De Povos Indígenas no Brasil

Organizações indígenas

Organizações na Amazônia

No contexto amazônico, as associações indígenas vêm se constituindo como atores centrais no desenvolvimento sustentável da região. O antropólogo Bruce Albert, pesquisador do Convênio ISA-CNPq-IRD, aborda o assunto.

Entre a nova Constituição e o “mercado de projetos”

Constata-se na Amazônia, a partir do fim dos anos 1980, um processo extremamente dinâmico de criação e de registro de associações indígenas na forma de OSC (“organizações da sociedade civil”). Para se ter uma idéia da escala do fenômeno, basta dizer que existiam apenas dez destas associações antes de 1988 (Alto e Médio Solimões, Manaus, Alto Rio Negro, Roraima) e que no final de 2000 já eram mais de 180 associações nos seis estados da Região Norte: AM, RO, RR, AC, PA, AP (provavelmente mais de 300 na Amazônia Legal); ou seja, foram quase multiplicadas por 20 em pouco mais de uma década (ver Quadro das organizações). 1

Essas associações têm características diversas. A maioria é local (grupo de comunidades, bacia de um rio), representantes de um povo ou regionais. Várias são constituídas com referência a atividades profissionais ou econômicas (professores, agentes de saúde, produtores, cooperativas). Existe também uma importante rede de associações de mulheres, bem como diversas associações de estudantes indígenas. Embora ainda poucas tenham infra-estrutura própria, a grande maioria delas estão registradas em cartório ou estão em processo de legalização, desempenhando regularmente funções políticas de articulação interna e de representação interétnica.

Uma parte considerável e crescente dessas organizações indígenas tem hoje acesso a fontes de recursos externos sob a forma de “projetos” de desenvolvimento local destinados a diversos fins: gestão territorial, manutenção institucional, organização de assembléias e encontros, programas de saúde e de educação, iniciativas relativas à auto-sustentação e comercialização, divulgação e reafirmação cultural etc. Neste contexto, hoje é cada vez mais difícil distingüir entre associações “com” ou “sem projetos”; a diferença passa a ser entre associações que têm acesso a fontes de financiamento diversificadas, amplas e regulares (associações regionais, geralmente urbanas) e associações que contam apenas com alguns financiamentos reduzidos e pontuais (associações locais, rurais).

O processo de multiplicação das associações indígenas na Amazônia tem sua origem na encruzilhada de vários processos sóciopolíticos gerais, interagindo em âmbito nacional e internacional. No plano interno, deve-se salientar, primeiro, a promulgação da Constituição de 1988, cujo artigo 232 abriu a possibilidade destas associações se constituírem como pessoas jurídicas. O segundo fator importante, no âmbito nacional, foi o processo de retração do Estado da gestão direta da “questão indígena” no país (restringindo-se, basicamente, a responsabilidades em matéria territorial) 2 e o esvaziamento político-orçamentário da administração indigenista tutelar, criada há três décadas pelo regime militar, no quadro de suas políticas de desenvolvimento da Amazônia.

No plano externo, o primeiro fator foi certamente a globalização das questões relativas ao meio ambiente e aos direitos das minorias ao longo dos anos 1970 e 1980, bem como a crescente colaboração entre ONGs ambientais e sociais em favor de projetos que integrassem objetivos de conservação e preocupação pelo desenvolvimento comunitário – fenômenos que tiveram seu ritual de consagração na ECO 92 no Rio de Janeiro. Em segundo lugar, foi também decisiva a descentralização da cooperação internacional, hoje igualmente reorientada para interlocutores da sociedade civil organizada, para o desenvolvimento sustentável e o incentivo à implementação de micro-projetos locais.

O recente boom das associações indígenas tem, portanto, como condições fundamentais de possibilidade, por um lado, o quadro jurídico progressista da nova Constituição e, do outro, o “mercado de projetos ” aberto pela cooperação bi e multilateral e pelas ONGs internacionais, seguidas pelos crescentes investimentos públicos nacionais no setor das OSC (Ministérios do Meio Ambiente, da Saúde e da Educação).

Da etnicidade política à etnicidade de resultados?

Esta combinação de tendências e dinâmicas produziu não somente um crescimento acelerado do número de associações indígenas na Amazônia, mas também uma considerável mutação qualitativa do papel do “movimento indígena” no debate/embate político a propósito do modelo de desenvolvimento da região.

De fato, as primeiras e poucas organizações indígenas criadas nos anos 1980 eram associações informais, politicamente ativas, porém pouco institucionalizadas e voltadas, essencialmente, para reivindicações territoriais e assistenciais dirigidas a um Estado tutor, considerado falho nas suas responsabilidades legais e sociais.

A partir dos anos 1990, temos na Amazônia associações legalizadas, com estatuto, CGC e conta bancária, assumindo cada vez mais funções que o Estado deixou de desempenhar diretamente, remetendo em grande parte sua execução ou seu financiamento, por um lado, à esfera local pública ou não-governamental (municípios, estados) - em matéria de educação ou de saúde 3 - e, por outro, à rede globalizada das agências de cooperação bi e multilateral e das ONGs internacionais (no domínio dos projetos de delimitação territorial, de auto-sustentação econômica ou de proteção ambiental). 4

Passamos, assim, de um movimento conflitivo de organizações e mobilizações etnopolíticas informais (anos 1970 e 1980), que tinha por interlocutor o Estado, para a institucionalização de uma constelação de organizações onde as funções de serviço, econômico e social, são cada vez mais importantes e cujos interlocutores pertencem à rede das agências financiadoras nacionais e internacionais, quer sejam governamentais ou não-governamentais (anos 1990-2000).

