De Povos Indígenas no Brasil
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Os temas aqui apresentados podem ser conhecidos em maior detalhe nos próprios sites indígenas, como também nos sites das organizações indigenistas parceiras.
 
Os temas aqui apresentados podem ser conhecidos em maior detalhe nos próprios sites indígenas, como também nos sites das organizações indigenistas parceiras.
 
== Uma experiência que poderia dar certo ==
 
'''por Gersem Baniwa, da etnia Baniwa, professor, mestre em antropologia social pela UnB e diretor-presidente do centro indígena de estudos e pesquisa (Cinep)'''. '''Texto publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2001-2005 (págs. 193-196)'''
 
 
Enquanto experiência demonstrativa, o '''Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI)''' tinha como principal missão, além da contribuição finalística com a sustentabilidade territorial e econômica, influenciar na mudança de velhas e viciadas práticas tutelares de políticas públicas voltadas aos povos indígenas. Mas a insensatez política do governo está enterrando essa possibilidade e com isso toda a esperança de milhares de cidadãos indígenas brasileiros que acreditaram no compromisso dos chefes brancos.
 
 
O projeto é resultado de ampla articulação política dos povos indígenas da Amazônia, sob a liderança da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que desde a realização da ECO-92 no Rio de Janeiro, reivindicavam programas específicos voltados a atender suas principais demandas principalmente as de auto-sustentação e de proteção territorial.
 
 
As lideranças indígenas que participaram desde o início das discussões tinham clareza de que o projeto não deveria ser mais um entre vários que existiram, ou seja, projetos concebidos, planejados e executados pelos governos ou entidades de apoio para os povos indígenas. Queriam um projeto gerenciado com ampla e real participação dos índios e que o projeto tivesse a cara indígena nos seus princípios e critérios orientadores e nas metodologias de execução.
 
 
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'''As lideranças sabiam que sem incorporar as formas de pensar e fazer indígenas, o projeto novamente não teria êxito e sempre deixaram isso claro durante todo o processo de sua construção. Lutaram muito para que o governo brasileiro e os financiadores da cooperação internacional entendessem e aceitassem isso'''.
 
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O processo de construção foi difícil e tenso em vários momentos, mas os resultados foram animadores e as lideranças indígenas até hoje consideram o PDPI como a principal conquista do movimento indígena dos últimos dez anos. Foi com esse espírito que o PDPI, no contexto das políticas públicas voltadas para os povos indígenas, foi projetado e implantado para demonstrar através de experiências concretas as possibilidades de implementação de políticas públicas mais coerentes com as suas realidades e demandas.
 
 
Olhando para os sete anos de existência do processo PDPI (considerando 1999 como o ano em que a idéia oficialmente foi assumida pelo Ministério do Meio Ambiente) e considerando a cifra atual de 262 propostas indígenas recebidas das quais 71 foram aprovadas, pode-se arriscar três situações ou momentos distintos e significativos da experiência: as inovações inauguradas na cultura política brasileira, os dramas que assolam o projeto e as possíveis perspectivas.
 
 
 
 
===Inovações propostas pelo PDPI===
 
 
====Os índios como co-gestores====
 
A participação indígena como condição para o seu êxito é uma das principais marcas do projeto PDPI. A presença indígena foi fundamental em todas as fases e níveis do projeto. No entanto, não foi uma tarefa fácil. Primeiro, pela resistência de muitos setores do governo para que isso ocorresse. Segundo, porque muitos atores indígenas e não indígenas entenderam que o fato de garantir um representante indígena na gerência e paridade na Comissão Executiva do projeto resolveria a questão da participação indígena. Talvez pelo tamanho da briga que foi necessário travar até sua aprovação pelo governo brasileiro e pelos doadores internacionais, os índios superestimaram as duas importantes conquistas.  A Comissão Executiva é um colegiado paritário entre a representação do governo e a indígena cuja função é definir as diretrizes do projeto e avaliar as propostas apresentadas.
 
