De Povos Indígenas no Brasil

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O aparecimento dos Caraíba

por chefe Atahulu - aldeia Ipatse, Alto Xingu (MT) - 1982

— Escuta! Os antepassados caraíba chegaram há muito tempo.

— Os antepassados caraíba vieram para o grande rio [Culiseu e/ou Culuene], acamparam em Tugi, construíram muitas canoas de casca de jatobá, muitas enfileiradas, para matar os nossos antepassados.

— "Vamos", disseram. Estavam em Angahuku [cabeceiras do rio Buriti] e vieram até o pessoal de Agaha [Agaha ótomo]. Era ainda noite, quase madrugada, e o pessoal de Agaha estava dançando nduhe kuegü. Escondidos, os soldados fecharam o pessoal dentro das casas. Golpearam os que ainda estavam quase dormindo e que tentaram fugir. Morreram. O sangue correu como fio d'água e os machados se mancharam de sangue.

— "Vamos!". Foram para aquele outro pessoal e chegaram também de madrugada. Tentaram fugir por entre as pernas dos soldados. Pegaram—nos. O sangue correu. Juntaram os mortos e perguntaram: "Onde está o chefe?". Não havia chefe entre os mortos. Os caraíba continuaram a viagem. "Vamos procurar em outra direção". Os que tinham fugido voltaram aos poucos perto da aldeia, depois que os caraíba tinham ido embora.

— "Vamos!". Os caraíba foram até o pessoal de Ugihihütü, sempre de noite. De novo tentaram fugir por entre as pernas dos soldados. Juntaram os mortos e perguntaram "Onde está o chefe? Onde está Kujaitsí?". Lá não estavam os chefes, nem Kujaitsí, nem Agahi, nem Painingkú. Os caraíba foram procurá-los, foram procurar Kujaitsí. A aldeia ficou vazia depois que os caraíba passaram matando.

— Depois foram até o pessoal de Agatahütü. Era apenas um pessoal de casa de roça, eram poucos. Eles também foram agredidos a faca. Diante dos mortos enfileirados, os caraíba perguntaram: "Onde está o chefe? Procuremos na direção de Ajikugu".

— Em Ajikugu estava Kuigalu, amarrando folhas de buriti. Um buriti caiu, depois de cortado, sobre as canoas dos antepassados caraíba. As canoas afundaram. Aquele era Kuigalu.

— Depois foram-se até o pessoal de Uahütü. Morreram e de novo diante dos mortos: "Onde está o chefe? Não está aqui entre os cadáveres".

— Foram-se até o pessoal de Uagihütü, na época em que se dançava nduhe kuegü. Foram até oti [o campo]. Havia três das nossas canoas no porto. "Serão jaburus?". "Onde?". "Devem ser jaburus que se juntaram na beira d'água. Vamos ver!". "Tem algo na cabeça dos jaburus". Era Agahi [o chefe entre eles naquela época]. "Será que são os caraíba que vêm nos matar? Vamos ver". Foram-se para a beira d'água, lá em óti.

— "Sim, são caraíba, fujamos!", disse Agahi para sua esposa. "Escuta! Vamos fugir! Aqueles são os que vêm nos matar", disse Painingkú. Fugiram com suas esposas. Eram Kujaitsí e Agahi, eram os chefes. De madrugada os caraíba atacaram. Alguns fugiram com rapidez, mas os que tentaram escapar mais devagar foram golpeados. Depois colocaram os mortos em fila. Eram muitos, a aldeia era grande. Procuraram entre os mortos: "Onde está o chefe?". Não havia chefes.

- Os caraíba foram-se. Atracaram no porto do pessoal de Sahutaha. Atravessaram o rio procurando Kujaitsí, o chefe. Chegaram de madrugada. Alguns fugiram de pressa, outros morreram. Diante dos mortos, os caraíba perguntaram de novo: "Onde está o chefe deles?". Não havia chefes. Tinham fugido. Continuaram procurando Kujaitsí.

— Depois foram-se os caraíba, para matar o pessoal de Kunagü. Alguns fugiram depressa; os que iam devagar foram golpeados pelo círculo das casas. Não havia chefes entre os cadáveres enfileirados. Era quase impossível para eles encontrar Kujaitsí.

