De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Eliane Motta, 1984

Mudanças entre as edições de "Povo:Macuxi"

Autodenominação
Pemon
Onde estão Quantos são
RR 37250 (Siasi/Sesai, 2020)
Guiana 9500 (Guiana, 2001)
Venezuela 89 (XIV Censo Nacional de Poblacion y Viviendas, 2011)
Família linguística
Karib
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|Mulheres macuxi na Maloca Gavião. Foto: Vincent Carelli, 1986.
 
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Edição das 17h51min de 9 de novembro de 2017

Introdução

Habitantes de uma região de fronteira, os Macuxi vêm enfrentando desde pelo menos o século XVIII situações adversas em razão da ocupação não-indígena na região, marcadas primeiramente por aldeamentos e migrações forçadas, depois pelo avanço de frentes extrativistas e pecuaristas e, mais recentemente, a incidência de garimpeiros e a proliferação de grileiros em suas terras. Protagonizaram nas ultimas décadas, juntamente com outros povos da região, uma luta incessante pela homologação da TI Raposa Serra do Sol, ocorrida em 2005, e posteriormente pela desintrusão dos ocupantes não-indios, finalmente resolvida com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, que confirmou a homologação e a retirada dos ocupantes não-índios.

Identificação e localização

Maloca Perdiz. Foto: Mario Giovannoni, 1983.
Maloca Perdiz. Foto: Mario Giovannoni, 1983.

Os Macuxi, povo de filiação lingüística Karíb, habitam a região das Guianas, entre as cabeceiras dos rios Branco e Rupununi, território atualmente partilhado entre o Brasil e a Guiana. A designação macuxi contrasta com as dos povos vizinhos – os Taurepang, os Arekuna e os Kamarakoto – também falantes de língua pertencente à família Karíb e muito próximos, social e culturalmente, dos Macuxi. Tomados em conjunto, formam uma unidade étnica mais abrangente, os Pemon, termo que, por sua vez, se contrapõe a Kapon, designação que engloba os Arakaio – conhecidos em área brasileira pela designação Ingarikó – e os Patamona, seus vizinhos ao norte e nordeste, respectivamente. O conjunto dessas designações étnicas e os diversos níveis contrastivos formam um sistema de identidades que, entre os povos guianenses, singulariza esses grupos da área circum-Roraima.

Em 2004, a população macuxi no Brasil era estimada em torno de 19 mil pessoas e cerca de metade dessa cifra era encontrada na vizinha Guiana, ocupando áreas de campo e de serras no extremo norte do estado de Roraima e o norte do distrito guianense de Rupununi.

O território macuxi estende-se por duas áreas ecologicamente distintas: ao sul, os campos; ao norte, uma área onde predominam serras em que se adensa a floresta, prestando-se assim a uma exploração ligeiramente diferenciada daquela feita pelos índios da planície. A dimensão desse território pode ser estimada em torno de 30 mil a 40 mil km2.

A distribuição espacial da população macuxi faz-se em várias aldeias e pequenas habitações isoladas. Estima-se que existam 140 aldeias macuxi no Brasil, mas não há dados precisos sobre o seu número. Para a área guianense, a estimativa é de cerca de 50 aldeias no interflúvio Maú(Ireng)-Rupununi [dados de 2004].

Maloca do Contão. Foto: Comissão Rondon, s/d.
Maloca do Contão. Foto: Comissão Rondon, s/d.

Apresentando notável constância, essa distribuição espacial dos Macuxi tem permanecido inalterada ao longo de uma extensão contínua de terras desde pelo menos os primeiros registros historiográficos disponíveis para a região do vale do Rio Branco, no século XVIII.

O território macuxi em área brasileira hoje está recortado em três grandes blocos territoriais: a TI Raposa Serra do Sol, a TI São Marcos, ambas concentrando a grande maioria da população, e pequenas áreas que circunscrevem aldeias isoladas no extremo noroeste do território macuxi, nos vales dos rios Uraricoera, Amajari e Cauamé.

A mais populosa é a TI Raposa Serra do Sol, na porção central e mais extensa de seu território. Essa área é habitada por uma população global estimada em 10 mil habitantes distribuídos em 85 aldeias cuja grande maioria é Pemon [dados de 2004].

As fronteiras étnicas na região são bastante tênues, em função de arranjos residenciais entre parentelas cognáticas integradas por homens de diferentes procedências, sobretudo em aldeias nas zonas de intersecção entre as etnias, em que há agrupamentos compostos por famílias extensas mistas entre Macuxi e Ingaricó; ou entre Macuxi e Patamona: os Macuxi e os Wapichana, entre outros.

