De Povos Indígenas no Brasil

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Judiciário

O papel do Judiciário

por Deborah Duprat, subprocuradora-geral da República e coordenadora da 6ª Câmera de Coordenação e Revisão do MInistério Público Federal

O direito anterior à Constituição de 1988, na linha do pensamento ilustrado e moderno que o informava, resolveu o tema da justiça com a doutrina das “esferas de liberdade” de cada indivíduo. Frases como “minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro” desenhavam apropriações territoriais sob o signo da ubiqüidade. O termo ubiqüidade, na física, é sinônimo de exclusão: dois corpos físicos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Levado para o campo do direito, estava a significar que todo homem desloca os demais homens de seu campo de ação. A propriedade privada é o arquétipo dessa geografia de figuras geométricas, fronteiriças e excludentes entre si.

A Constituição de 1988 reconfigura, em larga medida, a noção de indivíduo, ao recuperar, para o direito, os espaços de pertencimento. É constitutivo do ser humano viver em horizontes qualificados, dentro dos quais ele se torna capaz de tomar posições, de se orientar acerca do que é bom ou ruim, do que vale ou não a pena fazer. A identidade do indivíduo é definida pelos compromissos e identificações que estabelece no seio dessa comunidade, porque ali são vividas as relações definitórias mais importantes.

Os territórios indígenas, no tratamento que lhes foi dado pelo novo texto constitucional, são concebidos como espaços indispensáveis ao exercício de direitos identitários desses grupos étnicos. As noções de etnia/cultura/território são, em larga medida, indissociáveis. Resulta inequívoca, portanto, a diferença substancial entre a propriedade privada – espaço excludente e marcado pela nota da individualidade – e o território indígena – espaço de acolhimento, em que o indivíduo encontra-se referido aos que o cercam. A prática judiciária, no entanto, tende a equiparar ambos os institutos, conferindo-lhes, de resto, tratamento processual idêntico.

A situação mais recorrente é o manejo de ações possessórias em face de territórios indígenas. Citem-se, como exemplos mais recentes, as inúmeras liminares concedidas a favor de particulares em território tradicional dos Pataxó Hã-hã-hãe, na Bahia, na área indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e em diversas áreas indígenas no Mato Grosso do Sul. Uma ação vocacionada à tutela de direito de cunho nitidamente civilista neutraliza a disciplina constitucional dos territórios indígenas, porque a luta processual se desenvolve sob controle das normas constitutivas daquele campo e valendo-se apenas das armas nele autorizadas. Assim, elementos tais como posse velha, ocupação física, passam a ser acriticamente definitórios de direitos possessórios.


Outro dado, bastante eloqüente em ações desse tipo, é a própria definição de posse. Não cuida o julgador de examinar que as partes contrapostas pertencem a comunidades lingüisticas distintas. Há um estreito vínculo entre identidade e interlocução, reconhecido pela própria Constituição (art. 216,  I e II: formas de expressão e modos de criar, fazer e viver). É nesses espaços comuns de vida que se estabelece o acordo de significados. Ou, talvez melhor dito, o uso da linguagem é que ativa esse espaço comum. Daí a expressão de Wittgenstein, de que o acordo de significados envolve o acordo de juízos. Só por meio da experiência comum posso avaliar e definir o que são a raiva, o amor, a lua, a terra, e... a posse. Cada um desses elementos é significado de forma própria em cada comunidade de falantes, a partir de sua experiência de vida, quotidianamente renovada. No entanto, no debate processual, apenas a definição oficial de posse é levada em consideração. Desconhece-se, por exemplo, que, para os Guarani, o tekoha é uma instituição divina criada por Ñande Ru (Melià et Alii, 1976:218). Deles desalojados com a chegada do homem branco, procuram ali permanecer, inclusive trabalhando para este nos ervais e em roças.2 Consideram-se, dessa forma, de posse de seu território tradicional. A visão naturalizada da posse civil, apresentada como evidente, estabelecida de uma vez por todas, fora de discussão, escamoteia o fato de que toda e qualquer definição oficial importa em adoção de um determinado ponto-de-vista e o descarte de visões concorrentes.