 
A participação e envolvimento indígena na construção do projeto foi uma divisão de responsabilidade e até de poder. Isso permitiu que as lideranças indígenas se sentissem como co-gestores do projeto e não como simples interlocutores/mediadores ou beneficiários.  Em grande medida, essa inovação na relação dos povos indígenas com o Estado se deve, por um lado, à sensibilidade da equipe do Ministério do Meio Ambiente através da Secretaria de Coordenação da Amazônia e muito particularmente graças à sensibilidade da secretária Mary Alegretti, que se dedicou dentro do governo à viabilidade institucional do processo e por outro lado, pela capacidade de articulação e mobilização indígena, dirigida à época pelo Euclides Macuxi, coordenador geral da Coiab. Além disso, a sensibilidade por partes dos representantes da cooperação internacional, expressa de forma mais concreta através da Cooperação Técnica (GTZ) e Financeira (KFW) Alemã, do Banco Mundial e da Cooperação Técnica Britânica (DFID), foi indispensável ao convencimento do governo brasileiro e de outros parceiros e aliados envolvidos.
 
 
Essa repartição de responsabilidade permitiu, mesmo com tantas adversidades, criar condições operacionais, conceituais, técnicas e metodológicas suficientes para alavancar o projeto rumo aos resultados preconizados. Do lado indígena, por exemplo, foram realizadas 16 oficinas micro-regionais em toda a Amazônia Legal e dois seminários regionais de consulta aos povos indígenas durante os três anos (1999-2001) de preparação e elaboração do programa.
 
 
====Capacitação====
 
O projeto definiu como princípio e critério básico de assessoria e assistência técnica às comunidades executoras dos projetos a capacitação como um processo contínuo, permanente e realizado na comunidade local. Percebeu-se que não adiantaria apenas capacitar os dirigentes ou coordenadores de projetos aprovados, sem o envolvimento da comunidade. Isso não significa que toda a comunidade tem que participar diretamente da execução das atividades, mas precisam acompanhar todo o processo de desenvolvimento do projeto.
 
 
A assessoria tem sido prestada, no limite da capacidade da equipe técnica extremamente reduzida do projeto, de forma permanente através de acompanhamento diário por intermédio do escritório central de Manaus, mas principalmente por meio de visitas de monitoria e assessoria aos projetos locais.  Monitoria técnica relâmpago de campo no âmbito de projetos governamentais não é novidade, mas o PDPI inovou na maneira como ela é realizada, dedicando o tempo necessário para que a equipe técnica compreenda suficientemente a situação para assim poder colaborar melhor na solução dos problemas. Nessa tarefa, geralmente a equipe de monitoria ou de assessoria precisa articular, mobilizar e comprometer outros parceiros locais, sejam ONGs ou agências governamentais no apoio ao projeto.
 
 
No PDPI, uma proposta apresentada por uma comunidade indígena nunca é reprovada, o que equivale dizer que sempre é possível a comunidade melhorar, reelaborar em base às próprias observações enviadas pela equipe técnica ou comissão executiva quando a proposta é devolvida à comunidade proponente para sua reformulação. Portanto, o que é importante para o PDPI não é a aprovação ou reprovação, mas, o processo de capacitação da comunidade indígena. Os processos tradicionais de monitoria e assessoria sempre se pautaram pela lógica da avaliação mecânica de dar veredicto, isto é, achar os erros ou eventualmente alguns acertos. No PDPI, o papel da assessoria não é ensinar, mas aprender, em conjunto, a encontrar soluções adequadas aos problemas apresentados e, sobretudo colaborar na capacitação da comunidade para encontrar as melhores soluções aos problemas que enfrentam. Esse me parece o principal espírito do PDPI: possibilitar o desenvolvimento de um processo de organizar as idéias (planejar), pôr em prática essas idéias (executar), monitorar as ações, avaliar os resultados e disponibilizar as experiências aos interessados.
 
 
====Equipe técnica====
 
Desde o início da implantação do PDPI, sempre houve uma grande preocupação na constituição da equipe técnica do projeto. Em primeiro lugar, o projeto havia assumido o compromisso de quebrar velhas e viciadas práticas paternalistas e etnocêntricas na relação Estado/governo e povos indígenas. Segundo, tratava-se de um trabalho junto a mais de 180 povos etnicamente diferenciados, o bastante para exigir muita sensibilidade e habilidade política, técnica e humana por parte da equipe.  Cuidadosos processos transparentes de seleção, envolvendo representantes de várias entidades, inclusive representantes indígenas, foram permitindo constituir uma equipe técnica para a Unidade de Gerenciamento (UG), competente e comprometida  com os princípios e ideários do projeto.
 