A TI São Marcos estende-se contígua à TI Raposa/Serra do Sol. Trata-se de uma área onde estão localizadas 24 aldeias macuxi, com uma população total estimada em 1.934 pessoas (Funai, 1996), que é em sua grande maioria Macuxi.

Histórico do contato

Aldeamentos

Chefe Makuxi na Maloca Limão. Foto: Arquivo dos Beneditinos, 1923.
Chefe Makuxi na Maloca Limão. Foto: Arquivo dos Beneditinos, 1923.

A ocupação colonial portuguesa do vale do rio Branco data de meados do século XVIII. Foi uma ocupação marcadamente estratégico-militar. Nessa região, limítrofe às possessões espanhola e holandesa nas Guianas, os portugueses procuraram impedir possíveis tentativas de invasão a seus domínios no vale amazônico, construindo, em 1775, o forte São Joaquim, na confluência dos rios Uraricoera e Tacutu, formadores do Branco, via de acesso às bacias dos rios Orinoco e Essequibo.

A estratégia utilizada pelos portugueses para assegurar a posse do vale baseou-se no aldeamento dos índios efetuado pelo destacamento do forte. Para tanto, os militares portugueses distinguiam dentre a população indígena os Principaes e suas Nações, buscando convencê-los, por meio de armas e presentes, das vantagens e desvantagens de trazerem as gentes de suas respectivas Nações para formar os aldeamentos.

As informações disponíveis sobre o contato com os Macuxi nesse período são raras e fragmentárias. Surpreendentemente, das diversas etnias então aldeadas, os Macuxi comparecem em pequeno número: temos notícia de apenas dois Principaes Macuxi: Ananahy em 1784 e Paraujamari em 1788, que chegaram a aldear-se, trazendo pequenos grupos consigo. No entanto, não permaneceriam por muito tempo nos aldeamentos. Logo após estas notícias, em 1790, Parauijamari seria acusado de liderar uma grande rebelião, quando a maior parte dos índios aldeados fugiu e os remanescentes foram espalhados por outros aldeamentos portugueses no rio Negro.

Tal revolta poria fim à política oficial de aldeamento e não seriam empreendidas novas tentativas de colonização naquela área ainda no século XVIII. Porém, são muitas as evidências de que as expedições de recrutamento forçado da população indígena permaneceram atuantes, motivadas por outros interesses que se estabeleceriam na região, causando grande impacto sobre a demografia e a territorialidade dos Macuxi.

Extrativismo

Uma nova fase do contato, que viria afetar mais drasticamente o conjunto da população Macuxi, teria início no século XIX, com a expansão da exploração da borracha na Amazônia e, em especial, com a extração do caucho e da balata na matas do baixo rio Branco. A arregimentação dos índios destinava-se, principalmente, à área do rio Negro, mas também houve “descimentos” para o próprio vale do rio Branco, onde eram engajados como força de trabalho no extrativismo.

Tais empreendimentos de caráter privado imprimiram a tônica das relações interétnicas no período. Embora o governo imperial demonstrasse uma constante preocupação quanto à implementação de uma política indigenista oficial nessa zona de fronteira, os registros administrativos disponíveis revelam a sua grande debilidade nesse campo. Já nas últimas décadas do século XIX, em particular após a República, que veio a conferir maior autonomia à administração local, ao aproximar-se o auge do ciclo da borracha os regionais passavam a ser considerados colaboradores necessários para a colonização regional: detentores do comércio e dos meios de comunicação com o interior, os regatões [aqueles que trocavam produtos manufaturados pelos de extração diretamente junto à população indígena e regional] ali reinavam.

Pecuária

Parece haver uma estreita conexão entre o extrativismo no baixo rio Branco e a pecuária que viria a se consolidar no curso alto desse rio: o capital extrativista viria a financiar a pecuária. Em contrapartida, a pecuária incipiente estabelecida nos campos do alto rio Branco favorecia o recrutamento da força de trabalho dos índios na região, a qual não se limitava à extração, mas compreendia todas as atividades correlatas, em particular a navegação do rio. Havia ampla margem de liberdade para os regatões e quaisquer outros empresários atuantes na área para penalizar os índios e forçá-los ao trabalho. Não havia instância que os penalizasse pela escravidão a que, na prática, submetiam os índios.

Correlata ao trabalho forçado, a migração igualmente forçada singulariza esse momento histórico, uma vez que as migrações entre a população indígena no alto rio Branco decorriam muito mais da expulsão da terra pelo avanço da pecuária do que pelo deslocamento compulsório da mão-de-obra.