Se no regime constitucional anterior, cabia ao Estado, com exclusividade, homologar determinadas representações sociais e inscrevê-las, pelo direito, como universais, a prática não se sustenta sob uma Constituição que apresenta esse mesmo Estado como etnicamente plural. E, se o processo se desenvolve sem que se confrontem visões concorrentes de mundo e a respectiva tradução na linguagem de cada uma das partes, nega-se o postulado constitucional da pluralidade étnica e reinstala-se, na prática judiciária, a marca etnocêntrica do regime anterior.

Decisões que causam perplexidade

por Deborah Duprat, subprocuradora-geral da República e coordenadora da 6ª Câmera de Coordenação e Revisão do MInistério Público Federal

Não bastasse a situação de desequilíbrio entre as partes que a ação possessória enseja, há decisões que causam enorme perplexidade. Em diversas ações, são concedidas medidas cautelares para assegurar a presença de supostos proprietários na área, a despeito de já concluído o processo administrativo de demarcação da terra indígena.

No Mandado de Segurança 25.463, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu medida desse naipe em relação à área indígena Ñande Ru Marangatu, dos Guarani Kaiowá de Mato Grosso do Sul, cuja demarcação fora homologada pelo Decreto s/n de 28 de março de 2005. O fundamento da decisão foi a existência de uma ação judicial, anterior ao decreto presidencial, onde se discute o domínio das terras e a nulidade do processo administrativo. Todavia, não havia, na ação em curso na justiça federal, decisão liminar que impedisse o regular desenvolvimento do procedimento demarcatório, tanto que esse chegou ao seu termo.

A prevalecer esse entendimento para outras situações, estaria inviabilizada a atividade da administração pública: bastaria a existência de uma ação judicial na qual fosse discutida a constitucionalidade de um tributo para impedir a sua arrecadação. Ou, em hipótese mais próxima, o ajuizamento de uma ação tendente a provar a produtividade de determinado imóvel rural, a impedir o desenrolar do processo de desapropriação para fins de reforma agrária. Marque-se, mais uma vez, que não se está a falar de obstáculo à atividade administrativa por força de decisão judicial, mas sim da mera existência de uma ação.

Há uma outra justificativa na decisão liminar que merece registro: o perigo da demora consubstanciado na possibilidade dos índios começarem a ocupar as terras objeto do Decreto. Ao que sugere o texto, constitui um risco índios ocuparem suas terras tradicionais, inclusive aquelas que foram assim consideradas, em definitivo, pelo Estado. Assim, afora os equívocos jurídicos, há, aparentemente, na decisão, certa dose de preconceito e discriminação.

Curiosamente, em mandado de segurança com idêntico objeto, relativo aos Potiguara de Jacaré de São Domingos (MS 21.986), o presidente do STF, em 05/10/2005, votou pela denegação da ordem, exatamente sob o fundamento de que a mera existência de uma ação judicial não era de molde a inviabilizar os efeitos próprios do decreto homologatório.3

Também no RE 416.144, o STF determinou, por unanimidade, o retorno dos Xavante à TI Marãiwatsede, sob a consideração de ser fato incontroverso a declaração das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios pela Portaria 363/93, do Ministro de Estado da Justiça, homologada por Decreto do Presidente da República, contra o qual fora proposta ação de nulidade do processo de demarcação, cujos efeitos persistem, uma vez que até o momento não houve decisão judicial que os suspendessem.

O julgamento desse recurso extraordinário deu-se em 10/8/2004, o que significa que, desde a portaria declaratória – ato este também dotado da presunção de legitimidade – se passaram onze anos até que se desse o retorno dos índios ao seu território tradicional – mesmo assim, parcialmente, porque ainda permanecem na área não-índios, mediante autorização judicial. Tal dado não passou despercebido ao Ministro Gilmar Mendes, que, por ocasião do seu voto, afirmou que o judiciário pensa que o tempo da sociedade é eterno. Rigorosamente, para além da eternidade é o tempo que o judiciário concede aos índios.

Tramita desde 1983, no STF, a ação cível originária 312, em que se pretende a nulidade dos títulos incidentes sobre o território tradicional dos Pataxó Hã-hã-hãe, do sul da Bahia. Por todo esse longo período de tempo, superior a vinte anos, os índios vêm sendo impedidos de ocupar integralmente o seu território, sob o pretexto, recorrentemente invocado por juízes e tribunais, de que o Supremo ainda não definiu os exatos limites de suas terras. Questão esta, aliás, que sequer era objeto da ação, mas que passou a sê-lo por compreensão do atual Relator.

