De Povos Indígenas no Brasil
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Esta parte dedicada aos modos de vida dos povos indígenas procura mostrar tanto a diversidade entre os grupos mencionados quanto os aspectos comuns que compartilham entre si.  
 
Esta parte dedicada aos modos de vida dos povos indígenas procura mostrar tanto a diversidade entre os grupos mencionados quanto os aspectos comuns que compartilham entre si.  
 
== Poéticas indígenas ==
 
 
'''por Pedro Cesarino
 
fotos Claudia Andujar '''
 
<div class="g2image_centered"><htmltag tagname="img" title="Foto: Claudia Andujar, anos 70, região do Catrimani" alt="Yanomami" src="http://img.socioambiental.org/d/639618-1/Yanomami_001.jpg" /></div>
 
 
 
 
 
A educação formal brasileira, como se sabe, possui uma base euroamericana. Quando terminamos o segundo grau, adquirimos uma noção geral sobre as artes e literaturas francesas, inglesas ou norte-americanas, que constituem assim o repertório cultural de qualquer cidadão. Os pressupostos que aí se formam sobre expressões estéticas e intelectuais são marcados, porém, por uma imensa e antiga lacuna. Não sabemos praticamente nada sobre os povos indígenas (para não falar dos africanos), ignoramos completamente os seus regimes de pensamento e de criação. Se estivéssemos no México, teríamos no meio da praça central da capital uma imensa pirâmide de pedra azteca. Sua imponência serve como advertência para o processo de dominação (física e espiritual) que se iniciou há cinco séculos. Com exceção, talvez, do que acontece na Amazônia contemporânea, onde os índios têm uma presença maior nas cidades, o Brasil permanece ignorando as produções culturais de seus povos indígenas.
 
 
As lacunas de nosso sistema educacional não são responsáveis apenas pelo desconhecimento sistemático dos universos indígenas, mas também pela disseminação de uma série de estereótipos que inviabilizam uma compreensão, ainda que mínima, de tais povos. Imaginamos assim (e mesmo quando simpatizamos com os habitantes da floresta) que eles ainda permanecem no estado de natureza, que são primitivos, simplórios, pouco sofisticados, repetitivos ou mesmo ingênuos. Donde a razão para publicar e traduzir as suas histórias em livros infanto-juvenis, aproximados automaticamente de toda aquela cultura popular genérica povoada pelos sacis, cecis, peris e mulas sem cabeça. Imaginamos, assim, que se trata de algo bastante distinto das literaturas clássicas, provenientes da Grécia antiga e do velho continente, produzidas pela civilização por meio da escrita. Este panorama, claramente etnocêntrico, serve para justificar, ainda que silenciosamente, a submissão dos povos indígenas aos nossos critérios políticos, econômicos e culturais. Mas o que, afinal, eles têm a ver com isso? Que espécie de pensamento criativo produziram nos últimos milênios?
 
 
Antes de mais nada, é preciso esclarecer um ponto: existem inesgotáveis maneiras de se produzir complexidades (de pensamento, de sentido), a despeito daquela com a qual estamos acostumados, derivada da escrita e de uma civilização que se destaca pelo domínio da tecnologia. Sob o aparente despojamento de suas construções e artefatos, os povos indígenas construíram sistemas de pensamento e expressões criativas que, ainda hoje, escapam à compreensão dos melhores cientistas das principais universidades do Ocidente. Trata-se de sistemas que não têm exatamente a ver com a nossa imagem genérica da cultura popular (que, evidentemente, tem também o seu inestimável valor). Os sistemas indígenas se aproximam bastante, diga-se de passagem, dos pensamentos e das artes chinesas ou japonesas.<sup>1</sup><htmltag tagname="a" href="http://img.socioambiental.org/d/639614-2/0388_04.jpg" rel="lightbox[g2image]" title="Yanomami, Roraima. Foto: Claudia Andujar, anos 70.">
 
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Vamos partir aqui do princípio de que há poesia por toda parte. Mesmo assim, não se pode tomar as experiências poéticas indígenas pelo gênero literário que estudamos através de Camões ou de Fernando Pessoa. As poesias de toda parte implicam, portanto, em formas diversas de experiência e de criação. Estas são marcadas por distintas estruturas de língua e de pensamento, mas também por instituições políticas, processos de educação, entre outras características. Por conta disso, os problemas de interpretação e de tradução se multiplicam, mas não a ponto de se tornarem um impedimento para a compreensão das poéticas da floresta. Suas artes verbais, ou artes da palavra, são bastante distintas, portanto, do que estamos acostumados a ver como literatura escrita. Seguem outros critérios de composição, de criação, de autoria, de recepção e de fruição estética. Fazem sentido em um outro registro de realidade que tendemos a rotular como "mítico" ou "fictício" por contraposição aos conhecimentos científicos modernos.
 