Na virada para o século XX, a engrenagem de recrutamento de mão-de-obra indígena montada nas décadas anteriores persistia, apesar de decadente. Aldeias abandonadas e movimentos de fuga provocados pela chegada dos brancos não foram somente registrados pelos cronistas do rio Branco, mas foram igualmente objeto de registro por parte dos Macuxi e permanecem ainda hoje em sua memória, marcados por um momento dramático nas diversas narrativas que versam sobre sua história política.

Organizações indígenas

Assembléia de tuxauas macuxi na maloca Boca da Mata. Foto: Eliane Motta, 1984.
Assembléia de tuxauas macuxi na maloca Boca da Mata. Foto: Eliane Motta, 1984.

A liderança política tradicional entre os Macuxi, uma posição apenas proeminente, assumida por um indivíduo na articulação de um grupo local, diante da violência abrupta da intensificação do contato com os regionais nos primeiros anos do século XX converteu-se em instância catalisadora das demandas de regionais e de agentes indigenistas (missionários ou funcionários públicos) à população indígena, dispersa em pequenos grupos locais.

Nos anos 1970, período marcado pela forte intensificação e ampliação do contato, algumas lideranças políticas de grupos locais macuxi passaram a se destacar, ao exercerem funções privilegiadas de intermediação no estabelecimento das relações entre a população indígena habitante nas aldeias e os agentes da sociedade nacional.

Intermediadas por esses chefes locais, as agências indigenistas converteram-se em fontes de bens industrializados para os índios alternativas aos fazendeiros e garimpeiros. Em razão da posição diferencial dos agentes indigenistas oficiais e dos missionários católicos diante dos regionais – situados em pólos antagônicos na disputa pelo reconhecimento dos direitos territoriais indígenas – a estratégia utilizada pelos religiosos, e em seguida pela Funai, para ampliar sua influência sobre os índios foi a de minar os vínculos clientelistas que os ligavam aos regionais. Até então, os artigos industrializados eventualmente fornecidos pelos regionais para os índios eram contabilizados pelos primeiros numa listagem de débitos a serem cobrados quando se fizesse necessária a força de trabalho indígena. A fim de minar o sistema, os missionários trataram de suprir, em parte, os artigos industrializados demandados pelos índios, pressionando-os para que quitassem as dívidas contraídas com seus respectivos “patrões”.

A maneira como tal “substituição” de dívidas foi operada deu-se através da promoção de reuniões anuais com as lideranças indígenas locais, as assim chamadas “assembléias de tuxauas”, patrocinadas pela Diocese de Roraima a partir de 1975, em que se discutiam as condições e os “méritos” de cada comunidade para acessar os bens disponíveis pelos missionários. Cabe notar ainda que as lideranças políticas presentes às assembléias provinham das aldeias onde os missionários concentravam sua atuação, isto é, na região das serras: recorte concebido em oposição ao lavrado e, portanto, mais distante das sedes das “fazendas” e dos povoados.

Foram desenvolvidos projetos ligados à pecuária e à distribuição de alimentos, os quais não foram bem sucedidos e suscitaram uma série de conflitos, disputas e acusações de favorecimento indevido entre as diversas lideranças indígenas, dando ensejo ao surgimento de um novo tipo de organização indígena, concebida também inicialmente pelos missionários, que consistia na formação de “conselhos regionais”, isto é, instâncias supra- aldeãs, descoladas das comunidades locais, articulando lideranças Macuxi, Ingaricó, Taurepang, Wapixana e Yanomami.

Durante a assembléia dos tuxauas ocorrida em janeiro de 1984, foram criados sete conselhos nas seguintes regiões: Serras, Surumu, Amajari, Serra da Lua, Raposa, Taiano e Catrimani. Sua incumbência era gerir as relações externas às comunidades indígenas, tanto no plano das relações com a sociedade regional, como na formulação e direcionamento dos projetos patrocinados por diferentes agências. O mais atuante foi sem dúvida o conselho da região das serras, que funcionou junto aos locais onde ocorreram conflitos agudos com os regionais, encaminhando denuncias às autoridades governamentais.

Como resultado dos conselhos regionais, formou-se uma coordenação geral, sediada em Boa Vista, momento em que se pode falar precisamente do surgimento do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Os membros dessa coordenação são eleitos pelo voto aberto dos conselheiros regionais, respeitando-se um esquema de rodízio de lideranças.

