De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Nietta Lindenberg Monte, 1984

Apurinã

Autodenominação
Popukare
Onde estão Quantos são
AM, MT, RO 10228 (Siasi/Sesai, 2020)
Família linguística
Aruak-maipure

Introdução

Dispersos em locais próximos às margens do Purus, os Apurinã compartilham um rico complexo cosmológico e ritual. Sua história é fortemente marcada pela violência dos dois ciclos da borracha na região amazônica. Hoje lutam pelos direitos a algumas de suas terras que ainda não foram reconhecidas e que são recorrentemente invadidas por madeireiros.

Nome e língua

Boca do Acre. Foto: Regina Müller, 1981.
Boca do Acre. Foto: Regina Müller, 1981.

Alguns afirmam que Apurinã – e, de forma mais antiga, Ipuriná – é uma palavra da língua Jamamadi. A auto-denominação do grupo é popũkare (o “u” lido entre o i e o u do português). Alguns textos antigos referem-se à palavra kãkite como auto-denominação. Kãkite significa “gente”, mas, segundo alguns Apurinã, kãkite é usado para gente no sentido de espécie humana (“eu vi gente”, como “eu vi macaco”, “eu vi onça”), mas não no sentido de povo.

A língua Apurinã é uma da família Maipure-Aruak, do ramo Purus (cf. Facundes, 1994). A língua mais próxima seria a dos Manchineri, ou Piro, que habitam a bacia do alto Purus em território brasileiro e, no Peru, principalmente a bacia do baixo Urubamba. Alguns Apurinã afirmam que eles também compreendem um pouco da língua Kaxarari em razão de sua saída conjunta da Terra Sagrada, segundo versa sua mitologia.


Localização e população

Apurinã do rio Peneri. Foto: Nietta Lindenberg Monte, 1984.
Apurinã do rio Peneri. Foto: Nietta Lindenberg Monte, 1984.

Os Apurinã vivem em diversas Terras Indígenas, sendo duas com os Paumari do Lago Paricá e Paumari do Lago Marahã, e uma com os índios Torá, na terra de mesmo nome.

O território habitado pelos Apurinã, no século XIX, era o médio rio Purus – do rio Sepatini ou do rio Paciá ao Laco. Mas os Apurinã são um povo tradicionalmente migrante e, hoje, seu território se estende ao baixo rio Purus, até Rondônia. Há áreas Apurinã nos municípios Boca do Acre, Pauini, Lábrea, Tapauá, Manacapuru, Beruri, Manaquiri, Manicoré (este último na TI Torá), todas no estado do Amazonas, além de índios Apurinã morando em várias cidades do país, e uma aldeia na Terra Indígena Roosevelt, dos índios Cinta larga, com quem alguns são casados.

Os primeiros pesquisadores, viajantes e missionários a percorrer o rio Purus, na segunda metade do século XIX, afirmavam que os Apurinã, ainda que morassem a alguma distância da beira do rio, vinham para as margens do Purus para pescar e apanhar tartarugas. Na época em que chegaram os não-índios, muitos Apurinã se refugiaram no alto de igarapés, e, outros, quando trabalharam em seringais, também moraram em locais insulados.

Os ambientes do rio Purus influenciam muito o modo de vida do Apurinã. É importante a diferença entre terra firme e “vargem”, ou, entre partes alagáveis e não-alagáveis. As moradias mais “centrais”, ou seja, mais para o alto de igarapés, são sempre moradias de terra firme. Aquelas situadas na beira do rio são, por vezes, de terra firme, por vezes de vargem, já que o rio nem sempre alaga dos dois lados.

Na região do município de Boca do Acre, há quatro comunidades Apurinã, sendo três próximas à BR-317: a comunidade do Km 124 e a comunidade do KM 137, ambas na Terra Indígena BR-317, a comunidade do Km 45 na TI Boca do Acre, e a comunidade Camicuã na TI de mesmo nome, localizada bem próxima do município.

Segundo Leôncio, cacique da comunidade do Km 124, as três comunidades, hoje localizadas na beira da estrada, originaram-se de três sobreviventes de um surto de sarampo, que dizimou a maloca existente na região. A sua mãe, Kamapã, foi uma das sobreviventes, e seu nome foi dado à atual aldeia do Km 124. Maen, outra sobrevivente, dá o nome à aldeia dos seus descendentes, na comunidade do km 137.