<div class="g2image_centered"><htmltag tagname="img" src="http://img.socioambiental.org/d/639621-1/yanomami_2.jpg" alt="yanomami_2" title="Yanomami, Roraima. Foto: Claudia Andujar, anos 70." /></div>
 
 
 
 
 
Entre os povos indígenas, é possível aprender cantos com os espíritos dos animais. Aliás, grande parte da cultura dos povos da floresta veio deles. Os <htmltag tagname="a" href="http://pib.socioambiental.org/pt/povo/marubo" target="_self">Marubo</htmltag>, por exemplo, um povo do Vale do Javari (Amazonas), dizem que seu antepassado Vimi Peiya aprendeu a fazer grandes malocas e cestarias, bem como a caçar com arco e flecha, com o povo que vive nos rios. Tratam-se, a rigor, dos espíritos das sucuris e demais habitantes das águas, que concebem a si mesmos como pessoas. Muitos de nós, ocidentais, vamos às universidades à procura de conhecimento. Na Amazônia, um <htmltag tagname="a" target="_self" href="http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/modos-de-vida/xamanismo">xamã</htmltag> (ou pajé) pode obter seus cantos dos espíritos das árvores, que são imortais, mais sabidos e belos do que nós, os viventes. Para compreender as narrativas e os cantos indígenas, torna-se então necessário conhecer um pouco mais dos mundos em que eles são criados. Veja a tradução do canto de um xamã marubo, Armando Cherõpapa. O canto pertence ao espírito do gavião preto, que visita o corpo de Armando e canta através dele. É por isso que, na Amazônia, os povos indígenas costumam dizer que os xamãs (ou pajés) "são como um rádio". Eles são os responsáveis por transmitir as falas e cantos dos espíritos dos animais, das árvores e de outros elementos disso que chamamos de "natureza". Armando, na verdade, não é exatamente o autor do canto que segue, mas o seu transportador:
 
<h4 style="text-align: center;">    koin rome owaki         flor de tabaco-névoa
 
menokovãini            caindo e planando
 
        naí koin shavaya        à morada do céu-névoa
 
 shavá avainita          vai mesmo voando
 
 
    ave noke pariki        assim sempre fomos
 
        yove mai matoke     na colina terra-espírito
 
          koin mai matoke        na colina da terra-névoa
 
       shokoivoti               há tempos moramos <sup>2</sup></h4>
 
 
 
 
 
O espírito do gavião está aí dizendo como surgiu: a partir das flores de tabaco desprendidas que vão voando para o Céu-Névoa, o último dos patamares celestes da cosmologia marubo. Sim, neste mundo há diversos patamares ou estratos celestes, que possuem os seus diversos habitantes, aldeias, festas e cantos. Os espíritos que ali vivem são mais antigos do que os Marubo; existem desde os tempos do surgimento. Este tipo de canto que aí está traduzido pode, então, ser chamado genericamente de "canto xamanístico" ou de "canto de pajé". Muitos povos indígenas possuem cantos similares, tais como os <htmltag tagname="a" href="http://pib.socioambiental.org/pt/povo/arawete" target="_self">Araweté</htmltag> e os <htmltag tagname="a" href="http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaiabi" target="_self">Kayabi</htmltag> (do Xingu), os <htmltag tagname="a" href="http://pib.socioambiental.org/pt/povo/yanomami" target="_self">Yanomami</htmltag> de Roraima, entre tantos outros.
 
