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As estimativas sobre os contingentes populacionais dos povos que habitavam a região que agora denominamos Brasil variam mais de acordo com os interesses políticos de seus autores do que com relação à metodologia adotada. | As estimativas sobre os contingentes populacionais dos povos que habitavam a região que agora denominamos Brasil variam mais de acordo com os interesses políticos de seus autores do que com relação à metodologia adotada. |
Edição das 17h11min de 14 de setembro de 2017
Quantos eram? Quantos serão?
Marta Azevedo escreve sobre a recuperação demográfica dos povos indígenas.
Impactos do contato
As estimativas sobre os contingentes populacionais dos povos que habitavam a região que agora denominamos Brasil variam mais de acordo com os interesses políticos de seus autores do que com relação à metodologia adotada.
Qualquer estimativa da população global de 1500 terá de levar em conta fatores históricos, tais como efeitos diferenciados das doenças sobre povos distintos e os movimentos espaciais de grupos indígenas em decorrência do contato, entre outros." (Jonh Monteiro. A Dança dos Números, in Tempo e Presença, São Paulo: CEDI, ano 16, n. 273, 1994).
Alguns autores estimam a população indígena no século XVI entre 2 e 4 milhões de pessoas, pertencentes a mais de 1.000 povos diferentes; Darcy Ribeiro afirma que desapareceram mais de 80 povos indígenas somente na primeira metade do século XX, sendo que a população total teria diminuído, de acordo com esse autor, de 1.000.000 para 200.000 pessoas(1). O extermínio de muitos povos indígenas no Brasil por conflitos armados, as epidemias, a desorganização social e cultural são processos de depopulação que não podem ser tratados sem uma análise das características internas e da história de cada uma dessas sociedades. Estudos sobre os diferentes impactos que uma mesma epidemia teve sobre diferentes povos ainda estão por surgir; as relações entre esses povos e diferentes agências indigenistas ou frentes de colonização e seus impactos na dinâmica demográfica de suas populações também não foram ainda estudadas.
A partir de análises demográficas e antropológicas de populações autóctones de diferentes regiões colonizadas pelos europeus, sabe-se que, após um longo período de perdas populacionais causadas por guerras, epidemias e pelos processos de escravização, os povos indígenas iniciam um processo de recuperação demográfica, muitas vezes consciente. Alguns estudos exemplares demonstram essa tendência de recuperação e, portanto, crescimento acelerado dessas populações, quando se tem acesso a fontes de dados com séries históricas.
Recuperação demográfica
Em estimativas feitas por diversos estudiosos, antropólogos, demógrafos ou profissionais de saúde, constata-se que a maioria dos povos indígenas tem crescido, em média, 3,5% ao ano, muito mais do que a média de 1,6% estimada para o período de 1996 a 2000 para a população brasileira em geral.
Estudos sobre a transição demográfica de diferentes povos do mundo inteiro dão conta de que depois da queda da mortalidade, acentuadamente da mortalidade infantil, devida à transição epidemiológica que ocorre com a vacinação dessas populações e com o atendimento mais eficaz e moderno à sua saúde, existe um incremento populacional durante um certo período, que varia de acordo com componentes estruturais de cada sociedade.
Muitos autores apontam as variações no ritmo e perfis da transição demográfica de cada sociedade como produtos de seus sistemas econômicos, e alguns estudos já foram realizados apontando componentes das estruturas sociais, incluindo modelos de casamento e composição familiar, como determinantes dessa dinâmica. Após esse período de incremento populacional começa a queda dos níveis de fecundidade, ou seja a diminuição do número médio de filhos por mulher. Os estudiosos desse tema apontam sem dúvida a urbanização e mudança de status feminino nas sociedades, como variáveis importantes para essa queda. O perfil demográfico de países europeus hoje em dia demonstra que, com a diminuição da mortalidade e queda da fecundidade, passa a existir uma diminuição acentuada no ritmo de crescimento, até o que se tem chamado de suicídio demográfico, quando os níveis de fecundidade de algumas populações ficam abaixo do nível da reposição.