Após os índios da Raposa Serra do Sol esperarem por mais de vinte anos o decreto de homologação de sua área, e o STF ter afirmado a sua competência para conhecer de ação popular contra a portaria declaratória e demais ações correlatas, a justiça federal em Roraima continua a conceder medidas liminares, em ações possessórias, a favor de não-índios.

Esse quadro de indefinições, de decisões contraditórias no âmbito de um mesmo tribunal, às vezes de um mesmo julgador, gera, nesses povos, sentimento de discriminação perfeitamente compreensível. Pior ainda, subtrai-lhes a eleição do seu próprio destino: estão condenados a viver num tempo orientado pelos outros. Mas há mais.

Em uma ação possessória que se iniciou na justiça federal de Alagoas, o juiz considerou provada a posse mansa e pacífica do autor e a existência de esbulho violento pelos índios Xucuru-Kariri, uma vez que aquela se encontrava lastreada em títulos aquisitivos legalmente constituídos. A sentença e o acórdão que a confirmaram consignavam, todavia, a existência de laudo da Funai, indicando os limites da área indígena, onde também se situava a suposta posse do autor. Concluíam, ainda, não ser cabível perícia antropológica, porque a posse indígena já estava evidenciada por meio daquele estudo.  Contrariando assim expressa disposição constitucional (art. 231, § 6º), foi conferida validade a títulos incidentes sobre área indígena, cujo laudo produzido pela Funai não foi contestado. Esse caso é de especial gravidade, porque passa ao largo de um dos postulados mais evidentes do texto constitucional, no trato dessa matéria, e da jurisprudência que foi consolidada ao longo do tempo.

Em uma outra oportunidade, e para não fugir à linha de incoerências que permeiam a atuação judicial nessas questões, o mesmo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, analisando recursos interpostos pela comunidade indígena Tremembé, pela Funai e pela União, declarou nula sentença que afirmara a validade de títulos de propriedade apresentados pela Ducoco Agrícola S/A. Naquela ocasião, disse o Tribunal que prevalecia o ato administrativo de reconhecimento da área indígena, por sua presunção de legitimidade, e que a sua desconstituição estava a depender de perícia antropológica, a ser suportada por quem o impugnava.

Todas essas decisões judiciais estão inspiradas, de uma forma ou de outra, no mito da propriedade privada, reputado direito fundamental, tal qual o é o direito à identidade. Ambos são ponderados como se princípios fossem, e a prevalência de um ou outro fica a depender das peculiaridades do caso sob exame.

Direitos fundamentais e direitos patrimoniais

por Deborah Duprat, subprocuradora-geral da República e coordenadora da 6ª Câmera de Coordenação e Revisão do MInistério Público Federal

A primeira diferença entre os direitos fundamentais e os direitos patrimoniais consistiria no fato de que os direitos fundamentais – nos quais se inclui tanto os direitos à liberdade, à identidade e à vida, como o direito a adquirir e dispor dos bens objeto de propriedade – são direitos universais, no sentido lógico da quantificação universal da classe dos sujeitos que são seus titulares; já os direitos patrimoniais são direitos singulares, no sentido, também lógico, de que para cada um deles existe um titular determinado, com exclusão de todos os demais. Assim, os primeiros são reconhecidos a seus titulares em igual forma e medida, enquanto os segundos pertencem a cada um de maneira diversa, tanto pela qualidade quanto pela quantidade.

A segunda diferença é que os direitos fundamentais são indisponíveis, inalienáveis, invioláveis, intransigíveis, personalíssimos. Ao contrário, os direitos patrimoniais são disponíveis por natureza, negociáveis e alienáveis. Esses se acumulam; aqueles permanecem invariáveis. Não é possível, juridicamente, ser mais livre, mais eu, ter direito a mais vida. No entanto, a ordem jurídica consente em que alguém seja mais rico.