Ao longo desse processo, outras organizações vêm sendo criadas nessa região, reunindo segmentos indígenas favoráveis à homologação da TI Raposa/Serra do Sol em área contínua [a esse respeito, ver seção O caso da Raposa], como é o caso do próprio CIR (Cujo atual coordenador é Macuxi), da APIR (Associação dos Povos Indígenas de Roraima), da OPIR (Organização dos Professores Indígenas de Roraima) e da OMIR (Organização das Mulheres Indígenas de Roraima). Outras organizações são manifestamente contrárias à demarcação em área contínua, tais como a SODIUR (Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima), a ARIKON (Associação Regional Indígena dos Rios Kinô, Cotingo e Monte Roraima), ALIDICIR (Aliança para o Desenvolvimento das Comunidades Indígenas de Roraima) e AMIGB (Associação Municipal Indígena Guàkrî de Boa Vista).

O caso da Raposa

Imagem extraída do folheto de divulgação do evento Makunaima Vive na Raposa Serra do Sol, ocorrido em Brasília em novembro de 2004. Foto: acervo Conselho Indígena de Roraima.
Imagem extraída do folheto de divulgação do evento Makunaima Vive na Raposa Serra do Sol, ocorrido em Brasília em novembro de 2004. Foto: acervo Conselho Indígena de Roraima.

A TI Raposa Serra do Sol, identificada pelo órgão indigenista em 1993 em área contínua, foi homologada pelo presidente da República em abril de 2005 com 1.747.460 ha. Atualmente, o principal mote de reivindicações dos Macuxi (e outros povos que a habitam) é a desintrusão da área e a retirada das fazendas de não-índios que permanecem em seu interior.

No início do século XX, a área hoje denominada Raposa Serra do Sol, no nordeste de Roraima, esteve envolvida em disputas fronteiriças entre o Brasil e a Grã-Bretanha. A região entre os Rios Cotingo (que corta Raposa–Serra do Sol) e Rupununi (no território da Guiana) constituía o chamado Contestado. Em “O Direito do Brasil”, Joaquim Nabuco, nosso representante nas difíceis negociações fronteiriças, ressalta que a lealdade dos Tuxáua da região ao País, apesar da frágil presença colonial à época, foi fundamental para assegurar as nossas atuais fronteiras nos Rios Maú e Tacutú. No mesmo sentido, o Marechal Rondon já dizia que os índios são as “muralhas dos sertões”, e que a implementação pelo governo de políticas positivas frente às suas demandas, inclusive a demarcação das suas terras, é a melhor receita para a tranqüilidade das fronteiras.

Também é bom ressaltar, como as referências históricas bem o indicam, que a ocupação indígena em Raposa Serra do Sol precede em séculos à colonização. Os primeiros colonos se imbricaram entre as malocas, mas os índios foram sendo crescentemente pressionados por novas ondas migratórias estimuladas por políticas oficiais do então Território Federal e do atual estado de Roraima.

Depois de anos de espera por parte dos índios e de vários estudos, em que vicejaram, inclusive, propostas para retalhá-la, a identificação oficial da TI Raposa Serra do Sol foi concluída em 1993, com a publicação no Diário Oficial da União das coordenadas geográficas da área proposta para demarcação. Trata-se da também denominada “área contínua”, que se estende das fronteiras com a Guiana e a Venezuela (leste e norte) aos limites com a TI São Marcos (oeste) e o Rio Tacutú (sul). Desta área contínua a identificação excluiu o entorno da Vila de Normandia, anteriormente convertida em município, formando um enclave junto à fronteira com a Guiana.

Com a posse do presidente Fernando Henrique, o ministro Jobim paralisou as demarcações por mais de um ano, enquanto se discutia o Decreto 1775 e decorria o prazo que ele instituiu para a audiência a terceiros durante o processo administrativo de demarcação. Com a edição do decreto, houve mais de uma centena de contestações aos limites propostos para Raposa Serra do Sol e, ao final do referido prazo, o ministro da Justiça expediu, em 20/12/96, um “despacho” em que rechaçou as contestações havidas e reconheceu a constitucionalidade do laudo antropológico que embasou a proposta de demarcação. Mas, em vez de declará-la como Terra Indígena, alegou “situações de fato”, configuradas por núcleos de ocupação urbana e rural que julgou estarem “já consolidados”, que deveriam determinar “ajustes” nos limites propostos.

Os “núcleos urbanos e rurais consolidados” referidos no despacho ministerial consistem ou implicam no seguinte: a criação do Município de Uiramutã, ocorrida após a identificação oficial da Terra Indígena; a presença de outras quatro vilas no centro-norte da área proposta; a validade de alguns títulos de propriedade incidentes sobre a sua parte sul, além da presença de rizicultores, pecuaristas e garimpeiros que invadiram a área nos últimos anos; o livre trânsito de não índios pelas estradas que dão acesso a estas localidades; a incidência do Parque Nacional do Monte Roraima – uma Unidade de Conservação federal – sobre a área demarcada.