— Então dirigiram-se na direção do pessoal de Ahakugu, na época da festa de nduhe kuegü. Não conseguiram achar o caminho. "Onde está o rio deles? Vamos por este atalho". Só havia uma passagem estreita para as canoas. Não encontraram o rio de entrada. "Onde vamos?". Foram-se para o pessoal de Isangá, para o porto dos de Isangá.

— Lá as mulheres perguntaram-se "Quem são aqueles? Vamos olhar!". "São os caraíba!" - disseram os que tinham casado na aldeia (os sobrinhos). "Itseke [espíritos]!". "Não, são caraíba, vamos fugir!". "Não, vamos olhar!". Estavam enganados. Apenas um foi ver com a sua esposa. Ihikutaha fugiu. "Mãe, vamos fugir! Os caraíba estão aqui para nos matar". Os antepassados caraíba não conseguiram matar os chefes. Dizem que estes fugiram e acabaram por amansar os antigos caraíba. "Fujamos, mãe!". "Deixa eu ficar por aqui". "Será que os caraíba não irão te golpear?". Fugiu com a esposa. Os caraíba foram matando aqueles que tinham permanecido nas casas. Os caraíba mataram o pessoal de Isangá, enganaram-nos.

— Foram-se para Intagü. Eram estes nossos antepassados, o pessoal que morava em Angahuku. Os antigos não conheciam os caraíba. Novamente estes os golpearam, os atacaram. Morreram, enfileiraram os mortos. "Voltemos. Mais uma vez virão nos matar". Os que voltaram para olhar a aldeia, mais uma vez, iriam ser mortos.

— Kuigalu estava lá para matar o chefe dos caraíba.

— Kuigalu tinha fugido com seu sobrinho. Cavou um buraco na beira d'água para matar o chefe dos caraíba. Estes chegaram, queimando a mata. "Vamos" disse o sobrinho. "Não, espera!". Ainda noite, os soldados foram banhar-se; no meio deles estava seu chefe, carregado até a água. Enquanto estava deitado na água "Certo, tio. Mate-o!". Flecharam. Kuigalu voltou correndo para se esconder no buraco. Os companheiros carregaram o chefe até o acampamento. Ficaram esperando que Kuigalu e os seus aparecessem. Ficaram esperando que aparecessem os fugitivos. Sentiam falta de seu chefe morto por Kuigalu. Lá eles enterraram seu chefe, bem fundo, enquanto Kuigalu e o companheiro os observavam. Os camaradas atiraram a esmo. Enterraram junto as flechas dele, as facas, machado, cobertor, tesouras, tudo, e fecharam o buraco. Lá permaneceram quatro dias, esperando o vingador [Kuigalu]. "Vamos, meu tio! Vamos olhar”. "Espera! Os caraíba ainda estão por aqui. Não vamos deixar que eles nos matem". Passou um dia e ficaram esperando o vingador. Aos poucos, os que tinham fugido reapareceram lá perto da aldeia. "Aqui está aquele que matou nosso chefe" disseram os antepassados caraíba. "Deixa chegar mais perto". Ficaram espiando enquanto eles vinham. Aí os mataram. Os camaradas [caraíba] foram-se depois da morte de seu chefe; voltaram para o seu lugar. "Certo, vamos! Olha! Mataram-nos quando nós quase estávamos indo embora, logo quando você estava me dizendo: vamos, meu tio". Sobre o túmulo estava uma cruz feita pelos caraíba. "Aqui estão as coisas que foram enterradas junto. Vamos cavar!". Desenterraram tudo: facas, machado, tesouras. Depois cobriram o buraco. Ficaram com as coisas dos caraíbas. O chefe deles foi aquele que as tinha trazido e tinha sido morto. Ficaram por aqui. Disseram os antepassados caraíba: "Vamos ver aqueles que se juntaram".