É difícil estimar o número de índios Apurinã, e mesmo tratar deles de maneira genérica, porque estão muito espalhados. Segundo a Fundação Nacional da Saúde, os Apurinã somavam, em novembro em 2003, 4.057 indivíduos. Em 1996, só na região de Pauini havia nas Terras reconhecidas 1.114 habitantes (Relatório de Saúde/UNI) e cerca de 280 pessoas em terras a reconhecer (TIs Garaperi/Santa Vitória/Lago da Vitória/Capira, Baixo Seruini, Baixo Tumiã, Sãkoã/Santa Vitória e Mamoriá).

Deve-se considerar, ainda, que muitos Apurinã moram fora das áreas reconhecidas, em comunidades ribeirinhas ou em cidades – Pauini, Lábrea, Tapauá, Rio Branco e Manaus são freqüentemente citadas –, e que muitos migraram para locais distantes como Rondônia e até Rio de Janeiro ou Minas Gerais.


Histórico do contato

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Os Apurinã tiveram contato sistemático com não-índios no contexto da exploração da borracha. No século XVIII, o rio Purus começou a ser explorado por comerciantes itinerantes, na busca das chamadas “drogas do sertão”: cacau, copaíba, manteiga de tartaruga e borracha. Alguns destes itinerantes se estabeleceram e começou a haver, então, benfeitorias para exploração, ainda no baixo Purus. Nas décadas de 50 e 60 do século XIX houve várias expedições para reconhecer e mapear o rio: nesta época, segundo os relatos, alguns Apurinã já trabalhavam para os não-índios.

O rio Purus foi povoado por causa da borracha. A exploração começou na década de 1870 e, em 1880, o Purus já estava todo povoado de não-índios. A borracha decaiu na década de 1910, quando começou a produção asiática, com a qual a brasileira não conseguiu competir. Sem o mercado, os seringais foram abandonados pelos patrões. Os seringueiros e índios permaneceram, voltaram a produzir para a subsistência (isso, muitas vezes, era proibido nos seringais) e a vender outros produtos, como a castanha.

A borracha teve um novo boom com a Segunda Guerra Mundial. Os Aliados precisavam de borracha, e os seringais asiáticos estavam em poder do Eixo. Na primeira metade do século XX 50 mil nordestinos foram transportados para o Amazonas para trabalhar como seringueiros, denominados então “soldados da borracha”. Finda a guerra, findou também o mercado. Após este período, os seringais foram financiados pelo governo. A retirada dos subsídios levou a uma nova queda, em 1985.

Os Apurinã tiveram inserções diferentes nos seringais: grupos inteiros foram mortos, alguns vendiam seus produtos, outros trabalharam como seringueiros; alguns trabalharam desde o princípio, outros tiveram contato com não-índios somente na época dos “soldados da borracha”. As histórias Apurinã falam de massacres, torturas, da experiência de terem sido escravos, das relações pessoais, de compadrio, das batalhas e guerras pela terra. Após a queda da borracha, nenhum produto a substituiu com a mesma importância e nenhuma outra estrutura de produção se estabeleceu com igual força na região.  

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O SPI (Serviço de Proteção aos Índios) teve um posto no rio Seruini, afluente do Purus, entre os atuais municípios de Pauini e Lábrea. O posto Marienê foi fundado em 1913, após conflito em que morreram cerca de quarenta Apurinã e sete seringueiros, segundo os jornais da época. O auge do posto, empreendimento com metas produtivistas, foi na década de 1920 e começo de 30. Depois, o posto decaiu e foram inúmeras as acusações de corrupção. No início da década de 1940 o posto estava desativado. O local do posto é, hoje, a aldeia Marienê (TI Seruini-Marienê).

O posto Marienê reuniu muitos Apurinã em um só local. De acordo com a ideologia do SPI, sua missão era trazer os Apurinã para a “civilização”, fazendo deles “trabalhadores úteis” ao país. O Posto Marienê é hoje relembrado por muitos Apurinã como uma cidade em que tudo era organizado, segundo alguns contam. Também são relembrados fatos negativos: a corrupção de seu encarregado, que ficava com os mantimentos que deveriam ser levados ao posto, e as roupas que os mandavam colocar somente para as fotos.