A terceira diferença está em que os direitos patrimoniais, exatamente por que disponíveis, estão sujeitos a vicissitudes, ou seja, destinados a ser constituídos, modificados ou extintos por atos jurídicos. Já os direitos fundamentais têm seu título imediatamente na lei. Assim, enquanto os direitos fundamentais são normas, os direitos patrimoniais são predispostos por normas. Aqueles decorrem direta e imediatamente de regras gerais de nível habitualmente constitucional, enquanto estes dependem da intermediação de um ato. De modo que esses direitos, a par de não serem equivalentes, têm, entre si, relação óbvia de hierarquia, homologada pelo próprio texto constitucional. O que constituições de países capitalistas inscrevem como direito fundamental é o direito de todos a serem proprietários. Nesse sentido, não há como se recusar o caráter universal e indisponível de tal direito. Diferentemente, contudo, é o direito de propriedade em si, que, por sua própria natureza, não pode ser concebido, logicamente, como fundamental e, portanto, universal.

A inversão nessa ordem de hierarquias conduz ao estágio em que nos encontramos na atualidade. Aos índios, se recusa a ocupação dos seus espaços definitórios, subtraindo-lhes a possibilidade de exercício amplo de seus direitos identitários, em nome de supostos direitos de propriedade. Situação bastante emblemática dessa inversão é aquela que diz com a figura dos embargos de retenção. A Constituição, em seu art. 231, § 6º, ao estabelecer a nulidade dos títulos incidentes sobre Terras Indígenas, assegura aos seus titulares indenização pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé. No entanto, é bastante comum, na prática judiciária, assegurar a essas pessoas permanência em território indígena enquanto não se paga a indenização.

Não bastasse a disputa que se estabelece entre direitos indígenas e direitos de propriedade, há forte incompreensão no que diz respeito ao que sejam terras tradicionalmente ocupadas. Vez por outra o conceito resvala para a imemorialidade, e o juiz exige a produção de um laudo arqueológico que evidencie que a presença indígena no local remonta a tempos pré-colombianos. Tal requisito vem impedindo que os Terena de Mato Grosso e os Krahô-kanela de Tocantins tenham acesso a um território, ao argumento de que as áreas pretendidas não correspondem às suas terras ancestrais. O requisito da imemorialidade, no entanto, de há muito foi abandonado. A uma, por sua impossibilidade lógica. O processo dito colonizador avançou sobre esses territórios, descaracterizando-os. É um truísmo dizer-se que não há como recuperar Copacabana para os índios. A duas, porque esse mesmo processo promoveu deslocamentos constantes, e a territorialização desses povos teve que ser constantemente redefinida. E, a três, porque estamos a tratar de populações que existem no presente, com perspectivas de vida atuais e futuras, e que não podem ser condenadas a um imobilismo do passado.

De outro giro, muito embora não imobilizadas espacialmente e não definidas necessariamente pela profundidade temporal, a definição de terras tradicionalmente ocupadas requer uma compreensão narrativa das vidas desses povos. A tradição que emerge dessa narrativa não é mera repetição de algo passado, não é mera remissão ao contexto da existência que a originou, mas a experiência histórica de sua reafirmação e transformação. Daí por que a definição do que sejam terras tradicionalmente ocupadas, por cada grupo, passa por um estudo antropológico que, para além da história, revele a tradição que é permanentemente reatualizada e que dessa forma se faz presente na memória coletiva. Importante ressaltar, quanto ao estudo antropológico, que esse não tem e nem poderia ter, uma posição neutra em relação à sua pesquisa, no sentido de objetificar, de definir determinado domínio a partir de normas ou padrões externos ao grupo, pois tal importaria em privá-lo de sua força normativa. Assim, o estudo antropológico tendente à  identificação de um território tradicional pressupõe compreensão e tradução das formas como o grupo se vê ao longo de sua trajetória existencial, como vê e conhece o mundo, como nele se organiza.

Nesse sentido, não deixam de ser curiosas as decisões que negam validade à perícia antropológica por suspeição do pesquisador, porque esse tem intimidade com o grupo.4 No entanto, para toda e qualquer perícia, requer-se, do profissional, conhecimento técnico e científico (art. 424, I, CPC). E, no caso da antropologia, apenas está habilitado a produzir essa prova aquele que conhece o grupo, que pode revelar a sua existência quotidiana. Por outro lado, a definição de um território tradicional não pode passar ao largo do estudo antropológico, salvo se pretendermos reinstaurar o viés etnocêntrico que orientava o direito anterior, em que o juiz atribui aos agentes a sua própria visão.

