Ye'kwana
- Autodenominação
- Soto
- Onde estão Quantos são
- RR 681 (Siasi/Sesai, 2020)
- Venezuela 7997 (INE, 2011)
- Família linguística
- Karib
Exímios navegadores e agricultores, os Ye’kwana são um povo de língua karíb originário da região de cabeceiras dos rios Cunucunuma, Padamo, Cuntinamo, Metacuni, Ventuari e Auaris, situada em áreas transfronteiriças. Por serem grandes conhecedores da região, tornaram-se há séculos figuras importantes nas relações de troca que haviam entre diversos povos indígenas. A maior parte da população ye’kwana encontra-se na Venezuela e, no Brasil, mais de 750 pessoas vivem na Terra Indígena Yanomami, em três comunidades principais: Fuduuwaadunnha, Waichannha e Kudatannha. São muito habilidosos e perfeccionistas naquilo que fazem e essas qualidades se expressam em suas artes, como nos balaios compostos por belos motivos gráficos, nas tangas femininas feitas com miçanga ou nos carimbos de madeira usados para pintura corporal. É na arte de cantar e cuidar das pessoas, dos alimentos e dos objetos de uso diário que sábios e sábias ye’kwana dedicam a maior parte de suas vidas. Encontram nos conhecimentos e práticas ensinadas pelos ancestrais mais antigos bons caminhos para se viver.
Nomes
Os Ye’kwana ficaram conhecidos na literatura histórica e etnológica pelos etnônimos Maiongong (termo pemon) e Makiritare (palavra arawak). O etnônimo Ye’kwana e suas variantes De’kwana ou Dhe’kwana foram registrados pela primeira vez pelo viajante alemão Koch-Grünberg e é uma autodenominação nativa. No entanto, autodenominam-se soto cuja tradução é pessoa ou gente.
Soto é um termo comum e possui diferentes significados a depender dos contextos em que é empregado. Com frequência, os Ye’kwana usam essa palavra para se referir a si próprios enquanto um coletivo distinto dos demais e então quando dizem, por exemplo, soto a’deddu (língua dos humanos) estão se referindo somente ao seu idioma. Também empregam soto como designação genérica de “pessoa humana” e assim o termo pode incluir outros grupos indígenas e não indígenas. A palavra soto também pode ser empregada a certos seres invisíveis. Além disso, o termo se acompanhado dos sufixos -jönö e -je dá origem a sotojönö (não pessoa, não humano) e sotooje (com aspecto de humano).
Internamente, diferenciam-se de acordo com as regiões onde vivem: aqueles oriundos da região de cabeceiras Yujudunnha (território tradicional) são yujuduwana ou yujudunnhano e os que vivem rio abaixo, em locais desconhecidos ou distantes, são denominados anennhankomo. Há outro tipo de classificação que leva em conta a localização geográfica ou bacia hidrográfica do local de origem: quem é do rio Medeewadi (Caura) é denominado Medewaadinnhano; quem é do rio Yawadejudi (Auaris) é Yawaadejunnhano; do rio Entawaade (Ventuari) é Entawaadennhano etc.
Língua
A língua Ye'kwana pertencente à família linguística karíb. É a segunda maior família linguística da América do Sul no que diz respeito ao número de línguas existentes. De acordo com a classificação proposta por Gildea (2012), o Ye'kwana pertence ao ramo guianense junto com as línguas Kari’nja, Wayana e Taranoan (Tarano).
A gramática elaborada pela linguista Natalia Cáceres, Grammaire Fonctionnelle Typologique du Ye'kwana (2011) é a principal referência sobre a língua Ye’kwana.
A maior parte das línguas karíb encontra-se no norte do Brasil, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa e também há grupos falantes no oeste da Colômbia e no Brasil Central. De acordo com Gildea (2012), existem cerca de 25 línguas karíb e o número total de falantes gira em torno de 60 mil a 100 mil pessoas.
No Brasil, os Ye’kwana são majoritariamente monolíngues, especialmente, os mais velhos, as mulheres e as crianças. Em geral, os homens adultos e jovens entendem e falam bem Português, porém muitos ainda têm dificuldade de se comunicar na língua portuguesa. Alguns Ye’kwana conhecem a língua Sanöma, falada pelo grupo yanomami vizinho. Há pessoas que entendem e falam o Espanhol, dada a proximidade geográfica com a Venezuela e o fato de que a maior parte da população ye’kwana vive nesse país.
Localização e população
A área de ocupação tradicional do povo Ye’kwana é a região onde estão as cabeceiras dos rios Cunucunuma, Padamo, Cuntinamo, Metacuni, Ventuari e Auaris. Essa região é denominada de Yujudunnha (“área de cabeceira”). Há séculos, os Ye’kwana estão vivendo em uma região mais extensa, incluindo áreas ao longo dos rios Caura, Paragua, Orinoco e Uraricoera. Suas comunidades estão distribuídas entre os estados Amazonas e Bolívar, no sul da Venezuela, e no Brasil, estão localizadas na Terra Indígena Yanomami, no noroeste de Roraima.
A maior parte da população ye’kwana encontra-se na Venezuela. Em 2011, havia 7.997 pessoas (Instituto Nacional de Estadística), vivendo em mais de 60 aldeias. Já no Brasil, os Ye’kwana são cerca de 760 pessoas (Siasi/Sesai, 2019) vivendo em três aldeias principais: Fuduuwaadunnha e Kudaatannha, na região de Auaris, e Waichannha ou Waikás, às margens do rio Uraricoera.
No lado brasileiro, as aldeias situam-se em locais remotos e de difícil acesso em área grande extensão de floresta densa com relevo montanhoso. A região de Auaris abriga a maior parte da população ye’kwana no Brasil, cerca de 615 pessoas (Siasi/Sesai, 2019), e também é habitada pelos Sanöma (grupo yanomami) que se estabeleceram na região a partir do contato com missionários da Missão Evangélica da Amazônia (MEVA) nos anos 1960. Estes dois povos fazem parte de redes de relações interétnicas e intercomunitárias que ultrapassam os limites das fronteiras nacionais.
Yujudunnha, território tradicional
Os Ye’kwana vivem desde tempos imemoriais em Yujudunnha região de cabeceira dos rios Cunucunuma, Padamo, Cuntinamo, Ventuari, Metacuni, Caura e Auaris. São originários da cabeceira do rio Cuntinamo, na fronteira Brasil e Venezuela.
Yujudunnha é o centro dos conhecimentos e do modo de vida ye’kwana. É o coração do território ye’kwana, pois foi lá onde Wanaadi (demiurgo celeste) pisou pela primeira vez e onde começou a fazer o mundo e tudo que hoje existe. Os lugares e as paisagens dessa região são centrais para os Ye’kwana, pois, além de ser seu território, são também marcos ou testemunhos de suas histórias verdadeiras (wätunnä).
De acordo com essas histórias antigas, o primeiro ye’kwana chamava-se Yuduwaana e ao chegar do céu na região do Cuntinamo, mais precisamente, na Serra Ye’kwana. Essa primeira área de ocupação é denominada Kamasonnha e foi a partir daí que os Ye’kwana começaram a se expandir, povoando outras regiões.
Um dos personagens importantes das histórias wätunnä é Kuyuujaani, responsável pela demarcação do território tradicional. Toda a área demarcada por Kuyuujaani é Ye’kwana nonoodö, “território ye’kwana”. Wanaadi, o demiurgo, deu a Kuyuujaani a tarefa de delimitar os lugares onde os Ye’kwana iriam viver e criar suas comunidades.
No extenso território demarcado por Kuyuujaani, existem diferenciações internas como: antigas comunidades; lugares onde os ancestrais passaram; comunidades atuais; serras importantes; caminhos terrestres; áreas de roça; áreas de caçada coletiva; locais de pesca; rios; cachoeiras; os poços de água; lagos; as pedras etc. Quando sobrevoamos as comunidades, avistamos algumas casas. Pode parecer que não há nada além disso, mas existem diversas trilhas na floresta que formam verdadeiras veias embaixo das árvores.
Os territórios e seus donos
Para os Ye'kwana, o território não é de modo algum um espaço vazio a ser ocupado pelos humanos. Existem espíritos bons e ruins que ali vivem. As árvores, as frutas, os animais, as montanhas, as pedras, as cachoeiras, lagos e correntes de água têm seus donos (edhaamo). Quando vão derrubar uma área para fazer uma nova roça, os Ye’kwana pedem permissão ao dono das árvores e quando caçam os animais, também pedem autorização a seu dono.
Antes de criar novas aldeias, os Ye’kwana buscam o aval do föwai (pajé) ou acchudi edhaamo (sábios, donos de canto). Eles consultam os donos invisíveis dos lugares e somente após a autorização dos sábios os Ye’kwana começam a preparar o local da nova morada e vão escolher suas áreas de roça.
Em toda comunidade ye'kwana, há donos não humanos que habitam as serras, os poços de água, lugares proibidos e outros que vivem na floresta e são chamados de yoodadai e maawade - não têm morada fixa e vivem andando pelas matas. As almas dos moradores de uma determinada comunidade estão familiarizadas com os donos invisíveis daquele território e por isso os respeitam muito. Do contrário, a comunidade ou uma pessoa poderá sofrer ataques de espíritos ruins, situação que pode levar ao adoecimento e à morte.
Quando os Ye'kwana se afastam de seu lugar de origem, precisam tomar muito cuidado, pois espíritos ruins que vivem ali podem causar doenças, isto é, roubar as almas ou duplos (äkaato) das pessoas. Os Ye'kwana sabem que esses seres invisíveis podem prejudicar a sua vida e por isso utilizam plantas e cantos para sua proteção. Quando uma pessoa viaja pela primeira vez precisa se proteger bastante: não pode dar risadas quando um animal aparecer e a cada boca de rio ou grande cachoeira, precisa pingar nos olhos o líquido de wananha (gengibre).
Outros elementos e atividades também delimitam o domínio de uma comunidade: os lugares de caça e pesca; as áreas de roças; os rios; as trilhas; os locais de acampamentos e de onde se tira palhas, madeiras, cipós etc. Esses limites precisam ser respeitados pelas outras comunidades. Não se pode fazer roças em outra comunidade sem sua autorização e os rios também são limites importantes. Por exemplo, se os moradores de uma comunidade da região Auaris quiserem caçar em outro rio, precisam conversar com uma comunidade localizada ali e pedir permissão para a caçada.
Histórico dos contatos
As relações entre os Ye’kwana e os não indígenas são antigas e remontam ao século XVIII se considerarmos os contatos estabelecidos entre grupos ye’kwana habitantes na região do alto Orinoco (Venezuela) e os colonizadores europeus. As experiências de contato dos Ye’kwana com os não indígenas e com outros povos indígenas foram diversas e cada grupo têm uma história própria.
Os Ye’kwana, por serem gente canoeira, se inseriram há séculos em redes de trocas que incluíam diversos grupos indígenas e nesses percursos também se relacionaram com os não indígenas, chamados em sua língua de yadaanawichomo. São conhecedores excepcionais da geografia e hidrografia de seu território tradicional; sabem os nomes de todos os rios, igarapés e cachoeiras existentes ali.
