famílias e, quando chegaram, ficaram assustadas: de repente tinha lago no Guyra Pytã. Ficaram muitos dias lá perto esperando a água baixar, mas nada da água baixar. Depois de muitos anos souberam que era a represa feita pelos brancos. Guyra Pytã virou Guarapiranga. Minha tia sempre contava essa história para mim.
Depois que fizeram a represa, Guarani não subiu mais. Só depois de 1930, quando concluiu a linha férrea Sorocabana, que começaram a vir por aqui. Ficava uma família um mês, dois meses, e voltava pra aldeia. Sempre andava. Em 1955 ficou uma família, não exatamente aqui, mais perto do trem. Na época chamava Vila Guarani. Depois chegaram mais famílias, e começou a ficar aldeia mesmo, em 1960, neste local. Começou a chegar bastante família, parentes do Paraná, e algumas do litoral sul e do litoral norte subiam até aqui e ficavam. Hoje cresceu bastante, com mais de 800 pessoas. Mas aqui sempre foi rota Guarani.
Acho que foi em 1983 que vim para São Paulo. Levamos 15 dias pra chegar porque viemos a pé uma parte do caminho. Não tinha quase nada aqui perto da aldeia, não tinha asfalto, nada. Chegamos, viemos a pé por aqui. Na época era o José Fernandes o cacique. Depois de dois anos comecei a acompanhar o Zé Fernandes nas reuniões da Aguaí – Ação Guarani Indígena, uma associação das aldeias do litoral sul, litoral norte e da capital, em que só os caciques e pajés participavam. A luta da Aguaí era para demarcação de terra indígena. Conseguiram demarcar a Rio Branco, conseguiram demarcar a Itariri, Tenondé Porã, Krukutu, aldeia do Silveira e Ubatuba, e conseguiram também no Rio de Janeiro, em Angra dos Reis e Sapukaia. Não é que eles não tinham dificuldades, mas eles são fortes na parte espiritual, então conseguiram.
Depois de dois anos já conhecia todas as aldeias de São Paulo, porque eu participava com o Zé Fernandes. Ele falava assim: “um dia que eu parar alguém tem que seguir”. Eu me lembro que participavam uns trinta jovens, de quatorze anos até vinte, aqui na aldeia. Só que depois de dois, três anos, quatro anos, todo mundo foi pra vários lugares, e eu fiquei só aqui. Então em 1995 o Zé Fernandes saiu para Ubatuba, e depois retornou para o Jaraguá [aldeia também no município de São Paulo]. O Manoel Lima passou a ser o cacique. E em 2003 eu entrei em seu lugar.
O principal problema da aldeia Tenondé Porã e da aldeia vizinha, Krukutu, hoje é a ampliação. Tradicionalmente o Guarani vive com amplitude e hoje a gente está numa caixa de fósforos. Até mesmo para manter a língua, manter as tradições, é preciso ter espaço suficiente. E em volta está aumentando a urbanização. Há dois anos era tudo mato aqui do lado, e hoje já é vila. Acontece muito loteamento clandestino, moradia irregular. Agora o Rodoanel vai trazer ainda mais prejuízo. A cidade tem que ser abastecida pela água. Mas a represa Billings e a represa Guarapiranga estão sendo destruídas. Imagina com a construção do Rodoanel o que vai acontecer? Vai aumentar a destruição. Quem depende da água somos nós, os seres humanos, nós não estamos dependendo do asfalto pra sobreviver. Daqui a vinte anos, quarenta anos, vamos sentir o efeito.
Nós temos apenas 26 hectares, e a Krukutu mais 26, mas temos ocupação grande, o pessoal conhece tudo isso aqui. Antes mesmo da represa os Guarani andavam para cá, caçavam ali. Eu sei que em 1920, 30, era tudo desmatado aqui porque tiravam a madeira para a Maria Fumaça, para fazer carvão. Guarani já estava presente. Então, o que a gente pediu como medida compensatória pelo Rodoanel é que eles possam ajudar a ampliar nossa área. O levantamento que foi feito pela Funai era de nove mil hectares. E nesses nove mil hectares daqui a cem anos a mata vai estar sempre aqui, ninguém vai tirar pra vender, ninguém vai enriquecer de uma forma ilícita da floresta. Isso que muitas vezes o branco não conhece, branco acha que o dinheiro pode salvar o planeta.