Paralelamente, mudamos de uma dinâmica de construção identitária sustentada por um conjunto de lideranças indígenas carismáticas (com discursos político-simbólicos neo-tradicionais de muito impacto na mídia), para uma fase de certa rotinização do discurso étnico (nos moldes da retórica internacional do desenvolvimento “etno-sustentável” herdada das agências financiadoras), apoiada em um novo conjunto de jovens quadros de organizações indígenas formados cada vez mais em administração de associações e gestão de projetos.

Passamos progressivamente, portanto, na virada dos anos 1980/90, de uma forma de etnicidade estritamente política, embasada em reivindicações territoriais e legalistas (aplicação do Estatuto do Índio), para o que se poderia chamar uma etnicidade de resultados, na qual a afirmação identitária se tornou pano de fundo para a busca de acesso ao mercado e, sobretudo, ao “mercado dos projetos”, internacional e nacional, aberto pelas novas políticas descentralizadas de desenvolvimento (local/sustentável).

Assim, neste contexto de retração progressiva do Estado da cena indigenista, além de suas funções tradicionais de articulação e representação política (cuja intensidade tende a diminuir com a resolução das pendências territoriais), estas organizações desempenham hoje, e cada vez mais, funções assistenciais, gerenciando projetos de demarcação e vigilância territorial, projetos sanitários, educativos, culturais e sociais (como a gestão de aposentados indígenas da APITU no Amapá), bem como diversos tipos de projetos econômicos e comerciais (projetos agro-florestais e agro-pecuários; projetos de piscicultura, artesanato, produtos florestais, etc.).

Praticando uma sutil dialética entre ação de protesto (na defesa genérica ou específica dos direitos indígenas) e a busca de participação, estas associações são hoje crescentemente reconhecidas como atores do desenvolvimento socioambiental regional nos fóruns oficiais onde negociam diretamente e em função de suas próprias estratégias, tanto com administrações públicas, quanto com agências de cooperação, ONGs ou empresas (negociadoras de produtos “verdes” ou provedoras de indenizações).

Em função dessa legitimação crescente, as associações indígenas desenvolvem seus projetos a partir de um conjunto bastante diversificado de financiamentos nacionais e internacionais. Do lado dos financiamentos internacionais, há-se os fundos de cooperação multilateral (Banco Mundial, Comunidade Européia) 5 e de cooperação bilateral (onde predominam os países norte-europeus), os fundos de várias ONGs leigas ou ligadas a redes de financiadoras religiosas (ONGs que freqüentemente também intermediam financiamentos de cooperação). Em certos casos, os financiamentos também podem vir através de projetos apoiados por empresas “tradicionais” interessadas em produtos com alto valor etno-ecológico agregado - como a BodyShop (Inglaterra), a Aveda (Estados Unidos) ou a Hermès (França) - , ou mesmo ser substituídos por parcerias comerciais privilegiadas com empresas “militantes” do circuito do “comércio eqüitável” - como as empresas importadoras do Guaraná Satéré-Mawé na Europa: Guayapi Tropical na França, Cooperativa Terzo Mondo na Itália.

Do lado nacional, têm-se fundos oriundos de convênios firmados com diversas administrações municipais, estaduais ou federais no campo de educação, saúde e meio ambiente ou, algumas vezes, de indenizações de grandes empresas estatais ou ex-estatais, como a Vale do Rio Doce ou a Eletronorte. Existem, por fim, alguns financiamentos disponibilizados por ONGs nacionais, ainda que muitas vezes também sejam advindos de ONGs ou agências de cooperação internacionais e apenas repassados para organizações indígenas.

Demarcação das terras e gestão dos recursos naturais

A evolução do processo de territorialização dos grupos indígenas, iniciado no contexto dos grandes projetos públicos de desenvolvimento da Amazônia dos governos militares (a partir do quadro jurídico-administrativo do Estatuto do Índio de 1973), pode ser igualmente considerado um fator determinante na mutação recente dos parâmetros da questão indígena na região.

A fase mais intensa de reafirmação identitária e de mobilização etnopolítica do movimento indígena - a sua fase de “movimento social ” propriamente dito - deu-se durante o intenso e sofrido processo de “diálogo conflitivo” com o Estado para a demarcação das terras indígenas ao longo das décadas de 1970 e 1980.

Depois de quase três decênios, esta dinâmica, se não concluída, tem ao menos, e pela primeira vez, um horizonte de conclusão. Os 160 povos indígenas da Amazônia dispõem hoje de um conjunto de 377 terras reservadas, sendo que 76% destas áreas gozam de reconhecimento legal em diversos graus (terras delimitadas, homologadas ou registradas). A regularização das últimas terras indígenas da região avança a passos rápidos, ainda que falte resolver vários casos importantes (como o da Terra Raposa Serra do Sol em Roraima) e que a maioria das terras indígenas ainda sofram alguma forma de invasão. Entretanto, para ter uma idéia do ritmo desta territorialização indígena, é preciso lembrar que, de janeiro de 1990 a junho de 2000, foram homologadas no país 268 terras indígenas, cobrindo uma área de 728.026,56 km²(ver dados atuais).