São excelentes construtores de canoa (kudiiyada) e foi por meio desse objeto que conseguiram conhecer lugares além do seu território tradicional. Arvelo-Jimenez (1974), relata que um ye’kwana conhecido como Aramari, um navegante incansável e comerciante muito ativo, fazia viagens ao Brasil que duravam de um a três anos. As rotas de suas viagens eram grandes, passava pelo Canal de Cassiquiare, Rio Negro, Manaus, Rio Branco, Rio Uraricoera, Rio Auaris e depois voltava para a Venezuela pelos rios Padamo, Orinoco e, finalmente, o Cunucunuma.
Desde muito tempo, os Ye’kwana iam a diversas regiões em busca objetos de interesse que eram trocados por ralos, canoas, zarabatanas, entre outros. Trocavam bastante com os povos que habitavam Fadimennha, a região do lavrado roraimense, e, muitas vezes, viajam até onde hoje é Georgetown (Guiana) para obter objetos como a espingarda e tecido vermelho para fazer a vestimenta masculina tradicional (wayuuku). As visitas a outras comunidades ye’kwana eram muito comuns e ainda hoje fazem parte de seu cotidiano. Costumam fazer viagens pelos caminhos terrestres e pelos diversos rios que se localizam nos dois lados da fronteira Brasil e Venezuela.
Como outras populações indígenas, os Ye’kwana experimentaram diversas relações com os não indígenas, como alianças, conflitos, perseguições, que alteraram em parte os territórios ocupados por eles antes da chegada dos colonizadores europeus. No caso dos grupos ye’kwana que vivem no Brasil, esse contato mais próximo se deu no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, quando um grupo de seringalistas, comandado por Tomás Funes, invadiu o centro do território ye’kwana em busca de escravos para trabalhar na extração do caucho. Essa perseguição foi extremamente violenta, destruiu inúmeras aldeias e provocou centenas de mortes entre os Ye’kwana. Barandiarán estima que cerca de 1000 pessoas foram mortas e mais de 20 aldeias foram destruídas (1979).
Tamanha brutalidade dos seringalistas levou a uma dispersão generalizada para outras regiões a leste. Uma parte desse povo se refugiou na região do rio Auaris, área de ocupação tradicional que, naquele tempo, era usada, principalmente, para as caçadas coletivas. Essa região tornou-se, então, uma alternativa às famílias ye’kwana que fugiam das perseguições dos seringalistas, dando origem à população ye’kwana que desde então vive de forma permanente no Brasil.
A história das aldeias ye’kwana no Brasil está intimamente ligada a esses deslocamentos forçados. Apesar desses acontecimentos trágicos, os vínculos entre as comunidades ye’kwana no Brasil e Venezuela se mantiveram forte. Há redes de relações intercomunitárias e interpessoais que atravessam a fronteira.
No Brasil, registros dos primeiros encontros com os não indígenas são imagens e descrições sobre os Ye’kwana de Auaris da década de 1930 encontradas em Índios do Brasil (Rondon, 1963). Há registros fotográficos e fílmicos de encontros do expedicionário francês Alain Gheerbrant e sua equipe com grupos ye’kwana que viviam no alto Auaris, especificamente, na comunidade Detuukwännha. A expedição comandada por Gheerbrant ocorreu no final da década de 1940, partindo do Orinoco em direção à região de cabeceiras do Ventuari e seguiu para Auaris.
Entre o fim dos anos 1950 e o início dos anos 1960, um grupo ye’kwana que viajava em direção à Boa Vista encontrou no rio Uraricoera uma expedição composta por missionários e militares em busca dos Sanöma, grupo yanomami. Desejavam construir uma pista de pouso para se instalar ali. Na ocasião, depois de terem conversado, esses viajantes ye’kwana foram contratados para abrir a pista (Moreira, 2004).
No início dos anos 1960, uma pista no alto Auaris foi construída pelos próprios indígenas da região, com ajuda dos militares da Força Aérea Brasileira (FAB) e dos missionários da Missão Evangélica da Amazônia (MEVA), que deram as ferramentas para abrir a pista. Logo, a MEVA instalou-se na região e estabeleceu os primeiros contatos com os Sanöma. Depois, uma base da Força Aérea Brasileira (FAB) foi implantada próxima à pista de pouso, onde hoje está o 5o Pelotão Especial de Fronteira. A pista de pouso foi um elemento que modificou a região de Auaris. Aquelas comunidades que já se encontravam em locais próximos à pista permanecem até lá hoje e aquelas mais distantes se aproximaram mais da pista.
Apesar de viverem em áreas remotas, os deslocamentos dos Ye’kwana para Boa Vista se intensificaram nas últimas décadas. A instalação em suas aldeias de postos de saúde favoreceu essa dinâmica, pois com a presença constante de técnicos da saúde (indígenas e não indígenas), a rotina de voos permitiu aos Ye’kwana uma mobilidade que era impensável décadas atrás.
Há menos de meio século, homens adultos empreendiam viagens de canoa até Boa Vista ou iam até as fazendas de gado situadas nas cercanias para obter bens como sabão, sal, munição, espingardas, terçados e miçangas via troca ou trabalho assalariado. A viagem durava cerca de 30 dias devido às inúmeras corredeiras e cachoeiras no trajeto que liga os rios Auaris, Uraricoera e Branco e, muitas vezes, era necessário o transporte das canoas em trilhas construídas na mata. O retorno à Auaris levava em média 90 dias, pois ao invés de descer as cachoeiras, era preciso subir.
A partir da segunda metade do século 20, essa rota fluvial deixou de ser frequente. Com a instalação da pista, a assistência regular de saúde e a implantação de escolas nas comunidades, as dinâmicas de deslocamento se alteraram. Por um lado, as viagens de avião a Boa Vista passaram a ser mais frequentes e, se antes eram somente os homens adultos que realizavam este longo percurso, agora jovens, mulheres e crianças também transitam nesses outros mundos e aproximam-se mais dos modos de vida dos não indígenas. Por outro lado, teve início um processo de sedentarização da população indígena de Auaris que passou a construir suas aldeias nas proximidades da pista, dos postos de saúde, das escolas e dos espaços ocupados por missionários e militares. A sedentarizacão associada ao aumento populacional levou à falta de recursos naturais tão essenciais, como a caça e pesca, e à pressão sobre os recursos ainda disponíveis na região.
Um levantamento sobre a presença dos Ye’kwana na cidade de Boa vista feito pelos próprios indígenas aponta que, em 2011, mais da metade dos jovens de 15 a 27 anos da maior aldeia estava vivendo na cidade. Na maioria dos casos a mudança estava ligada à continuação do ensino formal (Ensino Médio ou cursos oferecidos pelo Insikiran-UFRR). Apesar do forte envolvimento dos Ye’kwana com o desenvolvimento do ensino escolar em suas aldeias, não foi implantado o Ensino Médio em nenhuma das escolas - é um dos grandes gargalos da educação escolar, pois boa parte dos jovens, assim que concluem o Ensino Fundamental vão viver na cidade para ingressar no ensino médio. Muitos continuam os estudos e ingressam em cursos de licenciatura intercultural ou de pós-graduação.
Com os jovens cada vez mais distantes do cotidiano na aldeia, muitos conhecimentos valiosos para o povo Ye’kwana deixam de circular entre as diferentes gerações, como os saberes relacionados aos cantos (acchudi), às histórias verdadeiras (wätunnä), às artes, às habilidades ligadas à caça, à pesca, à construção de casas, canoas etc. Os pais, apesar de incentivarem a presença de seus filhos nas escolas da cidade ou da comunidade, preocupam-se com a falta de interesse dos jovens pelos conhecimentos ye’kwana e o seu interesse crescente pelos modos de vida e pelas coisas dos não indígenas.
A vida na cidade cria situações novas que dão acesso a conhecimentos diversos. As novas modalidades de relação com os não indígenas têm suscitado reflexões dentro e fora da aldeia, as quais são postas em diálogo com as imagens produzidas pelos antigos, que antes desciam em grandes canoas pelos afluentes do Rio Branco até chegar à cidade.
A chegada da escrita: presença missionária e a escola
Pouco tempo depois dos primeiros contatos entre os Ye’kwana e os espanhóis, se deu a primeira tentativa de evangelização. Em 1765, foi fundado o aldeamento San Francisco de la Esmeralda na região do Orinoco por um missionário capuchinho, Jose Antonio de Jerez de los Cabelleros, que pretendia converter à força centenas de indígenas, entre eles, os Ye’kwana, além de forçá-los a construir uma igreja no local. Em 1769, missão foi abandonada e depois disso, encontros com missionários passaram a ser esporádicos até meados do século 20.
A presença dos papéis escritos (fajeeda) na vida cotidiana passou a ser sentida de forma efetiva com a instalação de missões religiosas em territórios ye’kwana na Venezuela a partir da metade do século 20. Missionários da New Tribes Mission (Missão Novas Tribos) fundaram as primeiras aldeias nos territórios ye’kwana, piaroa e yanomami entre 1947 e 1956. Entre os Ye’kwana, tentaram penetrar pela região do Ventuari, mas não foram bem recebidos. Avançaram pela região do rio Cunucunuma e em 1956 fundaram a comunidade Akanannha, perto da confluência dos rios Orinoco e Cunucunuma. A ideia era que esta aldeia se tornasse uma espécie de base para a formação de pastores ye’kwana que servissem como vetores de conversão na região. Mais tarde aldeias como Tama Tama, Tokishanamannha e Mudeshijannha, no rio Padamo, se converteriam, o que neste contexto significava a proibição de práticas rituais ye’kwana, do consumo de tabaco e de bebida fermentada.
No bojo da atuação da Missão Novas Tribos, estava a instalação de escolas que, como em outros lugares, serviram de ferramenta ao proselitismo religioso (alfabetização em Espanhol e produção de materiais bilíngues, entre eles a Bíblia ou Wanaadi A'deddu (Palavras de Wanaadi). Devido a uma estratégia extremamente agressiva e impositiva, a Novas Tribos não conseguiu avançar em outras áreas de ocupação ye’kwana, restringindo sua atuação à região do rio Cununcunuma.
Na década de 1970, a presença destes missionários já provocava muitas críticas entre lideranças ye’kwana e outros povos que tiveram seus territórios invadidos por estes grupos. Como contou Manuel Velásquez, o renomado dono de canto Warné Yawadi tentou impedir a entrada destes missionários em sua região, mas não foi bem-sucedido, e abandonou a aldeia em que vivia e fundou uma nova em área de difícil acesso, nas cabeceiras do alto Cuntinamo.
Warné gravou um filme chamado Hoy hablo a Caracas (direção de Carlos Azpúrua, 1978) em que denuncia a presença destes missionários em território ye’kwana. Surge, neste contexto de intensa pressão missionária em territórios indígenas na Venezuela, um movimento nacional de apoio aos povos indígenas sem precedentes que foi organizado por pesquisadores, indigenistas, artistas e políticos cujas reivindicações eram não só a expulsão destas missões religiosas como também a construção de uma legislação específica a estes povos (Guss, 1989). Somente, em 2005, a Missão Novas Tribos foi expulsa do território venezuelano pelo então presidente Hugo Chávez.