Entre 1977 e 79, a Ajudância da Funai no Acre faz os primeiros levantamentos na região de Pauini. No final da década de 1970, começam a haver conflitos em torno da terra e a resistência, por parte dos índios, contra invasões e exploração. Na região de Pauini, no igarapé do Tacaquiri, os Apurinã, aí moradores, liderados por João Lopes Brasil – o Lopinho –, foram contra o projeto da prefeitura de passar uma estrada por dentro da área. Nos anos seguintes, os conflitos prosseguiram e a possibilidade da estrada é sempre uma sombra para os moradores da TI Peneri-Tacaquiri. Em 1995, um empate, liderado por Lopinho, impediu nova tentativa da prefeitura de abrir a estrada. Entre os não-indígenas da região, acusa-se velada ou abertamente os índios como responsáveis pelo “atraso” de Pauini.

A Madeireira Nacional (Manasa) foi outra fonte de conflito. Com área imensa, que abrangia parte da TI Tumiã, a foz do rio Seruini e a TI Guajahã, a presença e pressão dessa empresa levaram à aceleração do processo de demarcação da TI Guajahã.

Outra empresa com poder de pressão foi a Agro Pastoril Novo Horizonte ou Zugmann. Localizada dentro da TI Seruini-Marienê, a empresa esteve envolvida em conflitos que resultaram na morte de José Lopes Apurinã e em vários feridos, alguns com seqüelas permanentes. Essa empresa apresentou, posteriormente, contestação à demarcação, o que não impediu a homologação da terra , uma vez que a contestação foi julgada improcedente (veja também "Como é feita a demarcação hoje?").

Os trabalhos de identificação foram iniciados numa época de organização política incipiente. Hoje, os Apurinã reivindicam áreas que não haviam ainda sido reconhecidas, áreas em que moram, que usam, margens de igarapés ou do rio Purus, e mesmo a cabeceira, como é o caso do Tumiã, que foi deixada de fora. Os campos de natureza, importantes porque neles teriam morado os Otsamaneru, povo que saiu com os Apurinã da terra sagrada, também foram incluídos só em parte no perímetro das áreas oficiais.


Organização social e política

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Uma das primeiras coisas que um Apurinã, da região de Pauini, explica sobre seu povo é que há uma divisão em duas “nações”: Xoaporuneru e Metumanetu. O pertencimento a um destes grupos é determinado pela linhagem paterna. Para cada uma das “nações” há proibições naquilo que se pode e não se pode comer: os Xoaporuneru não podem consumir certos tipos de inambu (inambu relógio e inambu macucau), e aos Metumanetu é proibido comer porquinho do mato. A quebra das interdições alimentares provoca problemas de saúde, e pode mesmo levar à morte, a não ser que haja intervenção eficaz de um “pajé” (meẽtu).

O casamento correto é entre Xoaporuneru e Metumanetu, pois casar dentro da mesma “nação” é o mesmo que casar entre irmãos. Esse é o termo, aliás, que dois membros da mesma metade podem usar ao dirigir-se um ao outro (nutaru, irmão; nutaro, irmã), assim como Xoaporuneru e Metumanetu chamam-se, por vezes, nukero (cunhada) ou nemunaparu (cunhado). Os nomes das pessoas indicam a qual das “nações” ela pertence.

Entre os Apurinã do município de Pauini, há divisões por regiões, que podem levar o nome de um igarapé ou do grupo de parentesco dominante: assim o pessoal do Peneri é o pessoal do Pedro Carlos; o pessoal do Seruini pessoal do Jacinto; pessoal da Água Preta é o pessoal do Doutor. O que marca as denominações é sempre o pai. Na língua Apurinã, há também a divisão por povos: Kaikuruwakoru (povo do jacaré), Yõpuruwakoru (povo do japó), Wawakoru (povo do papagaio), dentre muitos outros.

Já na região de Boca do Acre, o cacique e pajé Leôncio daria outra definição, segundo a qual os Apurinã são divididos em quatro sub-grupos: Xoaporuneru, Metumanetu, Kowaruneru e Kaikuruwakoru.

Aquilo que os Apurinã chamam hoje de “comunidade” varia muito. Por vezes, define-se comunidade pela existência de um chefe (cacique, liderança), de um professor e de um agente de saúde. A sua distribuição espacial é bem diversificada: inclui desde casas dispostas num mesmo terreiro, uma “aldeia”, até um conjunto de “colocações” dispersas, podendo ser ainda a combinação desses dois padrões. As unidades de moradia Apurinã foram sempre pequenas, de acordo com as fontes históricas.