 
Aos cantos xamanísticos somam-se, ainda, diversos outros gêneros, tais como as falas de chefe, os cantos de cura, os diversos cantos de festas e rituais, as narrativas míticas, entre outros. Cada povo tem as suas próprias artes verbais, todas elas sofisticadas, diversificadas e bastante vivas ainda nos dias de hoje. Faltam, no entanto, livros e traduções que revelem isso também para nós, não-índios. A antropóloga e lingüista Bruna Franchetto, uma das maiores especialistas em <htmltag tagname="a" target="_self" href="http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/linguas/introducao">línguas indígenas</htmltag> do Brasil, traduziu este belo canto tolo dos <htmltag tagname="a" href="http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kuikuro" target="_self">Kuikuro</htmltag> (Xingu), aqui reproduzido parcialmente:
 
<h4 style="text-align: center;">Que nasçam asas em nós
 
para aportar atrás da beira d'água
 
irei feito beija-flor
 
 
Não podes ficar aqui
 
para namorarmos
 
leve-me contigo
 
vamos para a tua aldeia
 
 
'Vou contigo'
 
disse-me a mulher
 
de canoa ela se foi
 
na nossa frente
 
 
Lá, em Aitolóu
 
sentirei saudades de ti
 
lá, na terra dos bakairí
 
sentirei saudades de ti (...) <sup>3</sup></h4>
 
<h4 style="text-align: center;"> </h4>
 
 
Este canto-poema, referente às relações entre amantes, é um bom exemplo do lirismo que se encontra em muitas poéticas indígenas. Elas costumam ser marcadas pelas distâncias e separações que marcam as relações de parentesco, muitas vezes estendidas entre aldeias distintas, separadas por longas viagens pelos rios. Isso confere uma certa qualidade nostálgica a muitas de suas criações verbais, que pode ser encontrada também nas narrativas míticas. Estas, porém, não se referem apenas a sentimentos ou impressões de sujeitos determinados, tal como nos dois cantos acima citados. Elas tratam de temas diversos tais como o surgimento do céu e da terra, dos antepassados, dos animais e dos próprios brancos, entre outros episódios que constituem a base dos conhecimentos indígenas.
 
 
Os <htmltag tagname="a" href="http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-mbya/">Guarani</htmltag> possuem também uma rica mitologia, bem como um vasto conjunto de rezas e cantos cerimoniais. São provas vivas de que as mudanças sociais não levam necessariamente ao desaparecimento dos conhecimentos tradicionais, muito embora dificultem bastante suas vidas e os processos de transmissão de seus cantos. O problema, aliás, não escapa à reflexão dos próprios cantadores-poetas, como vemos nessa tradução feita pelo poeta Douglas Diegues (a partir de um canto coletado por Guilhermo Sequera). Reproduzo, novamente, apenas um trecho:
 
<h4 style="text-align: center;">Queremos
 
Encher a terra de vida
 
Nós os poucos (Mbyá) que sobramos
 
Nossos netos todos
 
Os abandonados todos
 
Queremos que todos vejam
 
Como a terra se abre como flor<sup>4</sup></h4>
 
<h4 style="text-align: center;"> </h4>
 
<p style="display: none;"><htmltag tagname="a" href="http://img.socioambiental.org/d/639621-1/yanomami_2.jpg" rel="lightbox[g2image]" title="Yanomami, Roraima. Foto: Claudia Andujar, anos 70."><htmltag tagname="img" width="250" height="250" src="http://img.socioambiental.org/d/639623-3/yanomami_2.jpg?g2_GALLERYSID=TMP_SESSION_ID_DI_NOISSES_PMT" alt="yanomami_2" title="Yanomami, Roraima. Foto: Claudia Andujar, anos 70." /></htmltag>
 
<p style="display: none;"><htmltag tagname="a" title="Foto: Claudia Andujar, anos 70, região do Catrimani" rel="lightbox[g2image]" href="http://img.socioambiental.org/d/639618-1/Yanomami_001.jpg"><htmltag tagname="img" width="250" height="250" title="Foto: Claudia Andujar, anos 70, região do Catrimani" alt="Yanomami" src="http://img.socioambiental.org/d/639620-3/Yanomami_001.jpg?g2_GALLERYSID=TMP_SESSION_ID_DI_NOISSES_PMT" /></htmltag>
 
 
 
 
 
 
 
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<h3>Notas</h3>
 
1. Como exemplo, veja o que diz o antropólogo Claude Lévi-Strauss em um artigo chamado "O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América" (publicado em ''Antropologia Estrutural.'' São Paulo, Cosac Naify, 2008).
 
 
 
 
2. Tradução de Pedro Cesarino.
 
 
 
 
3. Franchetto, Bruna. "Tolo Kuikúro: Diga cantando o que não pode ser dito falando”. in ''Invenção do Brasil'', Revista do Museu Aberto do Descobrimento, Ministério da Cultura, 1997: 57-64.
 