Além de evangélicos, grupos católicos também se instalaram entre os Ye’kwana, ainda que o foco de suas ações não fosse a conversão religiosa. Em 1959, foi criada uma aldeia no alto Erebato pela Fraternidade de Foucauld chamada Santa Maria de Erebato (Jöwötönnha), e alguns anos depois foi fundada Cacuri (Kakudinnha), uma comunidade que teve apoio de uma missão salesiana. Daniel Barandiarán foi o primeiro missionário da Fraternidade Foucauld e viveu muitos anos entre os Ye’kwana do alto Erebato. É autor de muitos artigos e livros sobre esse povo, os quais contém importantes dados etnográficos. Também escreveu sob o pseudônimo Damian de Escoriaza (Guss, 1989).
Tiveram inúmeros embates que ocorreram a partir da chegada de missionários evangélicos e católicos entre os Ye’kwana na Venezuela, como os conflitos entre os “crentes” e os “tradicionalistas” (Arvelo-Jiménez, 1979). De todo modo, é importante mencionar como as notícias sobre a presença destes grupos religiosos chegaram às aldeias ye’kwana no Brasil e suas reflexões sobre a chegada dos papéis (fajeeda) e da escola, espaço onde se deu o aprendizado da escrita alfabética.
Moreira (2004) e Andrade (2012, 2014) notam que o tom dos comentários sobre a atuação dos missionários nas aldeias na Venezuela, principalmente dos evangélicos da Missão Novas Tribos, era bastante crítico, principalmente por conta das proibições às quais eram submetidos (não podiam fumar tabaco, tomar caxiri, fazer festa, rituais de cura etc.). Assim, disse o antigo tuxaua de Fuduuwaadunnha, Neri Magalhães: “Quando Donaldo perguntava: Vocês aceitariam ser crentes? Nós respondemos: Nós não queremos ser crentes. Nossos parentes ficaram crentes rápido e enfraqueceram” (Moreira, 2004).
De forma geral, em Auaris, a conversão à religião dos não indígenas era condenada, no entanto, havia um interesse crescente pela escrita alfabética. No início dos anos 1960, um Ye’kwana de Auaris foi viver durante alguns anos em Medadannha (La Esmeralda) e quando voltou deu início a uma experiência de alfabetização a partir de cartilhas que trouxe de lá, que não deu certo (Andrade, 2012).
A Missão Evangélica da Amazônia (MEVA) instalou-se na região do alto Auaris nesta mesma década, logo depois da abertura da pista de pouso, mas apesar de prestar atendimento à saúde a todos os indígenas, estes missionários voltaram as suas ações aos Sanöma, grupo yanomami vizinho.
No início dos anos 1980, um casal de missionários da MEVA foi morar com os Ye’kwana do alto Auaris, mas um episódio interessante os fez desistir da investida. Em 1981, lideranças ye’kwana de várias comunidades, a convite de Warné Yawadi, se juntaram a uma grande conferência organizada por Ye’kwana evangélicos em Mudeshijannha, no rio Padamo, para debater ideias trazidas pela Missão Novas Tribos. O então tuxaua de Auaris esteve presente junto com mais quatro homens desta comunidade. Segundo relatos registrados por Moreira (2004), os embates ali giraram em torno de questionamentos sobre o “surgimento dos crentes” e o “caminho da salvação” que estes religiosos pregavam e chegaram ao entendimento de que os crentes eram descendentes de Kaaju (inimigo do demiurgo) e que ali estavam para destruir a vida dos Ye’kwana. Na volta desta viagem, as lideranças de Auaris fizeram uma festa enorme, regada a muito caxiri e tabaco, e não demorou muito para que o casal de missionários da MEVA pedisse o seu desligamento.
Em 1983, uma outra missionária da MEVA foi enviada à Auaris. Segundo depoimentos, as lideranças ye’kwana disseram que permitiriam a sua permanência desde que não fizesse proselitismo religioso - o que eles queriam era aprender a escrita alfabética e o Português. Ela foi aceita como professora e então tuxaua Neri Magalhães permitiu que ela contasse as “histórias dela” na escola – e eles seguiram contando as suas histórias (wätunnä). A partir de então, Jandyra foi viver com os Ye’kwana de Auaris e foi responsável pela alfabetização dos primeiros adultos e jovens. Esta primeira turma terminou a formação de ensino fundamental em Boa Vista e deu origem aos primeiros professores ye’kwana da escola Apolinário Gimenes, na comunidade Fuduuwaaunnha - a primeira construída no Brasil e reconhecida pela Secretaria da Educação do estado de Roraima em 1991. Esses professores foram os primeiros alunos dos cursos modulares de magistério indígena e do curso de Licenciatura Intercultural oferecidos na Universidade Federal de Roraima (Insikiran-UFRR). Hoje são estas pessoas que levam adiante as escolas nas demais comunidades ye’kwana.
Wätunnä, histórias das origens
As referências aos mais antigos ancestrais fazem parte da vida cotidiana dos Ye’kwana de forma notável. Estão presentes em diversos contextos, especialmente, nas festas e rituais e nas conversas diárias nas quais surgem explicações sobre ye’kwana weichojo, o modo de vida ye’kwana. As explicações sobre o bem viver são encontradas nas histórias sobre o tempo antigo (fenaadä könä’jaato) e sobre os feitos de Wanaadi, demiurgo.
Os Ye’kwana se referem a essas narrativas usando o termo wätunnä (histórias) e são consideradas histórias verdadeiras, pois aconteceram de fato. Wätunnä edhaajä é o dono de histórias, a pessoa que conhece um extenso repertório dessas histórias. São relatos contados oralmente que remontam ao início dos tempos e narram acontecimentos e processos ligados ao surgimento da terra, dos humanos, de todos os povos, dos animais, alimentos, dos costumes, dos rios, árvores.
Wätunnä conta como o demiurgo Wanaadi criou o mundo e como seu irmão e inimigo, Kaajushawa, Kaaju ou Odo’sha, procurou a todo custo estragá-lo, trazendo sofrimento, doença e morte às pessoas. A relação entre Wanaadi e Kaajushawa ocupa um lugar privilegiado na cosmologia ye’kwana. Os processos que deram origem ao mundo de hoje estão ligados a essa disputa entre o Wanaadi e Kaajushawa, um criava e o outro destruía.
Kajuushawa foi a primeira criação de Wanaadi e ensinou-lhe tudo. Depois que atingiu o mesmo nível de conhecimento de seu criador, voltou-se contra ele. Foi a partir dessa disputa que o céu se separou da terra; que a perenidade da vida foi atravessada pela morte e suas formas liminares como as doenças; que a luminosidade absoluta deu espaço à alternância entre dia e noite etc. As paisagens e seus habitantes foram marcados pelas ações de Wanaadi e seu irmão e seus efeitos podem ser vistos e sentidos ainda hoje.
Os Ye’kwana costumam utilizar o nome Kaaju para se referir ao irmão de Wanaadi, pois este não gosta que seu verdadeiro nome (Kajuushawa) seja enunciado. Então, por precaução, deve-dizer apenas Kaaju ou Odo’sha.
As histórias verdadeiras contam que desde tempos primordiais a terra foi contaminada por Kaaju, tornando-a amoijhe (contaminado, envenenado). Embora o demiurgo tenha buscado criar na terra formas de vida semelhantes àquelas existentes nos planos celestes (kajunnha), o resultado não foi esse. Wanaadi enviou pessoas celestes para curar a terra envenenada e finalmente conseguiu fabricar uma terra boa para as pessoas viverem.
A vida na terra é continuamente ameaçada pelos odo’shankomo, inimigos enviados por Kaaju (ou Odo’sha), que fazem mal aos humanos de várias formas. A presença deletéria de Kaaju passou a ser sentida com mais intensidade pelos ancestrais dos Ye’kwana quando o demiurgo voltou à sua morada celeste. Wanaadi, cansado das investidas de seu irmão e triste com as tentativas fracassadas para eliminá-lo da terra, deixou à humanidade algumas armas de proteção contra seu irmão.
Todo ye’kwana busca adquirir conhecimentos para se proteger dos odo’shankomo – os principais saberes são as histórias wätunnä e os cantos acchudi e ädeemi. O maior conhecedor era o föwai ou kadeeju (pajé), que hoje não existe mais. Os pajés ye’kwana possuíam um poder similar a Wanaadi e seus auxiliares que foram os primeiros pajés da terra. Atualmente, os grandes conhecedores ye’kwana são os donos de canto (acchudi edhaamo) e os donos das histórias (wätunnä edhaamo). É durante as festas e rituais que as pessoas interessadas nos saberes antigos costumam aprender, pois são geralmente nessas ocasiões que wätunnä é contada e são realizados os repertórios de cantos.
A centralidade dos cantos na vida ye’kwana está relacionada aos problemas provocados pelos odo’shankomo constantemente. Diante de ameaças cotidianas, a vida de uma pessoa é marcada por inúmeros rituais que são sempre acompanhados de cantos específicos. Estes cantos são rezas ou benzimentos voltados à construção de corpos, objetos, substâncias e espaços eminentemente humanos ou próprios para a vida humana. Para viver sem riscos, também é preciso cuidar cotidianamente de si, dos parentes e da comunidade por meio de ações que visam proteção como resguardos, dietas alimentares, restrições comportamentais, uso de tabaco e de elementos/substâncias protetoras como as resinas perfumadas, os amuletos, os colares, as tintas, banhos e infusões com ervas etc. Já dizia Guss (1989) que as ações profiláticas são para os Ye’kwana antídotos ou atos de revide à ameaça que sofrem na vida cotidiana.
É preciso cantar para que algo ou alguém deixe de estar amoijhe (contaminado, envenenado) e esse é um dos principais meios para se viver bem. Por meio das palavras cantadas e do sopro, o canto e o cantador eliminam substâncias perigosas e introduzem nos corpos e nos espaços (roças e casas), vitalidade (tadonnhe), elemento intangível, celeste, que restaura a vida dos humanos e também de outros seres, como as plantas.
A transformação da primeira terra por Wanaadi
Texto baseado nas falas dos sábios Pery Magalhães, Vicente Castro, Luís Manuel Contrera, Eliezer Maldonado Silva e Romeu José Gonçalo.
Seduume [Wanaadi] foi quem primeiro transformou o céu e a terra. Ninguém sabe como ele surgiu, ninguém sabe como ele se transformou. A luz do sol Nhaajidiyyana ilumina Seduume no céu de Töweiyewaana. Ele vive bem ali, lugar de vitalidade, onde ninguém morre. Seduume apesar de viver no céu está sempre com o pensamento voltado para cá. Ele trouxe do céu a terra de Awaadaja para os humanos viverem, mas Kaajushawa, seu irmão e seu principal inimigo, atrapalhou o seu trabalho.
Seduume teve que colocar fogo na terra de Awaadaja estragada pelo irmão. A queimada durou vinte dias e a fumaça que subia ao céu caiu nas mãos de Maiyyediikiya, o dono da chuva. Essa fumaça se converteu em chuva. Durante vinte dias choveu sem parar. A terra ficou inundada e água alcançou o céu. Mesmo depois de vinte dias, a água não havia secado. Seduume pediu para o beija-flor Waasoodoimhä secar o dilúvio com o widiiki (“cristal”, “pedra brilhante”) de Makuunaimhä. Esse cristal se transformou nas zarabatanas de Makuunaimhä e Shidiijuiyana, e foi com esse instrumento que o beija-flor Waasoodoimhä puxou toda a água, secando a terra. Sobrou só a areia de Kayatta.