Enfim, sem a pretensão de exaurir todas as dificuldades com que nos defrontamos nas lides diárias, o que se revela, nesse breve esboço, é um judiciário ainda marcadamente civilista, seja na interpretação do direito, seja na ritualística processual. Mesmo as decisões que vêm ao encontro das aspirações dos povos indígenas dificilmente conseguem fugir desse viés. É pouca a reflexão sobre direitos coletivos, e quase nenhuma sobre direito étnico.

A tarefa que se impõe a todos nós é a luta por um judiciário mais curioso e atento à novidade do que nostálgico de suas certezas.

Março de 2006

Bibliografia

Bourdieu, P. Meditações pascalianas, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001

Carpintero, F. Derecho y ontología jurídica, Madrid: Actas, 1993

Ferrajoli, L. Derechos y garantías – la ley del más débil. Madrid: Trotta, 2001

Gadamer, H.G. El giro hermenéutico, Madrid: Cátedra, 1998

Habermas, J. La lógica de las ciencias sociales, Madrid : Tecnos, 1996

Meliá, B., Grünberg, F. & G. “Los Paî-Tavyterã: Etnografia guarani del Paraguai contemporaneo”, in: Suplemento Antropológico de la Revista del Ateneo Paraguayo, Vol XI nº 1-2, 1976

Taylor, C. As fontes do self – a construção da identidade moderna, São Paulo: Loyola, 1997


Notas

(1) Não obstante o Supremo Tribunal Federal, já em 1993, afirmasse que não descaracteriza o animus possidendi dos silvícolas o fato de terem sido forçados a se retirarem de suas terras (ACO 323, Relator Ministro Francisco Rezek, julgamento em 14-10-93, DJ 16-9-94).

(2) Laudo pericial para a AI Potrero Guassu.

(3) O julgamento, até o momento, não foi concluído, em face do pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes. Por ora, concedem em parte a segurança, para sustar os efeitos do decreto homologatório, os Ministros Carlos Velloso e Cesar Peluso; e a denegam os Ministros Joaquim Barbosa, Eros Grau, Carlos Britto, Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence.

(4) Como exemplo, processo 2004.36.00.002130-5, da 3ª Vara Federal de Mato Grosso. Há outras tantas decisões similares da justiça federal em Dourados-MS.

O marco temporal e a reinvenção das formas de violação dos direitos indígenas

por Juliana de Paula Batista e Maurício Guetta, advogados do "Instituto Socioambiental (ISA), publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016

A teoria do "marco temporal", que vem sendo aplicada para anular demarcações de TIs no Judiciário, mantém o histórico processo de violência e negação dos direitos territoriais indígenas – agora por meio de uma interpretação restritiva da Constituição, que legitima essas mesmas violências

Em entrevista publicada na edição 2001-2006 do livro Povos indígenas no Brasil, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro escrevia sobre “tornar-se índio: um problema para o Judiciário”. Na época, ele mencionava as declarações do então presidente da Fundação Nacional do índio (Funai), Mércio Gomes, para quem o Supremo Tribunal Federal (STF) teria que definir “um ‘limite’ para as reivindicações cada vez mais ‘excessivas’ por novas Terras Indígenas”.

Para Viveiros de Castro, “o Mércio está dizendo a mesma coisa dos governos da ditadura. Em essência, ele está dizendo que tem índio demais”. Castro, então, ironiza: “Sejamos liberais: não é preciso matar ninguém; os índios que temos são bons; são mesmo necessários. Mas, sobretudo, eles são suficientes. Vamos fechar a porteira. Vamos fazer uma escala. (...) Onde vai parar o corte? Na cara de quem vai se fechar a porteira?”.

A resposta a essas indagações veio no julgamento, em março de 2009, do paradigmático caso sobre a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol (RR), pelo STF1. A decisão estabeleceu 19 “condicionantes” ou “salvaguardas”. Nenhuma delas, contudo, refere-se ao “marco temporal de ocupação indígena”.

Não obstante, foi nesse julgamento que o STF aplicou a teoria do “marco temporal de ocupação”, segundo a qual exige-se a presença dos índios na área objeto da demarcação no dia 5 de outubro de 1988 para que sejam reconhecidos seus direitos originários. Noutros termos, o STF interpretou o artigo 231 da Constituição, enunciando que a expressão “terra que tradicionalmente ocupam” deveria ser lida como “terras que tradicionalmente ocupam na data de 5 de outubro de 1988”.