 
 
 
4. Diegues, Douglas (Org.). ''Kosmofonia Mbya-Guarani.'' São Paulo, Mendonça & Provazi editores, 2006.
 
 
 
 
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== Habitações ==
 
== Habitações ==

Edição das 19h00min de 20 de setembro de 2017

Introdução

Quando comparados à nossa sociedade, os povos indígenas apresentam características comuns. No entanto, quando vistos de perto, nota-se além das semelhanças, muitas diferenças.

Variam as culturas, as línguas, as formas de organização social e política, os rituais, as cosmologias, os mitos, as formas de expressão artística, as habitações, as maneiras de se relacionar com o ambiente em que vivem etc.

Esta parte dedicada aos modos de vida dos povos indígenas procura mostrar tanto a diversidade entre os grupos mencionados quanto os aspectos comuns que compartilham entre si.

Habitações

Panorama da diversidade

 

habi_panara
Os Panará, como a grande maioria dos povos da família lingüística Jê, vivem em aldeias circulares na divisa dos estados de Mato Grosso e Pará. As residências encontram-se situadas na periferia do círculo. No centro, espaço para atividades políticas e rituais, localiza-se a Casa dos Homens.
habi_kraho
As aldeias dos Krahô (TO), povo da família lingüística Jê, seguem o ideal timbira de disposição das casas ao longo de uma larga via circular, cada qual ligada por um caminho radial ao pátio central.
habi_gavi
Os Gavião Parkatêjê (PA) são falantes do Timbira oriental (família Jê). Esta é uma de suas aldeias, a Kaikotore. Composta por 33 casas de alvenaria dispostas em círculo, possui cerca de 200 metros de diâmetro. Há um largo caminho ao redor, em frente às casas, e vários caminhos radiais que conduzem ao pátio central, onde se desenvolvem todas as atividades cerimoniais.
habi_marubo
Entre os Marubo, grupo da família lingüística Pano que habita o Vale do Javari (AM), a única construção habitada é a casa alongada, coberta de palha e de jarina da cumeeira ao chão, que se localiza no centro da aldeia. As construções que ficam ao redor, erguidas por pilotis, servem mais como depósitos e são de propriedade individual.
habi_enawene
Os Enawenê-Nawê (MT), grupo da família lingüística Aruaque, vivem em aldeias formadas por grandes casas retangulares e uma casa circular, localizada mais ou menos no centro, onde ficam guardadas as suas flautas. No pátio central, são realizados diversos rituais e jogos.
habi_yanoma
Os Yanomami orientais e ocidentais costumam viver em uma casa agregando várias famílias, a maloca Toototobi (AM). Lá reúnem-se todos os membros da aldeia, sendo considerada como entidade política e econômica autônoma.
habi_yanoma_2
Aqui, uma habitação coletiva Yanomami vista de seu interior.
habi_tiquie
A maloca-museu São João, no rio Tiquié (AM), é um exemplo de como os chamados "índios da floresta", falantes de línguas das famílias Aruak e Tukano, da região da bacia do alto rio Negro, costumavam viver. Não é uma simples moradia comunitária, mas, também, um espaço fundamental para a realização de cerimônias, a trajetória primordial dos antepassados míticos.
habi_palikur
Os Palikur (AP) também são falantes de uma língua da família Aruak. Suas aldeias são construídas voltadas para o rio. A maior delas, Kumenê, tem suas casas dispostas em duas ruas paralelas.

Índios e o meio ambiente

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Foto: diversos autores, veja aqui         Mesmo não sendo “naturalmente ecologistas”, aos povos indígenas se deve reconhecer o crédito histórico de terem manejado os recursos naturais de maneira branda. Souberam aplicar estratégias de uso dos recursos que, mesmo transformando de maneira durável seu ambiente, não alteraram os princípios de funcionamento e nem colocaram em risco as condições de reprodução deste meio.

Diferentes concepções de "natureza"

rio_xingu

Muitas vezes somos levados a pensar que as sociedades indígenas que vivem nas florestas tropicais são povos isolados, intocados, e que vivem “em harmonia” com os seus ambientes.A dificuldade em se compreender as concepções e as práticas indígenas relacionadas ao “mundo natural” e a tendência em aprisionar estes modos de vida extremamente complexos e elaborados na imagem idealizada de uma relação harmônica homem-natureza são exemplos de etnocentrismo.

A visão dos índios como homens "naturais", defensores inatos da natureza, deriva de uma concepção de natureza que é própria ao mundo ocidental moderno: a natureza como algo que deve permanecer intocado, alheio à ação humana. Mas o que os povos indígenas têm a dizer sobre o assunto é bem diferente.