Pessoas foram enviadas do céu para varrer a terra e com esse movimento diferenciaram e nomearam os territórios de todos os povos. O território ye’kwana foi chamado de Planície de Yoodaimhä, e a terra situada do outro lado do mar foi denominada de Terra de Taweekadi. A terra estava vazia. Não havia pessoas humanas, nem animais. Não tinha ar, nem água. Maduuda (tatu-canastra) e Fa’jadi (tatu-bola) foram os primeiros a experimentar a vida aqui e a tocar a terra pela primeira vez. Depois, Seduume enviou do céu as árvores que hoje existem em Yujuudunnha, nossa região de origem, e também aquelas existentes em outros lugares.
Essas árvores foram plantadas por Maduuda e Fa’jadi e cresceram com vitalidade. Seduume logo pensou que a terra já estava boa para os humanos viverem. Fez uma pessoa chamada Yuudawaana. Como não havia ar na terra, ele respirava o ar enviado do céu por Seduume. Foi Yuudawaana quem pisou na primeira terra, ele pisou em Kamaasonnha. Em seguida, Seduume trouxe água e pedra. Essa última foi trazida para cá para deixar a terra firme, forte e segura. * Originalmente publicado no livro Território Ye’kwana: a vida em Auaris (2017)
Cantos para se viver bem
Mais do que formas de expressão artística, os cantos são tecnologias ensinadas aos Ye’kwana por seus ancestrais e possibilitam a existência propriamente humana, afastando os perigos provocados pelos odo’shankomo. Os cantos são compreendidos como armas de defesa (konemjönö ewanakatojoje, “proteção contra aquilo que faz mal”).
Os cantos realizados hoje nas festas e nos rituais pelos donos de canto são réplicas dos cantos celestes feitos na terra pelo demiurgo, Wanaadi, e seus auxiliares. Não há invenção de novos cantos, ao contrário, os Ye’kwana são assertivos em dizer que continuam fazendo os mesmos cantos aprendidos pelos antigos ancestrais e guardados na memória dos sábios e sábias ye’kwana.
Os donos e donas de canto (acchudi edhaamo) cuidam da transmissão e da circulação dos cantos e são figuras muito importantes na vida comunitária e mestres rituais muito respeitados. Para ser reconhecida como tal, a pessoa deve conhecer um vasto repertório de cantos, práticas e conhecimentos rituais, incluindo as histórias (wätunnä) e o léxico especial da fala ritual.
Os cantos acchudi e ädeemi são considerados os mais importantes vetores de circulação das histórias wätunnä. Então, uma pessoa que é dona de canto também é considerada dona de história, pois para realizar um canto ritual é preciso profundo conhecimento dos eventos que aconteceram no tempo das origens.
A descrição a seguir nos ajuda a compreender a imbricação entre as histórias e os cantos:
“Acchudi vem desde wätunnä, é wätunnä que se transforma em acchudi. Acchudi [cantos] vem de acontecimentos dos primórdios, de quando surgimos, e é isso que é cantado e rezado. Ninguém inventa wätunnä, acchudi e ädeemi. Primeiro, Odo’sha estragou a terra, a floresta, a água e o alimento. Então, o mundo como está hoje foi curado após o estrago de Odo’sha. As coisas que estavam no mundo estavam estragadas, mas as pessoas daquele tempo fizeram reza para curar o planeta terra. Waidhe curou o planeta terra estragado. A capivara, a ariranha e a lontra curaram a água. Por isso, hoje em dia, rezamos falando delas, dizendo que fazemos a mesma coisa que a ariranha, a capivara e a lontra fizeram, para que, assim, o Wiyu tenha medo e não mexa com as pessoas” (Osmar Carlos da Silva, 2017).
O modo de vida ye’kwana espelha as ações e palavras ensinadas a seus ancestrais pelas primeiras pessoas que existiram no mundo. Os rituais são, assim como os cantos, repetições de ações realizadas pelos antigos no início dos tempos com a finalidade benzer, curar e proteger as pessoas.
Para os Ye’kwana, cantar é a ação ritual por excelência e há duas categorias de canto distintas: ädeemi e acchudi.
Cantos ädeemi
Os cantos ädeemi são realizados em festivais comunitários também denominados ädeemi (e podem ser chamados de wänwänä - ‘festa’, ‘baile’), momento em que se canta, se dança e se bebe caxiri (yadaaki) ao longo de vários dias. As festas ädeemi são caracterizadas por repertórios específicos de cantos cujos versos enunciados pelo dono de canto, o mestre cerimonial, são repetidos pelos participantes que, ao mesmo tempo, realizam sequências coreográficas ao redor do pilar central da casa comunal. Nesses festivais, há momentos em que a execução dos cantos para e dá lugar às músicas instrumentais tocadas por flautas de bambu (wana) e tambores (samjuda) que são acompanhadas por danças.
Os cantos ädeemi são bastantes extensos e são constituídos por vários conjuntos, com motivos melódicos (chäämadö) diferentes entre si, o que torna o seu aprendizado bastante complexo.
Entre as mais importantes cerimônias ädeemi, estão as festas da roça nova (tooki ou äddwaajä edeemi’jhödö), da casa nova (ättä ou mma edeemi’jhödö) e da caçada (tänöökö, maji ou wasai edeemi’jhödö).
A festa da roça nova deve ser feita quando as roças estão sem vida (tadonnhe’da) ou quando a mandioca-brava está apodrecendo muito cedo. A mandioca-brava tem um duplo (äkaato); ela é viva como uma pessoa, por isso os Ye’kwana cuidam das roças como se fossem seus filhos. Se não cuidar direito, as plantam ficam tristes e com raiva, como uma criança, e seus duplos retornam ao céu e as plantas aqui na terra ficam enfraquecidas. Por isso, a mulher precisa ir todos os dias na roça para alegrar sua plantação.
Os cantos feitos durante a festa äddwaajä edeemi’jhödö procuram trazer para terra o duplo (äkaato) da mandioca-brava principal que está no céu e que é a matriz de todos os cultivares. No ritual, a ligação entre as roças celestes e terrestres é refeita e as plantas voltam a crescer com vitalidade nas roças.
O ritual da construção e inauguração da casa (mma edeemi’jhödö) é feito toda vez que uma nova casa vai ser erguida na comunidade. Esse é o mais longo de todos, pois começa com a construção da estrutura, quando é colocado e erguido o pilar central da casa, e continua meses depois com a inauguração da casa. Os cantos ädeemi dessa festa são inúmeros e estão organizados em vários conjuntos que correspondem às várias etapas da construção da casa.
Uma importante etapa desse longo ritual chama-se odo’shankomo enno’jadö (“para afastar os espíritos ruins”) e é feita após o término da construção de casa, no mesmo dia ou depois. A festa de inauguração somente acontece depois dessa ação ritual, pois para uma família viver bem e com saúde naquele lugar é preciso afugentar os espíritos ruins.
As cerimônias ädeemi possuem um valor inestimável para os Ye’kwana, pois são feitas à imagem e semelhança das primeiras festas realizadas por seus ancestrais mais antigos.
Cantos acchudi
Os cantos acchudi são realizados cotidianamente e estão relacionados às práticas de cuidado, resguardo e proteção que fazem parte de todas as etapas de vida de uma pessoa. Tanto podem ser feitos no interior da casa comunal com a presença de toda a comunidade, quanto podem ser realizados no domínio restrito da vida familiar. Os cantos acchudi, apesar de serem considerados mais fáceis de aprender e mais curtos, são muito numerosos.
Esses cantos permitem aos Ye’kwana viverem bem, isto é, terem saúde e alegria. Há cantos acchudi para: a chegada de um recém-nascido; a primeira saída do bebê da casa onde nasceu; a criança pisar no chão com segurança; proteger da menina moça na primeira menstruação e durante seu isolamento; benzer a carne de caça, peixes e aves antes de serem consumidos pela primeira vez ou após um tempo de resguardo; afugentar espíritos ruins e inimigos da comunidade; benzer uma canoa nova, um tipiti ou outro objeto que será usado pela primeira vez... Além de inúmeros outros cantos acchudi, existem aqueles que curam (adonkwadö), isto é, restabelecem a vitalidade de uma pessoa.
Como disse o jovem pesquisador ye’kwana, Robélio Claudio Rodrigues (2019):
“Acchudi é muito importante para nós, povo Ye'kwana, serve para purificar algo e proteger a alma. O canto acchudi deve ser usado pelo ser humano desde o nascimento, durante o crescimento e até o resto da vida. Toda vez precisamos fazer acchudi antes de consumir qualquer carne ou usar algo. Mesmo o nosso alimento, nós cantamos para torná-lo comestível, porque todos são amoijhe (contaminados), fazem mal para nós. Com acchudi cuidamos da criança, para ela ter saúde, ter boa inteligência".
Quando se canta acchudi, um verso é enunciado logo após o outro – não há repetição como nos cantos ädeemi. Outro elemento que diferencia as duas categorias de cantos é o sopro (aji’mmadö) que caracteriza todas as performances de acchudi. Durante a realização de um canto ou após o seu término, o dono de canto sopra o objeto ou a pessoa que está recebendo aquela ação ritual – é o sopro que transporta a potência do canto para o objeto ou a pessoa, transformando-a.
Pessoa humana
A pessoa humana (soto) é composta várias almas ou duplos -äkaato ou äkaatokoomo, no plural – elementos autônomos e diferentes que podem se desligar do corpo quando a pessoa desmaia, adoece, sonha ou morre. O adoecimento de uma pessoa está diretamente associado à perda ou roubo de seus duplos por algum odo’shankomo (seres invisíveis perigosos).
Na literatura etnológica, a noção äkaato foi traduzida de diferentes formas: “princípio vital”, “duplo”, “alma”, “espírito”, “sombra”, “reflexo”, “eu imaterial” etc. Os Ye’kwana de Auaris costumam traduzir este conceito por “espírito” ou “alma”.
A pessoa possui duplos no interior de seu corpo: um dentro dos olhos e outro no coração. Costumam se referir ao duplo do olho usando os seguintes termos: ayenudu ekaato (“duplo do teu olho”) e äsejjedö (“tua sabedoria ou inteligência”). Já o duplo que fica no coração costuma ser chamado de yo’tadö (“seu meio ou cerne”) ou odo’tadö (“teu meio ou cerne”).
A presença do duplo do olho no corpo é o índice de vitalidade, pensamento próprio e inteligência. É no olho que está a verdadeira sabedoria. O termo äsejjedö (tua sabedoria) é uma das formas de denominar o duplo do olho – noção semelhante a de outros povos como os Waiwai, Kaxinawa, Marubo, entre outros. Os olhos abertos são expressão da presença do duplo do olho no interior da pessoa e são, portanto, um importante sinal vital. O duplo do olho costuma se desanexar do corpo durante o sonho e tais afastamentos (temporários, no melhor dos casos) podem provocar o enfraquecimento da pessoa.
Com a morte da pessoa, os duplos que se alojam nos olhos e no coração retornam a seu local de origem: ao céu do demiurgo Wanaadi. Além desses duplos de origem celeste, os Ye’kwana mencionam outros aspectos da pessoa que também são nomeados de äkaato. Estes estão ligados ao corpo, mas estão “fora” dele, pois são suas projeções. Remetem àquilo que em português denominamos de “sombra”, “reflexo” ou “imagem”. Há o duplo do sol (shii äkaato); duplo da noite (koijhai äkaato); duplo na água (na’kwa’ka äkaato); duplo no espelho (fekuudeaka äkaato) etc. Fotografias e imagens em vídeo de uma pessoa também são seus duplos. Os vídeos, especificamente, são chamados de äkaato ajäiyajä (duplo agarrado).