 
Nesse sentido, a equipe gerencial da UG, apesar de reduzida, sempre esteve afinada para garantir o bom desenvolvimento das ações do projeto. As ações mais importantes da UG são: capacitação das comunidades e organizações indígenas, apoio às comunidades e organizações indígenas na elaboração de projetos e acompanhar, assessorar e monitorar a implementação de subprojetos.    Arranjo Institucional Uma outra importante inovação no projeto PDPI foi o arranjo institucional construído para sua efetividade, aproveitando-se das experiências então em curso de outros programas do PPG7, principalmente dos Projetos Demonstrativos Tipo A (PDA/MMA) e do PPTAL (Funai). A internalização dos recursos financeiros da cooperação internacional (KFW) através do Banco do Brasil permitiu maior agilidade no processo (um ano), o que poderia levar até três ou quatro anos por vias tradicionais, pela necessidade de passar pelo Congresso Nacional para então chegar ao Tesouro Nacional, isso sem contar a carga burocrática que a partir do Tesouro seria imposta ao projeto.
 
 
Outra vantagem importantíssima desse procedimento é o fato de permitir que os recursos da cooperação internacional destinados a apoiar as iniciativas indígenas cheguem integralmente ao seu destino, sem possibilidade de retenção de parte dos recursos por parte do governo, exceto as taxas administrativas previamente acordadas entre as partes. Mas o fato novo nesse arranjo institucional foi a inclusão dos povos indígenas através da Coiab e de outras organizações regionais como parceiros e não somente como públicos-alvos ou interlocutores dos beneficiários.  A Coiab, por exemplo, ganhou novo status nas relações interinstitucionais estabelecidas em torno do projeto, passando a exercer responsabilidades concretas dentro e fora. A expressão dessas responsabilidades pode ser demonstrada através da indicação do gerente técnico, dos seus representantes na Comissão Executiva, mas principalmente na responsabilidade de articulação, mobilização e capacitação das comunidades indígenas para o acesso aos recursos e para o acompanhamento qualificado de todo o desenvolvimento do projeto.
 
 
Nessa relação, governo, povos indígenas e cooperação internacional, as entidades de apoio aos índios sempre tiveram importância destacada como assessorias e prestadores de assistência técnica, mas não como interlocutores ou porta-vozes, o que também é uma importante inovação.  O reconhecimento concreto das organizações, povos e comunidades indígenas como sujeitos coletivos de direitos – autonomia e cidadania – é uma marca revolucionária do PDPI no âmbito das políticas públicas. A tradição da política indigenista oficial ainda hoje vigente em vários setores do governo é pautada pelo princípio da tutela, da incapacidade e sobretudo pela dominação cultural, política e econômica dos povos indígenas.
 
 
===Os dramas que assombram o projeto===
 
 
====Descompromisso do governo====
 
Nos últimos dois anos (2004 e 2005), o projeto vem vivendo sistematicamente verdadeiros dramas para cumprir suas funções. Não há funcionários capacitados em número suficiente para exercer as funções técnicas, administrativas e financeiras da Unidade de Gerenciamento em Manaus, o que compromete a qualidade do trabalho e maior celeridade das ações.
 
 
Os processos administrativos extremamente lentos centralizados no GAP/MMA (Grupo de Apoio a Projetos) mais conhecido como “Grupo que Atrapalha Projetos” impedem o bom andamento do projeto que trabalha com um público diferenciado, composto de muitas etnias e culturas, em regiões de difícil acesso. Para agravar a situação, no ano de 2005 (até novembro, segundo informações da UG Manaus) o MMA só conseguiu repassar R$ 100.000,00 (cem mil reais) dos US$ 500.000,00 (quinhentos mil dólares) anuais assumidos contratualmente pelo governo brasileiro para a gestão do projeto (contrapartida), prejudicando seriamente as ações estratégicas do programa, como a indispensável capacitação das comunidades e organizações indígenas e das viagens de monitoração e assessoria técnica nas aldeias onde os projetos estão sendo executados.
 