As concepções indígenas de “natureza” variam bastante, pois cada povo tem um modo particular de conceber o meio ambiente e de compreender as relações que estabelece com ele. Porém, se algo parece comum a todos eles, é a idéia de que o “mundo natural” é antes de tudo uma ampla rede de inter-relações entre agentes, sejam eles humanos ou não-humanos. Isto significa dizer que os homens estão sempre interagindo com a “natureza” e que esta não é jamais intocada. Os Yanomami, por exemplo, utilizam a palavra urihi para se referir à "terra-floresta": entidade viva, dotada de um "sopro vital" e de um "princípio de fertilidade" de origem mítica. Urihi é habitada e animada por espíritos diversos, entre eles os espíritos dos pajés yanomami, também seus guardiões.

A sobrevivência dos homens e a manutenção da vida em sociedade, no que diz respeito, por exemplo, à obtenção dos alimentos e a proteção contra doenças, depende das relações travadas com esses espíritos da floresta. Dessa maneira, a natureza, para os Yanomami, é um cenário do qual não se separa a intervenção humana.

 

Parceiros na preservação ambiental

Apesar de não serem "naturalmente ecologistas", os índios têm consciência da sua dependência – não apenas física, mas sobretudo cosmológica – em relação ao meio ambiente. Em função disso, desenvolveram formas de manejo dos recursos naturais que têm se mostrado fundamentais para a preservação da cobertura florestal no Brasil.

Trata-se de um fato visível nas regiões onde o desmatamento tem avançado com maior rapidez, como nos estados do Mato Grosso, Rondônia e sul do Pará. Em levantamento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), por exemplo, as Terras Indígenas aparecem como verdadeiros oásis de florestas.

É fato que muitos povos indígenas, como os Suruí, Cinta-Larga e os Kayapó, tenham se atrelado ativamente a formas predatórias de exploração dos recursos naturais hoje em vigor na Amazônia, fazendo alianças principalmente com empresas madeireiras. Todavia, é preciso reconhecer que eles o fizeram submetidos a pressões concretas, contínuas, ilegais e como sócios menores desses negócios.

Hoje e no futuro, é preciso procurar mecanismos para potencializar as chances de os índios equacionarem favoravelmente o domínio de terras extensas com baixa demografia. Um desses mecanismos são as ainda incipientes formas de articulação de projetos indígenas com estratégias não-indígenas de uso sustentado de recursos naturais, sejam públicas ou privadas. 

 

Panorama da Diversidade

meio_xingu

Vista aérea do posto Diauarum: cerrado e floresta de transição (Alto Xingu – MT). Foto: Abril Imagens,1999.

 

 

 

 

 

 

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A volta da caçada na floresta amazônica (Araweté – PA).  Foto: Eduardo Viveiros de Castro, s/d.

 

 

 

 

 

 

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Vista da aldeia do Meruri no cerrado (Bororo – MT). Foto: Luís Donisete B. Grupioni, s/d.

 

 

 

 

 

 

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Serra da Bodoquena: vegetação de cerrado e mata calcária (Kadiwéu – MS). Foto: Correio do Estado, s/d.

 

 

 

 

 

 

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Voltando da roça entre a savana e os campos alagados (Galibi Marworno – AP). Foto: Vincent Carelli, s/d.

 

 

 

 

 

 

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Aldeia Rio Branco em Itanhaém: Mata Atlântica (Guarani –SP).  Foto: José Novaes, s/d.

Redes indígenas de relações

kuarup

Foto: Beto Ricardo, 2002         

Introdução

As sociedades indígenas não se encontram em estado de total isolamento. Isso significa dizer que, antes de manterem relações com a sociedade brasileira, elas sempre mantiveram relações entre si. Em várias regiões, e de diversas maneiras, povos diferentes se inter-relacionavam por meio de guerras, de troca de objetos, de casamentos, de convites para festas, rituais etc.

Apesar de terem se transformado com o tempo, essas redes de relações não cessaram nos dias de hoje. Podem compreender tanto um pequeno grupo de povos vizinhos, como estender-se por toda uma região. Em alguns casos, são redes de troca muito complexas, nas quais cada sociedade possui um papel especializado. Em outros, as relações ocorrem apenas eventualmente.