Nessa última fase do processo de territorialização, começado na década de 1970, o movimento indígena situa-se num horizonte de atuação onde o principal referencial de reivindicação que o opunha ao Estado, e a partir do qual ele se construía politicamente, está se esvaziando. Mas, se este confronto fundador com o Estado sobre a questão territorial tende a se dissolver com a diminuição das áreas em litígio, ele também se reduz em importância em função do próprio desengajamento do Estado com relação à questão indígena, na qual parece limitar-se hoje a um papel de arbitragem indeciso ou oportunista entre mobilizações não governamentais e interesses político-econômicos locais.

De fato, tanto por desinteresse político (prioridades macro-econômicas), quanto por vácuo conceitual (ausência de reforma de uma administração indigenista obsoleta) 6, o Estado parece ter desistido do planejamento de uma política indigenista de intervenção direta. Limita em grande parte sua intervenção ao prosseguimento da legalização e desintrusão das terras da União consideradas de uso exclusivo das populações indígenas. 7 Por outro lado, ele transfere o essencial da responsabilidade dos serviços públicos direcionados às populações indígenas, seja para a esfera local por via de descentralização (educação e saúde indígena estadualiadas e municipalizadas), seja para a esfera global por via de terceirização (responsabilidade do apoio econômico às comunidades indígenas em grande parte transferido para a cooperação internacional).

Neste contexto de “pós-territorialidade” e de retração do Estado, as sociedades indígenas estão hoje expostas, além da problemática tradicional da proteção territorial e da conquista da cidadania, a novos desafios, que consistem na manutenção de complexas redes sócio-políticas externas, a fim de garantir acesso a fontes de financiamentos de programas sociais, sanitários e educativos adaptados à sua realidade cultural e, sobretudo, na viabilização, com o apoio dos mesmos canais, de um modelo de gestão econômico-ambiental dos recursos naturais de suas terras.

Para enfrentar estes novos desafios, elas têm hoje, como principais interlocutores, não mais um Estado tutelar e clientelista onipotente, mas uma rede diversificada de administrações públicas e agências financiadoras com as quais devem negociar um leque de multi-parcerias, a fim de garantir a continuidade de sua reprodução social e cultural em um novo contexto de interligação permanente entre os níveis regional, nacional e internacional.

Terras indígenas e desenvolvimento sustentável

Estudos concretos já demonstraram a importância das áreas indígenas para a preservação da cobertura florestal amazônica. Fotos de satélites do INPE (Instituto de Pesquisas Espaciais) revelam, assim, o Parque do Xingu (Mato Grosso) como um bloco de floresta ilhado pelo desmatamento intensivo. 8 Entretanto, permanece uma certa reticência, entre ambientalistas adeptos da preservação integral (oficiais ou não governamentais), contra a visão das terras indígenas da Amazônia enquanto possíveis áreas de preservação ambiental e de uso sustentável da floresta. Três contra-argumentos são geralmente opostos a esta idéia; contra-argumentos, provavelmente, baseados num certo desconhecimento da realidade social e ambiental das terras indígenas.

O primeiro contra-argumento observa que a maioria das terras indígenas já sofre várias formas de invasão - por garimpeiros, madeireiros, fazendeiros, colonos etc. - e que estas invasões, certamente, vão se intensificar em função do desenvolvimento das atividades econômicas e dos fluxos migratórios nas regiões onde se encontram as maiores áreas florestais ainda pouco afetadas. Esta pressão sobre as terras indígenas e sua previsível acentuação desqualificaria, assim, o aspecto da sua dimensão de preservação ambiental.

Entretanto, esta situação de ameaça ecológica não é em nada específica às terras indígenas. Poucas unidades de conservação na Amazônia são efetivamente implantadas e fiscalizadas (tem-se apenas um funcionário do IBAMA para cada 2.000 km² em áreas protegidas da região). 9 Muitas são invadidas e têm seus recursos naturais explorados de maneira indiscriminada. Além disso, estima-se que aproximadamente 50% das unidades de uso indireto têm populações residentes (como no caso do Parque do Pico da Neblina, terra dos índios Yanomami, o Parque do Jaú com ribeirinhos e o Parque da Serra do Divisor com seringueiros).

Entretanto, a nova lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei n° 2.892-Art.42) só admite como solução para a presença de “populações tradicionais” nestas “Unidade de Proteção Integral” a sua remoção e reassentamento (a não ser em caso de superposição com áreas indígenas – Art. 57). Esta “solução”, um tanto rígida, do esvaziamento das unidades de uso indireto de suas populações tradicionais, em detrimento de soluções mais pragmáticas (contratos de uso, reclassificação), parece, ao contrário de seus objetivos, enfraquecer as possibilidades reais de preservar as áreas em apreço, enquanto as experiências da última década na Amazônia tendem a demonstrar que não se tem política de conservação realista sem envolvimento sócio-político e econômico das populações locais organizadas. 10

Deste modo, pode-se considerar que as unidades de conservação de uso indireto da Amazônia não somente sofrem as mesmas ameaças que as terras indígenas, mas têm ainda o agravante de não admitir a presença de populações cuja sobrevivência depende da sustentabilidade de seu uso e que sejam, assim, capazes de mobilização social para defender seus limites e sua integridade ambiental. A ideologia intransigente da preservação integral parece aqui reforçar a vulnerabilidade destas áreas em nome do horizonte duplamente utópico da manutenção de ilhas de “vazio humano” na Amazônia; utópica em função tanto das realidades geográfico-sociais da região, quanto da falta de recursos do órgão responsável pelas áreas protegidas.