A casa hoje, barraca, paraka ou aiko, é feita no mesmo modelo dos seringueiros. Alta, sustenta-se sobre esteios, madeira enterrada no chão. Cada casa é, em geral, habitada por uma família.

No “tempo de antigamente”, havia casas grandes, malocas, aiko. Dentro destas, segundo os autores antigos, as famílias eram separadas por paredes de folhas de palmeira. Havia, segundo os Apurinã, uma porta para homens, outra para mulheres. As festas eram feitas dentro da casa. Há, em geral, um terreiro, e quando este não está limpo, sempre é um cuidado a que se faz referência. No terreiro limpo é bom “brincar Xingané”. O terreiro da casa é, muitas vezes, varrido, e, em dias de festa, retira-se os tocos para não machucar.

Um local de moradia pode ser de um casal, com seus filhos, filhas, genros e noras; além de pais idosos, irmãos dos pais, sogros, ou afins solteiros ou viúvos. As aldeias podem ser constituídas também por várias casas de irmãos/irmãs que permanecem juntos, ou até de filhos destes irmãos.


Cosmologia e mitologia

Quem é o Deus de vocês? Não sei. Só sei que o nome dele é Tsora.

Artur Brasil Apurinã, Mũpuraru, Artur Pajé, assim fala de Tsora, ou, como ele traduz: Deus, Jesus. Tsora é o criador de todas as coisas que tem na terra e é por isso chamado de Deus, em português. A história de Tsora, história do começo do mundo, do começo de tudo, em suas muitas versões sempre se inicia por Mayoroparo, ou “depois que a terra incendiou”. Mayoru é urubu e Mayoroparo é uma mulher monstruosa, uma velha que comia os ossos das pessoas desobedientes (que tem ossos moles) e guardava os dos obedientes para maniva de mandioca e batata, no começo do mundo.

Tsora é filho de Yakonero. Alguém dormia com Yakonero todas as noites. Querendo saber quem é o visitante, ela suja as mãos com jenipapo e passa em suas costas. No dia seguinte é o katokana (canudo de rapé) do pajé que aparece preto. Então, Yakonero é expulsa. No caminho para a casa de seus parentes, seu filho, então no seu ventre, pede várias coisas. Ela, irritada, bate na barriga. Ele, por pirraça, troca a indicação para a casa, o que a faz parar nos Katsamãũteru. A velha, que lá mora, a esconde no jirau, e dá uma cuia para Yakonero – já grávida e por isso com vontade de cuspir – que cospe até que a cuia transborda, fazendo os homens perceberem sua presença.

São gerados quatro filhos de Yakonero, no galho de algodão. Tsora é o menor, o mais fraco, porém o mais engenhoso e poderoso. Os irmãos vingam matando, com armadilhas, um a um, os matadores de sua mãe.

A origem de tudo que existe, hoje, é compreensível por esta história: a origem do tamanho da castanheira, a origem da resina, da cor do quatipuru, a existência de vários peixes, como o surubim, o caparari, e a origem, também, da vingança.

Tsora criou as pessoas e os diferentes tipos de pessoas, os diferentes povos: Apurinã, brancos, outros índios. Fez aos povos vários testes, nos quais os Apurinã sempre saíram pior do que outros índios e do que os brancos. Por isso, dizem os narradores, apesar dos Apurinã serem “o melhor que tem”, são poucos e divididos.

Outra história muito importante para explicar os Apurinã, hoje, é a da Terra Sagrada e dos Otsamaneru. Os Apurinã eram imortais, e moravam em uma terra onde nada adoecia, estragava ou morria. Vinham com os Otsamaneru, migrando de uma terra de imortalidade para outra. Eles, entretanto, se encantaram em demasia com as coisas da “terra morredoura”, entre as terras sagradas, e aí permaneceram.

Os Kaxarari são freqüentemente apontados como os companheiros dos Apurinã nesta viagem. Segundo alguns relatos, viriam os três povos: Kaxarari, Apurinã e Otsamaneru. Os Kaxarari teriam se encantado primeiro com as frutas da “terra morredoura”, os Apurinã em seguida e os Otsamaneru teriam seguido viagem.


