De Povos Indígenas no Brasil

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Foto: Edilene Coffaci de Lima, 1998

Katukina Pano

Autodenominação
Onde estão Quantos são
AC 1154 (Siasi/Sesai, 2014)
Família linguística
Pano
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Introdução

Como em suas atuais "brincadeiras", formas abreviadas de antigos rituais, em que a constituição da sociedade emerge da interação entre os participantes, os Katukina enfatizam em sua própria história os contatos com grupos indígenas vizinhos, a partir dos quais reformulam e reconstroem seus arranjos sociais. Não deve ser por outro motivo que o Pe. Tastevin, no início deste século, os definiu como "panos de todas as raças".

 

[Verbete atualizado pela autora em 2009]

Nome

Meninos na TI do rio Campinas. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 1998
Meninos na TI do rio Campinas. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 1998

Definir quem são os Katukina, orientando-se exclusivamente pela denominação do grupo, não é uma tarefa fácil. Desde a primeira metade do século passado, os registros históricos produzidos por missionários, viajantes e agentes governamentais sobre as populações indígenas do rio Juruá fazem referência a grupos indígenas conhecidos pelo nome de Katukina. Entretanto, "Katukina" (ou Catuquina, Katokina, Katukena e Katukino) é um termo genérico que chegou a ser atribuído a cinco grupos lingüisticamente distintos e geograficamente próximos, conforme o antropólogo Paul Rivet (1920). Atualmente esse número se reduz a três: um da família lingüística Katukina, na região do rio Jutaí, no estado do Amazonas, e dois da família lingüística Pano, no estado do Acre.

Nenhum dos dois grupos pano conhecidos pelo nome de "Katukina" o reconhece como auto-denominação. Os membros de um deles, localizado às margens do rio Envira, próximo à cidade de Feijó, preferem ser reconhecidos como Shanenawa, sua auto-denominação. Os do outro não reconhecem no nome "Katukina" qualquer significado na sua língua, mas o adotam, dizendo que a denominação, na verdade, foi "dada pelo governo".

Este verbete trata apenas do último dos referidos grupos. O nome “Katukina” tornou-se aceito pelos membros de suas aldeias, localizadas nos rios Campinas e Gregório. Nos últimos anos, a partir da atuação de jovens lideranças indígenas, está se consolidando o uso da denominação de Noke Kuin, que é livremente traduzida como “gente verdadeira”. Internamente são ainda reconhecidas seis outras auto-denominações, que se referem aos seis clãs nos quais se dividem: Varinawa (povo do Sol), Kamanawa (povo da Onça), Satanawa (povo da Lontra), Waninawa (povo da Pupunha), Nainawa (povo do Céu) e Numanawa (povo da Juriti).  É digno de nota que, com exceção de Nainawa, tais denominações são idênticas aos nomes de algumas das seções do povo Marúbo.


Língua

A língua katukina pertence à família lingüística pano. A nasalização é uma de suas fortes características. A maior parte das palavras é dissilábica e oxítona e novas palavras podem ser formadas a partir combinação de duas palavras ou da inclusão de um ou mais sufixos. Os pronomes pessoais não fazem distinção de gênero. Todos os Katukina falam a sua própria língua para relacionarem-se entre si. O português é usado exclusivamente para interagir com os brancos. Apesar do longo período de contato com estes, menos da metade da população Katukina é fluente em português.

A língua falada pelos Katukina do rio Campinas e do rio Gregório apresenta diferenças significativas em relação à língua falada pelos Shanenawa.


Localização

Aldeia do Campinas do povo Katukina Pano e a BR-364, Terra Indígena Campinas/Katukina, Cruzeiro do Sul, Acre. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 2006
Aldeia do Campinas do povo Katukina Pano e a BR-364, Terra Indígena Campinas/Katukina, Cruzeiro do Sul, Acre. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 2006

São duas as Terras Indígenas (TI) nas quais vivem os Katukina. A TI do rio Gregório, a primeira a ser demarcada no Acre, no município de Tarauacá, é também habitada pelos Yawanawá. A partir de um processo de revisão de seus limites, concluído em 2006, essa TI foi extendida. Os moradores dela estão localizados em aldeias localizadas no rio Gregório e no rio Tauari.

A TI do rio Campinas, que fica na fronteira dos estados do Amazonas e do Acre, circunscreve-se nos limites dos municípios de Tarauacá (AC) e Ipixuna (AM). Apesar disso, a sede do município de Cruzeiro do Sul é o núcleo urbano que lhe fica mais próximo,  a apenas 55 quilômetros da aldeia. A TI do rio Campinas, em toda sua extensão leste-oeste, é cortada pela BR-364 (Rio Branco– Cruzeiro do Sul). Às margens da rodovia, os Katukina ali residentes distribuem-se em cinco aldeias: Campinas, Varinawa, Samaúma, Masheya e Bananeira.

No início de 2000 as obras de asfaltamento da rodovia avançaram sobre a TI do rio Campinas que teve bastante alteradas suas condições ecológicas e econômicas. Assim, hoje em dia rareiam os animais de caça, boa parte da dieta alimentar é composta de artigos industrializados comprados na cidade e é freqüente o trânsito de veículos e pessoas estranhas por suas terras.