— Eles vieram quando a aldeia estava vazia. Vieram para ver o criminoso, o vingador. Foram-se. Os outros fugiram no meio do caminho para outras aldeias, dizem. Esta foi a última vez. Pegaram Kujaitsí. "Não, não vamos matá-lo". Deslocaram-se de canoa. Depois pegaram Agahi. "Não, não vamos matá-lo; venha conosco!'. Assim, os convenceram a ir até onde viviam os antepassados caraíba. Depois pegaram Painigkú. Em seguida voltaram de óti. "Vamos!". Aqueles eram Agahi, Kujaitsí, Painingkú, Ihikutaha. Depois que tinham pego os chefes, depois de tê-los vestidos com camisas, calças e sapatos, vieram para cá, para o pessoal de Ipatse, para matar outras tribos. "Vamos matá-los?". Agahi, Painingkú e Kujaitsí estavam com eles. Atiraram um pouco, à toa. De medo os nossos fugiram, todos fugiram.

— Foram-se para o córrego das palmeiras küá, onde Kuigalu estava cortando uma palmeira bem alta. Quando os caraíba chegaram, Kuigalu derrubou a palmeira e golpeou as canoas dos caraíba, que afundaram, até a morada dos itseke. Aquele era Kuigalu; foi ele que fez aquilo para matar.

— Foram-se. Dividiram-se, os caraíba; canoas e coisas estavam no fundo do rio. Encontraram jenipapo bem preto e subiram na árvore. Muitas carabinas foram deixadas encostadas no tronco. Kuigalu disse "Vamos ver as armas deles!". Isso quando os caraíba estavam no topo da árvore de jenipapo. Logo chegou Kuigalu, nosso vingador, para pegar as carabinas. Tentou carregá-las, mas não agüentou. Pegou apenas duas. "Ele não está nos matando", disseram os caraíba antigos. Desceram da árvore de jenipapo. "Ele não está nos matando; ele está roubando as carabinas". "É verdade". Ficaram rindo. Kuigalu já estava longe e trouxe as carabinas. Os caraíbas antigos ficaram rindo. "Deixem que as leve". E ele levou apenas duas carabinas.

— Depois eles, os caraíba, vieram. Não mataram mais. Kujaitsí não deixou que isso acontecesse mais. "Será que vamos matá-los?". "Não, deixem disso". "Certo!". Os antepassados caraíba prenderam apenas Kujaitsí; voltaram, mas não mataram mais nossos antigos, pararam de matar. Agora, procurando o pessoal de Kujaitsí, acabaram por prender Painigkú, mas pararam de matar. Assim, os nossos antigos ficaram muitos.

— Novamente outra vez vieram. O pessoal de Kujaitsí e de Agahi os trouxeram de volta amansados. "Aqueles não são mais nossos assassinos". "As matanças que vocês costumavam fazer não irão mais nos atingir". "Sim, vamos ver!". Kujaitsí, Painingkú, Ihikutáha, Agahi os trouxeram de volta.

— Os caraíba vieram e deram presentes aos antigos, deram as coisas que eles tinham. Kujaitsí, Painingkú, Agahi, Ihikutaha mandaram os caraíbas darem presentes. Mesmo assim alguns fugiram. Aqueles que ficaram na aldeia receberam presentes. O mesmo aconteceu em outras aldeias. Kujaitsí é que mandava. Voltaram de novo outra vez. Os antigos tinham bem poucas dessas coisas de caraíba. Os antigos de outras tribos é que tinham. Chegaram as facas, os machados, poucos. Era outro o instrumento usado para cortar, contam, nos tempos antigos. Contam que para fazer roça cortavam primeiro os paus pequenos, depois derrubavam as grandes árvores com dentes de piranha vermelho. Faziam grandes queimadas em suas roças. O dia seguinte continuavam a derrubada, contam. Era assim antigamente. Apareceram as facas afiadas. Apareceram alguns machados com os quais começaram a abrir as roças. Tornaram-se donos dessas coisas. Abriam roças com facas e pás. Quem não tinha faca, quem não era dono, pedia "Quero sua faca". "Sim, pode levá-la".

— "Eu vou ficar com ela tantos dias". "Certo, pode levá-la". Assim, acabavam o trabalho das roças e depois devolviam os instrumentos. O mesmo acontecia com os que não eram donos das pás. Pediam emprestados os instrumentos para cortar, os machados. Aos poucos os caraíba chegaram, assim aos poucos as facas aumentaram, chegaram facas pequenas para todos.