Ritual e xamanismo

As festas Apurinã, que recebem o nome genérico de Xingané (em Apurinã, kenuru), incluem desde pequenas cantorias noturnas até grandes eventos, com convites para muitas aldeias, farta comida, vinho de macaxeira, banana, patauá e combustível para os participantes. Em algumas ocasiões são feitas festas para acalmar a sombra de um morto, na seqüência e nos anos seguintes do falecimento (neste caso, de acordo com Abdias, morador da Água Preta, o nome da festa seria isaĩ).

O Xingané inicia como um ritual de confronto. Os convidados chegam armados, pintados e enfeitados pela mata. Vêm gritando. Os da casa vão encontrar, também armados. Quando se encontram, avançam os líderes, iniciando uma discussão (em português denominam esse diálogo de cortar sanguiré, em Apurinã, katxipuruãta) rápida e alta, com as armas sempre apontadas para o peito um do outro. Atrás deles encontram-se os acompanhantes, de prontidão, com suas armas também apontadas para os que discutem. Quando abaixam a voz, abaixam também as armas e os líderes tomam rapé na mão um do outro.

No início da discussão, afirma-se que não se conhece o outro e perguntam quem ele é. Vem, então, o sanguiré, uma fala pessoal, sempre encerrada com a afirmação de quem se é filho e neto. Camilo Manduca Apurinã resume assim:

“Quando corta sanguiré tem que lembrar nome do pai, da mãe, do avô. O que deseja dizer, diz na ocasião de sanguiré. O que está passando, tem que descobrir na hora do sanguiré”.

Uma festa já não praticada, mas considerada muito importante é a dos Kamatxi. Esta festa contava com a presença dos Kamatxi, seres que moram em buritizais e que vinham por ocasião da festa. Eram utilizadas flautas e as mulheres ficavam encerradas em uma casa, não podendo ver nada.

Xamanismo

O princípio das doenças e da cura do “pajé” (meẽtu) Apurinã são as pedras. A pedra é, ao mesmo tempo, o que lhe permite curar e o que lhe permite causar doenças e matar. Segundo vários relatos, na iniciação do pajé, o primeiro passo deve ser passar meses na mata, jejuando, ou comendo muito pouco e mascando katsowaru. Também se deve evitar relações sexuais. Quando o pajé recebe uma pedra, ele a introduz no corpo e assim vai introduzindo todas as pedras que recebe ou que, no futuro, vai tirar do corpo dos doentes.

Um pajé cura utilizando katsoparu, folha que se masca, e awire, rapé. O pajé tem o seu próprio katsoparu e awire, mas a pessoa que solicita a cura, em geral, é responsável por providenciá-los para a ocasião. O pajé deve mascar o katsoparu e tomar muito rapé. Às vezes, a cura é feita de forma privada, na casa do doente; mas, muitas vezes, todos conversam, mascam, até que o pajé dê início à sessão. Ele cura chupando o local. Muitas vezes, mostra a pedra e explica qual a doença, como o doente a adquiriu e o que deve fazer. Explica se é feitiço ou ação de um bicho da mata. Ele introduz a pedra no corpo e pode, então, recomendar remédios ou tratamentos. Os remédios em geral são plantas, mas podem ser também remédios industriais, de farmácia.

Um dos problemas mais comuns para um pajé resolver são os bichos que puxam, levam consigo o espírito de crianças. Há uma série de alimentos que o pai e a mãe devem evitar quando a criança é ainda pequena – até que ela tenha cerca de dois anos. Os principais são os peixes e caças de grande porte, mas também feijão, cachaça, coco, abacaxi, katsoparu, manga. Esses últimos não levam a sombra, mas prejudicam a saúde da criança, uma vez que, pelo leite da mãe, ela absorveria o alimento.

Durante a noite, o espírito do pajé vai resgatar a sombra da criança. Este movimento é perigoso. Se for um pajé fraco, pode, por exemplo, ficar preso na entrada de um buraco de peixe e morrer. O pajé chega com chuva e trovão, momento em que a criança respira novamente.

Os pajés Apurinã trabalham com sonhos. Neles, seu espírito sai, visita outros lugares, cumpre tarefas. Outros espíritos guiam o pajé nestas jornadas: os bichos, ou chefes de bichos (hãwite) com quem trabalha. Cada pajé possui o seu, ou os seus: onça, cobra, mapinguari...