Demografia

Menino Katukina Pano, Terra Indígena Campinas/Katukina, Cruzeiro do Sul, Acre. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 2006
Menino Katukina Pano, Terra Indígena Campinas/Katukina, Cruzeiro do Sul, Acre. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 2006

Nas três últimas décadas, os Katukina tiveram um crescimento populacional de mais de 300%. Segundo dados da Funai, em 1977 os Katukina totalizavam 177 pessoas: 100 na aldeia do rio Gregório e 77 na aldeia do rio Campinas. Passados pouco mais de vinte anos, em 1998, os Katukina contavam com uma população total de 318 pessoas: 98 na TI do rio Gregório e 220 na TI do rio Campinas. Em 2008, a população Katukina, segundo dados da FUNASA, era de 585 pessoas: sendo 503 moradoras na TI do rio Campinas e 82  nas aldeias da TI do rio Gregório.

As mudanças de uma TI para a outra são bastante comuns e dependem da avaliação que os Katukina fazem da situação social, econômica e política de cada uma delas em um determinado período. A Terra Indígena do rio Campinas concentra atualmente a maior parte da população katukina, devido ao deslocamento das pessoas que teve início entre os anos de 1994 e 1997 e se acentuou a partir das obras de pavimentação da BR-364.


História do contato com os brancos

Os Katukina - assim como os demais grupos indígenas da região do alto Juruá - foram praticamente cercados quando se iniciou a exploração econômica da região, por volta de 1880, com a extração da borracha nativa. A região que habitavam, rica em caucho (Castilloa elastica) e seringueira (Hevea brasiliensis), foi imediatamente invadida por peruanos e brasileiros, que chegavam de lados opostos. Os primeiros tiveram uma presença passageira, pois iam em busca da goma do caucho, obtida a partir do abate da árvore, que, por isso, esgotou-se rapidamente. Já os seringueiros brasileiros estabeleceram-se sedentariamente, pois os cortes superficiais e regulares no tronco da Hevea brasiliensis permitem a extração da borracha por tempo indeterminado.

Nos primeiros anos do contato com os brancos, os Katukina viveram um período de deslocamentos constantes, tentando escapar vivos das "correrias" - incursões cujo objetivo era eliminar as populações indígenas para liberação dos seringais -, organizadas por caucheiros peruanos e seringalistas brasileiros. Fugindo das "correrias", os Katukina dispersaram-se na região. Sem condição de se manterem reunidos, passaram a se deslocar pela floresta, vivendo da caça, coleta e de assaltos aos roçados que encontravam pelo caminho, pois não mais podiam fazer os seus, uma vez que seriam uma pista fácil que inevitavelmente levaria os brancos de volta até eles. Além disso, os deslocamentos eram impulsionados também pela crença de que os espíritos dos mortos, saudosos de seus parentes, poderiam vir à terra para buscá-los.

Na primeira década deste século, cessaram as "correrias", em parte porque as árvores de caucho, que precisavam ser abatidas, esgotaram-se e também devido aos conflitos de fronteira entre o Brasil e o Peru, que foram resolvidos por um tratado em 1909. Contribuiu ainda com o fim das "correrias" a queda do preço da borracha no mercado internacional em 1912. As "correrias" tiveram um fim, porém os Katukina guardam com horror as lembranças transmitidas por seus pais e avós, que falam de fugas e desencontros pelas matas e são repletas de imagens de corpos mutilados e marcados pela violência.

Com o povoamento da região, os Katukina tiveram o território em que moravam e sua população drasticamente reduzidos - também não podendo ser ignoradas as perdas populacionais ocasionadas pelas doenças que outrora não existiam entre eles. Sem outra alternativa, os Katukina acabaram por engajar-se na empresa seringalista, mas continuaram dispersos na região, pois tornou-se comum que cada família elementar se estabelecesse para trabalhar em um seringal diferente. Isso, evidentemente, estabeleceu uma ruptura em sua sociedade, já que não podiam mais organizar e partilhar suas vidas de acordo com seus próprios princípios e valores socioculturais.

Neste vai-e-vem entre rios e seringais, a referência era sempre o rio Gregório, precisamente o seringal Sete Estrelas, para onde os Katukina sempre retornavam após períodos de duração variável em diferentes locais. As mudanças de um rio ou de um seringal para outro são parte da memória katukina, cujos pontos principais de passagem eram os seringais Sete Estrelas e Caxinauá no rio Gregório, Universo no rio Tarauacá, e Guarani e Bom Futuro no riozinho da Liberdade.

Na década de 50, houve uma interrupção nos deslocamentos e a maior parte dos Katukina, se não todos, estavam reunidos no seringal Sete Estrelas. Na década seguinte ocorreu a cisão do grupo devido, por um lado, a desentendimentos entre os Katukina, o chefe deles e o novo patrão do seringal para quem trabalhavam e, por outro, a desentendimentos com os Yawanawá, grupo indígena pano vizinho da aldeia do rio Gregório, com o qual as relações sempre oscilaram entre a hostilidade aberta e a amizade comedida. Em busca de mais um patrão e precavendo-se contra a eminência de conflitos com os Yawanawá, parte do grupo resolveu procurar outro lugar para morar. Acabaram estabelecendo-se por aproximadamente oito anos em um seringal próximo da foz do Riozinho da Liberdade, na fronteira dos estados do Acre e do Amazonas.