Outras leituras

Para outras informações sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol, acesse o especial preparado pelo ISA

O Estado de Roraima preferiu desconsiderar o caráter indígena dessas terras, mesmo após a sua identificação oficial, e promoveu a criação do(s) Município(s) de Uiramutã (e de Pacaraima, na TI São Marcos) no contexto de um enfrentamento deliberado às propostas de demarcação. A sua iniciativa confrontou a identificação da área feita pela Funai e ignorou a via da negociação, com o Estado defendendo a demarcação em “ilhas”, que reconheceria direitos aos índios apenas sobre as imediações de cada maloca, inviabilizaria a sua reprodução física e cultural garantida pela Constituição e instituiria um regime de conflito permanente.

O ministro não implementou o seu despacho na forma de uma portaria com os limites da área “ajustados”, deixando a pendência para os seus sucessores. No âmbito da Funai, a materialização das indicações do ministro em um novo memorial descritivo se revelou impossível, pois implicaria na exclusão de várias aldeias da área a ser demarcada. Com o passar do tempo, a atividade garimpeira declinou, os tais “núcleos consolidados” foram se esvaziando e parte dos “fazendeiros” fez acordos com comunidades específicas e se retirou da área.

Constatando que ocupações anteriores, tidas como “consolidadas”, se esvaziavam, e que novas ocupações ilegais, já que posteriores à identificação, passaram a ameaçar a integridade da Terra Indígena, a Funai re-encaminhou ao ministro da Justiça, Renan Calheiros, a proposta de “área contínua”. Ele assinou a portaria declaratória (nº 820, de 11/12/98), ressalvando que o governo federal daria em seguida soluções apropriadas para as “situações de fato” apontadas por seu antecessor, mas deixou o cargo sem providenciá-las.

A portaria ministerial foi contestada pelo estado de Roraima junto ao Superior Tribunal de Justiça, que, inicialmente, expediu uma liminar obstando a homologação da área, mas não a sua demarcação. No período de vigência da liminar, a Funai realizou trabalhos de demarcação física e de digitalização dos limites, facilitados pelas fronteiras naturais e internacionais privilegiados na proposta de “área contínua”, instruindo o processo para a homologação presidencial. Afinal, o STJ não acolheu o mandado de segurança impetrado pelo Estado, superando o último óbice formal à homologação. Esta decisão alcançou, ainda, o mandato do Presidente Fernando Henrique, que, no entanto, preferiu não editar o decreto homologatório, deixando a pendência para o governo Lula.

Veja abaixo a Cronologia do reconhecimento oficial da TI Raposa/ Serra do Sol, incluindo os dois anos de gestão do governo Lula.

1917– Governo do Amazonas edita a Lei Estadual nº 941, destinando as terras compreendidas entre os rios Surumu e Cotingo para a ocupação e usufruto dos índios Macuxi e Jaricuna.

1919– Serviço de Proteção ao Índio (SPI) inicia a demarcação física da área, que estava sendo invadida por fazendeiros. O trabalho, entretanto, não é finalizado.

1977– Presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) institui um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para identificar os limites da Terra Indígena, que não apresenta relatório conclusivo de seus trabalhos.

1979– Novo GTI é formado. Sem estudos antropológicos e historiográficos, propõe uma demarcação provisória de 1,34 milhão ha.

1984– Mais um Grupo de Trabalho Interministerial é instituído para identificação e levantamento fundiário da área. Cinco áreas contíguas, Xununuetamu, Surumu, Raposa, Maturuca e Serra do Sol, são identificadas, totalizando 1,57 milhão ha.

1988– Outro GT Interministerial realiza levantamento fundiário e cartorial sem chegar a qualquer conclusão sobre o conjunto da área.

1992/1993– Funai decide reestudar a área, formando pela última vez novos Grupos de Trabalho Interministerial.

1993– Parecer dos GTs, em caráter conclusivo, é publicado no Diário Oficial da União no dia 21 de maio, propondo ao Ministério da Justiça o reconhecimento da extensão contínua de 1,67 milhão ha.

1996– O presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, assina em janeiro o Decreto 1.775, que introduz o princípio do contraditório no processo de reconhecimento de TIs, permitindo a contestação por parte dos atingidos. São apresentadas 46 contestações administrativas contra a TI Raposa/ Serra do Sol por ocupantes não-índios e pelo governo de Roraima. O então ministro da Justiça, Nelson Jobim, assina o Despacho 80, rejeitando os pedidos de contestação apresentados à Funai, mas propondo uma redução de cerca de 300 mil ha da área, com a exclusão de vilarejos que serviram como antigas bases de apoio à garimpagem, estradas e fazendas tituladas pelo Incra, que representa a divisão da área em cinco partes.