Muito embora a decisão não tenha efeitos vinculantes, ou seja, não obrigue juízes e tribunais a aplicar o mesmo entendimento a outros processos relativos a TIs, a tese do “marco temporal de ocupação” passou a orientar a hermenêutica do artigo 231 da Constituição Federal e constitui precedente judicial que, nessa condição, está a influenciar decisões em todas as instâncias do Poder Judiciário. Os resultados têm sido a anulação de processos de demarcação2, aumento dos conflitos no campo, insegurança jurídica e incertezas sobre os direitos territoriais indígenas.

A tese do “marco temporal de ocupação”, no entanto, é juridicamente questionável sobre diversos aspectos. Primeiramente, porque sempre que as Constituições Federais3, desde 1934 até a de 1988, quiseram trabalhar com “data certa” elas o fizeram de forma expressa: jamais deixaram ao arbítrio do julgador estabelecer quais seriam os “marcos temporais” de sua aplicação.

Sobre o assunto, o constitucionalista José Afonso da Silva bem anotou: “Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data se ela nada diz a esse respeito, nem explícita, nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário se se ler com a devida atenção o caput do art. 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa”. E completa: “Deslocar esse marco para ela [a Constituição de 1988] é fazer um corte na continuidade da proteção constitucional dos direitos indígenas, deixando ao desamparo milhares de índios e suas comunidades, o que, no fundo, é um desrespeito às próprias regras e princípios constitucionais que dão proteção aos direitos indígenas. Vale dizer: é contrariar o próprio sistema constitucional, que deu essa proteção continuadamente”.

Condicionar as demarcações à presença dos índios nas terras em data certa também nega a histórica vulnerabilidade dos indígenas ante as violências que permearam o processo pós-colonial, a abertura das frentes de expansão pelo Brasil e as violações de direitos durante o período da ditadura militar, conforme denunciou, recentemente, o relatório da Comissão Nacional da Verdade4.

Além disso, o “marco temporal” também desconsidera as especificidades culturais de cada etnia, em contrariedade ao que estabeleceu o constituinte originário: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. A genealogia desse reconhecimento precisa considerar os princípios hermenêuticos garantidores da força normativa da Constituição e da máxima efetividade das normas constitucionais, no sentido de respeitar as cosmovisões indígenas garantidas pela Constituição, bem como extirpar imposições culturais etnocêntricas.

Para tanto, a análise do que é uma “terra tradicionalmente ocupada” requer que não se tente definir “o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do modo de produção capitalista ou socialista, a visão do bem-estar do nosso gosto, mas segundo o modo de ser deles, da cultura deles”5, como remarca José Afonso da Silva.

Não bastasse tudo isso, o debate em questão ainda impõe outra reflexão. Se a sobrevivência física e cultural dos indígenas depende necessariamente de estarem na posse de suas terras tradicionais, tal como estabelece a própria Constituição, anular processos de demarcação com base no “marco temporal”, além de se mostrar juridicamente questionável, tem como efeito direto e inexorável condenar os indígenas ao relento da assimilação forçada, paradigma que, este sim, a Constituição quis deliberadamente estancar. Em última instância, é, ainda, negar o direito fundamental à identidade étnica, pois sem terras não há índios ou coletividades indígenas.

O renitente esbulho

O “marco temporal”, de acordo com o STF, só não seria aplicável naqueles casos em que se comprove a ocorrência de “renitente esbulho”6, ou seja, em que se demonstre que os indígenas foram retirados à força de suas terras e, por isso, não detinham a posse permanente da área em 5 de outubro de 1988.

Todavia, no julgamento que anulou a demarcação da TI Limão Verde7, ao aplicar o “marco temporal”, a Segunda Turma do STF criou concepção altamente restritiva sobre como deveria ocorrer a prova do “renitente esbulho”. De acordo com esse julgado, a comprovação do “renitente esbulho” pode se dar pela demonstração de duas hipóteses: a primeira, por conflito que tenha perdurado até a promulgação da Constituição Federal de 1988, materializado por “circunstâncias de fato”; a segunda, pela existência de ação judicial possessória.

No tocante à primeira, vincular o direito dos indígenas à manutenção de um conflito até 5 de outubro de 1988 não é nada crível, pois é latente tanto o grau de violência que subjaz estes conflitos quanto a extrema vulnerabilidade das comunidades indígenas. Quem, em pleno gozo de suas faculdades mentais, manter-se-ia em conflito com fazendeiros fortemente armados ou resistiria ao aparato repressivo do Estado?