Da década de 70 datam dois eventos que contribuíram de forma determinante na localização contemporânea das aldeias: a abertura da BR-364 (Rio Branco-Cruzeiro do Sul) e a chegada da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) para atuar junto aos Katukina do rio Gregório. Com o início da obra da BR-364, parte do grupo que havia na década anterior se estabelecido próximo da foz do Riozinho da Liberdade deslocou-se para trabalhar junto ao 7º BEC (Batalhão de Engenharia de Construção) no desmatamento para a construção da estrada; e também outros deslocaram-se do rio Gregório. Após o término do desmatamento, os Katukina obtiveram autorização do 7º BEC para morar às margens da estrada, que eles julgavam um bom local devido à proximidade da cidade de Cruzeiro do Sul, onde, tinham a esperança, poderiam vender facilmente o que produzissem e obter os bens industrializados de que necessitassem. Aqueles que voltaram ou permaneceram na aldeia do rio Gregório viam nos missionários (MNTB) uma possibilidade de assistência médica e educacional regular.

A partir da metade da década de 1980, após tantos anos de perambulação e deslocamentos, os Katukina viram garantido o direito à posse do território onde habitavam e romperam os vínculos que os ligavam aos patrões seringalistas.


Contato com outras etnias

Ao longo de sua história, os Katukina têm mantido contato, pacífico ou não, com vários grupos indígenas da região do rio Juruá e, recentemente, também da região do rio Javari. Os Kulina, os Yawanawá e os Marúbo são os três grupos com os quais os contatos foram e são mais intensos e significativos para os Katukina.

Os contatos entre os Katukina e os Kulina - falantes de uma língua arawá e que vivem atualmente em aldeias dispersas ao longo dos rios Juruá e Purus, no Brasil e no Peru - mantiveram-se freqüentes, pelo menos até a década de 1960. Membros dos dois grupos costumavam encontrar-se principalmente para realizarem juntos certos rituais. Nos dias de hoje, os Katukina e os Kulina não mais se encontram, já que, devido aos sucessivos deslocamentos dos Kulina, os dois grupos moram distantes um do outro -, mas os Katukina ainda se lembram das cantigas que lhes foram ensinadas pelos Kulina. As cantigas kulina foram incorporadas ao repertório musical katukina e eles as entoam ainda hoje, apesar de não compreenderem o conteúdo dos cantos.

Dos grupos pano da região do alto Juruá, os Yawanawá são os vizinhos mais próximos e mais antigos dos Katukina, e atualmente dividem a TI do rio Gregório com eles.

Os Yawanawá também sempre foram seus adversários mais assíduos. Os Katukina acusam os Yawanawá de terem, no passado, raptado suas mulheres, desencadeando guerra entre eles. As acusações de feitiçaria, também freqüentes, persistem nos dias atuais. Apesar da rivalidade, os Katukina e os Yawanawá não se opõem o tempo todo. A realização conjunta de rituais, inter-casamentos e co-residência, no passado e no presente, não são raros entre eles. A ambivalência, antes que a oposição pura e simples, é o que rege suas relações. Tanto assim que os incontáveis anos de rivalidade não os afastaram definitivamente um do outro e, na década de 1980, os dois grupos chegaram mesmo a se unir para reivindicarem a demarcação conjunta de suas terras.

Um pouco mais distantes, os Marúbo têm também mantido contatos regulares com os Katukina, mas apenas a partir de anos recentes. O pouco tempo de aproximação, entretanto, não impede que os Marúbo sejam hoje o grupo com o qual os Katukina mais se identificam.

O primeiro encontro entre os dois grupos parece ter ocorrido na década de 1980, quando missionários da MNTB (que atuam também entre os Marúbo do rio Ituí) levaram dois Katukina, moradores do rio Gregório, para conhecerem os Marúbo. Esse encontro, entretanto, parece não ter tido maiores desdobramentos. A aproximação entre os Katukina e os Marúbo aconteceu apenas na década seguinte, em 1992, a partir de um encontro casual no porto da cidade de Cruzeiro do Sul. Os Katukina estavam andando pelo porto, quando ouviram algumas pessoas falando uma língua parecida com a deles e resolveram se aproximar. Apresentaram-se, trocaram algumas palavras e logo descobriram que, além da língua, eles tinham outras características em comum. A principal delas seria a de que entre os Marúbo algumas pessoas também se identificavam como Satanawa, Varinawa, Kamanawa, Waninawa e Numanawa. Naquela ocasião eles trocaram alguns presentes e combinaram novos encontros.

Desde o encontro em Cruzeiro do Sul, alguns Katukina visitaram as aldeias Marúbo, no rio Ituí, e, reciprocamente, alguns Marúbo visitaram as aldeias da TI do rio Campinas. A partir dessas visitas, os Katukina passaram a refletir sobre as semelhanças e diferenças que apresentam em relação aos Marúbo e sobre as causas que pudessem explicá-las. A principal delas seria que, no passado, os Marúbo formavam um mesmo grupo com os Katukina. Entretanto, a separação entre eles teria acontecido em um tempo em que nem os Katukina nem os Marúbo contemporâneos, nem seus pais e avós, seriam nascidos. Muito antes ainda de conhecerem os brancos.