1998– O ministro da Justiça, Renan Calheiros, assina o Despacho 050/98, que revogou o Despacho 080/96, e a Portaria 820/98, que declara a TI Raposa/ Serra do Sol posse permanente dos povos indígenas.

1999– Governo de Roraima impetra mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ), com pedido de anulação da Portaria 820/98. Concedida liminar parcial ao mandado de segurança do governo de Roraima.

2002– STJ nega pedido do Mandado de Segurança 6210/99, impetrado pelo governador de Roraima e que solicitava a anulação da Portaria 820/98.

2003– O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, anuncia, em diversos momentos ao longo do ano, que a homologação da TI é iminente.

2004– Em março, juiz da 1ª Vara Federal de Roraima suspende os efeitos da demarcação nos núcleos urbanos e rurais consolidados. Em maio, Desembargadora federal determina a exclusão da faixa de fronteira (150 Km), o que elimina toda a Terra Indígena. Em agosto, tanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) negam pedidos do Ministério Público Federal e da Advocacia Geral da União (AGU) para derrubar a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) que prejudica a homologação da TI Raposa/Serra do Sol.

2005– No dia 13 de Abril, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, assina a Portaria n° 534, revogando a Portaria ° 820/98, que havia estabelecido a demarcação da TI e estava sendo questionada por liminares. O novo ato normativo exclui da área a sede do município de Uiramutã, equipamentos públicos (como escolas e linhas de transmissão de energia elétrica), o 6° Pelotão Especial de Fronteira do Exército e o leito das estradas estaduais e federais localizadas na área.

2006– O ano é marcado por uma série de ações na Justiça, por meio das quais alguns fazendeiros buscam permanecer no interior da Terra Indígena, atrasando judicialmente o processo de pagamento de bem feitorias e a desintrusão da área. Em abril, o STF nega o pedido de suspensão da demarcação da Raposa Serra do Sol.

2007– Em maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Britto, mandou sobrestar, até julgamento do mérito, a desocupação da área ocupada por Itikawa Indústria e Comércio, Ivalcir Centenaro, Luiz Afonso Faccio, Nelson Massami Itikawa e Paulo César Quartiero, em decorrência de mandado de segurança interposto pela Indústria Itikawa e outros. Em junho, o STF indefere por unanimidade o Mandado de Segurança 25.483-1, possibilitando a retomada dos trabalhos de desintrusão.

Organização social

Mulheres macuxi na Maloca Gavião. Foto: Vincent Carelli, 1986.
Mulheres macuxi na Maloca Gavião. Foto: Vincent Carelli, 1986.

As aldeias na floresta caracterizam-se por casas comunais em que convivem distintos grupos domésticos, compostos por famílias extensas ligadas entre si por laços de parentesco. Já na savana geralmente encontram-se casas dispersas que abrigam grupos domésticos cuja composição é análoga àquela acima descrita; nesse sentido, a aldeia na savana configuraria um desdobramento da casa comunal típica da floresta.

Embora as fontes do século XIX se refiram à existência de aldeias Macuxi configuradas em casas comunais que apresentam baixa densidade demográfica, isto é, cerca de trinta a sessenta pessoas (R. Schomburgk, 1922-23; R.H. Schomburgk, 1903), verifica-se atualmente a disseminação de aldeias compostas de pequenas casas que abrigam famílias extensas, reunindo uma população mais numerosa, estimada entre cem e duzentos habitantes.

O desenho da aldeia macuxi não demonstra de imediato ao observador sua morfologia social. As casas parecem distribuir-se aleatoriamente, porém um olhar mais atento percebe que, via de regra, elas se dispõem em conjuntos que correspondem a parentelas. Estas formam unidades políticas cuja interação perfaz a vida social e política da aldeia.

A aldeia macuxi consiste assim basicamente em uma ou várias parentelas interligadas por casamentos. Dada a tendência uxorilocal [após o casamento, o casal vai morar com a família da moça] que se verifica nas sociedades dessa região, residência e parentesco são instâncias associadas que, articuladas, dão origem à chefia. Nesse sentido, o grupo local organiza-se em torno da figura de um líder-sogro de cuja habilidade política na manipulação dos laços de parentesco depende sua existência. Com o declínio do prestígio do líder-sogro ou sua morte, o grupo local tende a tomar outras formas ou desfazer-se. Mesmo neste último caso, porém, a aldeia persiste como referência histórico-geográfica.

A política matrimonial macuxi tende a favorecer reuniões endogâmicas, ou seja, procura-se casar dentro das parentelas que compõem a aldeia. Entretanto, pode-se verificar uma alta incidência de casamentos entre aldeias que estreitam suas relações, configurando conjuntos regionais.