O segundo contra-argumento – o mais freqüente – é que os índios, em função de suas novas aspirações sociais e econômicas numa situação de contato crescente, podem desenvolver - e em certos casos já estariam desenvolvendo - atividades econômicas destrutivas para o meio ambiente. A isso pode-se opor uma série de objeções.

A primeira é que, se todos os povos indígenas mantêm algum tipo de relação econômica com o mercado, na imensa maioria dos casos, estas relações permanecem num espectro de baixo impacto ambiental, na forma de trocas/trabalhos esporádicos, de sistema tradicional de aviamento, ou de projetos comunitários mediados por instituições assistenciais (Funai, missões, ONGs). 11 São bastante raras na Amazônia as situações em que as comunidades indígenas dependem essencialmente do mercado para seu consumo e sobrevivência básicos, como é o caso de certas aldeias Tikuna, confinadas em áreas indígenas reduzidas e densamente povoadas, com escassos recursos naturais (ainda submetidos à predação de invasores), e localizadas na periferia de centros urbanos do alto Solimões (caso também dos Munduruku das áreas Praia do Mangue e Praia do Índio, na periferia de Itaituba no Pará).

São igualmente minoritários entre os 160 povos indígenas da Amazônia – apesar de serem regularmente destacados pela mídia - os casos de grupos associados a atividades predatórias desenvolvidas em suas terras por agentes econômicos das fronteiras regionais, como garimpeiros e madeireiros. 12 Além disso, estas situações, longe de configurarem sistemas econômicos coletivos, envolvem em geral apenas alguns indivíduos (lideranças e suas famílias), como é o caso da venda de madeira entre os Cinta Larga (Rondônia e Mato Grosso) ou entre os Kayapó (Pará); venda de madeira, aliás, seletiva e que não envolve exploração em grande escala ou, ainda menos, um desmatamento sistemático.

Assim, a escala local destas atividades é totalmente incomparável com a magnitude dos empreendimentos econômicos “brancos” na Amazônia, e seu impacto ambiental permanece relativamente marginal em função da densidade populacional das terras indígenas em apreço, que geralmente é extremamente baixa (0,02 hab./km² para os Cinta Larga do Aripuanã, 0,09 hab./km² para os a Terra Indígena Kayapó). Além do mais, estas atividades predadoras de segmentos de algumas sociedades indígenas podem ser geralmente revertidas quando são oferecidas e apoiadas alternativas aos modelos econômicos herdados da fronteira regional. Pode-se dar aqui alguns exemplos, como o projeto de manejo sustentável de madeira elaborado pelo ISA com os Kayapó-Xikrin (Pará) ou do projeto de garimpo de baixo impacto ambiental do CTI com os Waiãpi (Amapá) ou, ainda, os projetos de criação de gado leiteiro, desenvolvidos pela ONG italiana MANITESE com os Tembé e Assurini (Pará).

O terceiro contra-argumento avesso a uma visão das terras indígenas da Amazônia enquanto áreas de preservação ambiental, apresenta-se, enfim, sob a forma de uma posição segundo a qual o processo de intensificação do contato sustentaria, a longo prazo, uma migração dos povos indígenas (ou de parte substancial deles) para as cidades regionais ou capitais da Amazônia, acarretando o abandono progressivo das áreas indígenas e formas de exploração não indígenas. Nesse aspecto, os índios seguiriam uma tendência geral na região amazônica onde o grau de urbanização era em 1996 de 61%, contra 45% em 1980. 13

A presença indígena nas cidades da Amazônia é relativamente importante e inegável. Apesar do fato de que sua flutuação torna qualquer recenseamento bastante precário, esta presença foi estimada em 20.075 pessoas no seis estados do Norte Amazônico 14 no censo do IBGE de 1991, ou seja, 10,8 % da população indígena total da região. Este fenômeno de deslocamento para os centros urbanos tem por origem vários fatores, incluindo conflitos e padrões de mobilidade tradicionais, e não somente a busca espontânea de mobilidade social (emprego, educação) e/ou a indução por agentes de contato (missionários, indigenistas, agentes econômicos regionais) 15.

Entretanto, o argumento de um futuro esvaziamento das terras indígenas por emigração remete a um modelo sociológico tão inadequado quanto obsoleto. Baseado numa oposição caricata entre índios “aldeados” e “desaldeados” e na idéia redutora da passagem de mão única de um estado social (rural/tradicional) a outro (citadino/deculturado), este modelo só inverte, de fato, a visão colonial-evolucionista tradicional segundo a qual ir da floresta a cidade era percorrer o caminho do primitivo ao civilizado.