Até 1984 aqui não tinha luz, a gente vivia no escuro. Quando chegava a noite a primeira coisa que a gente fazia era ir na casa de reza. Quando foi instalar energia elétrica, começou a comprar televisão. Com isso, mudou bastante. Mas as coisas materiais são as coisas materiais, e a parte espiritual é o essencial que tem prevalecido no Guarani.
Eu tenho 37 anos, e quando eu bater a bota, eu sempre digo para os jovens que estão aqui: “vocês são o futuro da nação Guarani, vocês têm que se preocupar, manter a língua, manter a tradição, manter a cultura”. Também estudar, saber ler, mas não misturar. Por que água e óleo não se misturam, então porque não levar em paralelo conhecimento guarani e conhecimento juruá [branco]?
Hoje as crianças juruá são educadas pro mundo do mercado. Eu penso diferente, penso o contrário, que o jovem guarani seja representante de seu povo. E criar projeto dentro da aldeia, a parte de turismo, o plantio, para não necessitar sair. Fazer artesanato e exportar pra outros países. No meu ponto de vista a globalização não é competição, a globalização é compartilhar com a diferença. Por exemplo, conhecer os Estados Unidos não é um jogo de confronto, mas sim um jogo de conhecimento, é ter um vínculo de conhecimento. Exportar cesta do Guarani, colar do Guarani, vai gerando renda pra comunidade, vai gerando emprego, e não precisa sair daqui e ir para a Avenida Paulista, ou Praça da Sé, ou República. Se a gente conseguir a ampliação da nossa área para nove mil ou dez mil hectares, aí dá pra viver tranqüilamente, não vivendo de caritativo nenhum, mas sim o índio oferecendo seu próprio trabalho, e através do trabalho gerar renda pra comunidade. Eu penso isso. Vou batalhar nisso. Em vez de depender do juruá, eu queria parceria.
Muitas vezes o branco fala que tem que preservar a natureza, mas muitas vezes só fala e não faz. O Guarani ama a natureza em silêncio, através do conhecimento milenar. Aquele que fica distante da natureza se torna uma coisa dura, com coração de pedra. Porque a cidade muitas vezes traz bastante recursos, então diz que o progresso traz desenvolvimento, mas também traz destruição.
Nosso futuro, nosso desenvolvimento, para os Guarani significa nosso conhecimento. Respeitar a natureza significa desenvolvimento. É diferente do branco. Eu já fico com receio quando fala desenvolvimento sustentável, desenvolvimento não sei o quê... Eu falaria na minha língua envolvimento.
No território do Brasil, antes dos portugueses, quando tinha milhões de indígenas, era uma área de uso, mas tinha época certa de caçar e de coleta. Já tinha plano de manejo antes do português. Por que hoje não tentar fazer isso de novo com nossas crianças?
A partir do momento que for demarcar e homologar uma área indígena, mesmo que seja em Parque de Mata Atlântica, com certeza a gente vai preservar. A terra que estamos reivindicando pega um pedaço do Parque da Serra do Mar. Eu conheço bastante ali, e eu vejo que tem bastante caçador e palmiteiro. Vamos ajudar a proteger e a replantar. A gente também está dentro de uma Área de Proteção Ambiental, e essa é uma forma de gerar renda não somente na aldeia. A cultura muitas vezes está escondida. Então não só os indígenas, mas também o pessoal que mora aqui na região de Parelheiros, de Marsilac, de Cipó, aqui na Barragem, também tem bastante conhecimento e pode ensinar ao pessoal da cidade como se preserva a natureza.
Em 1992, teve convite de Portugal para alguém que fosse representar os Guarani. E na época eu fui representar os Guarani nos 500 anos de resistência. E lá em Portugal eles estavam comemorando os 500 anos de descobrimento da América. Eu estive em Lisboa, e depois me dirigi para Algarves, onde partiram na caravela com Cabral. Lá estavam em torno de 10 mil pessoas participando da festa, estava ministro lá, e eu estava lá. Aí fui e me apresentei. A partir de quando me levantei ali, me lembrei de um canto, um canto que meu avô, que ainda é vivo, pai da minha mãe, ele cantava quando eu tinha cinco, quatro anos. Na hora que eu levantei, peguei o microfone e cantei. E na hora dez mil pessoas, ficou tudo caladinho. Eu estava sozinho ali. Eu no alto subi, cantei. Parece que tudo parou ali. Eu cantei. Aí depois eu falei sobre a minha tradição, de qual etnia eu era. Falei um pouco também em guarani com eles.