Como ocorre entre os outros grupos Pemon, para os Macuxi a relação entre cunhados – yakó – é marcada por grande liberdade e igualitarismo, enquanto, inversamente, a relação sogro-genro – pái-to – pressupõe evitação, subordinação e consideráveis obrigações materiais do genro para com o sogro.

Na aldeia, a liderança política emerge assim do jogo das parentelas em que prevalecem as relações acumuladas de afinidade, isto é, o líder é aquele que detém uma rede mais ampla de afins e, portanto, aliados políticos. Hoje, há que se considerar ainda o fator decisivo que representa a atuação de agências indígenas e indigenistas, pelas quais um líder angaria prestígio e apoio material que lhe podem conferir maior estabilidade.

Cosmologia e xamanismo

Dança Parixara entre os Macuxi de Perdiz/Cotingo. Foto: Mário Giovannoni, 1983.
Dança Parixara entre os Macuxi de Perdiz/Cotingo. Foto: Mário Giovannoni, 1983.

O universo macuxi é composto, basicamente, de três planos sobrepostos no espaço que se encontram na linha do horizonte. A superfície terrestre, onde vivemos, é o plano intermediário; abaixo da superfície há um plano subterrâneo, habitado pelos Wanabaricon, seres semelhantes aos humanos, porém de pequena estatura, que plantam roças, caçam, pescam e constroem aldeias.

O céu que enxergamos da superfície terrestre é a base do plano superior, Kapragon, povoado por diversos tipos de seres, incluindo os corpos celestes e os animais alados, entre outros, que também vivem, à semelhança dos humanos, da agricultura, da caça e da pesca. Os Macuxi não têm qualquer relação com os seres habitantes desses outros planos do universo, que tampouco interferem em seus destinos.

O plano intermediário, por sua vez, não é o domínio exclusivo de humanos e animais, mas habitam-no ainda duas classes de seres, Omá:kon e Makoi. A distinção entre essas duas classes parece ter como critério básico o lugar habitado por cada uma delas. Assim, a categoria Omá:kon habita preferencialmente as serras, em particular as áreas rochosas e mais áridas da cordilheira, bem como as matas. Sua aparência, embora muito diversa, é marcadamente selvagem ou anti-social: têm unhas e cabelos longos e fala inarticulada. Manifestam-se mais comumente sob a aparência de animais de caça, embora sejam eles os caçadores de homens.

Já os seres Makoi são predominantemente aquáticos, habitando as cachoeiras e poços profundos. Via de regra, manifestam-se sob uma gama variada de cobras aquáticas. São considerados os seres mais nefastos aos homens, atraindo-os para o seu domínio e devorando-os.

Quando os Omá:kon e Makoi aprisionam uma alma humana (Stekaton), a vítima adoece e acaba morrendo. Somente os xamãs (Piatzán) podem fazer face à predação exercida pelo Omá:kon e Makoi, pois possuem a faculdade de vê-los e dispõem de armas sobrenaturais para neutralizá-los. Com efeito, a ação terapêutica de um xamã – já que as doenças são evidência de agressões à alma causadas por essas duas classes de seres – consiste basicamente no resgate da alma aprisionada, impedida de retornar ao corpo e que, em uma sessão xamanística, os cantos descrevem à medida que essa ação se desenrola.

Cosmogonia

Os Kapon se dizem todos Tomba – ou Domba, parentes -, da mesma forma que os Pemon se reconhecem todos Yomba, parentes, semelhantes. Os dois grupos consideram-se aparentados, descendentes comuns de heróis míticos: os irmãos Macunaíma e Enxikirang. Os irmãos míticos, filhos do sol – Wei –, forjaram num tempo antigo – Piatai Datai – a atual configuração do mundo, conforme revela uma tradição oral compartilhada por esses grupos.

Em diversas versões narrativas – Pandon –, contam esses povos que Macunaíma percebeu entre os dentes de uma cotia, adormecida de boca aberta, grãos de milho e vestígios de frutas que apenas ela conhecia; saiu, então, a perseguir o pequeno animal e deparou com a árvore Wazacá – a árvore da vida –, em cujos galhos cresciam todos os tipos de plantas cultivadas e silvestres de que os índios se alimentam. Macunaíma resolveu, então, cortar o tronco – Piai – da árvore Wazacá, que pendeu para a direção nordeste. Nessa direção, portanto, teriam caído todas as plantas comestíveis que se encontram até hoje, significativamente nas áreas cobertas de mata.