De acordo com os Katukina, as semelhanças deles com os Marúbo podem ser atestadas em vários aspectos: os Marúbo subdividem-se em várias seções e algumas delas têm as mesmas denominações de seus próprios clãs; a língua marúbo é parecida com a língua katukina; as casas comunais em que vivem os Marúbo seriam semelhantes às casas em que viviam antes de estabelecerem contato com os brancos. Os Katukina concordam que a forma como os Marúbo vivem atualmente representa o modo de vida deles no passado e os Marúbo são vistos por eles, então, como uma sociedade proto-katukina.


Vida social

Um agrupamento residencial, TI do rio Campinas. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 1998
Um agrupamento residencial, TI do rio Campinas. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 1998

A composição mais comum das aldeias katukina é do grupo doméstico formado por um casal mais velho, rodeado de seus filhos e filhas solteiras, filhos casados e netos. Observa-se, portanto que, após o casamento, as mulheres vão morar próximo às famílias de seus maridos. Tal orientação inverte a regra de residência que vigorava no passado, pois, como os próprios katukina admitem, eram os rapazes que, antes, se deslocavam para as proximidades das famílias de suas esposas. Unidos por laços de parentesco e casamento, os moradores de um mesmo grupo doméstico cooperam entre si no desempenho das atividades cotidianas.

Na aldeia do rio Campinas, os grupos domésticos são compostos de duas a sete casas que se distribuem ao longo da beira da estrada a uma distância variável de cinco a quinze minutos de caminhada um do outro. Já na aldeia do rio Gregório, quase todos os grupos domésticos estão distribuídos na margem direita desse rio, próximos da pista de pouso e das instalações da MNTB.

A regra de casamento entre os Katukina determina que um homem deve casar com uma mulher que ele chama de pano, uma categoria que inclui a filha do irmão da mãe e a filha da irmã do pai. Por sua vez, uma mulher deve casar-se com seu txai, uma categoria que inclui o filho do irmão da mãe e o filho da irmã do pai. É comum que, em caso de separação ou viuvez, um homem se case com a irmã de sua ex-esposa. A poliginia é admitida e, normalmente, as esposas de um mesmo homem são irmãs.

Os Katukina têm um repertório vasto de mitos que falam das punições daqueles que mantiveram ou desejaram ter relações incestuosas. A Lua é a cabeça de Oshe, um rapaz que foi flagrado tentando ter relações sexuais com sua irmã e que, para escapar da morte, se refugiou no céu. Vésper é também a cabeça de um rapaz incestuoso, cunhado de Oshe, que teve o mesmo destino. Qualquer jovem katukina conhece essas histórias, que lhes foram contadas inúmeras vezes durante a infância por seus avós.


Os clãs katukina

Como vimos antes, os Katukina dividem-se em seis clãs: Varinawa, Kamanawa, Nainawa, Waninawa, Satanawa e Numanawa. Esses clãs organizam-se a partir de um princípio de unifiliação, mas, a esse respeito, os Katukina estão em desacordo: enquanto uns afirmam a matrilinearidade, outros afirmam a patrilinearidade.

Há um verdadeiro debate entre os Katukina para saberem qual é o princípio de unifiliação "correto". De um lado, estão os partidários da matrilinearidade, que se dizem mais fiéis ao passado. De outro, estão os adeptos da patrilinearidade, que chegam a reconhecer abertamente que houve uma inversão na regra de filiação nos anos recentes.

O que rege essa discussão é a idéia de que há um princípio "correto", "puro", que exprime a ordem tradicional. Aqueles que afirmam a filiação por linha materna buscam no passado o modelo desta ordem e através de genealogias inquestionáveis exprimem aquilo que julgam o ideal. Entretanto, aqueles que, agora, dizem que os Katukina são patrilineares também o fazem buscando este mesmo sentido de "pureza", de tradição. Mas, com um detalhe importante: o modelo é kaxinawá. Alguns Katukina dizem que, há aproximadamente quinze anos atrás, eles souberam que os Kaxinawá são patrilineares. Como já fazia algum tempo que ninguém sabia ao certo como viviam os "antigos", alguns destes katukina resolveram afirmar a patrilinearidade, do mesmo modo como os Kaxinawá. O pressuposto deste empréstimo é claro: se não há uma "regra" nativa consistente e inquestionável, ela pode ser encontrada noutro lugar.

A questão de saber qual é, afinal, o princípio de filiação às unidades katukina resulta então em aberto. Há um debate entre eles que mobiliza posições tão díspares quanto interessantes, pois têm em comum a afirmação de que perderam algo no contato com os brancos. Algo que só pode ser reposto voltando-se ao passado e a si mesmos, como querem os defensores da filiação em linha materna ou buscando entre outros pano o modelo que supostamente existia entre os Katukina, como afirmam aqueles que defendem a filiação em linha paterna.