Esses duplos, após o falecimento da pessoa, retornam a seus locais de origem que são diversos. O duplo do sol retorna ao sol e a sombra que surge no chão à noite é devorada pela lua (Nuunä), ser canibal. A imagem refletida nos cursos d'água ficará com Wiyu, designação dos donos invisíveis das paisagens e dos seres aquáticos, uma das principais ameaças aos Ye’kwana. O duplo refletido nos espelhos viverá com Kaaju, maior inimigo dos humanos. Os duplos capturados pelos aparatos tecnológicos, como câmeras de vídeo, ficarão aprisionados nesses suportes.
Um outro aspecto da pessoa que surge com sua morte é denominado äkaatomjä ou äkaatomjödö (literalmente ‘ex-duplo’, ‘pretérito-duplo’ ou ‘o que foi o duplo’). Este ex-duplo é um espectro terrestre da pessoa que ganha corpo depois de seu falecimento. Ele refaz os caminhos percorridos em vida pela pessoa até finalmente retornar ao local de seu nascimento onde permanecerá para sempre ao lado do cupinzeiro onde foi está enterrada a sua placenta. Lauer (2005) descreve-o como um ser invisível que segue a pessoa enquanto viva e que, depois de sua morte, torna-se um espectro que pode assumir a aparência de um anão repugnante raramente visto. O ex-duplo gosta de alimentar vínculos afetivos entre o morto e seus parentes e amigos por meio de sonhos e de lembranças e isso é ruim para os familiares vivos, pois esse desejo de proximidade entre os mortos e os vivos pode se transformar em tristeza, adoecimento e morte.
Casas
Os Ye'kwana procuram viver sempre próximos a rios e igarapés. É por meio desses caminhos que navegam em seu território. Para escolher o local da habitação, é preciso conversar com os donos invisíveis daquele lugar: são os espíritos das serras, lagos, remansos ou de antigos pajés que viveram ali.
O ato de conversar com esses espíritos é tarefa dos pajés (föwai) ou donos de canto (acchudi edhaamo). Eles fazem um diagnóstico da área pretendida e negociam com esses donos. Uma vez concluída essa etapa, inicia-se a construção de uma casa provisória, um abrigo, até se estabelecerem definitivamente. Antes de se mudar, as pessoas esperam suas roças ficarem prontas.
Como disse Arvelo-Jimenez (1974), uma construção circular no meio da floresta evidencia a existência de uma comunidade ye'kwana. Antigamente, as famílias ye'kwana se abrigavam em uma casa coletiva e a mais utilizada era ättä, a casa redonda. Junto ao pilar central da casa há um espaço chamado anna (centro), onde dormiam os homens solteiros e eram feitas as refeições masculinas, as festas e rituais. Ao redor da anna, estavam os espaços reservados às famílias (ä’sa), cada uma com seu próprio fogo. Na parte externa da casa, está o terreiro chamado födoodo.
Além da ättä, existem outros dois tipos de casas construídas pelos Ye’kwana: koneedo ju’jä (“cabeça do peixe koneedo”) e famaakadi - que tem um formato retangular.
Uma das primeiras casas feitas por Wanaadi ganhou o nome de Kushamakadi e tinha esse último formato. Muito tempo depois, os irmãos Yudeeke e Shichäämöna construíram uma casa redonda (ättä) cujo nome é Waata’jödö, onde hoje está a serra de mesmo nome na região do Uraricoera, próxima à comunidade Waichannha.
É comum encontrar nas comunidades ye'kwana na Venezuela uma casa redonda (ättä). No Brasil, esse tipo de construção não é mais comum. Na década de 1960, na época da construção da pista de pouso em Auaris, os Ye’kwana viviam em uma casa redonda. Quando se mudaram para Fayya Ku’jännha, em 1974, construíram uma casa do tipo famaakadi, coberta com a palha de bacabeira. Era uma casa comunal, porém, algumas famílias decidiram construir casas separadas. No final de década de 1980, quando mudaram para outro lado do rio Auaris, cada pai de família decidiu construir sua casa própria com repartições internas para que suas filhas casadas pudessem viver ali com seus maridos e filhos.
No início dos anos 2000, com maior poder aquisitivo devido aos trabalhos assalariados, algumas famílias compraram telhas de alumínio, pois perceberam a durabilidade do novo material e a escassez de palhas na região. Atualmente, as casas ye'kwana são, em sua maioria, cobertas com a telha de alumínio. Ao lado da casa coberta com essa telha, há geralmente uma casa menor coberta com palha, onde os alimentos como o beiju são preparados.
Depois de mais de uma década sem uma casa redonda, o tuxaua de Fuduuwaadunnha decidiu construir uma ättä que foi concluída em 2016. Atualmente, a casa redonda nas comunidades ye'kwana não é utilizada como moradia permanente, mas é o espaço para reuniões, festas e onde todas as noites os homens se reúnem para trocar informações sobre o dia a dia e repassar notícias que chegam pela radiofonia.
Vida comunitária
Os Ye'kwana, como a maioria dos povos indígenas, transmitem seus conhecimentos oralmente. As crianças aprendem com seus pais ou parentes mais próximos, participando das atividades cotidianas: os meninos aprendem com o pai e as meninas com a sua mãe.
A coletividade é o mais importante valor para esse povo. Quando constroem uma nova casa ou vão derrubar a mata para fazer roças novas, todo mundo ajuda, tanto os homens, quanto as mulheres. As mulheres trazem o chibé ou o caxiri (yadaaki) e, assim, os homens não precisam ir comer em suas casas e passam o dia inteiro trabalhando. A união entre os membros é essencial para realizarem suas atividades.
Toda aldeia ye’kwana é cuidada por um tuxaua ou chefe que, na língua ye’kwana, é chamado de ädhaajä. É geralmente o fundador da comunidade. As decisões relativas à vida comunitária são tomadas por ele em diálogo com o conselho de lideranças formado por homens (inchonkomo) e mulheres respeitáveis (no’sankomo).
Antigamente, todo tuxaua era dono de canto. Ou seja, um atributo importante do ädhaajä é dominar os conhecimentos antigos, tais como o vasto repertório de cantos acchudi e ädeemi e conhecer as histórias wätunnä. Um bom chefe também é aquele que sabe manter a sua turma reunida e, para isso, existem cantos (wejumma) que são feitos com essa finalidade.
O chefe deve zelar pelo bem-estar da comunidade e orientar seus moradores. Participa das reuniões e encontros com os outros chefes ou representantes não indígenas. Antigamente, as mulheres da família do ädhaajä costumavam levar comida para as pessoas que estavam na annaka (centro da casa redonda), onde eram feitas as refeições coletivas. Hoje em dia, isso acontece somente em dias de trabalho coletivo ou festas.
Tradicionalmente, quando morre o tuxaua, a aldeia é abandonada, pois sua morte implica na mudança de lugar, na fundação de uma nova morada e na escolha de um novo tuxaua. Essa escolha era feita por pessoas sábias, geralmente mais velhas, e levavam em conta os conhecimentos de wätunnä e de cantos do futuro tuxaua, assim como a sua habilidade em aconselhar os jovens e outros membros da comunidade.
Há algum tempo comunidades ye’kwana começaram escolher o tuxaua por meio de votações. A comunidade inteira passa a escolher quem será o novo ädhaajä. Hoje em dia, é parte importante da política ye’kwana participar de reuniões com os não indígenas e por isso a pessoa que ocupa a função de chefe também deve saber falar o português para dialogar com os não indígenas e expressar suas reivindicações sobre os problemas que acontecem nas comunidades. Antes dos brancos e da escola fazerem parte da vida ye’kwana, não havia esse tipo de preocupação.
Nas atividades cotidianas de uma família, há a divisão entre homens e mulheres. Os primeiros têm atribuições de trazer a carne de caça para casa, pescar, abrir roça, limpar os caminhos da roça, construir a casa de sua família, fazer tönköi yedö (estrutura de madeira onde se coloca o tipiti), tecer o tipiti, balaio para servir beiju, peneira; construir canoa e zelar pelo bem estar da sua família e da comunidade, ou seja, participar das reuniões e decisões políticas comunitárias.
As mulheres cuidam das coisas mais importantes para os Ye’kwana: a alimentação e as pessoas. Elas cuidam da casa, dos filhos, dos cultivos nas roças; preparam a alimentação diária; buscam água fresca, lenha para assar beiju; ralam mandioca; fazem cestas wöwa, os ralos de mandioca (tadaddwe) e cozinham. Até hoje são mantidas essas divisões de tarefas entre os gêneros.
A produção e o cuidado com os alimentos
Os Ye'kwana são agricultores milenares e cultivam muitas variedades de mandioca-brava, banana, batata, abacaxi, milho, inhame, cará, batata-doce e abóbora, cana-de-açúcar e tabaco. Além disso, cultivam pimentas e produzem seus derivados como a jiquitaia, kasaakidi (molho de tucupi com pimenta), waduuwe (pimenta fresca pilada e misturada com massa de mandioca). Esses são os alimentos feitos com o que vem das roças ye’kwana. Em cada família, a mãe e suas filhas são responsáveis por cuidar da roça. A dieta alimentar tem sua base nos derivados da mandioca-brava, como beiju, farinha de mandioca, chibé e o caxiri (yadaaki, bebida fermentada feita à base de mandioca).
A seguir, uma descrição das principais etapas envolvidas na organização do trabalho nas roças e os rituais associados a essa importante atividade.
Em primeiro lugar, as lideranças da comunidade se reúnem e fazem um levantamento para saber quantas roças cada família pretende fazer naquele ano e depois de saber a quantidade total de roças marcam o dia do início dos trabalhos de derrubada. As pessoas se preparam para esse dia: separam suas ferramentas de trabalho e as mulheres idosas preparam awaana (plantas de proteção) e outras fazem yadaaki (bebida tradicional). Antes da derrubada, fazem um ritual para pedir autorização dos donos das árvores e para expulsar os espíritos ruins da área que foi demarcada pelos homens. Estes também são responsáveis por plantar no meio da roça pretendida as plantas que irão proteger os novos cultivos.
A primeira etapa da derrubada é fazer a limpeza embaixo das árvores grandes em todas as roças. Durante a limpeza, as mulheres participam levando alimentos aos homens, como chibé e caxiri. Durante o trabalho, os donos da roça (casal) são responsáveis pela coordenação dos trabalhos. A limpeza leva, em média, de sete a dez dias, dependendo quantidade de roças. Depois, fazem uma pausa para as pessoas caçarem por uma semana e nesse tempo alguns homens preparam os cabos de machado.
No dia da retomada do trabalho, na madrugada, os homens são convidados para comer na casa redonda (annaka) e a mulher que está coordenando os trabalhos femininos coloca um pó feito com a planta awaana na cabeça dos homens para protegê-los de acidentes. Então, eles partem para derrubar as árvores grandes com seus machados. Os donos da roça convidam toda a comunidade para um almoço ali na roça. Enquanto isso, os homens continuam trabalhando na derrubada das árvores e as mulheres servindo chibé e caxiri. Quando são roças não muito grandes, os homens derrubam, em média, duas roças por dia.