Do tronco da árvore Wazacá jorrou uma torrente de água que causou grande inundação naquele tempo primordial. Segundo o mito, esse tronco permanece: é o Monte Roraima, de onde fluem os cursos d´água que banham o território tradicional desses povos. O mito fala, assim, da origem do cultivo, que marca a humanidade, bem como de sua diferenciação étnica, expressa também na localização geográfica.

Atividades produtivas

Maloca do Contão. Foto: Comissão Rondon, s/d.
Maloca do Contão. Foto: Comissão Rondon, s/d.

O clima na região habitada pelos Macuxi é marcado por um rigoroso regime de chuvas e duas estações bem definidas: inverno, com chuvas concentradas de maio a setembro, e verão, alternado de seca, com estiagem prolongada de novembro a março. Há assim alterações sazonais bastante significativas na fauna e na flora.

Durante os meses de inverno, as águas das chuvas torrenciais engrossam os leitos dos rios e igarapés, chegando mesmo a alagar em grande parte os campos, com exceção de alguns pontos mais salientes nas planícies, que formam pequenas ilhas acima da superfície.

Esses tesos, assim como as vertentes das serras, são para os Macuxi locais preferenciais de cultivo de mandioca e de milho.

A população, que estava reunida nas aldeias ao longo do período de estiagem, se dispersa em pequenos grupos durante a estação chuvosa e passa a viver isoladamente com os alimentos produzidos nas roças familiares e coletados nas matas que cobrem as serras.

Macuxi confeccionando cestaria na Maloca do Congresso. Foto: Vincent Carelli, 1986.
Macuxi confeccionando cestaria na Maloca do Congresso. Foto: Vincent Carelli, 1986.

Durante um breve período de transição entre as estações, a vegetação até então submersa nos campos viceja, e os animais deixam os refúgios nos tesos das planícies e isolados na serras para percorrer seu habitat mais extenso. Os índios, que se mantinham dispersos em pequenos grupos domésticos, voltam a se reunir, aglutinando as parentelas extensas nas aldeias, compondo expedições de caça e de pesca, entre várias outras atividades de exploração econômica empreendidas no tempo de estiagem.

Nos meses de verão, a vegetação dos campos torna-se seca e esturricada, a folhagem verde vai se restringindo às baixadas mais próximas às margens dos rios e igarapés que, em sua maior parte, são intermitentes e secam completamente no auge da estiagem. Os índios voltam-se para os poços nos leitos secos e para os lagos que conservam água, procurando surpreender os animais que buscam o bebedouro nos mesmos locais, dedicando-se também, mais intensivamente, à pesca, que se torna atividade principal durante o período.

Na estação seca, os índios dedicam-se também à construção e reparo das casas e, atividades correlatas, à extração de madeira e argila empregadas na armação e nas paredes laterais, à coleta de folhas de palmeiras, mais freqüentemente de buriti, que utilizam nas coberturas. Dedicam-se ainda à coleta de uma grande variedade de fibras vegetais usadas na confecção de artefatos.

Durante a estiagem, torna-se mais nítido o traçado de uma infinidade de caminhos e trilhas nos campos e nas matas, ligando os locais de coleta, caça, pesca, roças e as diversas aldeias. Tais trajetos passam então a ser intensamente percorridos pelos índios, quando aproveitam para visitar os parentes, estreitando as relações sociais e vínculos de aliança política entre as parentelas, nas festas e celebrações rituais.

Os Macuxi praticam a agricultura de coivara, cultivando basicamente mandioca, milho, cará, batata-doce, banana, melancia, ananás, entre outros gêneros em menor proporção, que variam a cada aldeia. A derrubada da mata, a queima da área e o plantio são tarefas realizadas pelos homens. A partir de então, cabe sobretudo às mulheres manter a roça limpa e proceder à colheita, bem como preparar os alimentos. Os homens se ocupam de trazer a caça, pesca e frutos silvestres, empreendendo expedições de exploração econômica muito além dos limites da aldeia.

Atualmente, as comunidades macuxi estabelecidas em cada aldeia possuem coletivamente pequeno rebanho de gado bovino, obtido através de projetos iniciados pela Diocese de Roraima, pela Funai e pelo governo do estado de Roraima. A criação de bois, mantida em currais e retiros, bem como a de aves e suínos empreendida por famílias individuais, é hoje considerada indispensável, em vista do progressivo escasseamento de caça.

A posse coletiva do gado não chegou, ao que tudo indica, a afetar a organização tradicional da produção por grupos domésticos. O rebanho é confiado a um vaqueiro, que chama os membros da comunidade por ocasião de trabalhos de maior envergadura, que se realizam regados a caxiri e pajuaru – bebidas elaboradas a partir da fermentação da mandioca –, como nas outras situações de ajuda mútua entre as parentelas.

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