 
O curioso de tudo é que a crise não tem nada a ver com a qualidade e perfil do projeto, mas com a capacidade de cumprir satisfatoriamente suas tarefas operacionais, ou seja, problema de gestão. Os principais problemas são, portanto, de ordem interno- administrativa e financeira, que no arranjo institucional ficou como contrapartida do governo brasileiro. Tudo isso não é novidade na esfera pública governamental, principalmente para setores politicamente desprivilegiados como é o caso dos povos indígenas. Foi assim desde o início do projeto.
 
 
O que assusta mesmo é a falta de compromisso político por parte do governo para com os povos indígenas, o que gera incapacidade na solução dos problemas como os do PDPI, e que pode ser estendida a outros setores indígenas como revela o aumento significativo de casos de violência contra os índios nos últimos anos.  As próprias atitudes irreconhecíveis do MMA são surpreendentes: demonstram incapacidade de honrar seus compromissos contratuais, políticos e sociais com o PDPI (todas as agências envolvidas), e conseqüentemente com os povos indígenas. Não se trata de falta de vontade política ou capacidade técnica da equipe do MMA, mas de uma política deliberada do governo. Sabemos que no MMA e, no atual governo em geral, existem muitas pessoas historicamente compromissadas com a causa indígena, mas que, pela apatia do governo em relação à temática indígena e favorecimento a interesses de elites e de outros segmentos sociais eleitoralmente mais rentáveis, se tornaram impotentes para fazer o que gostariam de fazer.
 
 
===Perspectivas===
 
Diante do quadro em que se encontra hoje o PDPI, dois cenários são possíveis: o primeiro é o de continuidade e consolidação da sua missão original de possibilitar o desenvolvimento de experiências inovadoras junto aos povos indígenas. Essas experiências são necessárias para arejar, estimular e provocar novas formas de relacionamento entre o Estado e os povos indígenas, traduzidas em ações pautadas pelo reconhecimento dos povos indígenas como protagonistas das políticas públicas destinadas a eles. Mas para isso é necessário mudar seu quadro crítico atual, recuperando a confiança de todos os atores que apostaram na capacidade inovadora do projeto, principalmente a dos povos indígenas, os principais interessados no sucesso do projeto. Isso só ocorrerá se houver uma mudança substancial e concreta na política indigenista vigente, ou seja, se a questão indígena tiver um mínimo de importância na pauta do governo.
 
 
Outro elemento importante para essa mudança é o movimento indígena, que deveria usar toda a sua capacidade e força política de mobilização e articulação para pressionar o governo a cumprir suas obrigações contratuais no caso do PDPI e ainda assumir o compromisso político e ético de construção e estabelecimento de uma nova política indigenista menos discriminatória e tutelar. É notório que o movimento indígena, através da Coiab tem procurado acompanhar, ainda que timidamente, o desenvolvimento do projeto e eventualmente tem cobrado soluções para os problemas.  Penso que poderia ser mais ofensivo e eficiente em suas estratégias de intervenção, utilizando os espaços de que dispõe, como a gerência e a Comissão Executiva e outras formas de pressão.
 
 
Nesse sentido,  a experiência dos índios com o PDPI confirma a idéia de que não basta ao movimento indígena cobrar e ocupar espaços de participação e de intervenção junto à sociedade e ao governo. Antes, precisa capacitar técnica e politicamente seus quadros e qualificar seus instrumentos de intervenção.
 
 
Outro cenário é o governo assumir de vez seu descompromisso com os povos indígenas e sua incapacidade de lidar com princípios e parâmetros inovadores no âmbito de políticas públicas o que seria uma demonstração de incapacidade de formulação e implementação de uma nova política indigenista sob os novos parâmetros da Constituição Federal e das leis internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT/ONU) que o atual governo ratificou nos seus primeiros meses de trabalho. Neste caso, a Unidade de Gerenciamento, estando em Manaus ou Brasília, não fará mais nenhuma diferença, pois o PDPI só será mais um programa etnocêntrico de governo para índios, com enormes prejuízos para o futuro no tocante à crença por parte dos índios e seus aliados e parceiros das possibilidades de construção de programas governamentais capazes de reconhecer as diversas realidades e modos de pensar e fazer indígenas.
 
