De Povos Indígenas no Brasil

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Lista de ataques ao direito indígena à terra

Manifestação promovida pela Hutukara para retirada dos fazendeiros da região do Ajarani, Terra Indígena Yanomami

Manifestação promovida pela Hutukara para retirada dos fazendeiros da região do Ajarani, Terra Indígena Yanomami Foto: Moreno Saraiva/ISA, 2013.

O direito indígena à terra, garantido pela Constituição de 1988, é um direito originário, anterior à criação do próprio Estado - reconhecimento do fato histórico de que os índios foram os primeiros ocupantes do Brasil. Mas ainda hoje esse direito está sob ameaça.

Apesar de a carta magna ter definido que até 1993 o governo brasileiro deveria demarcar todas as terras indígenas, de acordo com o critério de ocupação tradicional das terras, a determinação está longe de ser cumprida. Agora, além de sofrer com a lentidão na efetivação de seus direitos, os povos indígenas são alvo dos sistemáticos e violentos ataques arquitetados pela bancada ruralista.

Após as votações do Código Florestal, parlamentares dessa bancada — diretamente ligada aos interesses de latifundiários, empresas e confederações do agronegócio — voltaram suas canetas a projetos de lei que visam extinguir direitos já adquiridos, modificar (dificultar) o processo de reconhecimento das terras indígenas e criar possibilidades para a exploração dessas áreas por não-indígenas.

Nesse sentido, tramitam no Congresso e são discutidas em outras esferas governamentais várias medidas cuja extinção é uma das principais reivindicações do movimento indígena nacional:  

Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000
Retira do poder Executivo a função de agente demarcador das terras indígenas ao incluir entre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e a ratificação das demarcações já homologadas. Deputados e senadores teriam o poder, inclusive, de rever e reverter demarcações antigas ou já encerradas. É de autoria de Almir Sá (PPB/RR), acompanhe a tramitação.

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Projeto de Lei Complementar (PLP) 227/2012
Considera de interesse público e pretende legalizar a existência de latifúndios, assentamentos rurais, cidades, estradas, empreendimentos econômicos, projetos de desenvolvimento, mineração, atividade madeireira, usinas e outros em terras indígenas. É de autoria de Homero Pereira (PSD/MT), acompanhe a tramitação.

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Portaria 303/2012
Fixa uma interpretação sobre as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, estendendo a aplicação delas a todas as terras indígenas do país e fazendo retroagir “ad eternum” sua aplicabilidade. A portaria determina que os procedimentos de demarcação já “finalizados” sejam “revistos e adequados” aos seus termos. Foi editada pelo advogado-geral da União, Luís Inácio Adams.

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PL 1610/1996
Dispõe sobre a mineração em terra indígena, considerando que “qualquer interessado” pode requerer autorização de lavra em terra indígena. O projeto não contempla satisfatoriamente o direito de consulta aos que serão afetados pela atividade minerária - a “consulta pública” prevista no PL não dá às comunidades afetadas a possibilidade de rejeitar a exploração mineral. O PL fragiliza também a avaliação ambiental dos empreendimentos, pois só exige estudos aprofundados ao final do empreendimento, quando ele já está praticamente aprovado. De autoria de Romero Jucá (PFL/RR), acompanhe a tramitação.

Veja notícias e análises desta proposição.
PEC 237/2013
Permite que produtores rurais tomem posse de terras indígenas por meio de concessão. Se aprovada, na prática a proposta oficializará atividades ilegais como a do arrendamento - que hoje é proibido em terras de usufruto exclusivo dos indígenas. Esta é a segunda proposta de autoria de Padovani sobre o tema e está em tramitação na Câmara. De autoria de Nelson Padovani (PSC/PR), acompanhe a tramitação.
Portaria 419/2011
Regulamenta prazos irrisórios para o trabalho e manifestação da Funai e demais órgãos incumbidos de elaborar pareceres em processos de licenciamento ambiental. Essa portaria visa agilizar a liberação de obras de infraestrutura em terras indígenas, incluindo grandes empreendimentos como hidrelétricas e abertura de estradas. Além do encurtamento de prazos, a portaria indica que devem ser consideradas terras indígenas apenas aquelas que tiverem seu perímetro já declarado no Diário Oficial, desconsiderando assim impactos ambientais sobre terras em processo de reconhecimento. De autoria do Poder Executivo, resolução dos Ministros de Meio Ambiente, Justiça, Cultura e Saúde.
Decreto 7957/2013
Com esse decreto, “de caráter preventivo ou repressivo”, foi criada a Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública, tendo como uma de suas atribuições “prestar auxílio à realização de levantamentos e laudos técnicos sobre impactos ambientais negativos”. Na prática isso significa a criação de um instrumento estatal para repressão militarizada a toda e qualquer ação de povos indígenas, comunidades, organizações e movimentos sociais que decidam se posicionar contra empreendimentos que impactem seus territórios.