Apesar de predominar a indefinição da regra de filiação, é possível definir as unidades internas que compõem a sociedade katukina como clãs, pois subjaz entre os Katukina a idéia que poderia ser chamada de "ancestralidade suposta" ou "presumida", ou seja, os Varinawa contemporâneos são tidos como descendentes dos antigos Varinawa, os Kamanawa dos antigos Kamanawa e assim por diante.

Talvez seja esclarecedor pensar em um "processo de clanificação" das auto-denominações katukina. Como vimos, quando os Katukina tomaram conhecimento da patrilinearidade kaxinawá, já havia entre eles um certo sentimento de perda da organização tradicional (normalmente creditada à influência dos valores ocidentais). Recorrendo a qualquer uma das formas de traçar a filiação (materna ou paterna), os Katukina reforçam simplesmente uma idéia de "ancestralidade", mas sem articulá-la diretamente com outros níveis da organização social (como ocorre com os Marúbo, por exemplo).


Nomes pessoais

Os Katukina usam dois tipos de nome: em sua própria língua e em português. A atribuição de um nome do segundo tipo não segue nenhum padrão preestabelecido e qualquer pessoa pode sugerir um nome em português para uma criança recém-nascida, que será bem recebido principalmente se for inédito na aldeia. Ao primeiro nome acrescentam, respectivamente, os sobrenomes da mãe e do pai.

Se na escolha dos nomes em português um dos principais critérios é o ineditismo, ocorre o contrário quando se trata dos nomes em katukina: os nomes se repetem, uma vez que provêm todos de um acervo comum que os katukina se esforçam em preservar. Em termos práticos, isso quer dizer que os pais escolhem para seus filhos os nomes de seus próprios parentes.

Os pais são quem nomeia seus filhos, do sexo masculino e feminino, algumas vezes consultando antes pessoas mais velhas. A atribuição de um nome pessoal é algo simples e nenhuma cerimônia ou ritual é realizado: uma vez escolhido, basta os pais começarem a usá-lo. O nome recebido na infância é definitivo.

A prática onomástica katukina é bastante variada e só não é permitido atribuir o próprio nome ao filho ou o nome de um filho morto. Dentre as alternativas existentes, a mais comum é os pais atribuírem a seus filhos o nome de seus próprios pais, isto é, se é uma menina os pais escolhem o nome da avó materna ou paterna, se é um menino escolhem o nome do avô paterno ou materno. A transmissão dos nomes através de gerações alternadas explicita o vínculo afetivo entre avós paternos e netos, que é bastante forte entre os katukina. Um outra alternativa, menos praticada, são os nomes dos tios maternos e paternos da criança. Deve-se observar, entretanto, que, nesse caso, os tios ou tias, sejam eles quais forem, já devem ter morrido e a escolha do nome é uma forma de colocá-lo novamente em circulação, permitindo assim que se preserve o acervo de nomes pessoais. Nesse caso, a reposição do nome assume um certo sentido de "homenagem", de demonstração de afeição ou estima pela pessoa que portava anteriormente o nome.

Embora os nomes sejam todos indeterminadamente repostos, não há qualquer idéia de reencarnação ou de que uma pessoa deva substituir a outra. A identidade entre homônimos encerra-se com o nome.


Homens e mulheres, a vida doméstica

Rira Katukina Pano, Terra Indígena Campinas/Katukina, Cruzeiro do Sul, Acre. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 2005
Rira Katukina Pano, Terra Indígena Campinas/Katukina, Cruzeiro do Sul, Acre. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 2005

Uma das mais importantes divisões sociais entre os Katukina, que perpassa e engloba todas as ações do cotidiano, é aquela entre os gêneros. Desde muito cedo as crianças são socializadas de acordo com os papéis sexuais que lhes cabem. Embora até a puberdade não seja esperado que as crianças contribuam na produção doméstica, elas já desempenham as tarefas mais fáceis de seu gênero. Após a puberdade já é esperado que as pessoas se dediquem mais às atividades domésticas e os pais exigem a ajuda de seus filhos. Rapazes e moças para poderem se casar devem saber desempenhar suas tarefas específicas e a ajuda que dão aos pais neste período é, ao mesmo tempo, uma forma de aprendizado.

As duas principais atividades masculinas são a caça e o preparo do roçado. A primeira, sem dúvida, é a atividade mais apreciada por todos. A caça exige muito mais do que força e disposição. Os garotos, por volta de 12-14 anos, começam a acompanhar seus pais na mata, para aprenderem os segredos que um bom caçador deve saber: reconhecer os rastros dos animais, seus gritos e assobios, os horários de atividade e inatividade. A melhor época para a caça é o "inverno", período das chuvas, que começa em novembro e prossegue até abril. Nesta época é que amadurecem e caem a maior parte dos frutos que servem de alimento aos animais, fazendo com que sejam mais facilmente encontrados. As chuvas, umedecendo o chão da floresta, facilitam a identificação dos rastros dos animais e abafam o barulho dos movimentos do caçador.