Quando chega a vez da última roça, os trabalhadores deixam uma pequena parte com árvores para serem derrubadas no dia seguinte, momento que terá início äddwaajä edeemi’jhödö (festa da roça nova). No último dia, logo de manhã, derrubam as últimas árvores e então preparam trompetes feitos com a casca da árvore momi, um tipo de vegetação secundária encontrada em roças velhas. Os homens com seus instrumentos musicais chegam de volta à comunidade e iniciam o festival äddwaajä edeemi’jhödö que tem duração de três dias e três noites. Geralmente, nessa cerimônia - mas não só - é realizado um canto ritual para chamar de volta as almas/espíritos da mandioca-brava (ädeeja) e de outras plantas, como banana, inhame, batata, batata doce etc., para fortalecê-las, resgatando sua vitalidade. Os alimentos plantados na roça (ädeeja) têm alma (äkaato) assim como as pessoas humanas.
Os trabalhos para derrubar as roças costumam acontecer nos meses de setembro, outubro ou novembro. A queimada das roças ocorre nos meses de fevereiro ou março e somente depois disso que é feito o ritual que afugenta seres maléficos que prejudicam o crescimento das plantas. Esses cantos rituais são feitos em todas as roças e, após a sua realização, começam os trabalhos para reunir as mudas e plantar nas roças novas. Depois de semear, é chegado o momento de cuidar para o mato não tome conta do roçado. Depois de um ou dois anos, a primeira colheita é planejada pelos donos da roça. Durante a colheita, os homens caçam e as mulheres ficam na roça. No dia seguinte, os homens comem na casa comunal e as mulheres oferecem um chibé doce chamado kushi.
Caçada e pescaria
A caçada é uma importante atividade masculina. As atividades de caça são sempre acompanhadas por regras de conduta visando à proteção do caçador, da sua família e da comunidade. Os homens que se encontram em resguardo, seja pelo falecimento de um parente, seja pelo nascimento de um filho, não podem caçar. A relação com os donos invisíveis dos animais está sempre em questão e não se deve despertar a sua fúria, pois são perigosos.
Assim como se deve pedir permissão aos donos do lugar onde se deseja construir uma nova comunidade, é preciso negociar com os espíritos mestres dos animais de caça. Não se pode agir de forma desrespeitosa durante a caçada e há inúmeros cuidados a serem tomados, entre eles, a prática de fincar uma vara com uma parte do corpo do animal no local onde foi abatido. Fazem dessa forma para que o dono da caça pense que o animal foi morto pela vara e não procure se vingar dos caçadores ye’kwana.
Antes da incorporação das espingardas, os Ye’kwana fabricavam belos arcos e flechas para caçar. Outro artefato característico desse povo eram as zarabatanas que nas trocas com outros povos indígenas da região das Guianas eram bastante apreciadas ao lado dos ralos e das canoas. A caçada com as longas zarabatanas ye’kwana dependiam do uso do curare (veneno de caça) que era aplicado nas setas – o alvo eram as aves. Hoje esse tipo de caçada não é mais comum.
Entre as caças mais consumidas estão os veados, as pacas, queixadas, antas e alguns pássaros como mutum, tucano, arara, inhambu e jacamim.
Há duas “caças” que são eminentemente femininas e que existem somente na região de Auaris: moto, um tipo específico de minhoca, e o kudu, minhocoçu. Wätunnä conta que moto foi trazido do céu e “plantado” no território tradicional ye’kwana e é considerado um dos poucos alimentos amoijhe’da (“não contaminado”) e é por isso um alimento perfeito do ponto de vista ye’kwana: nutritivo e sem veneno.
Outros animais apreciados são algumas lagartas comestíveis e as formigas sedi e ködhakwä.
Atualmente, a região sofre com a escassez de animais de caça devido ao aumento demográfico, à sedentarização da população e ao uso de armas de fogo pelos moradores durante as caçadas. Antes da chegada de não indígenas em Auaris, os Ye'kwana e seus vizinhos yanomami, os Sanöma, viviam com maior mobilidade; não ficavam mais de cinco anos no mesmo lugar e construíam suas novas casas onde havia fartura de caça e pesca. Com a presença não indígena na região, as comunidades começaram a se aproximar, atraídas pelos bens manufaturados trazidos pelos brancos, e com isso aumentou a pressão sobre os recursos naturais, principalmente, os animais de caça, os peixes e as palhas.
Existem vários modos de pescar, mas certamente o mais apreciado são as pescarias coletivas feitas com timbó ayaadi. Nesse momento, toda a comunidade participa, cada um carregando o seu puçá (faaji), rede em forma cônica montada em um aro, que é fabricada pelos homens. Assim que o efeito do veneno é sentido os peixes menores aparecem na superfície da água e se tornam presas fáceis. Ao lado da área onde estava sendo realizada a pescaria, as famílias acendem pequenas fogueiras para assar alguns peixes que servem de almoço rápido. A maior parte dos peixes pescados será moqueada nas casas das famílias e será um importante complemente na dieta alimentar da comunidade por um tempo.
Os peixes na região de Auaris são pequenos, pois por causa das cachoeiras os peixes maiores não conseguem subir. Na década de 1980, malhadores e redes de pesca começaram a ser usados e a partir daí as pescarias aumentaram bastante. Ainda há um descontrole no uso da rede de pesca até mesmo durante o tempo da piracema. Em Auaris, as áreas de caça e pesca estão mais distantes. Os animais de caça podem ser encontrados a um ou três dias caminhada, em caminhos que atravessam a fronteira Brasil-Venezuela nas direções leste, oeste e norte da região.
Ao contrário do acontece em Auaris, há nas comunidades Kudatannha e Waichannha fartura de peixes grandes e animais de caça. Ali, os peixes são diferentes daqueles que existem acima da Cachoeira Tödömmadö, situada depois de Kudatannha, subindo o curso do rio Auaris. Abaixo dessa cachoeira há ambientes, plantas e animais que não existem na região de Yujudunnha –território tradicional – rio acima. Segundo uma história antiga (wätunnä), a diferença de paisagens e habitantes que há nessa região deve-se a uma pessoa chamada Adaajaiyana que não deixou a garça vomitar peixes grandes no território demarcado pelo ancestral Kuyuujaani, somente os pequenos. Adaajaiyana pediu para que a garça os levasse para bem longe. Antigamente, os Ye’kwana não consumiam os peixes e animais que viviam abaixo da Cachoeira Tödömmadö, pois por não serem alimentos de seu território tradicional poderiam trazer doenças. Naquele tempo, quando as pessoas passavam por regiões a jusante levavam masoya, um tipo de lagarto, alimento ideal para as viagens.
A (re)introdução de peixes (kudaaka), animais quadrúpedes (odookoja’komo) e aves (tadinhaamo) na dieta alimentar de uma pessoa deve ser mediada por cantos de desintoxicação ou purificação chamados tänäämö yacchuumadö. Em geral, o dono de canto recebe um embrulho com o pedaço da carne enrolado em um beiju e amarrado com fibra de curauá e durante o canto vai soprando esse alimento, tornando-o próprio para o consumo. A carne deverá estar moqueada, sem qualquer sinal de sangue do animal abatido.
Uma criança ye’kwana ou um adulto, após um período de resguardo, deve incorporar pouco a pouco em sua dieta novos alimentos. Assim passa-se do alimento menos perigoso (amoijhe’da) ao mais contaminado e perigoso (amoijhe). Do chibé morno e do consumo da minhoca moto, passa-se aos pequenos peixes; em seguida, aos peixes maiores; às aves de carne branca, preferencialmente; e, por último, carne de caça. A cada novo alimento introduzido na dieta alimentar, o canto tänäämö yacchuumadö deve ser feito, como se esse nunca tivesse sido consumido antes.
Centralidade das roças
A mandioca-brava é, sem dúvida, um dos elementos centrais na dieta alimentar dos Ye’kwana, assim como de outros povos. O cultivo da mandioca-brava é uma prática envolve a produção do alimento verdadeiramente saudável e também diz respeito a um modo de viver muito antigo extremamente valorizado pelos Ye’kwana.
Todos os tipos de mandioca-brava hoje produzidos nas roças ye’kwana têm sua origem em uma única maniva, roubada de uma roça celeste e plantada na terra. Primeiro, foi plantada fora do território ye’kwana, onde hoje é o Monte Roraima (Dodoimä’jödö), e depois foi transplantada no alto rio Orinoco, onde hoje se encontra a Serra Marawaka (Madaawaka’jödö). Ambas as serras são tepuis, um tipo de formação rochosa que tem o formato de uma mesa, com paredes íngremes e o topo plano, e são o que sobrou das árvores gigantescas repletas de frutos que existiram no início dos tempos e que foram cortadas pelos antigos.
A mandioca-brava é uma planta de origem celeste e foi trazida por uma pessoa que vivia na terra no tempo em que todos se alimentavam com argila. O nome utilizado nos cantos rituais para denominar essa “maniva primordial” é ädeeja.
A história narra a saga de Wayaama, um Kuichui (jupará), que foi para o céu em busca da maniva. Subiu nas árvores mais altas que havia em busca de um caminho até a roça de Udeenadiwa no céu. O jupará roubou um pedaço da mandioca-brava e escondeu-o em sua unha e depois de muito ser perseguido (inclusive morto), voltou à terra para plantar o primeiro pé, onde hoje é o Monte Roraima. A ädeeja cresceu rapidamente e se transformou em uma árvore enorme cheia de frutos. Por ficar longe demais de onde viviam as pessoas, a árvore foi derrubada e uma nova muda foi levada à região de Yujudunnha, próxima de suas casas. A primeira tentativa foi frustrada, pois a planta foi estragada por inimigos e não cresceu. Uma nova tentativa aconteceu. As pessoas responsáveis pelo transporte da planta andaram por caminhos protegidos para não atrair a atenção dos inimigos que queriam roubar a ädeeja ou estragá-la.
Na segunda tentativa, na região do alto Orinoco, a planta vingou e de um dia para outro a maniva se transformou em uma árvore gigantesca, cuja abundância de frutos alimentou muita gente. Mas a árvore era grande demais e por isso quando os frutos maduros caiam acabavam matando as pessoas que estavam ali embaixo. Decidiram derrubar a árvore Madaawaka e distribuir os talos de mandioca entre todas as pessoas que ajudaram a tombá-la. As mudas tiradas de Madaawaka deram origem a todas as plantas cultivadas nas roças dos Ye’kwana e de outros povos, não só à mandioca-brava, mas também ao milho, à batata doce, ao inhame, ao cará, à abóbora, à banana, à cana de açúcar, ao cubiu, à cabaça etc.
Após esse grande acontecimento, inúmeras transformações se deram, como a diferenciação entre línguas faladas pelas pessoas e a diferenciação entre povos – e cada um agora tinha a sua própria roça. Depois da derrubada de Madaawaka, todos participaram da primeira grande festa que existiu na terra chamada äddwaajä edeemi’jhödö. É essa cerimônia que os Ye’kwana realizam assim que terminam de derrubar as últimas árvores de suas roças novas.