[Março/2015]

TIs e outros territórios tradicionalmente ocupados se complementam?

por Leandro Mahalem de Lima, antropólogo, ISA. publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

As duas regiões com a maior quantidade de Terras Indígenas ainda não identificadas na Amazônia brasileira – o Médio Solimões (AM) com 30 e o Baixo Tapajós (PA) com 14 – abrangem diversas sobreposições com outros territórios tradicionalmente ocupados.

Estes casos envolvem povos em processo de renascimento cultural – também chamados de resistentes ou emergentes – que passaram a assumir identidades indígenas desde o marco constitucional de 1988. E também as ditas “comunidades caboclas” ou ribeirinhas – pescadores, lavradores e extrativistas – cujas ocupações, como as dos indígenas, foram regularizadas por meio de reservas de usufruto coletivo sustentável destinadas a populações tradicionais, no âmbito do ICMBio (Resex, RDS, Flona), Incra (PAE, PDS, PAA), e de órgãos estaduais.

Apesar de diferentes, os direitos garantidos a essas populações na CF 88 se assemelham em seus aspectos fundamentais – os arts. 231 e 232 para os indígenas; e os arts. 215, 216 e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para quilombolas e outras comunidades tradicionais. Os indígenas, quilombolas e populações tradicionais também são amparados pela Convenção no 169 da OIT, que, além de garantir a participação em processos que lhes afetem, veda a remoção forçada de territórios tradicionais (art. 16). Terras Indígenas, Territórios Remanescentes de Quilombo e de Uso Sustentável são Áreas Protegidas pela União, indisponíveis ao mercado e destinadas à posse coletiva. A grande diferença é que TIs e TRQs garantem o usufruto permanente, ao passo que, nas de Uso Sustentável, a posse coletiva é condicionada à renovação periódica.

Soluções conjuntas para esses casos são afirmadas em diversos planos e políticas instituídas ao longo das últimas duas décadas. Da Política Nacional da Biodiversidade (Decreto 4.339/2002) consta a orientação de se “promover um plano de ação para solucionar os conflitos devidos à sobreposição de UCs, TIs e de TQs”. O Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (Decreto 5.758/2006) propõe “definir e acordar critérios em conjunto com os órgãos competentes e segmentos sociais envolvidos para identificar os casos e propor soluções” e “apoiar a participação dos representantes das comunidades locais, quilombolas e povos indígenas nas reuniões dos Conselhos das UCs”. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais reafirma a necessidade de “solucionar ou minimizar os conflitos” (Decreto 6.040, 2007) e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Decreto 7.747, 2012) destaca a construção de “planos conjuntos de administração das áreas de sobreposição (...) garantida a gestão pelo órgão ambiental e respeitados os usos costumes e tradições dos povos indígenas”.

A câmara temática “Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais”, a 6a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, vem dedicando atenção especial ao tema. Para a subprocuradora-geral da República e ex-coordenadora da 6a CCR, Deborah Duprat, “ao assumir o caráter pluriétnico da nação, a Constituição de 1988 tornou impositiva a aplicação analógica do tratamento dado à questão indígena e aos demais grupos étnicos” (O Estado Pluriétnico, 2013).