 
Uma vez comprovada a incapacidade do Estado e do governo em executar políticas públicas diferenciadas aos povos indígenas garantidas pelas Leis do país, restará aos índios se qualificarem cada vez mais para assumirem tarefas estratégicas complementares destinadas a forçar a incorporação dos modelos e experiências exitosas por parte da cultura política do Estado brasileiro. No caso particular dos ideários do PDPI, diante do eminente fracasso da capacidade de gestão do governo, porque não os índios assumirem diretamente a gestão do projeto. Se o contra-argumento é a incapacidade técnica dos índios, então que se invista na capacitação dos quadros indígenas e no fortalecimento institucional das organizações indígenas. Aliás, uma das fraquezas originais do PDPI foi a pouca importância dada ao fortalecimento institucional das organizações e comunidades indígenas. Sem exagero, se poderia mesmo dizer que houve uma discriminação por parte da coordenação e das instituições envolvidas do PPG7 com os povos indígenas nessa questão. Basta considerar o apoio financeiro oferecido ao Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) pelo PPG7 para o seu fortalecimento institucional e acompanhamento do desenvolvimento do PDA e do próprio PPG7, enquanto que os povos indígenas, apesar de reiteradas solicitações, nada receberam de apoio concreto para tal fim.
 
 
O componente de fortalecimento institucional do PDPI apoiado pelo DFID que deveria atender essas necessidades, acabou sucumbindo com cortes de recursos orçamentários e limitando suas ações a um curso de gestores indígenas de projetos e alguns apoios pontuais a algumas organizações indígenas. É vergonhoso ver a Coiab, enquanto importante parceiro estratégico, viver com pires na mão, atrás de outros parceiros do PDPI e do PPG7 para conseguir passagens e outras necessidades quando precisa participar de importantes eventos ou para desenvolver atividades ligadas ao fortalecimento institucional.
 
 
Para além do PDPI, essa conduta do governo mostra os descaminhos e sinais de retrocesso do quadro indigenista atual, no qual diálogo amplo e produtivo com os povos, com as organizações e comunidades indígenas parece proibido. Os índios voltaram a ser objetos ou meros sujeitos passivos de consultas e o governo só age sob extrema pressão e quase sempre para tentar sanar prejuízos de sua imagem.
 
 
'''(janeiro, 2006)'''
 
 
 
 
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===Notas===
 
* Este artigo não tem como objetivo fazer uma análise e avaliação dos primeiros resultados alcançados do PDPI nem tão pouco dos impactos produzidos, depois de quase cinco anos de implantação. O propósito é organizar um olhar indígena pessoal sobre a experiência vivenciada no processo de sua construção e implantação, levantando alguns elementos constitutivos do processo, como as inovações produzidas, os principais desafios e perspectivas.
 
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===Outras leituras===
 
 
''<htmltag tagname="a" href="/files/file/PIB_institucional/PDPI.pdf">O Projeto para Sustentabilidade em terras Indígenas</htmltag>,'' artigo de Fábio Vaz R. de Almeida e Cássio Inglez de Souza (antropólogos), publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2001-2005
 
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== Índios somos nós ==
 
== Índios somos nós ==

Edição das 17h35min de 18 de setembro de 2017

Autoria indígena

Introdução

Simultaneamente ao processo de auto-organização política dos povos indígenas no Brasil, diversas outras ações foram por eles desencadeadas, assumindo cada vez mais novos espaços, além daqueles tradicionais: atuando na política partidária, desempenhando o papel de professores, agentes de saúde, escritores, documentaristas, pesquisadores, entre outros, sempre divulgando suas lutas e, principalmente, suas ricas culturas e modos de vida diferenciados.

A incorporação da educação escolar pelos povos indígenas - e o  conseqüente domínio da escrita - tem permitido a formação de sucessivas gerações de professores indígenas que, por sua vez, têm produzido uma série de materiais didáticos nos quais a autoria indígena é cada vez mais marcante. Produzidos tanto nas línguas nativas como em português, esses materiais são utilizados nas escolas indígenas visando uma formação escolar mais adequada de crianças e jovens.

O fenômeno da inclusão digital, que tem tomado conta de todas as regiões do país com a disponibilização de tecnologia da informação, alcança parte das comunidades indígenas que, através do acesso à rede virtual, têm produzido uma diversidade de sites de sua própria autoria.