É importante destacar que apesar da mandioca-brava ter sido plantada na terra, as pessoas daquele tempo não sabiam prepará-la, isto é, extrair o seu veneno (eke) e fazer o beiju. De acordo com os dados de Guss (1989), foi Edodicha, um poderoso pajé, que trouxe de um plano celeste, os materiais e os conhecimentos relativos à fabricação dos objetos usados para preparar a mandioca-brava: o ralo (tadaddwe), tipiti (tönköi), o cesto onde se apóia a massa (waja tönköijhato), a peneira (manaade), a chapa onde se assa o beiju (fötadi), o abano para o fogo (wadiwadi), cestos cargueiros feminino e masculino (wöwa e tudui), entre outros.
Cuidar das roças é uma prática eminentemente feminina. A dona da roça (äddwaajä edhaajä) se refere a ädeeja (mandioca-brava e outros cultivares) usando o termo önnedö (“meu filho”).
Mulheres, as donas dos alimentos
Autoria ye’kwana: Alerina Perez e Carmen Gimenes
A mulher cuida das plantas cultivadas na roça como se fosse a mãe delas. É ela que prepara os alimentos para a sua família. O homem é como se fosse o pai das plantas. É ele que derruba as árvores para fazer a roça e às vezes vai lá olhá-la. Ele limpa o caminho, faz a barraca na roça, faz os objetos usados no preparo dos alimentos como o tipiti, a peneira, o balaio etc. A mulher vai todo dia à roça para ver se está tudo bem, se há pessoas desconhecidas mexendo ali. Faz igual aos donos das roças que existem lá no céu, que sempre estão cuidando de suas plantações.
A roça dela é como se fosse um filho. Se ela não for lá olhar, a mandioca-brava vai se zangar: “Minha mãezinha não vem me ver”, assim ela vai dizer. Quando tira o mato que cresce na roça, a mandioca-brava fica contente: “Minha mãezinha cortou o meu cabelinho”, diz. Ela fica saudável e cresce. Se a dona da roça não for lá ver, não for capinar, a planta fica triste com ela, porque não consegue olhar para o lado por causa do cabelo crescido e, então, morre.
A mulher leva a sua filha quando vai à roça para mostrar o seu trabalho e ensiná-la. Ensina como capinar, como arrancar a mandioca-brava da terra e replantar as manivas. Para plantar na roça nova, é preciso realizar o canto ewansokwaatojo, fazer os buracos na terra e colocar as manivas. É isso que os Ye’kwana ensinam a suas crianças, para que tenham experiência em cuidar do alimento das futuras gerações.
A roça é muito importante para os Ye’kwana, porque nos dá vida e faz nossos filhos crescerem. Sem os alimentos originários, não vivemos. Kuichui, o jupará, sofreu por nós ao trazer do céu os alimentos que antes não existiam aqui na terra. Ele viu o sofrimento dos Ye’kwana que não tinham roça e somente se alimentavam com argila. É por isso que os Ye’kwana cuidam bem de suas roças. A sua mãe e a sua avó vão todos os dias à roça tirar as ervas daninhas. Cuidam de suas plantações, não deixam o mato crescer e aproveitam para replantar as manivas e não perder o cultivo.
No primeiro plantio, a gente coloca no centro da roça as plantas principais e faz cantos para que elas fiquem com vitalidade. Depois, a gente faz os buracos para colocar as manivas. Primeiro, plantamos milho, cará, inhame, banana, cubiu, abóbora, cabaça e cana-de-açúcar. A partir daí, é só cuidar até o amadurecimento das plantas. A primeira colheita é sempre de milho. Depois vem abóbora, banana, abacaxi, cana-de-açúcar, pimenta, cubiu. Antes de consumir cada um desses alimentos, é preciso fazer yacchummadö, isto é, cantar para torná-los comestíveis, pois esses alimentos estão amoijhe, fazem mal para nós. Se a pessoa consumir um alimento sem que o canto yacchummadö tenha sido feito, muitos acidentes podem acontecer: ter o corpo furado com pedaços de madeira; engasgar com o alimento e ficar sem respirar; ter feridas no corpo; nascimento de uma criança com deficiências etc. Esses cantos vieram do céu e foram dados por Udeenadiwa e Wadaayuni, gente celeste que é dona dos alimentos que cultivamos aqui na terra.
A mandioca-brava plantada na roça nova é colhida dois anos após o plantio. Então, a dona da roça deve avisar o seu esposo e, em seguida, o acchudi edhaajä (dono do canto) que realizará os cantos. A mulher avisa a seus irmãos que organizarão a caçada coletiva. Os homens vão caçar inhambu e pescar com timbó e, quando voltam, trazem em suas mãos as caças embrulhadas em folhas. Nós replantamos as manivas até que não tenham mais força e não consigam mais crescer. Quando isso acontecer, a dona da roça vai querer uma nova roça para mudar de lugar as mandiocas-bravas e as outras plantas que cultiva.
A roça é muito importante, pois é o lugar de nossos alimentos. Essas são as nossas plantas. Não nos alimentamos de outra forma, nós comemos beiju com carne e esse é o alimento certo para as crianças crescerem com vitalidade. Nós também somos produtores de yadaaki, a bebida fermentada de mandioca-brava.
* Originalmente publicado no livro Território Ye’kwana: a vida em Auaris (2017)
Artes
Entre os Ye’kwana, não faz sentido falar das artes como algo separado de outros domínios da vida. Assim como outras habilidades, a capacidade de fabricar artefatos, por exemplo, é expressão de uma pessoa que é sábia, tawaanojo’nato. Essa sabedoria encontrada na arte de fazer com perfeição objetos importantes para o seu modo de vida encontra a sua base nas histórias antigas (wätunnä), nos cantos e nos conhecimentos rituais necessários para se viver bem.
Nesse sentido, as pessoas que se destacam em uma comunidade por serem excelentes “artistas” são sábios, pois dominam não somente os conhecimentos técnicos envolvidos na fabricação do objeto, mas também todas as relações que estão em jogo nessa produção, isto é, os espíritos e donos dos recursos utilizados nas chamadas “artes” e os seres invisíveis com os quais os Ye’kwana esperam se comunicar ao fazer uso de certa vestimenta, adorno, artefato etc. As artes ye’kwana estabelecem diálogo com seres diversos ora para se proteger e afugentá-los, ora para incorporar qualidades desejáveis desses espíritos ou donos invisíveis.
Todo artefato tem sua história wätunnä, pois surgiram no tempo da criação das primeiras pessoas humanas na terra. O demiurgo Wanaadi e seus auxiliares criaram ferramentas próprias para os humanos viverem bem. Assim surgiram os objetos necessários para produzir os derivados da mandioca-brava, as inúmeras armas de proteção contra os inimigos e artefatos usados para caçar e pescar.
Os jovens têm aprendido a fazer, principalmente, os objetos trançados e as pinturas corporais. Muitos começaram a inventar padrões de desenhos diferentes dos tradicionais, trazendo inovações.
Os Ye’kwana são protegidos pelas artes, por suas forças invisíveis, pois, como dissemos, são formas de comunicação com seres invisíveis. As pinturas são feitas com padrões gráficos, com significados próprios, e por meio delas se dá a transformação do corpo da pessoa ou objeto. As tintas são feitas com resina perfumada e plantas com qualidades protetivas e então, ao estabelecer contato com o mundo invisível, os Ye’kwana e os objetos que fabricam ficam protegidos. Sem as imagens e seus poderes invisíveis, os Ye’kwana não conseguiriam viver bem.
Arte de trançar
Os Ye’kwana são especialistas na arte do trançado e os seus cestos são bastante conhecidos e apreciados. As imagens produzidas pelos motivos gráficos de seus cestos são resultado de um trabalho meticuloso e complexo e o refinamento técnico é uma característica marcante. Usam fibras de vegetais como cipó titica, arumã, curauá, envira, bambu etc. e com elas produzem tipitis, peneiras, jamanxins, balaios, cestos e suporte para ornamentos. A fabricação de cada um desses objetos exige conhecimentos muito precisos sobre a matéria-prima a ser utilizada, o ato de entrecruzar as fibras e saberes ligados aos cuidados de sua produção e uso.
Os motivos gráficos tradicionais, muitos zoomórficos ou antropomórficos, são produzidos na cestaria, seja pelo próprio modo de entrecruzar as talas de fibra, seja pelo uso contrastivo de fibras de cor natural e fibras pintadas de preto ou vermelho, que produzem motivos complexos.
Os donos das histórias contam que a maior parte das cestarias feitas pelos Ye’kwana foi criada para permitir o processamento da mandioca-brava, tornando-a própria ao consumo humano. Antigamente, havia uma roça grande chamada Faduuwaka e nela foram plantados todos os tipos de mandioca. Quando chegou a época da colheita, os Ye’kwana não tinham onde carregar. Buscaram arumã e cipó e fizeram cestas para os homens (tudui) e para as mulheres (wöwa). Também fizeram peneira, tipiti, balaio, abano para virar beiju etc. As cestas wöwa e tudui, hoje em dia, são usadas em diversas situações: quando saem para caçar; vão fazer viagem longa; ou para carregar outras coisas no dia a dia.
A cestaria é uma habilidade que indica a maturidade de uma pessoa, seja ela homem ou mulher. Antigamente, um homem adulto deveria dominar um repertório extenso para sustentar sua família, isto é, fazer os cestos que são essenciais para a produção dos alimentos derivados da mandioca-brava, como peneiras, tipitis, balaios, abanos etc., e também os cestos cargueiros (tudui) – entre outros artefatos como canoas, remos, zarabatanas, arcos e flechas, puçás etc. As mulheres, por sua vez, fabricam exclusivamente os cestos cargueiros (wöwa) que, em tamanhos grandes, chegam suportar 60 quilos de produtos da roça.
No caso dos balaios com motivos gráficos (waja tömennato), o seu surgimento remete a uma outra história. Os sábios contam que estes se originaram de uma linda cesta de um ser canibal, um macaco gigante que devorava humanos. As pessoas decidiram se vingar dele e matá-lo. Ao matar, viram que ele tinha uma cesta muito bonita repleta de desenhos e dentro dela tinha plantas, venenos e remédios de todos os tipos. Foi assim que os Ye’kwana aprenderam a fazer suas cestas e passaram a copiar os grafismos desse ser canibal. As plantas também foram levadas à comunidade e passaram a ser usadas como medicina. Os mais velhos dizem que os desenhos que estavam no cesto desse macaco canibal não podem ser colocados em qualquer objeto, como na tanga feminina ou no balaio onde os alimentos são servidos, pois podem causar mal às pessoas que estiverem utilizando-o.
Hoje em dia vários desenhos são inventados pelos jovens que dominam as técnicas do trançado: colocam nomes próprios nos balaios e outras coisas que acham bonito. As mulheres e os homens costumam fazem cestas, cestinhas e balaios com belos padrões gráficos para comercializar, pois são muito apreciados.
Adornos corporais
A maior parte dos adornos corporais é feita com miçangas. Há uma relação muito antiga e forte dos Ye’kwana com as miçangas. Miçanga em Ye’kwana é mayuudu. A importância desse elemento na cultura ye’kwana é tal que cada ciclo de vida é festejado com um novo conjunto de miçangas.