Apesar da grande valorização da caça, é a agricultura que oferece a maior parte dos itens que compõem a dieta e é também a atividade que absorve maior tempo de trabalho de homens e mulheres. A macaxeira e a banana são os principais vegetais da dieta. Numa escala secundária plantam batata-doce, cará, taioba, inhame, mamão, abacaxi e cana-de-açúcar. Recentemente os Katukina passaram também a reservar uma grande área do roçado para o plantio de arroz e de milho, para comercializar.

Os homens são responsáveis pela abertura de roçados para suas esposas e entre os meses de maio e julho fazem a broca dos arbustos e a derrubada de grandes árvores. Terminada esta etapa, interrompem o trabalho no roçado até que a vegetação esteja toda seca, por volta do final de agosto e início de setembro, quando fazem a queimada e, posteriormente, o plantio da macaxeira. Já a batata-doce, a taioba, o inhame, o mamão, o abacaxi, a cana-de-açúcar e o algodão são plantados pelas mulheres. O mamão e a cana-de-açúcar são plantados nos roçados e também nas imediações das casas. O plantio do arroz e do milho é feito por homens e mulheres.

Enquanto as atividades masculinas são executadas fora da casa, grande parte das atividades femininas concentram-se em seus limites. A única exceção é a colheita de macaxeira e banana no roçado. As outras atividades, preparar os alimentos, cuidar dos filhos e lavar roupas e utensílios domésticos, são restritas ao espaço da casa ou às suas imediações.

Sempre que houver tempo disponível, uma mulher deverá ainda fazer caiçuma, que pode ser de macaxeira (atsa matxu) ou banana (mane mutsa). O preparo da caiçuma de banana é simples: basta cozinhar a banana, amassá-la (não é mascada) e adicionar um pouco de água. Já o preparo da caiçuma de macaxeira demanda maior tempo e esforço e a iniciativa de fazê-la é sempre de mulheres adultas. Para preparar a caiçuma, a primeira coisa a fazer é colher a macaxeira no roçado; após descascada e lavada, a macaxeira deve ser cortada em pequenos cubos que são colocados numa panela com água e cobertos com folhas de bananeira; podem também acrescentar algumas batatas-doces. Após o cozimento, as mulheres amassam bem a macaxeira com uma colher de madeira e deixam a massa esfriar. Posteriormente, mascam toda a macaxeira cozida até que adquira a consistência de uma pasta. A etapa seguinte consiste em coar essa pasta. Feito isso a caiçuma está pronta e para consumi-la é necessário apenas acrescentar um pouco de água. Em tempos passados, as mulheres dizem que faziam também caiçuma de pupunha e de milho.

Atualmente o grau de fermentação da caiçuma de macaxeira é bastante baixo, uma vez que após o preparo é imediatamente consumida e a quantidade que costuma ser feita pelas mulheres é suficiente apenas para dois ou três dias. Outrora, dizem as mulheres katukina, era feita muita caiçuma azeda (katxa matxu), de alta fermentação, mas os homens se embriagavam e brigavam. Para conter as brigas, as mulheres decidiram suspender o preparo da caiçuma azeda e atualmente preparam apenas a caiçuma doce, de baixa fermentação, pois não causa embriaguez. O grau de fermentação da caiçuma determina não somente o teor alcóolico quanto o círculo de consumo. A caiçuma azeda, quando ainda era elaborada, tinha um círculo largo de consumo e estava associada a ocasiões rituais. Em contrapartida, a caiçuma doce está associada ao consumo restrito e doméstico. A decisão das mulheres de suspenderem o preparo da caiçuma azeda coincide com o fim da realização de certos rituais katukina.

Na maior parte das vezes, homens e mulheres desempenham atividades distintas em espaços também distintos. Todavia, certas atividades não se enquadram nessa divisão e podem ser realizadas por homens e mulheres, num mesmo espaço. As principais são a pesca e a coleta de frutos silvestres.

Os Katukina plantam tingui (asha) e com suas folhas preparam uma pasta que colocam nos rios para sufocar os peixes e facilitar sua apanha. Nas expedições de pesca não participam apenas as crianças menores de seis anos e as mulheres encarregadas de cuidar delas (mãe, irmã mais velha ou avó). O período para realização das pescarias coletivas vai de junho a novembro, do "verão" até o começo do “inverno”, quando os rios e igarapés estão rasos e os peixes se refugiam nos remansos. A partir da pavimentação da BR-364 e devido ao significativo aumento da população, na Terra Indígena do rio Campinas, a caça e a pesca estão bastante comprometidas e os Katukina têm se abastecido de carne e peixe a partir de compras feitas nos mercados de Cruzeiro do Sul.

A coleta de frutos silvestres, feita mais freqüentemente pelas mulheres, conta também com a participação dos homens. Isso porque os frutos mais encontrados (açaí, buriti, patauá, bacaba e cocão) dão em palmeiras muito altas e é preciso que pelo menos um homem acompanhe as mulheres para cortar a árvore ou nela subir.

Em todas as atividades a divisão do trabalho mantém a reciprocidade entre os gêneros - da qual, aliás, é fundadora. Circunscritos em domínios, os diferentes produtos e tarefas de homens e mulheres são concebidos como complementares uns aos outros.