Há de se destacar ainda duas das ações de protagonismo indígena mais interessantes nos últimos anos: são os “vídeo-makers” e os “técnicos e produtores musicais” indígenas. Formados dentro de um projeto assessorado pela organização não-governamental “Vídeo nas Aldeias”, diversos jovens indígenas têm aprendido a dominar as técnicas de áudio e vídeo e, com isso, produzido documentários de autoria nos quais, definitivamente, o “olhar indígena” sobre o mundo ganha um estatuto indiscutível. Mais recentemente, em parceria com a organização não-governamental “Som das Aldeias”, diversos jovens indígenas estão  aprendendo a manusear ilhas de edição em áudio com o objetivo de aprender a produzir seus próprios CDs musicais.

As ações de autoria indígena não se esgotam nos exemplos acima. Hoje temos diversos índios estudando em universidades e se formando como advogados, antropólogos, professores, historiadores, jornalistas, etc. Envolvidos na defesa dos direitos dos povos indígenas, estão cada vez mais ocupando espaços nessas áreas.

Os temas aqui apresentados podem ser conhecidos em maior detalhe nos próprios sites indígenas, como também nos sites das organizações indigenistas parceiras.

Índios somos nós

por Andréa França, pesquisadora de cinema e comunicação; professora do Departamento de Comunicação Social do curso de cinema (PUC/RJ).

Texto originalmente publicado no livro Povos Indígenas no Brasil 2001-2005

Assistindo a Shomotsi, Kiarãsã Yõ Sãti: o amendoim da cutia, Kinja Iakaha: um dia na aldeia, Daritidzé: aprendiz de curador, Das crianças Ikpeng para o mundo, todos realizados por videastas índios no âmbito do projeto Vídeo nas Aldeias, o que mais me surpreendeu, num primeiro momento, foi perceber que esses documentários jogam em duas frentes, dirigem-se a dois tipos de público bastante distintos: para o homem branco, ocidental, esses documentários parecem nos dizer que somos nós que nos tornamos outros, “índios”, pois os que foram esquecidos não esqueceram; para os índios, os vídeos não só permitem que eles tenham acesso, elaborem e recriem a sua própria imagem, como também mostram que eles podem ensinar coisas que outras comunidades indígenas, assim como o homem branco, não sabem. 

O projeto Vídeo nas Aldeias

Criado em 1988, Vídeo nas Aldeias é um projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil. Sua missão é apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais. Em 1998, o projeto deu início ao programa de formação de realizadores indígenas, tornando-se escola e centro de produção de cinema para povos indígenas


O que essas imagens do “outro” indígena – bem longe de nós, brancos – têm, por que elas conseguem nos falar, dirigir-se a nós, fazer-se compreender e, mais do que isso, como é possível que elas nos façam perceber nossas maneiras de ser, de nos pensarmos, como é possível que elas nos falem do nosso mundo? Essa é a pergunta que me fazia ao assistir a esses documentários, a pergunta que me motivou a escrever sobre eles também. Há uma dimensão claramente política no Projeto Vídeo nas Aldeias, e isso não porque se queira pensar o outro apenas, mas porque nos lembra que esse outro nos pensa também, que tem idéias a nosso respeito, que nos vê de um certo modo.


O que se vê nesses filmes é uma história que pensamos conhecer, mas contada em outros termos. Não é, para começar, uma história dos índios filmada pelos brancos, mas uma história dos brancos (ou dos índios) filmada pelos índios. Uma história, ou melhor, várias. E as histórias que contam esses filmes são aquelas da descoberta por nós, brancos, de toda uma estratégia lúdica, fabulatória e política dos índios, que jamais tínhamos visto sob esse ângulo. Surpreende a diversidade de rostos, de formas de representar o espaço e o tempo das aldeias, de se apropriar da imagem, de solicitar o espectador. Vemos ritos, festas, o dia-a-dia, memórias, tradições, narrativas do ontem e do amanhã, fragmentos de conversas, gestos, brincadeiras; contam-se mitos como se fossem contadas memórias pessoais; diz-se o que se diz há muito tempo, e diz-se o que nunca foi dito; conta-se muito do que contamos, mas de modo bem diferente.