Para a procuradora Maria Luiza Grabner, coordenadora da 6a CCR, “os direitos territoriais dos povos quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais gozam da mesma hierarquia dos povos indígenas, pois ambos desfrutam de estatura constitucional” de modo que “em casos de conflito” faz-se “necessário buscar a harmonização entre estes direitos, consideradas as especificidades de cada situação”. A elaboração de um “plano de ação” é uma “via possível para a resolução de conflitos entre APs, TIs e TQs” (Direitos territoriais, dupla afetação e gestão compartilhada, 2015).

A interpretação legal depende de uma avaliação caso a caso, levando em conta princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, procurando traduzir as formas de entendimento entre indígenas e tradicionais em ações coordenadas nos contextos locais. Conforme o argumento, estas ações são fundamentais para estimular soluções criativas, que visem a complementaridade, a cogestão e mútuo fortalecimento entre as populações. Afinal, as sobreposições são apenas um dos modos de interconexão entre TIs e outros territórios tradicionais. Mesmo que um dia deixem de se sobrepor formalmente, estas zonas de ocupação multicomunitárias continuarão relacionadas, formando extensos corredores de circulação entre bacias hidrográficas.

Não são processos simples. No Médio Solimões, o antropólogo Rafael Barbi relata que “o passar para indígena em uma comunidade depende da formação de um consenso entre seus moradores”, embora a posse e o manejo compartilhado sejam objeto de discórdia influenciados por fatores diversos, como conversões, migrações e cisões (em “Reconhecer-se indígena...”, capítulo Solimões).

Na Resex Tapajós Arapiuns, as audiências mediadas pelo MPF, as reuniões do Conselho Deliberativo da Resex e os seminários conjuntos – ocorridos entre 2013 e 2016 – são ainda situações tensas em que indígenas e tradicionais continuam a “se confrontar como no passado”. Apesar das tensões, o antropólogo indígena Florêncio Vaz e os estudantes indígenas João Tapajós (Arapium) e Luana Cardoso (Kumaruara) (em “Lutando por direitos...”, capítulo Tapajós Madeira) afirmam que não desejam “expulsar os tradicionais”, mas avançar “rumo a soluções mais integradas de uso e gestão comum do território”. Mais do que isso, reconhecem que sua reorganização política como indígenas” se deu no contexto dos trabalhos da Igreja Católica, do movimento sindical e da mobilização pela criação da Resex Tapajós Arapiuns. Assim, para eles, a igreja, o sindicato e o movimento extrativista são componentes fundamentais de sua própria história indígena.

(março, 2017)

Licenciamento ambiental em xeque

por Maurício Guetta, advogado, ISA. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.


O Direito Socioambiental vive tempos de retrocessos. Após a aprovação da Lei no 12.651/2012, que dilacerou o antigo Código Florestal, e da Lei no 13.123/2015, que abriu as portas da exploração desenfreada da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, a “bola da vez” eleita pelo Congresso Nacional, a serviço de interesses privados, é, sem dúvida alguma, o licenciamento ambiental, principal instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, com ampla proteção constitucional.

Considerado um mero entrave burocrático e custoso por determinados setores, o licenciamento ambiental, consolidado há mais de 30 anos no país, possui fundamental relevância para a preservação dos direitos difusos da sociedade brasileira ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade vida; para a proteção dos direitos das populações atingidas pelos impactos decorrentes da instalação e operação de empreendimentos potencialmente poluidores; para a composição ou atenuação de conflitos; além, evidentemente, de funcionar como instrumento imprescindível aos desideratos constitucionais da prevenção e mitigação de danos.

Importante pontuar que muitos dos entraves à efetividade do licenciamento não seriam resolvidos por meras alterações legislativas, como se verifica, por exemplo, com a desestruturação dos órgãos públicos responsáveis pela emissão de atos administrativos no bojo do procedimento de licenciamento ambiental.

Tramitam, atualmente, 40 proposições legislativas destinadas a alterar a atual legislação sobre licenciamento ambiental. Entre elas, destacam-se, pela densidade política com que tramitam no Congresso Nacional e pelo conteúdo, os seguintes: Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 65/2012, Projeto de Lei do Senado – PLS n.o 654/2015 e Projeto de Lei – PL nº 3729/2004.