Em 1996, quando aconteceu um encontro dos povos indígenas no Ibirapuera, o Intertribol, estavam discutindo como fazer a abertura do evento. Eu fiquei pensando, e me recordei de novo desse canto do meu avô. Eu podia ensinar as crianças. Peguei cinco meninas e mais cinco meninos. Eu pegava o violão e tocava, saiu lindo. Aí gravamos um CD para a abertura do encontro. Mas quando estivemos conversando com os mais velhos, disse: “eu pensei uma coisa diferente para a abertura do evento”. E os mais velhos falaram: “não! O canto das crianças é uma coisa muito relevante, uma coisa sagrada, por que você fez isso?”, me cobrando. Só que, nisso, já veio na minha cabeça que em 1970 até 80, e 80 até 90 mesmo, o Guarani é considerado um Guarani no passado, Guarani é uma lenda, aculturado. Não só juruá, as outras nações indígenas também falavam. Aí eu dizia assim que era importante pelo menos divulgar língua, divulgar o canto das crianças para mostrar que o Guarani está vivo, o Guarani está presente, que o Guarani também é século XXI. Tive essa discussão. Aí os mais velhos começaram: “acho que tudo bem, acho que ele tem razão”.
De repente, na abertura do evento, tocou aquilo no estádio. E todo mundo ficou surpreso. O João [da Silva, liderança política e religiosa da aldeia Bracuí, em Angra dos Reis/RJ] falou assim: “puxa, que lindo. Eu também sei essa música, cantava quando criança”. Parece que aquele instante despertou todo mundo. Todos mais velhos falaram: “eu cantava também quando criança”. Aí todo mundo voltou para as aldeias e já falava: “vamos fazer um grupinho, eu posso ensinar as crianças”. Dentro de um ano, muitas aldeias já tinham um grupinho. Antigamente, quando estava descendo o dia, as crianças se reuniam, cantavam para ir purificando. Depois isso não acontecia mais, e de repente veio acontecer o CD e os corais.
Na minha infância acontecia muita cerimônia religiosa na casa de reza. Na minha infância não faltava, tudo era feito com mel, e saído da mata. Tudo isso não tem mais hoje. Por mais que não tinha demarcação, tinha uma mata suficiente pra sobreviver. O Guarani chamava de Ivyrupá, que significa “terra é uma só”, não tem a divisão geográfica. Não tinha também as fronteiras: Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia... é uma coisa dos juruá. Dentro da cultura guarani não existe. Por isso é chamado Ivyrupá, ou nós chamamos Nhanderu Ivyrupá, “a terra pertence a Deus”. Então Guarani ocupava uma área imensa, e por isso muitas vezes falam assim: “os Guarani são originais do Paraguai, ou da Argentina, não são do Brasil”. Mas esse era o território guarani. Quem fez a divisão foram os brancos, não foi o índio que fez. Essa tradição continua sendo passada hoje para as nossas crianças. O Guarani é sempre um povo pacífico, um povo que não confronta, não gosta de violência, tanto que Guarani sobrevive durante 500 anos mantendo sua língua, mantendo sua própria cultura, sua própria dança, mantendo, fugindo. Então sobreviveu. E hoje estamos aqui, e vivos, e fortes espiritualmente, e fortes politicamente. Porque eu acho que hoje nós, jovens, que estamos na linha de frente, acho que nós temos que cada vez mais fortalecer.
Depoimento recolhido e editado por Valéria Macedo em maio de 2006
A aposta de Timóteo Verá Popyguá para os Guarani em sua interlocução com os Juruá
por Valéria Macedo (doutorada em Antropologia Social, USP)
Vivendo apartadas, mas não raro muito próximas de cidades ou rodovias, populações Guarani no sul e sudeste do Brasil são freqüentemente associadas pelo senso comum à “mendicância” e “aculturação”. No decorrer da década de 1990, contudo, podemos reconhecer em Timóteo Verá Popyguá o protagonismo em um conjunto de iniciativas para reverter essa “invisibilidade” cultural guarani no olhar ora displicente ora pseudo-piedoso dos Juruá (não-indígenas). É o que expressa nesse depoimento, editado a partir de três sessões de conversas, entremeadas por outras demandas de cacique da aldeia Tenondé Porã, no bairro paulistano de Parelheiros, que incluíam gravações de entrevistas e direção do coral infantil para dois canais de televisão, reuniões com representantes da Funasa e do projeto de recuperação ambiental patrocinado por Furnas, além de solicitações de seu filho mais novo para que fossem almoçar.