A atual realidade sociológica e cultural dos povos indígenas tem, obviamente, pouco a ver com esta ideologia “retro-evolucionista” e seu dualismo campo/cidade. De fato, longe disso, assistimos hoje, em várias regiões, a um certo remanejamento dos coletivos indígenas na forma de espaços sociais transversais - verdadeiras “comunidades multilocais” 16 em escala regional - que articulam redes de parentesco e fluxos de bens e pessoas entre vários pólos situados na floresta e na(s) cidade(s). Assim, esta expansão translocal dos campos sociais indígenas e suas dinâmicas de mobilidade interna entre aldeias e cidades não podem ser confundidas, sob pena de se incorrer em cegueira conceitual, com um processo de migração das aldeias para as cidades.

Associações indígenas e desenvolvimento sustentável

No debate sobre as potencialidades das terras indígenas como áreas de preservação ambiental e de desenvolvimento sustentável, deve-se, portanto, evitar tanto o estereótipo dos índios ecologistas (“autênticos”), quanto a caricatura inversa dos índios predadores (“aculturados”), baseada na idéia redutora de que o simples acesso das sociedades indígenas ao mercado fatalmente transforma seus membros em agentes de destruição do meio natural.

As formas de mudança no uso dos recursos naturais pelas sociedades indígenas depende, na realidade, do leque de opções sócio-econômicas e políticas oferecidas para sua articulação com a chamada “sociedade envolvente” (nas suas vertentes regionais, nacionais e internacionais). Assim, a “sociedade envolvente” já não se limita mais, para os índios, à dimensão local de interação com os protagonistas tradicionais da frente de expansão regional (garimpeiros, colonos, madeireiros, fazendeiros etc.). O universo de articulação das sociedades indígenas com o “mundo dos brancos ” tem-se complexificado consideravelmente ao longo das três últimas décadas.

Durante os anos de 1970-1980, as sociedades indígenas começaram a conquistar um espaço no cenário político nacional contemporâneo. Nos anos 1990, elas viram este espaço se expandir em escala mundial e se desdobrar em um leque de novas potencialidades sócio-econômicas. Os índios da Amazônia não têm mais como único referencial econômico pós-contato o modelo predatório da fronteira local ou o modelo agrícola neo-colonial do indigenismo tutelar (os “Projetos de Desenvolvimento Comunitário” da Funai) 17. O processo de descentralização e a interligação crescente do local ao global, fora da mediação do Estado, põem hoje ao seu alcance um universo complexo de fontes de financiamento, recursos técnicos e canais de decisão, desde o município até o Banco Mundial.

Este conjunto potencial de parcerias constitui o quadro sócio-político no qual se desenvolveram e no qual operam as mais de 240 associações indígenas da Amazônia para articular seus projetos de desenvolvimento social e econômico. É, portanto, a partir da intermediação que estas associações garantem entre suas populações de referência e o universo das parcerias disponíveis que serão definidas as condições sociais e políticas de possibilidade para a preservação ambiental e o desenvolvimento sustentável das terras indígenas da Amazônia. Quatro parâmetros políticos e sociais fundamentais, externos e internos, muito provavelmente, condicionarão o sucesso desta dinâmica.

O primeiro desses parâmetros será a possível capacidade destas organizações de continuar a mobilizar as redes de apoio e a mídia nacional e, sobretudo, internacional, ao redor de temáticas etno-ambientais que permitem manter um nível suficiente de pressão sobre o Governo federal para induzi-lo a manter as conquistas territoriais do movimento indígena destes últimos 25 anos contra interesses econômicos locais e fluxos migratórios regionais crescentes.

O segundo parâmetro, associado ao anterior, residirá na eficiência política das associações para incentivar a elaboração de políticas públicas e não governamentais em escala apropriada, destinadas a investir no conhecimento da biodiversidade e na gestão econômica sustentável das suas terras, envolvendo estreitamente seus habitantes e tomando em conta seus projetos sociais específicos.

O terceiro parâmetro, desta vez interno, remete à possibilidade das associações indígenas traduzirem esta expressividade político-institucional em autonomia econômica para as populações que se encarregam de representar. O desafio está em satisfazer as novas expectativas materiais e sociais das suas comunidades de referência, envolvendo seus membros em projetos locais de exploração dos recursos naturais que sejam, ao mesmo tempo, não predatórios e capazes de promover uma certa auto-sustentação econômica das áreas indígenas. Nesse contexto, não deverá se negligenciar o lugar da diversificação complementar das atividades e recursos econômicos extra-locais (ver acima nossa observação sobre o novo espaço translocal das comunidades indígenas), também suscetível de aliviar o peso dos recursos naturais da floresta na formação da renda das comunidades e, portanto, de contribuir para a preservação ambiental de suas áreas. 18

O último, porém não menos importante desses fatores, diz respeito à determinação e à lucidez política que serão necessárias às diretorias das associações indígenas para contornar as novas formas de subordinação e de clientelização no gerenciamento dos novos projetos socioambientais, não somente no contexto das relações que lhes são impostas pelas agências de financiamento (ou de comercialização), mas, igualmente, no contexto das relações que elas mesmas constroem com os demais membros das suas sociedades. A esse desafio acrescenta-se a complexa tarefa de administrar as formas de diferenciação social e cultural surgidas no processo de transformação sócio-econômica induzido por estes novos projetos de etnodesenvolvimento.