No aconselhamento que antecede a consumação de um casamento, os pais orientam os noivos a cumprirem suas tarefas específicas: o rapaz deve caçar e preparar um roçado para sua mulher; por sua vez, ela deve sempre colher a macaxeira no roçado e preparar a comida e a caiçuma, além de cuidar dos filhos e lavar roupas. No aconselhamento essas obrigações são repetidas insistentemente e os noivos sabem que o não cumprimento de suas tarefas pode levar à separação.

A expectativa de cooperação mútua entre homens e mulheres está expressa também nas partes do corpo em que cada um deve aplicar o veneno de uma rã arbórea (Phyllomedusa bicolor) que chamam de kampô ou kambô: os homens, nos braços e peito; as mulheres, nas pernas. Ao kampô está associado uma variedade de propriedades benéficas para acabar com a tikish (livremente traduzida como “preguiça”) e com a panema (falta de sorte na caça), além de curar doenças. Os efeitos da aplicação do kampô são pronunciados, entre eles calor, vermelhidão da face, vômitos e diarréia. Na interpretação nativa, assim eliminam-se os males do corpo que impedem o pleno desenvolvimento das capacidades físicas. De acordo com os Katukina, os homens precisam de força nos braços e no peito para caçarem e abrirem os roçados e as mulheres, nas pernas para carregarem os paneiros com macaxeira, além dos filhos.

Como estimulante cinegético ou como antídoto anti-preguiça, o kampô deve ser aplicado por uma segunda pessoa, por alguém que não padeça do mal que se quer debelar. Assim, não é qualquer homem que pode aplicar o kampô num caçador empanemado, tem de ser um caçador bem-sucedido. Como se o caçador trouxesse inscrito em seu próprio corpo a sua condição, a sua boa sorte, e pudesse transferi-la para outros. Do mesmo modo, uma mulher tida como trabalhadeira – que zela por sua casa e pelo terreiro que a cerca, cuida bem dos filhos e sempre tem caiçuma para servir aos visitantes, entre outras coisas – é quem deverá fazer a aplicação do emético numa jovem “preguiçosa”. Existe a possibilidade de auto-aplicação, mas é reservada apenas às pessoas mais velhas. Para os Katukina, o kampô está situado em um sistema maior, que vincula a eficácia da substância às qualidades morais do seu aplicador.

Na virada deste século, a partir de um seringueiro que, nos anos 1960, viveu próximo aos Katukina, o uso do kampô popularizou-se e difundiu-se no interior e além das fronteiras brasileiras. Essa popularização, registrada em diversos artigos da imprensa nacional e estrangeira, não ocorre sem maiores conflitos e são fortes os impactos sociais causados pela atuação de terapeutas esotéricos que, com bastante sucesso, têm estabelecido um mercado promissor de comercialização das aplicações de kampô.


Brincadeira da cana-de-açúcar

Brincadeira da cana-de-açúcar. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 1998
Brincadeira da cana-de-açúcar. Foto: Edilene Coffaci de Lima, 1998

Os jogos ou "brincadeiras", como dizem os Katukina, opõem homens e mulheres de todas as idades, disputando cana-de-açúcar e mamão ou atacando-se uns aos outros com barro e fogo. A palavra vete designa todos estes jogos, mas vem sempre antecedida pelo fruto que se disputa ou substância com a qual se atacam. Assim, tavata vete é traduzido como "brincadeira da cana-de-açúcar" e ti'i vete como "brincadeira do fogo".

Para que os Katukina decidam realizar os jogos, não há maiores transtornos. Basta ter cana-de-açúcar ou mamão em grande quantidade e que as pessoas estejam dispostas a participar. Não há uma data certa para a realização dos jogos, mas eles costumam ser feitos com maior freqüência no período do "verão", quando o deslocamento das pessoas na aldeia se torna mais fácil.

O jogo começa quando um homem pega um pedaço de cana-de-açúcar e passa em frente a uma mulher, arrastando-o no chão, próximo ao pé dela. Entretanto, ele não se dirige a qualquer mulher, mas sim àquelas que possam ser classificadas como suas pano (primas cruzadas, esposas potenciais). A mulher então responde à provocação e começa a disputar o pedaço de cana-de-açúcar com ele. Pouco a pouco outras mulheres aproximam-se para ajudá-la e, vendo o amigo em dificuldades, outros homens também juntam-se a ele. Muitas vezes, há mais de um grupo disputando os pedaços de cana-de-açúcar e tais grupos são formados segundo o critério de geração. As crianças formam um grupo, as garotas que não passaram da puberdade são incluídas nele. Jovens solteiros e casados jogam juntos, formando um ou dois grupos, dependendo do número de pessoas que participam.

As pessoas, sobretudo os homens, freqüentemente se machucam nos jogos. As mulheres podem bater (e, de fato, batem) com o máximo de força que têm para tirar a cana-de-açúcar (ou o mamão, se for o caso) das mãos dos homens. No fim dos jogos os homens saem com as roupas todas rasgadas e com costas e peitos marcados pelos tapas e socos que as mulheres lhes dão, aos quais eles não podem nunca revidar. A única forma de agredir as mulheres que os homens têm é verbal.