A questão que se coloca hoje em dia para os estudos demográficos de populações indígenas no Brasil é se esses povos estão em fase de crescimento acelerado devido à queda da mortalidade provocada pela melhoria ao atendimento da saúde, mas ainda com a fecundidade estando em níveis muito superiores aos da população não-indígena, ou se esse crescimento é produto realmente de uma recuperação demográfica consciente, ou seja, se as sociedades têm a percepção de que perderam população em um período de sua história recente e estão agora tentanto recuperar essa população.
Estudos de caso
Estudos de caso realizado por antropólogos registram os eventos vitais de uma determinada população durante um período grande de tempo, o que permite algumas análises sobre sua dinâmica populacional.
Os Araweté
No livro Araweté - o povo do Ipixuna, de Eduardo Viveiros de Castro, consta um apêndice com os dados populacionais registrados por indigenistas ou outros desde o tempo do contato com esses índios em 1976. O registros permitem verificar um aumento populacional devido à diminuição da mortalidade, notadamente a infantil, e a um ligeiro aumento da natalidade, que ainda teria que ser melhor demonstrada pela continuação da análise. O que chama atenção é a último quadro, onde o autor tabula os dados dos óbitos pré contato a partir das categorias nativas de causa mortis: doenças; inimigos (desagregado por cada povo com quem os Araweté mantinham guerras), onde estão a maior proporção de mortos e/ou pessoas raptadas ou desaparecidas; espíritos e acidentes. Essa ‘demografia êmica’ permitiria aos índios gerenciar algumas políticas próprias incorporando técnicas demográficas ocidentais.(2)
Em um estudo sobre a dinâmica demográfica de dois povos indígenas - Waiãpi e Enawenê-nawê - procurei demonstrar como se poderia conhecer os diferentes perfis e dinâmicas dessas populações autóctones se tivéssemos, como é o caso dessas duas sociedades, séries históricas de dados sobre nascimentos, mortes, casamentos e migração. Esse estudo foi publicado como pôster, para o X Encontro de Estudos Populacionais da Abep (3), em 1996, e teve como base os dados coletados para população Waiãpi pela Dra. Dominique Gallois e Flora Dias Cabalzar; e para a população Enawenê-Nawê os dados coletados pela equipe da Opan que então trabalhava com esses povos.
Esses povos tiveram contato relativamente recente com a sociedade envolvente, por volta da década de 70, e ambos contam com assistência médica desde os anos 80. A série de dados dos eventos vitais permite levantar algumas hipóteses sobre o futuro dessas populações no que tange ao seu crescimento populacional.
Antes do contato com os colonizadores, os povos indígenas viviam em áreas onde os limites eram dados pelo próprio meio ambiente e pelos outros povos nativos que habitavam áreas contíguas, com os quais faziam guerra ou comércio. Com a presença do estado brasileiro, são demarcados territórios, colocando-os em uma nova situação: a de terem que viver nessa área, com limites conhecidos e demarcados. A partir desse momento, para algumas populações indígenas que tiveram apenas os núcleos habitacionais demarcados como T.I.s (como as que habitam o sul do Brasil) se coloca a questão de como sobreviverem em uma área diminuta com a tecnologia tradicional e um crescente contingente populacional. Já para os povos indígenas da Amazônia, que têm seus territórios demarcados incluindo áreas de exploração dos recursos naturais é preciso pensar o crescimento populacional (que ocorre, em geral, após um decréscimo, logo antes, e após o contato) junto com a tecnologia e o meio ambiente que ocupam, elementos estruturadores de suas culturas.
Evolução da população
Quanto à evolução da população total, a tabela 1 e gráficos 1 e 2 mostram que ambas as populações demonstram um crescimento a partir de 1985, o que se confirma pela evolução do número de nascimentos, possivelmente não só causado pelo aumento do número absoluto, mas também devido à diminuição da mortalidade infantil, proporcionado pelos programas de vacinação com que ambos os povos contam.