Quanto à PEC no 65/2012, que pretende inserir um § 7o ao artigo 225 da Constituição, ao prever que a mera apresentação de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) resulta em autorização para a execução da obra, o projeto pretende simplesmente extinguir o licenciamento ambiental, intenção que configura um gravíssimo e inaceitável retrocesso aos direitos fundamentais da sociedade brasileira. Ao estabelecer que as obras não poderão ser suspensas ou canceladas após a apresentação do EIA, a PEC no 65/2012 fere cláusulas pétreas relacionadas aos princípios da separação dos poderes, da inafastabilidade do controle jurisdicional, da efetividade das decisões judiciais e do acesso à justiça, cânones essenciais do Estado Democrático de Direito.

Já o PLS no 654/2015 pretende que os empreendimentos de infraestrutura considerados estratégicos para o interesse nacional sejam licenciados através de um singular e diminuto rito procedimental, o que faz mediante uma série de medidas para flexibilizar o controle exercido pelos órgãos licenciadores e demais órgãos envolvidos no licenciamento ambiental. Assim como a PEC no 65/2012, o conteúdo do PLS no 654/2015 representa grave ameaça aos direitos fundamentais protegidos pelo licenciamento ambiental, na medida em que estabelece o menor grau de prevenção, controle e fiscalização, sem qualquer direito à informação e participação, justamente para empreendimentos causadores de significativa degradação socioambiental. Ademais, é preciso considerar que, ao afrouxar o controle e prevenção das atividades potencialmente poluidoras, o PLS aumenta os riscos de ocorrência de desastres socioambientais.

Por fim, o PL no 3729/2004 tem por escopo criar a “lei geral do licenciamento ambiental”. Apesar de ser grande o número de substitutivos (16) atrelados ao seu processo legislativo, dois são os textos que, quando do fechamento deste artigo, podem ser votados pelo Plenário da Câmara dos Deputados.

O primeiro, relatado pelo deputado ruralista Mauro Pereira (PMDB/ RS), possui conteúdo altamente preocupante, na direção da intensa flexibilização do licenciamento, para além de sua precariedade quanto à técnica legislativa. Apenas para se ter uma ideia, esse substitutivo estabelece a possibilidade de cada estado federativo definir, autonomamente, quais empreendimentos serão objeto ou não de licenciamento, bem como quais procedimentos e estudos ambientais serão aplicados em cada caso. Estaria, com isso, instaurada a “guerra pela flexibilização do licenciamento”, a exemplo da “guerra fiscal”, deixando o licenciamento submetido a interesses de atrair investimentos de cada estado. Esse texto determina, ainda, que o licenciamento simplificado, de caráter autodeclaratório, seja aplicável à maioria das atividades licenciadas, além de prever uma série de mecanismos para reduzir a participação e simplificar procedimentos e estudos. Não bastasse, estabelece dispensas de licenciamento para atividades potencialmente poluidoras, atendendo diretamente interesses privados de setores específicos, como o agronegócio. Há, portanto, uma série de inconstitucionalidades nesse substitutivo ao projeto de lei.

O segundo texto, com maior aderência política, é o substitutivo a ser apresentado pelo Governo Federal, sobre o qual deixaremos de apresentar considerações por ainda não ter qualquer definição sobre seu conteúdo quando da conclusão desse artigo.

Qualquer que seja a proposição legislativa, é importante ter em mente que, diante das disposições constitucionais aplicáveis à matéria, bem como da relevância crucial desse instrumento para a efetividade dos direitos fundamentais de natureza socioambiental, o licenciamento ambiental deve ser fortalecido pelo Estado brasileiro, garantindo-se mais efetividade aos direitos à informação e à participação social, melhores condições institucionais aos órgãos ambientais, independência e autonomia às decisões dos agentes públicos, melhoria da qualidade dos estudos de Avaliação de Impacto Ambiental, entre outras medidas amplamente debatidas com os mais diversos setores da sociedade e do Poder Público, incluindo-se o Ministério Público (Federal e Estaduais), a comunidade científica, os órgãos ambientais, os movimentos sociais, os povos indígenas e outros.

(outubro, 2016)