“Me filma, colega, estou contente. A festa é dura, mas eu venci”, diz um índio xavante que se aproxima da câmera depois do ritual de provação para adquirir força e poder de cura; “Ele vai poder cuidar de mim um dia (...) vem. Filma ele. Pode filmar”, pede um outro índio depois de pintar o filho para iniciá-lo no mesmo ritual, em O aprendiz de curador (2003); “eu sempre quis que tivéssemos essa câmera. Sempre peço pra me filmarem. Não tenho vergonha. Sempre dancei assim, conheço bem a dança do amendoim, como antigamente. É assim que nós velhos fazemos. Pronto, terminei”, declara uma velha, “tomando” a cena em O amendoim da cutia (2005), filme que detalha o cotidiano da aldeia Panará na colheita do amendoim.

Afirmação livro dos corpos

Existe uma afirmação livre dos personagens como condição do cinema. Nesses filmes, os corpos se afirmam igual e livremente, se mostram de um certo modo, tomam a cena para “encenar” o que acreditam que seja bom para eles; existe sempre a possibilidade de entrar em cena para fazer a “sua” cena, o “seu” filme. Em Shomotsi (2001), um dos filhos do personagem que dá título ao documentário, entra de repente no plano em que o pai passa urucum no rosto e diz, olhando para o espelho e passando também urucum: “chega, não tem mulher mesmo!” e sai correndo; ou ainda, durante a refeição de Shomotsi com a família na mata, o outro filho diz para a câmera: “E lá estamos nós aparecendo...”. Para além da intimidade e da cumplicidade entre aquele que filma e aqueles que são filmados, patente em todos os planos de cada um desses documentários, existe um desejo de filme que não está somente do lado dos índios videastas, mas do outro lado da câmera também: há um desejo de filme tão grande quanto o desejo daquele que filma e, ao tornar esse desejo visível, atuante, falante, essas imagens criam um cinema absolutamente igualitário, um cinema onde cada corpo - seja ele da planta, da concha, do jacaré, da cutia, da criança, do velho - tem o mesmo valor que um outro para a câmera, todos eles igualmente diferentes, importantes e únicos. 


Em Um dia na Aldeia (2004), filme que detalha o cotidiano da aldeia Cacau, na Amazônia, um grupo de índias volta da colheita de wesi (“os brancos falam açaí”), com seus bebês acoplados ao corpo enquanto caminham e, de repente, ouvimos uma delas: “estão falando de mim? Todas somos muito bonitas. Eu não sou gorda não, vou emagrecer”. E todas riem muito. Essas imagens nos falam porque o espectador tem a possibilidade de avaliar igualmente cada personagem, seus gestos, suas histórias, suas qualidades, seu senso de humor, sua entrada em cena. O cinema é uma experiência compartilhada e de afirmação (da língua, dos ritos, da comida, enfim, do cotidiano de cada aldeia).   


Em Das Crianças Ikpeng para o Mundo (2002), quatro crianças apresentam sua aldeia, sua comida, seu cacique, e convidam o espectador - que, para elas, serão outras crianças índias, como elas - a fazer o mesmo, interrogando-o, solicitando-o. A força do dispositivo montado aqui é que essas imagens são concebidas como uma espécie de vídeo-carta, em que, se o “remetente” são as crianças da aldeia Ikpeng, o “destinatário” poderá ser qualquer um que tenha interesse – cinematográfico, antropológico, etnográfico –, qualquer um que tenha curiosidade pelas histórias dos outros. “Todo documentário se interessa pela ficção dos outros”, disse Jean-Luc Godard, sintetizando em larga medida a proposta desses filmes. O destinatário se bifurca então entre um destinatário-mesmo, empírico, fixável (as crianças de outras aldeias) e um destinatário-outro, distante, nômade, um outro sempre outro. Sem dúvida, trata-se de um documentário que soube encontrar as crianças certas e, mais do que isso, fez da arte do encontro uma possibilidade de que o filme pudesse ser de fato compartilhado, afirmado e vivido por elas.


Num certo plano, o menino Kamatxi come mangaba. Ele anda pela mata, vê a fruta no chão, se agacha para pegá-la e volta à posição em pé. A câmera segue os movimentos do menino, vai até a fruta no chão, observa de perto seu gesto de limpá-la e volta ao rosto do menino que, de perfil, engole a fruta e a mastiga, segurando o riso enquanto olha enviesado para a câmera. Ouvimos as risadas em off das outras crianças que o observam. A existência de uma platéia (que ri, comenta, brinca) na cena é uma outra modalidade da afirmação livre dos corpos; há nesse sentido um jogo de reflexos que reitera dois públicos distintos – o homem branco e o índio – a ocupar simultaneamente a posição de espectador. Lembremos do plano cômico e inusitado do chefe da aldeia Panará, em O amendoim da cutia, que simula estar transando com uma bananeira como se esta fosse uma índia; ele mexe o corpo, rebola, agarra a planta, descreve a chegada do gozo enquanto, em volta dele, as índias o observam, interrompem a colheita do amendoim e dão boas risadas. Público, como nós, as índias produzem uma espécie de rebatimento em espelho do índio-espectador no branco-espectador. Índio somos nós.