A agressão, verbal e física, é central nos jogos, mas parece existir apenas para dissimular a sedução, pois, se há socos e zombarias, há também contatos corporais eróticos. Ao redor de um pedaço de cana-de-açúcar aglutinam-se homens e mulheres que estão a todo momento com seus corpos praticamente colados uns nos outros.

Os homens nunca saem vitoriosos. Quando as mulheres têm o domínio da cana-de-açúcar (ou do mamão) elas correm em direção às mulheres mais velhas que estão apenas observando e entregam-na para elas (preferencialmente para suas mães). A disputa recomeça então com outro pedaço de cana-de-açúcar. Os homens, entretanto, nunca ganham uma disputa entregando um pedaço de cana-de-açúcar aos homens mais velhos. Quando os homens têm o controle e a vantagem do jogo, fazem mais zombarias, dizem que são fortes e puxam violentamente a cana-de-açúcar, às vezes arrastando algumas mulheres que insistentemente seguram na outra extremidade. Se é um mamão, os homens ficam atirando-o de um lado para o outro. Os jogos terminam somente quando as mulheres conseguem conquistar todos os frutos que estavam sob o controle dos homens.

O fato de que os homens nunca ganham o jogo pode ser compreendido analisando a economia katukina. A distribuição de todo alimento, não só da carne, é controlada pelas mulheres. Os homens nunca fazem ofertas de carne ou de qualquer outro alimento a outros homens.

Os jogos, nesse sentido, podem ser interpretados como uma representação do padrão de cooperação que organiza as relações de troca entre homens e mulheres na aldeia. Como na produção, os homens nos jogos cooperam entre si. As mulheres formam também um grupo solidário, mas a cooperação entre elas está centrada na distribuição. Aqui então é necessário corrigir e afirmar que, menos do que uma vitória, as mulheres conquistam o empate, restabelecendo o equilíbrio entre os sexos e, conseqüentemente, de toda a comunidade.

Para além do simbolismo das trocas econômicas expresso nos jogos, é possível perceber também um forte apelo sexual em flertes explícitos e em sorrateiras escapulidas de casais para a mata durante ou após a sua realização. Contudo, isso não quer dizer que as trocas econômicas e sexuais sejam equivalentes. Entre elas há certamente correlação. Assim como homens e mulheres devem trocar produtos e serviços para viver, da mesma maneira devem fazer para procriar. Além disso, os jogos subvertem o padrão de comportamento cotidiano entre os Katukina. O comedimento das relações inter-pessoais dá lugar durante os jogos à licenciosidade quase absoluta e tudo se passa como se a comunidade vivesse um grande êxtase, permitindo momentaneamente que a densa rede de relações, econômicas e sexuais, mútuas entre homens e mulheres sejam explicitadas. Os jogos katukina destacam a troca, mas não apenas uma troca imediata entre homens e mulheres, que garante a subsistência, quanto uma troca maior, a longo prazo, que garante a própria continuidade da sociedade.


Notas sobre as fontes

 A etnografia katukina começou a ser elaborada por Edilene Coffaci de Lima, que fez vários períodos de pesquisa de campo desde o início de 1990. As relações interétnicas, a organização social e as concepções xamânicas katukina foram abordadas em seus trabalhos de mestrado e doutorado, defendidos na Universidade de São Paulo (USP), e também em artigos publicados em livros e revistas especializadas. Na Universidade de Brasília (UnB), Homero Moro Martins defendeu seu mestrado em 2006, tratando da tentativa de implementação de um projeto do Ministério do Meio Ambiente visando proteger os conhecimentos tradicionais sobre o uso do kampô, o Projeto Kampô. No momento, Paulo Roberto Homem de Góes desenvolve seu mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), também buscando compreender, entre os Katukina, as repercussões sociológicas da popularização do kampô entre os não-índios.

A língua katukina tem sido tratada em diversos estudos. A nasalização vocálica e a fonologia da língua katukina foram o tema da dissertação de mestrado de Luizete Guimarães Barros, defendida na Universidade Estadual de Campinas. Maria Sueli de Aguiar pesquisou a sintaxe da língua katukina tanto no mestrado quanto no doutorado, ambos defendidos na Universidade Estadual de Campinas, e também em artigos publicados em revistas especializadas. Há ainda os trabalhos de mestrado e doutorado de Élder José Lanes, defendidos na UFRJ, que buscam um estudo comparativo das línguas pano. Fora do âmbito estritamente acadêmico, a Missão Novas Tribos do Brasil publicou alguns livros de alfabetização na língua katukina. Os índios Benjamim André Katukina (Shere) e Francisco Chagas Lopes (Teka) organizaram uma coletânea de mitos katukina e diversos livros de alfabetização, todos publicados pela CPI-AC.

Em 2006, a partir de uma parceria com Nicole Algranti, da Taboca Filmes, os Katukina lançaram dois CDs, com músicas e cantos xamânicos, e um DVD em que registram aspectos variados de suas vidas – o impacto da BR-364, a caça e algumas festas.

O padre espiritano Constantin Tastevin é o autor dos melhores registros históricos, mas também etnográficos, sobre os grupos conhecidos como Katukina nas duas primeiras décadas do século XX.


Fontes de informação

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