Notas

(1) Sobre a trajetória deste movimento desde o fim dos anos 1980, ver C. A. Ricardo, 1991: “Quem fala em nome dos Índios ?” in: Povos Indígenas no Brasil 1987/90. São Paulo: ISA. pp. 69-72 e 1996: “Quem fala em nome dos Índios (II) ?” in: Povos Indígenas no Brasil 1991/1995. São Paulo: ISA. pp. 90-94.

(2) Mesmo assim, em 2000, só 2% do orçamento federal para ações indigenistas foram alocados à fiscalização das terras indígenas (Funai) e menos de 1% a iniciativas de gerenciamento e recuperação ambiental (via MMA e Funai). Ver Hélcio Marcelo de Souza, 2000: "Políticas Públicas para povos indígenas: uma análise a partir do orçamento", Nota Técnica INESC n°38 (9/10/2000).

(3) Cerca de 32% do orçamento indigenista federal (via FUNASA-MS) foram alocados em 2000 a 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) articulados ao Sistema Único de Saúde e gerenciados em parceria com organizações indígenas, organizações não-governamentais e, sobretudo, prefeituras municipais. Só 1,4% foram especificamente destinados a educação indígena via Funai e MEC (em parceria com ONGs e Secretarias de educação). (Fonte: Nota Técnica INESC n°38 de 9/10/2000).

(4) As ações públicas em apoio a alternativas econômicas indígenas (via Funai) representam apenas 3,7% do orçamento indigenista federal. (Fonte: idem).

(5) Programas de apoio a iniciativas comunitárias de desenvolvimento local/sustentável com acesso aberto a organizações indígenas como o PAIC (Rondônia) e PADIC (Mato Grosso) do Banco Mundial, e os Projetos Demonstrativos/Tipo A (PD/A), componentes do PPG7 (Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil) financiado principalmente por países da União Européia. No âmbito dos PD/A está atualmente em gestação um programa especializado para comunidades e associações indígenas, o PDPI, Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas.

(6) 43% do orçamento federal para ações públicas foi alocado em 2000 só para gastos com pessoal e manutenção da Funai (Fonte: INESC Nota técnica n. 38, 9/10/2000).

(7) A continuidade da demarcação das terras indígenas vem sendo financiada com expressivo apoio da cooperação internacional através do Projeto de Proteção às Populações e Terras Indígenas na Amazônia Legal (PPTAL).

(8) Ver o artigo de A. Villas-Bôas e M. Campanili, 1999: "Terras indígenas protegem floresta Amazônica", Parabólicas 49.

(9) Ver G. Sales, 1996 : "O sistema nacional de unidades de conservação: o estado atual"no documento “Presença humana em unidades de conservação”. Brasília: IPAM-ISA-PPG7-WWF-CDCMAM/CD.

(10) Ver o exemplo da Reserva de desenvolvimento sustentável de Mamirauá (D. Lima 1997: “Equidade, desenvolvimento sustentável, e preservação da biodiversidade: algumas questões sobre a parceria ecológica na Amazônia”. In: Faces do Trópico Úmido – Conceitos e questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. E. Castro e F. Pinton (orgs.). Belém: CEJUP) ou da Reserva Extractivista do Juruá (M. Almeida, 1996: “The management of conservation areas by traditional populations: the case of the upper Juruá extractive reserve”. In: K.H. Redford et al. (orgs), Traditional peoples and biodiversity conservation in large tropical landscapes. América Verde – The Nature Conservacy).

(11) Retomamos aqui a classificação e a discussão de D. Lima e J. Pozzobon, 1999: “Amazônia socioambiental (sustentabilidade ecológica e diversidade social)”, MS.

(12) Estes casos se desenvolveram geralmente a partir de situações de invasão maciça de terras indígenas produzidas por falhas ou cumplicidade do órgão indigenista oficial as quais lideranças indígenas, por falta de alternativa, se adaptaram com uma certa realpolitik econômica.

(13) Dados IBGE.

(14) Dado calculado a partir do trabalho de M. Azevedo, 1997: "Fontes de dados sobre as populações indígenas brasileiras da Amazônia", Cadernos de Estudos Sociais 13 (1):163-178. Recife : Fundação Joaquim Nabuco.

(15) Ver, por exemplo, a pesquisa de G. Brandhuber, 1999: "Why Tukanoans migrates? Some remarks on conflict on the Upper Rio Negro (Brazil)”, Journal de la Société des Américanistes 85: 261-280, ou de P. Ferri, 1990: Achados ou perdidos? A imigração indígena em Boa Vista. Goiânia: MLAL.

(16) Sobre este conceito, ver M. Godelier, 1996: "Anthropologie sociale et histoire locale", Gradhiva 20 :83-94 e, sobretudo, M. Sahlins, 1997: "O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (parte II)", Mana 3(2) :103-150.

(17) Ver, por exemplo, C. Junqueira, 1984: "Sociedade e cultura", Ciência e Cultura 36 (8), sobre um projeto proposto pela FUNAI aos Cinta Larga do Posto Serra Morena no início dos anos 1980.