Veja abaixo alguns exemplos:

Waiwai

Os Waiwai, localizados no norte do Pará e em Roraima, sempre travaram relações de várias naturezas – matrimonial, comercial e cerimonial – com as populações vizinhas. Tanto que, atualmente, depois do acirramento do contato com os não-índios, passaram a viver junto com outros povos, dentre eles, os Katuena, os Xereu e os Hixkaryana. Nas comunidades Waiwai, apesar de todos se designarem em certos momentos como Waiwai, cada grupo não abre mão de marcar a sua diferença, acentuando, quando preciso, até mesmo posições de rivalidade.

Região das Guianas

A região das Guianas se localiza no extremo norte da América do Sul e abrange, além do Brasil, a Guiana Francesa, o Suriname, a Guiana (ex-Guiana Inglesa) e parte da Venezuela. Essa região é também conhecida como “ilha guianense”, pois é circunscrita pelos rios Amazonas e Orinoco - ligados entre si pelo canal Casiquiare - e pelo Oceano Atlântico.

Uma miríade de povos indígenas habita essa região, produzindo um mosaico de línguas e culturas que se comunicam por meio de redes de relações que tem se mantido ao longo dos séculos, mesmo sofrendo transformações bruscas. Navegando em grandes canoas, as populações guianenses do passado cruzavam rios e mares em expedições guerreiras, trocavam mercadorias, esposas, víveres e toda sorte de serviços rituais. Com a colonização européia e a drástica redução da população indígena em toda Amazônia, essas redes foram fragmentadas e redirecionadas, dando a impressão de que os grupos que lá habitam hoje em dia não passam de sombras de um passado glorioso. No entanto, as populações de língua Karib e Aruak, os pequenos grupos Tupi e os Yanomami, entre tantos outros, mantém vivas suas redes, incorporando, além das populações indígenas, espíritos xamânicos e todos os tipos de não-índios que compõem seus universos.

Alto rio Negro

A região do alto rio Negro revela vastas redes de relações entre os diversos povos indígenas que lá habitam. A começar pelo fato de que é regra nessas sociedades cada homem casar-se com uma mulher de outro grupo, que, necessariamente, deve falar uma língua diferente. Desse modo, os Tukano, os Arapaso, os Desana, os Tariana, os Tuyuka, entre tantos outros, não podem ser considerados como grupos fechados, e sim como unidades sempre abertas e dispostas à troca.

As relações entre os grupos do alto rio Negro não têm apenas o aspecto de aliança. Revelam também um complexo sistema hierárquico. Casam-se entre si aqueles que são considerados “índios do rio”, por habitarem regiões navegáveis, geralmente falantes de línguas da família Tukano ou Aruak. Por sua vez, os índios de língua Maku (“índios da floresta”), que habitam os interflúvios da região, são relegados por estes a uma posição de marginalidade. 

Os “índios do rio” não se casam com os Maku e tampouco se prestam a aprender a sua língua, alegando que estes não seguem os padrões corretos de residência e se casam com pessoas que falam a mesma língua, o que lhes soa absurdo. No entanto, ambos mantêm relações constantes. Por exemplo, os “índios do rio” fornecem peixe e mandioca aos Maku, recebendo, em troca, carne e serviços. 

Alto Xingu

A região do alto Xingu representa, no território brasileiro, o cenário das mais intensas redes de relações entre diferentes povos indígenas, agrupando sociedades de línguas Jê, Tupi, Karib, Aruak e Trumai. 

PIX_24

No alto Xingu, antigos conflitos deram lugar a relações pacíficas, que incluem trocas de objetos e rituais. Como observou o antropólogo Eduardo Galvão, na época de criação do Parque Indígena do Xingu (início da década de 1960), os diferentes povos acabaram por se especializar na confecção ou extração de um determinado item, de modo a poder ingressar na rede de trocas. Assim, os Waujá confeccionavam peças de cerâmica; os Kamayurá, arcos de madeira preta; os Kuikuro e os Kalapalo, colares de caramujo, e assim por diante.

Até hoje, são os rituais que sedimentam uma linguagem comum entre todos. No kwarup, rende-se homenagem a um chefe falecido recentemente, que se estende a outros falecidos estimados. O yawarí se realiza a propósito de mortos mais antigos e também da iniciação dos rapazes. Ambos os rituais fortalecem a articulação entre os diversos povos, marcando de modo simbólico a oposição entre a ferocidade guerreira (convidados simulam ataques à aldeia dos anfitriões) e a reciprocidade regrada (troca de objetos e serviços).