Ora, exigir a existência de um conflito deforma por completo os fundamentos que justificam a própria existência do Estado, a essência dos princípios republicanos, bem como a base ontológica das garantias fundamentais: exigir conflito é reinstaurar a “guerra de todos contra todos”.

Demais disso, é importante destacar um dos pontos levantados por Deborah Duprat em um artigo que problematiza a ideia de “renitente esbulho” aplicada ao caso da TI Limão Verde, recuperando a obra do antropólogo James Scott. Ela lembra que, conforme o autor, grupos historicamente subordinados costumam travar “pequenas guerrilhas silenciosas”, com impacto maior do que rebeliões, revoltas e levantes: “Ele tem em mente armas comuns, tais como corpo mole, a dissimulação, a submissão falsa, as sabotagens, os saques, os incêndios premeditados, a ignorância fingida, a fofoca. Se nós pegarmos os laudos de todas as áreas indígenas, todos eles relatam vários episódios de quebrar a cerca, do furto do gado, do colocar fogo na área, daquelas pequenas sabotagens cotidianas. Essa é a forma de resistência possível a esses grupos. Então, como considerar que não houve resistência ao esbulho? E só por uma visão hegemônica, por uma visão que referenda uma concepção de posse que é particularidade de um determinado segmento da sociedade. Não faz jus mais ao pluralismo, não faz jus sequer ao direito civil - lembrando que o estatuto da questão indígena é constitucional, não civil”.

Quanto à segunda hipótese, qual seja, a existência de controvérsia possessória judicializada, vale lembrar que os indígenas eram impedidos de figurar como partes em juízo até o advento da Constituição Federal de 1988, quando foram liberados do regime tutelar e tiveram reconhecida sua capacidade processual pelo artigo 232. Aliás, muitas comunidades nem mesmo dispunham de relações com a sociedade nacional ou detinham conhecimento suficiente da legislação para formalizar denúncias ou mover ações judiciais - de modo que não é razoável destituir os índios dos seus direitos em decorrência de eventual omissão da União no exercício da tutela.

Já o Ministério Público sequer tinha atribuição para propor, sem a provocação da União, “as medidas judiciais adequadas à proteção da posse dos silvícolas sobre as terras que habitem” (artigo 36, da Lei n° 6.001/1973), já que a sua estruturação para a defesa dos direitos e interesses coletivos dos indígenas consolidou-se apenas com o advento da Constituição Federal de 1988.

De mais a mais, o Estado, o Serviço de Proteção ao índios (SPI) e sua sucessora, a Funai, muito embora tutelassem os indígenas, eram os principais responsáveis pelas ações ou omissões de violação de seus direitos, de forma que não ajuizaram “demandas possessórias” para resguardar os índios e proteger as TIs.

A decisão restringe, ainda, a amplitude probatória estabelecida pela legislação processual, dado que existem muitas outras formas legítimas de se comprovar a ocorrência do renitente esbulho - documentos, registros históricos, jornalísticos, cartas das comunidades aos órgãos públicos competentes, entre outros documentos, a ser considerados conforme as peculiaridades de cada caso concreto.

A valer a conclusão da Segunda Turma para o caso da TI Limão Verde, as provas disponíveis e a forma encontrada por cada comunidade para documentar as violências das quais foram vítimas não serão consideradas pela mais alta corte do país. Temos que lembrar que a tradição jurídica que privilegia a escrita, a documentação e a judicialização dos conflitos é “natural” para a nossa “metafísica dos costumes”, entretanto, pouco familiar para os povos indígenas, minorias étnicas de tradição eminentemente oral.

Ademais, ao requerer prova que sequer era exigível ao tempo da ocorrência dos esbulhos, a Segunda Turma se vale da “flecha lançada” e da “oportunidade perdida” para engendrar um alto requinte burocrático na comprovação de violências, transferindo para os violentados o ônus da prova.

Diante do reconhecimento da “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” dos índios, a maneira plausível de se garantir direitos territoriais indígenas seria a partir de um exercício hermenêutico e intercultural que buscasse analisar os esbulhos segundo a lógica própria de cada povo.