(18) Nesse aspecto, não se tem, necessariamente, uma relação linear entre contato e degradação ambiental nas áreas indígenas (Ver R.Godoy, D. Wikie e J. Franks, 1997, "The effect of markets on neotropical deforestation: a comparative study of four Amerindian societies", Current Anthropology 38 (5): 875-878). Na sua redução da problemática da sustentabilidade ecológica à fixação local das populações indígenas, os projetos de desenvolvimento etno-ambientais tendem, geralmente, a ocultar a contribuição dos fenômenos de mobilidade sócio-espacial e de acesso a recursos monetários de origem extra-locais na renda indígena (aposentadorias rurais, salários retribuindo atividades locais ou não, bem como empreendimentos econômicos urbanos ou de intermediação entre aldeias e cidades). Ver sobre esta questão a contribuição de P. Léna (IRD) ao texto do projeto de pesquisa CNPq-IRD-UFRJ (LAGET): "Globalização, movimento associativo e desenvolvimento local sustentável na Amazônia", Rio de Janeiro, Maio de 2000.

Quem fala em nome dos índios?

por Beto Ricardo, antropólogo, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). Artigo publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 1991-1995 (pág. 90-91)

Na década de 80, "os índios" foram protagonistas de várias cenas marcantes no cenário político nacional, as quais, registradas por fo­tógrafos e cinegrafistas, ganharam manchetes nos jornais e telejornais: o cacique Mário Juruna (Xavante) com seu gravador, re­gistrando promessas de políticos em Brasília, o gesto marcante de Ailton (Krenak) ao pintar o rosto de preto durante discurso no ple­nário do Congresso Nacional Constituinte, ou ainda o de advertên­cia de Tuíra (mulher kayapó), em Altamira no Pará, ao tocar a face de um diretor da Eletronorte com a lâmina do seu terçado.

Entre tantas houve uma, envolvendo o cacique Raoni Metuktire, dos então chamados Txucarramãe (Kayapó), e o ministro do Interior, Mário Andreazza, que merece ser relembrada aqui com mais deta­lhes. Em maio de 84, Raoni saiu de sua aldeia e veio até Brasília, depois que seus guerreiros bloquearam por mais de um mês a rodovia BR-080 que liga as cidades de Xavantina e Cachimbo, no norte do Mato Grosso, pelo fato do governo federal não ter demarcado, conforme prometido, uma área de acréscimo ao seu território, na margem direita do Xingu. Em pleno gabinete do ministro e diante da imprensa, Raoni teve a reivindi­cação de seu povo finalmente atendida. Selou o acordo presenteando Andreazza com uma borduna e, puxando-lhe o lóbulo da orelha esquer­da, declarou: "aceito ser seu amigo, mas você tem que ouvir o índio"!

Mas como assim? Quem fala em nome "dos índios"? Aparentemente simples, essa pergunta é de difícil resposta. No caso específico, Raoni era portador de uma reivindicação local muito concreta e falava com plena legitimidade pela sua aldeia, pelos seus guerreiros que se reu­niram para planejar as ações na Casa dos Homens, apenas uma das tantas aldeias do povo Kayapó.

A agenda colocada pela sociedade nacional e internacional nos últi­mos anos para "os índios" no Brasil, funcionou como mecanismo de pressão para a produção de uma representação ou representações da indianidade genérica. Refiro-me ao seguinte conjunto de processos e eventos: a elaboração da Constituição Federal (1987/88), a reu­nião da ONU sobre ecologia e desenvolvimento no Rio (1992), as comemorações ou anticomemorações dos 500 anos da chegada de Colombo à América (1992), a tramitação do Estatuto das Sociedade Indígenas no Congresso Nacional (1992/94), o término do prazo constitucional para a demarcação de todas as terras indígenas (1993), a revisão da Constituição (1993/94) e as eleições presidenciais (1994).

Em 1995, o governo do presidente FHC deu o mote ao acender uma enorme polêmica nacional e internacional com o anúncio de um novo decreto estabelecendo regras para a demarcação de terras indígenas, finalmente formulado pelo ministro da Justiça Nelson Jobim e promulgado sob o número 1775, no início de 1996.

Aldeias, facções e cartórios

Tão mais se afasta do nível local, a política indígena tende a apare­cer nos cenários regional, nacional e internacional como uma ação intermitente associada a intermediários não-indígenas os quais, por sua vez, têm perfil institucional, objetivos e estratégias próprias bas­tante diversas. Mesmo considerando o fenômeno recente das chamadas organizações indígenas "registradas em cartório", vale afirmar que a questão da representação dos interesses indígenas no plano supralocal somente pode ser compreendida e avaliada no Brasil quando se considera uma sociologia dos intermediários não-indígenas de todo o tipo a ela referidos, como algo que a constitui e conforma.

Especialmente após a promulgação da nova Constituição Federal de 1988, cresceu em várias regiões do Brasil a formalização de organizações indígenas, com diretorias eleitas em assembléias, estatutos registrados em cartório e contas bancárias próprias. Trata-se, a rigor, da incorporação, por alguns povos indígenas, de mecanismos de representação política por delegação, para poder lidar como mundo institucional, público e privado, da sociedade nacional e internacional e tratar de demandas territoriais (demarcação e controle de recursos naturais), assistenciais (saúde, educação, transporte e comunicação) e comerciais (colocação de produtos no mercado).