Desde que passou a habitar a aldeia Tenondé Porã, em 1983, Timóteo acompanhava o então cacique José Fernandes, até hoje grande líder político-espiritual guarani (e cacique da aldeia Jaraguá, em outro bairro da capital), e é com reverência que Timóteo destaca as lutas e conquistas dos mais velhos no reconhecimento das terras guarani no estado de São Paulo. Hoje Timóteo e outras lideranças procuram dar curso a esse processo, lutando pela ampliação dessas terras, cujas áreas diminutas (26 hectares no caso da TI Tenondé Porã, onde moram mais de 800 pessoas) em boa parte foram reconhecidas pelo governo estadual em período anterior à Constituição Federal de 1988.
Entretanto, no que concerne à interlocução com os Juruá para além das reivindicações territoriais, Timóteo vem privilegiando uma orientação que contrasta com a grande discrição da maioria das lideranças, particularmente os mais velhos, em relação ao universo guarani. A despeito de também ser contrário à idéia da mistura ou da assimilação ao mundo dos brancos, Timóteo sugere nesse depoimento que investir na afirmação da singularidade guarani por meio de projetos e produtos culturais parece ser hoje a única maneira de manter o modo de vida num mundo em que os Guarani se vêem cada vez mais acossados pela expansão das cidades e a interdição de terras por propriedades privadas ou áreas de proteção ambiental com restrição de uso. Propondo uma ênfase no envolvimento em vez do desenvolvimento, Timóteo não se furta a problematizar os discursos ligados à preservação e mesmo ao desenvolvimento sustentável, que muitas vezes não se desdobram em práticas e sim em destruição.
Particularmente no caso das aldeias de Parelheiros (Tenondé Porã e Krukutu), a aprovação da construção do trecho sul do Rodoanel foi precedida por uma negociação extremamente desgastante. E, a despeito da promessa da Dersa de apoio financeiro para desapropriações que possam facilitar o processo de ampliação da Terra Indígena, Timóteo vê com receio os desdobramentos urbanísticos de uma estrada desse porte na região de mananciais, preocupando-se não apenas com os Guarani, mas com todos que dependem do abastecimento de água na cidade de São Paulo.
Para que a vida guarani possa continuar transcorrendo nesse contexto adverso, além da ampliação ou reconhecimento de territórios, Timóteo pondera que é preciso buscar outras fontes de recursos junto aos brancos. Sensível à tendência mundial de maior disponibilização de recursos e valorização da diversidade cultural por políticas públicas e organizações nacionais e transnacionais, Timóteo vem assim se destacando na articulação dessa alternativa de afirmação e divulgação da singularidade cultural – por meio dos cantos, da dança xondaro, do artesanato, do saberes sobre a mata – como caminho para irem deixando de ser objeto de políticas assistencialistas dos brancos, podendo cada vez mais ser sujeitos de trocas e parcerias que implicam um aprendizado mútuo.
Como sugere em seu relato, o marco inicial dessa orientação parece ter se dado em Portugal, quando Timóteo arrebatou o público ao entoar um canto que aprendera com seu avô. Alguns anos depois, não foi sem resistência dos mais velhos que ele propôs a confecção de um CD com cantos das crianças guarani. A esse CD outros se sucederam e hoje boa parte das aldeias do sul e sudeste tem seus corais. O mais recente desses CDs, Ñande Arandu Pygua, inclui a fala de pajés e foi oficialmente lançado na capital paulista em julho de 2006, em um show dirigido por Timóteo no SESC Pinheiros, que reuniu, sob um grandioso cenário e sofisticada iluminação, doze corais de aldeias nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, incluindo a encenação de rituais na opy (casa de reza).
É possível reconhecer nesse caminho muitos obstáculos e encruzilhadas. Mas essa parece ser a busca de Timóteo: exacerbar formas da cultura para garantir o fluxo da vida.