Para isso, há de se verificar o histórico de remoção dos índios de suas terras, por que e em que condição saíram delas, os meios dos quais dispunham para denunciar ou resistir aos esbulhos, dentre outras perspectivas, exercício que coloca em diálogo intercultural as sensibilidades jurídicas envolvidas no processo. Senão, ao fim e ao cabo, fecha-se a porteira e legitimam-se no tempo e nos direitos as antigas, e agora reinventadas, formas de exclusão dos direitos indígenas.

E agora, José?

Anuladas as demarcações de TIs com fundamento no “marco temporal” ou na desconsideração da ocorrência do “renitente esbulho”, para onde irão os indígenas?

A teoria do “marco temporal”, tal como está posta, mantém o histórico e secular processo de violência e negação dos direitos territoriais indígenas, agora, por intermédio de uma interpretação constitucional restritiva e que legitima essas mesmas violências. Nesse sentido, é preciso indagar muito seriamente: o que os Poderes da República, diante dos direitos fundamentais garantidos à pessoa humana e aos índios em particular, farão com os índios e seus direitos?

Afinal, a aceitar a teoria do “marco temporal”, então é fundamental que se investigue: se não estavam os índios nas terras que hoje reivindicam, onde estariam em 5 de outubro de 1988?

E por que não estavam a exercer seu direito territorial e a ocupar suas terras tradicionais? As decisões judiciais que consideram o “marco temporal” determinarão providências específicas ao Poder Executivo, tal como a abertura de novos processos de demarcação de terras, para que se possa aferir onde estavam os índios em 5 de outubro de 1988, e, assim, proceder a demarcação? Farão perícias para identificar esses lugares? Assegurarão que os indígenas continuem em suas terras até que se encontre uma alternativa ou solução para os graves conflitos fundiários que envolvem a demarcação? Ou continuarão apenas a condenar os indígenas ao degredo de sua condição étnica e à manutenção, ad eternum, de direitos válidos e jamais eficazes?

Caso seja sedimentada a teoria do “marco temporal” para todas as TIs, a desconsiderar que os índios constituem coletividades reais, vulneráveis, portadoras de identidade étnica minoritária e que dependem de segurança territorial para continuar existindo, estaria a se validar a assimilação forçada que a Constituição Federal quis estancar e, também, todas as violações de direitos fundamentais, notadamente de direitos territoriais, perpetradas historicamente contra os índios no Brasil.

Compreendemos que todo o conjunto de princípios que rege a tradição republicana e democrática, (re)inaugurada a partir de 5 de outubro de 1988, aponta na direção de uma justiça de transição efetiva, que contemple os povos indígenas no âmbito da reparação e da efetividade de seus direitos civis, econômicos, sociais, culturais, tão atrozmente violentados antes e durante a ditadura militar. A prosperar a “linha de corte” imposta pelo “marco temporal”, o direito fundamental de ocupar uma terra segundo usos, costumes e tradições indígenas, reconhecido pela Constituição Federal de 1988, terá tido validade por apenas um dia, não traduzindo garantia permanente de direitos.

Dessa forma, espera-se que nos próximos anos o STF pondere as graves consequências e violações de direitos fundamentais que vêm sendo legitimadas pela teoria do “marco temporal de ocupação” e adote técnica de decisão que possa melhor traduzir o real sentido dos direitos fundamentais garantidos aos índios pelo constituinte originário de 1988.

Notas

1 Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Petição n.° 3.388/RR. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. DJe 01.07.2010.

2 Com fundamento na tese do “marco temporal de ocupação”, o Supremo Tribunal Federal anulou a demarcação da Terra Indígena Guyraroká, no Mato Grosso do Sul. Para maiores informações, vide: Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. RMS n° 29087/DF. Relator para Acórdão Ministro Gilmar Ferreira Mendes. DJe 14/10/2014.

3 Nesse sentido, vide o artigo 119, § 6o e 133, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934; o artigo 242, da Constituição Federal de 1988; os artigos Io, 19, 21, 29, § 3o, 43, 58 e 69, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

4 KEHL, Maria Rita. Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas. Disponível online.

5 SILVA José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38a ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 874-875.

6 Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Pet. n° 3.388/RR. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. DJe: 01/07/2010.

7 Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. ARE n° 803.462-AgR/MS. Relator: Ministro Teori Zawascki. Dje: 12/02/2015.