Na sua maioria são organizações de caráter étnico de base local (por aldeia ou comunidade), como a Associação Xavante de Pimentel Barbosa, ou interlocal (grupo de aldeias ou comunidades), como a Aciri - Associação das Comunidades Indígenas do Rio Içana, ou o Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTT). Surgiram também algu­mas organizações regionais - como a UNI (União das Nações Indígenas do Acre), o Conselho Indígena de Roraima (CIR), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e, num âmbito maior, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Houve também a curta experiência de representação nacional da UNI (União das Nações Indígenas) que, aliás, nunca se institucionalizou formalmente e está em curso uma nova tentativa, através do Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indíge­nas do Brasil (Capoib), fundado em 1992 numa Assembléia da Coiab, sob o acompanhamento e os auspícios do Cimi (órgão oficial da CNBB, da Igreja Católica Romana), mas cuja primeira Assembléia Geral realizou-se apenas em 1995.

Ao nível local, operam instituições políticas tradicionais de cada povo, nem sempre tão visíveis como a Casa dos Homens, entre os Kayapó ou o Conselho dos Velhos no pátio da aldeia, entre os Xavante. Tais organizações têm eficácia reguladora sobre as interferências exter­nas. Um exemplo clássico é que tais formas tradicionais de organi­zação foram e são mecanismos internos que muitas vezes resistem às imposições de funcionários de agências governamentais, os quais, sempre a procura de "um chefe" com quem tratar, acabam nomean­do "capitães" que não coincidem com as autoridades tradicionais; ou no caso de missionários que nomeiam seus interlocutores prefe­renciais numa comunidade indígena, alçando-os, à condição de pas­tores ou catequistas, por oposição aos pajés. Ambas são formas de cooptação, que agências de contato estabelecem para 'entrar" com a sua política numa determinada área indígena.

O caso da UNI Nacional, que já não mais existe, é ilustrativo das dificuldades dos índios construírem formas estáveis e permanentes de representação de interesses no Brasil, com uma base tão profun­damente diversa e dispersa. Fundada em 1979, num encontro patrocinado pelo governo estadual do Mato Grosso e sem conexão direta com as várias, assim chamadas, Assembléias de Lideranças Indíge­nas da década de 70, incentivadas pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), a UNI desempenhou com eficácia o papel de referên­cia simbólica da indianidade genérica na conjuntura de democrati­zação pela qual passou a sociedade brasileira nesse período, até o processo de elaboração da nova Constituição Federal (1986/88). Para tanto, valeu-se de um conjunto de alianças não-indígenas que in­cluiu, entre outras, várias organizações não-governamentais de apoio, o próprio Cimi, parlamentares de vários partidos políticos, associa­ções profissionais como a Conage (Coordenação Nacional dos Geólogos) e a ABA (Associação Brasileira de Antropologia). A "cena indígena" que foi se compondo em Brasília neste período contou com a presença de representantes de cerca de metade dos povos indígenas do país, viabilizada pelo apoio que receberam dos seus aliados não-indígenas. Porém, na comissão de frente que acompanhou os mo­mentos decisivos das votações dos direitos indígenas no Congresso Nacional, havia um expressivo e aguerrido grupo de Kayapó, a única etnia que chegou à capital do país com recursos próprios, seja por controlar conexões chaves com a burocracia da Funai, seja por se valer da venda de mogno e das taxas cobradas aos garimpeiros que extraíam ouro de suas terras.

Os Estatutos aprovados pelos membros da 1 Assembléia Geral do Capoib em 1995, estabeleceram um curioso critério de inclusão no seu artigo 2° ("são membros do Capoib as organizações indígenas, os povos e comunidades indígenas que não participem de qualquer organização indígena a ele filiados no ato de sua constituição") e unia estrutura institucional verticalizada (Assembléia Geral, Comis­são Coordenadora e Comissão Executiva).

Considerar apenas tais experiências recentes de representação e afe­rir o seu grau de reconhecimento social e o desempenho dos seus dirigentes através de indicadores quantitativos e qualitativos apro­priados à análise de mecanismos verticais de representação política na sociedade institucional moderna - como a capacidade de mobili­zação, o número de votos, a sintonia de posições com relação a ques­tões comuns e assim por diante - seria prematuro, mas sobretudo, inadequado e empobrecedor.

No cenário demográfico, lingüístico e espacial, caracterizado nos itens anteriores deste artigo, a questão da representação política dos inte­resses indígenas no Brasil é bastante peculiar, se comparada, por exemplo, à situação na Bolívia (57% da população nacional é indí­gena), no Peru (40%) ou no Equador (30 %). Aqui, a política propri­amente indígena, autônoma e permanente, é uma realidade funda­mentalmente local (de cada aldeia, comunidade ou família), faccional (no caso, por exemplo, de aldeias onde a organização so­cial está baseada em metades rituais à cada qual corresponde um chefe) e descentralizada (sem o reconhecimento de uni centro de poder).

Reconhecer e valorizar tais características das formas indígenas de se organizar e representar tem sua importância atual porque, por exemplo, a Constituição Federal em vigor prevê consultas prévias a comunidades indígenas sobre projetos de exploração de recursos minerais por terceiros em seus territórios. Fazer tais consultas, sem­pre que possível, in loco, garantindo condições adequadas de expres­são em língua nativa, aumenta a probabilidade de se saber o que realmente um determinado povo indígena está pensando e querendo.

Cadastro e atualização de organizações

A partir de 2010, as informações sobre as organizações indígenas podem ser cadastradas e atualizadas diretamente. Se você é membro de alguma organização ou associação indígena inclua ou atualize seus dados no formulário abaixo.

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