A identidade e a realidade no vídeo

A proposta de exprimir uma identidade já dada ou uma realidade estanque que pré-existiria ao filme, tão presente no discurso antropológico, etnográfico ou nos documentários expositivos clássicos, não tem lugar nesses filmes. Os olhares dos índios para a câmera, seus gestos, suas expressões, seus sorrisos, suas falas, são momentos intensos, fortes, justamente porque mostram a consciência de que se trata de um jogo entre quem filma e quem é filmado, um jogo em que a performance dos índios está ligada a fatores que são produzidos pelo documentário, para o documentário e que não existiriam sem ele.


É verdade que toda uma corrente do cinema documentário moderno – o cinema direto – rompeu com a tendência de pensar os filmes como representação de significações pressupostas do real. E, como essa corrente, esses filmes partem do pressuposto de que a filmagem produz um outro contexto, cria acontecimentos novos. Não basta ligar a câmera diante de alguma coisa e achar que a “realidade” virá à tona. Neste aspecto, creio ser fundamental o trabalho desenvolvido nas oficinas de formação do Vídeo nas Aldeias, trabalho este que, como explicam os coordenadores do Projeto, Mari Corrêa e Vincent Carelli, reflete a opção por um estilo de filme, uma linguagem que implica experimentação, pesquisa. Não podemos esquecer, como enfatizam os coordenadores, que os realizadores são aprendizes e que num processo de formação, a interferência ou a influência dos instrutores é real e, neste caso, plenamente assumida. A câmera aqui instiga e cria o fato que ela está documentando, rompendo de forma radical com a forma de fazer filmes sobre índios, sobretudo nos documentários etnográficos mais clássicos. Trata-se de um cinema cujo dispositivo é extremamente poroso, para que cada um possa percebê-lo como próximo, ao alcance de sua mão.


Há toda uma força do gesto que representa o projeto Vídeo nas Aldeias, força esta que é anterior às histórias que tais filmes contam. Creio que esse gesto precisaria ser bem mais compreendido, levado muito mais a sério, no seu engajamento, na sua poesia, nas indagações éticas e estéticas que traz consigo. São filmes cujos realizadores estão estreitamente integrados a tudo que se passa a todo o processo de produção; pesquisam e escolhem seus personagens, filmam e editam suas narrativas, suas relações com o corpo, com a comida, com o trabalho, supervisionados por instrutores que questionam suas escolhas, discutem, sugerem, acolhem e aprendem. Poderíamos dizer, sem medo de exagerar, que a grande questão que atravessa Vídeo nas Aldeias é: como propor aos índios um projeto através do qual os documentários feitos se tornem um documentários “deles”?


Porque dar a palavra ao outro (pobre, índio, minorias) para que eles se exprimam não basta, dizem esses filmes. É necessário que esses personagens reais sejam capazes de fabular, inventar, fazer emergir a imaginação no mundo da razão. Diria, por isso mesmo, que estes filmes estão para além das zonas reservadas aos esquematismos da montagem, dos discursos e dos ideais de verdade. O projeto Vídeo nas Aldeias, existindo desde o final dos anos 80 – um tempo longo, que implica numa ética do rigor e da responsabilidade –, pode reivindicar a seriedade de um cinema que suspende o juízo sobre a natureza real ou encenada do mundo, e não almeja uma verdade dos índios – pois sabemos que esta habita no horizonte como promessa, raramente como fato. Escutemos pois o que dizem os Ikpeng, os Panará, os Ashaninka, os Xavante, todos esses que viemos a chamar, por esquecimento, “índios”, como quem diz “os outros”, quando fomos nós que, a depender desses filmes, nos tornamos outros. (junho, 2006)

A escrita e a autoria fortalecendo a identidade