— Tempo depois, quando havia muitas crianças, chegou Kálusi (Karl Von den Steinen). [Onde está a aldeia de Kálusi?]. Ele veio até Kuhikúru, isso na época em que os caraíba já eram bons. "Aqui estão os caraíba". "Não nos matem!". "Não, estou aqui para dar isso para vocês". "Certo". O chefe estava na casa. Depois levaram as coisas no meio da aldeia para a partilha. O chefe falou "Venham aqui, venham aqui!”. "Vamos olhar!". Saíram das casas, os antigos. As mulheres fizeram fila. "Venham aqui, perto dos chefes!". Os chefes deram colares nas mãos das mulheres, colares brancos, miçangas 'olho de peixe'. Eram lindos. Todos os colares foram distribuídos. Depois foram distribuídas as facas para os homens, facas pequenas, machados, anzóis. Os antigos não tinham anzóis. Depois as esposas fizeram colares, um colar para este, outro para aquele. Muitos colares para as mulheres; eles não deram miçangas azuis. Depois ele ficou trocando tudo isso por colares de caramujo, numa época em que era difícil encontrá-los. Foi Kálusi (Karl Von den Steinen) quem trouxe as miçangas muito tempo atrás, dizem as mulheres. Foi Kálusi o primeiro de verdade. Partilharam as coisas dadas por Kálusi, as facas, as pás.

— Mas depois começaram as mortes. Chegaram as doenças/ feitiços [kugihe]. Nós ficamos poucos. Na época em que vieram os caraíba; eles trouxeram as doenças/feitiço, eles, os antigos, os donos de feitiço. As flechas/feitiço voaram. Morreram muitos. Os de Kuhikugu acabaram, acredite, nos tempos das viagens dos caraíba. Contam os antigos que os colares de 'olho de peixe', os colares das mulheres, eram enterrados com os mortos.

— Kálusi foi embora. Passou um ano e o pessoal de Kuhikugu viajou até os caraíba, até a aldeia dos Bakairí (Poto). De lá, contam, trouxeram a tosse. Tinham ido buscar facas. Deram facas, tesouras, machados. Veio a tosse.

— Os caraíba dizem de nós: "Vamos pegar a terra deles! Deixemos eles sem terra! Deixemos o pessoal de Kuhikugu sem terra". Por que isso? Por que isso acontece, como eu posso constatar? Por que não nos deixam em paz por aqui? Eu sei que antigamente seus antepassados sempre nos matavam, vindo das aldeias dos caraíba, nossos antepassados estavam aqui, os caraíba nos perseguiam. Foi por isso, por outro lado, que as crianças são poucas, agora. Antigamente, contam, os caraíba nos matavam. Fugindo deles, nossa gente mudou de aldeia várias vezes. Aqui estão, veja, os descendentes. Por que vocês pegam nossa terra? Eu sei que vocês estão sobre nossas antigas aldeias. Os caraíba dizem de nós: "De pressa, peguem as terras deles!". Eu pergunto porque vocês tomam a nossa terra, como vocês falam a nosso respeito. Escuta! Assim eram os caraíba antigamente, eu sei, os que iam matando nossos antigos. Agora nós amansamos os caraíba. Escuta! Acabou a estória. São estas as últimas palavras.

Depoimento coletado por Bruna Franchetto (antropóloga e lingüista, Museu Nacional/ UFRJ), publicado anteriormente em: Franchetto, Bruna. A História nos Discursos Kuikuro, in: Viveiros de Castro, E. & Carneiro da Cunha, M. (org.) - Amazônia. Etnologia e História Indígena, NHII/USP/Fapesp, 1993. "Caraíba" são os brancos.

Do encontro com os brancos

por Bruna Franchetto

Esta narrativa (akinhá, na língua kuikúro, pertencente à família karib) foi contada pelo chefe Kuikuro Atahulu (hoje Kujame), em 21 de setembro de 1982 na aldeia de Ipatse, onde vivem cerca de 350 kuikuro, na região do Alto Xingu, ao sul do Parque Indígena do Xingu, estado de Mato Grosso. Esta narrativa conta acontecimentos que se desenrolaram entre o final do século XVIII e o início deste século. Fala dos primeiros encontros com os caraíba (os brancos), dos bandeirantes (chamados de jaburus pelos antepassados kuikuro), das matanças, de chefes capturados e levados de suas aldeias, da resistência indígena, da chegada do etnógrafo Karl Von den Steinen no final do século XIX, das doenças, da invasão das terras xinguanas.