Tabela 1 - Evolução das populações totais Enawenê e Waiãpi
Enawenê | Waiãpi | ||||||
ano | masc. | fem. | total | ano | masc. | fem. | total |
1985 | 75 | 82 | 157 | 1985 | 159 | 149 | 308 |
1987 | 88 | 89 | 177 | 1987 | 175 | 168 | 343 |
1989 | 94 | 97 | 191 | 1989 | 190 | 184 | 374 |
1991 | 108 | 107 | 215 | 1991 | 206 | 200 | 406 |
1993 | 114 | 124 | 238 | 1993 | 228 | 216 | 444 |
1995 | 128 | 130 | 258 | 1995 | 239 | 222 | 461 |
Razão de sexo
A razão de sexo - proporção de mulheres e homens em uma dada população, em um determinado ano, nas diferentes faixas etárias -, para as duas populações, mostra que, nas idades mais velhas, a proporção de homens aumenta em relação à de mulheres, embora seja difícil visualizar um padrão, porque ainda é muito pequeno o número absoluto das coortes (ou seja, gerações) acima de 60 anos. Nas primeiras idades, parece que, entre os Enawenê-Nawê, a proporção de mulheres é ligeiramente maior do que entre os Waiãpi. Ver os gráficos 3 e 4:
Parturição
Com relação à parturição o número médio de filhos por mulher é 4, considerando o total da população nos diferentes anos, observado pela média e mediana em ambos os casos. A moda para os Enawenê-Nawê é 2 e para os Waiãpi é 1. Provavelmente, entre esses últimos, a moda é inferior devido ao número de mães jovens com um só filho. Para ambos os povos é mais frequente a mãe ter o primeiro filho entre os 15 e 19 anos, em média. Entre os Enawenê, as mulheres parecem ter o primeiro filho um pouco mais tarde do que entre os Waiãpi, o que se confirma a partir de relatos dos próprios índios, as jovens não casadas fazem uso de contraceptivo (bebida feita de uma planta) para não engravidarem. O mesmo contraceptivo é usado pelas mulheres que não desejam ter mais filhos, de acordo com as informações depois de terem 7 filhos vivos. O número ideal de filhos deve ser 10, já que, de acordo com sua própria percepção sobre a mortalidade infantil, desses 10, apenas 7 sobrevivem.
A parturição tem início na faixa etária de 10 a 14, sendo que a maior proporção de nascimentos ocorre na faixa etária dos 15 aos 19, para ambas as populações. Entre os Waiãpi, se confirma a idade mais jovem ao ter filhos, a proporção de mulheres com 10 a 14 anos tendo filhos é um pouco maior do que entre os Enawenê-Nawê; num segundo trabalho uma padronização por idade deve ser feita para verificação dessa hipótese. Com relação ao intervalo intergenésico, a média e mediana para ambas as populações fica em 3, sendo que a moda é 2 nos dois casos.
Concepções indígenas, estudos acadêmicos e política públicas
Na concepção waiãpi sua população deve crescer ainda mais para ocuparem toda a extensão de seu território, eles dizem que como antes morreram muitos waiãpi agora devem novamente serem muitos. Para os Enawenê-Nawê, parece ser que também têm consciência de seu crescimento populacional, dizem que as mulheres devem ter muitos filhos (10, como número ideal). Para ambos os povos o fato de terem sofridos graves perdas populacionais anteriores ao contato parece estimular o desejo de crescimento, de formas diferentes. O fato de que os territórios são ainda abundantes em recursos naturais para toda a população não os coloca em questão quanto à idéia de continuarem a crescer. A preocupação dos pesquisadores a eles relacionados é quanto à pressão desse crescimento frente ao agora limitado território, e seus recursos.
Esse exemplo de estudo demográfico preliminar procura mostrar, no âmbito deste artigo, os possíveis rendimentos para estudos acadêmicos antropológicos e demográficos, além de outros estudos importantes como análises sobre a interface da dinâmica populacional e a exploração de recursos naturais, bem como para o planejamento de políticas públicas voltadas para essas populações.
Notas
(1) Darcy Ribeiro: “Culturas e Línguas Indígenas do Brasil”, in Educação e Ciências Sociais, 1957.
(2) Eduardo Viveiros de Castro: Araweté - o povo do Ipixuna, São Paulo: CEDI, 1992.
(3) Marta Azevedo, Márcia Pivatto e Isabella Carneiro: “Análise demográfica de duas populações indígenas no Brasil” - X Encontro de Estudos Populacionais, 1996.
[Dezembro, 2000]