Outro problema comum, em crianças e em adultos, são as flechadas de “bichos”, “flechadores” (kĩpuatitirã). Trata-se dos “chefes” (hãwite). Um varador novo é especialmente perigoso. Banha-se as crianças com a planta pipioca (kawaky) como prevenção, ou uma mulher espirra o leite de seu peito. As crianças são as menos resistentes aos flechadores, podendo morrer em decorrência destes ataques.

De acordo com Otávio Avelino Chaves (Atokatxu), chefes de espécies animais são pajés, pelo menos é nesta qualidade que conversam com os pajés humanos. Uma das funções do pajé é dominar, controlar estes seres: fazer, por exemplo, com que parem de “assombrar” ou que as cobras parem de picar. O que outros vêem como bichos, o pajé vê como gente e, alguns, como sua família. Os pajés defendem a sua comunidade contra pedras de inimigos humanos e protegem e remediam os ataques de seres da mata.

Os pajés visitam várias terras, embaixo da terra onde se mora, embaixo do rio, até mesmo o céu, onde está Tsora - se forem fortes. Quanto mais forte é o pajé, menos limites há para o seu espírito. Se é assim em vida, em morte também o é. Os pajés não morrem, alguns falam, se encantam. No momento da sua morte, ouve-se um estrondo. Na morte de pajés antigos, eles davam instruções precisas de como queriam ser enterrados para que pudessem sair dos seus túmulos. Em alguns casos, os túmulos dos pajés permanecem limpos. Em outros, conta-se que eles são vislumbrados entre bandos de animais, como queixadas. Na sua maioria, entretanto, vão para a Terra Sagrada.


Cultura material

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Grande parte das mulheres faz vassouras (que são amplamente vendidas), além de, em alguns casos, balaios e cestas. As redes de trama aberta, maqueiras, muito raras hoje em dia, são tecidas com enviras (entrecascas de diferentes espécies de árvores).

Artefatos de cerâmica são feitos de barro misturado ao pó derivado da queima da casca da árvore caripé. Utilizada para evitar as rachaduras na cerâmica, a casca de árvore é queimada, "pisada" no pilão até virar pó, que é peneirado e misturado ao barro A cerâmica é “envernizada” com breu (resina) de jatobá, conferindo um aspecto brilhante à peça, em tons que vão do amarelo ao vermelho. São feitos, algumas vezes, também desenhos, com água e sal, passados na peça após a queima e antes de passar o breu do jatobá.

Muito utilizados também são os estojos de rapé, feitos de aruá (caracol), sernambi (resíduo de borracha) e pequenos círculos de metal. Os katokana, ou mexikana, tubos para aspirar o rapé são feitos de ossos de animais.

Muito características da cultura tradicional dos Apurinã são as “cascas” (aãta), canoas de casca da árvore jutaí. Hoje, elas são mais comuns nas comunidades no alto dos igarapés. A casca de jutaí é muito leve e propícia para a agilidade que os igarapés exigem. Para fazer, tira-se a casca da árvore, na época das chuvas, abre-se com fogo e faz-se o banco com outra madeira


Notas sobre as fontes

Ehrenreich (1948 [1891]) é uma referência importante entre as fontes sobre os Apurinã por descrever os primeiros anos de contato. Além disso, há muitas informações nos relatos de viajantes e pesquisadores do século XIX e início do século XX, tais como João Martins da Silva Coutinho (1862), William Chandless (1867) e Joseph Beal Steere (1903).

Cláudia Netto do Valle (1986) fez um estudo lingüístico que contempla também observações etnográficas sobre os Apurinã do Km 45. Sidney Facundes (1994) aprofundou os estudos lingüísticos e propôs um alfabeto para a língua Apurinã.

Gunter Kröemmer (1986) realizou estudo etnohistórico do índios do rio Purus. A dissertação de Marco Antonio Lazarin (1981) volta-se para a migração e dispersão, no caminho para Manaus. Informações etnográficas, com análise de estrutura social, estão presentes em relatórios fundiários como o de João Dal Poz Neto (1985).

Na minha dissertação de mestrado (Schiel, 1999) trato do Posto Marienê, do SPI, a partir de dados documentais. O Levantamento Etno-Ecológico, realizado por mim e Maira Smith, para o PPTAL, tem informações sobre uso de recursos e cultura material, além de perspectivas para realização de projetos econômicos e problemas atuais.

A tese de doutorado (Schiel, 2004) é uma investigação sobre o passado, a memória e a história dos Apurinã, através de narrativas orais, utilizando dados etnográficos e também documentais.


Fontes de informação

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