Até ganhar o seu primeiro conjunto de mayuudu, composto por tanga (para meninas), colares e pulseiras, o bebê não pode encostar o pé no chão e nem pegar qualquer objeto, pois está vulnerável aos maus espíritos (odo’shankomo). Somente após o ritual chamado Shiichu’kä innhö’tädö o bebê receberá as suas miçangas e poderá tocar seus objetos, apoiar no chão e sentar no balanço akai. Quando a menina menstrua pela primeira vez deve passar por período de reclusão de um ano. Nesse tempo, a menina moça (aji’choto) deverá usar somente um colar com miçangas azuis escuras (fuduumamo) e, na pintura corporal, apenas a tinta preta preparada com resina adhaawa. Depois da reclusão, haverá o ritual de embelezamento Mayuudu nhöödö, quando ganhará um novo conjunto de miçangas – dessa vez usará miçangas diferentes e outros tipos de pintura.
As histórias wätunnä narram a primeira vez que esses rituais aconteceram e ensinam como devem ser feitos ainda hoje pelos Ye’kwana.
Majaanuma [Wanaadi], o dono do mundo, criou seus auxiliares Yuduwaana, Maseewi, Wanöömä, Mayya, Adajaiyana e Kiyujani. Ele também criou uma mulher chamada Kushiimedu, que teve um casal de filhos: uma menina chamada Yakaadena, e um menino chamado Kwamaashi. Enquanto o Kwamaashi estava na floresta com avó Kashimanaawö, Majaanuma mandou a avó colocar o neto entre as pernas e esticar ele, para crescer rápido. Enquanto a avó e o neto estavam no mato, Majaanuma foi buscar a miçanga no Kajuuweninha (céu) com as Dinhawaayu, Manhudi e Motoiyana e trouxe também as tintas como Ayaawa, Tunuunu, Weshu (urucum), Ködaayu (tipo de cipó), que servem para o embelezamento. Assim que chegou com esse material aqui na Terra ele benzeu com uma planta chamada aadeji para não ter problema ao usar a miçanga.
Kwamaashi retornou da floresta já adulto. Assim que chegou o avô fez seu embelezamento com miçanga e pintura corporal. Depois Yakaadena, irmã de Kwamaashi, teve uma filha chamada Kumaayudumjano. Majaanuma entregou a miçanga para o embelezamento da criança. Antes disso a mãe fez tanga, colar e pulseira. Esse foi o primeiro ritual de embelezamento de criança. Quando a Kumaayudumjano ficou moça, Majaanuma entregou mais miçanga à mãe da moça, e então a mãe fez tanga, colar, pulseira e brincos maiores, além da pintura corporal e de colocar penugem de águia. Yakaadena também fez vários tipos desenhos de miçanga para bordar na tanga.
Depois de Majaanuma, o Seduume fez a mesma coisa para embelezar sua filha Wanaashichaawa. Yuukuna, porém, não queria que a miçanga ficasse aqui nessa terra, e levou-a de volta para o céu. Só ficamos com as tintas Ayaawa, Tunuunu, Weshu, Ködaayu, porque foram plantadas. Assim perdemos a miçanga, que foi entregue a outros povos. Atualmente, o dono da miçanga e do ferro é chamado Uune.
Conheça o vídeo sobre a história da mayuudu, dirigido pelos realizadores ye’kwana Júlio David Magalhães Rodrigues e Maurício Tomé Rocha e feito em parceria com o Museu do Índio/Funai.
A miçanga na perna, usada pelas mulheres, chama-se fedeekuni na cor branca e fedekawi na cor azul. A miçanga branca usada no pulso, tanto pela mulher com pelo homem, chama-se omokawi.
Alguns adornos são usados para o embelezamento dos homens como o colar de dentes de porco do mato e o cocar com as penas de algumas aves como arara e papagaio. Ao mesmo tempo, quando homens e mulheres usam todos os adornos, colocam sobre a pintura corporal penugens de gavião, que ficam coladas ao corpo. Usam enfeites durante as festas tradicionais ou quando estão fazendo trabalhos coletivos como a derrubada das roças e a construção de casas.
Algumas tintas são benzidas (sopradas) pelos pajés ou donos de canto para que protejam o corpo da pessoa contra os maus espíritos que circulam na floresta. Os donos invisíveis das serras e dos rios são os mais perigosos e gostam de atacar crianças e recém-nascidos. Quando viajam no rio ou pelo mato não podem sair sem pintar o rosto, o corpo (tórax) ou o pé para se protegerem contra cobras venenosas.
As pinturas do corpo são comuns a ambos os gêneros, mas alguns desenhos não podem ser utilizados no corpo das mulheres. Para decoração do corpo humano, qualquer motivo gráfico aplicado nas miçangas e nas cestarias pode ser usado.
As tintas corporais são corantes vegetais e são preparadas por homens e mulheres. O weshu (urucum) é plantado nas comunidades e também pode ser encontrado no mato. Algumas tintas são encontradas nas entrecascas de árvores, nas folhas do cipó ködaayu e no suwö, outro cipó. Outro importante ingrediente das tintas são as resinas perfumadas extraídas das árvores ayaawa e tunuunu. Apesar de seu cheiro gostoso, agem contra os espíritos ruins, os odo’shankomo, mantendo-os afastados das pessoas.
Para os Ye’kwana, existem duas cores que são usadas nas pinturas dos objetos e dos corpos: a preta e a vermelha. Existem três formas de pintar o corpo: com o dedo, com uma tala fina e com o carimbo akaajä. Geralmente, as crianças, as meninas-moças e as mulheres em resguardo podem ser pintadas com o dedo.
O carimbo (akaajä) é feito de pedaço de madeira e é entalhado com cuidado de forma que o desenho saia muito bem feito. O trabalho de esculpir o carimbo é feito pelos homens e o padrão pode ser na forma de qualquer grafismo ye’kwana. Aplica-se a tinta sobre o carimbo e então coloca-o no corpo.
Antigamente, os Ye’kwana usavam no dia a dia as tangas masculinas e femininas. Hoje em dia, usam os adornos por cima das roupas. Somente quando fazem as festas é que colocam todos os adornos e pinturas como faziam os antigos. Dessa forma, os mais velhos recordam o passado e sentem como se estivessem no tempo dos antigos, vendo seus filhos e netos dançando do jeito que Wanaadi ensinou.
Quando usamos os adornos e as pinturas corporais, a festa fica mais feliz, com mais colorido como tem que ser. Os barulhos das sementes usadas nas tangas e no chocalho são sons que se misturam com o canto do cantador, seja durante o dia ou à noite. Quando estamos rezando e cantando, estamos pedindo autorização para os donos dos elementos que foram trazidos do mato. Quando derrubamos as árvores para fazer as roças, para não ter problemas, respeitamos os donos que são invisíveis, circulam no ar em qualquer lugar, são sobrenaturais e somente os pajés podem ver e falar com eles. Os invisíveis são os verdadeiros donos dos rituais, dos cantos e dos instrumentos musicais. Júlio David Magalhães Rodrigues, 2014
Novas formas de organização política
A Associação Wanasseduume Ye’kwana (SEDUUME) é única organização representativa dos Ye’kwana no Brasil. Sua diretoria é constituída por representantes eleitos em assembleias gerais do povo. A SEDUUME tem uma sede própria em Boa Vista (Roraima) que conseguem manter graças às contribuições mensais dos associados ye’kwana que são assalariados.
Até 2016, o seu nome era Associação do Povo Ye’kwana do Brasil (APYB). Foi criada em 2006, mas ficou inativa até 2011, quando ganhou força a partir da dedicação de Castro Costa da Silva, o primeiro presidente. É relativamente recente o contato e envolvimento dos Ye’kwana com as organizações governamentais e não governamentais dos não indígenas. Também é nova essa forma de organizar os interesses dos Ye’kwana em uma associação.
Tradicionalmente, toda aldeia tem o seu tuxaua (ädhaajä) e o conselho de lideranças homens e mulheres (inchonkomo e no’sankomo) que cuidam da organização local e do bem-estar da comunidade. No entanto, com a intensificação das relações com os não indígenas, o acesso às políticas públicas e a necessária luta pelos direitos indígenas, surgiu a necessidade de terem uma associação que os representasse nesses diálogos com as organizações dos não indígenas.
Além disso, a criação da associação foi pensada como uma forma de organizar a luta contra as ameaças a seus territórios, especialmente, o garimpo de ouro que existe há décadas na TI Yanomami. A presença de garimpeiros ilegais na região do Rio Uraricoera é antiga e ainda é uma das principais ameaças enfrentadas hoje pelos povos Ye’kwana e Yanomami. A comunidade Wachannha, situada na margem esquerda desse rio, é uma das mais afetadas pelo garimpo e pela contaminação decorrente desta atividade predatória.
A SEDUUME busca dialogar com as lideranças locais, ouvindo as suas demandas e encontrando soluções aos problemas que as comunidades vêm enfrentando, seja na questão da saúde, educação, proteção territorial etc. Além disso, também tem o compromisso de fortalecer a luta dos povos indígenas, em Roraima e no Brasil, pela defesa de seus direitos e territórios. A organização ye’kwana vem trabalhando ao lado de outras associações indígenas como a HAY (Hutukara Associação Yanomami) e o CIR (Conselho Indígena de Roraima) e tem buscado parcerias com organizações não indígenas.
Em 2014, a associação ye’kwana concebeu e organizou o projeto Aasseseimä, uma grande expedição fluvial pelos rios Branco, Uraricoera e Auaris, que teve o apoio da Fundação Ford e CNPq. Também desempenhou um papel importante na construção do Projeto Político Pedagógico das escolas ye’kwana aprovado em 2016. Entre 2015 e 2017, a SEDUUME em parceria com o ISA realizou um levantamento socioambiental da comunidade Fuduuwaadunnha na região de Auaris. O trabalho resultou na primeira publicação concebida e feita por essa Associação, Ye’kwana Nonoodö, que traz um histórico das antigas comunidades ye'kwana na região do Rio Auaris e as propostas da comunidade para enfrentar os principais problemas identificados pelo levantamento.
Além de participar do movimento indígena em Roraima, a SEDUUME é parceira das organizações indígenas que representam os diferentes grupos yanomami, pois há um interesse comum na construção a governança interna da TI Yanomami. Desde 2015, as associações indígenas que atuam nessa TI têm se reunido em importantes encontros como o Encontro Binacional Yanomami Ye’kwana, as oficinas para a elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Yanomami (PGTA-TIY) e o Protocolo de Consulta, finalizados em 2019. O Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana é expressão dessa união em prol da luta pela integridade da TI Yanomami.
Nas edições do “Encontro Binacional Yanomami Ye’kwana”, as lideranças ye’kwana do Brasil tiveram a oportunidade de se aproximar das organizações ye’kwana existentes na Venezuela como a Asociación Kuyujani Originario, a Asociación Ye’kwana del Alto Ventuari Kuyunu e a Organización Indígena de la Cuenca del Caura Kuyujani. Foi um passo muito importante para a união dos Ye’kwana e de suas organizações políticas e para o fortalecimento da luta pelos direitos indígenas e o combate às ameaças aos territórios que estão nos dois lados da fronteira.
Outra iniciativa da associação foi por em prática a ideia proposta por lideranças ye’kwana de produzir cacau nativo para comercialização. A principal motivação era gerar renda adicional para os moradores da região do Uraricoera e bater de frente com a lógica destrutiva do garimpo que destrói a floresta e contamina os rios e tudo ao redor. Lideranças ye'kwana se deram conta de que a floresta oferece outro “ouro”: o cacau nativo.
Em julho de 2018, em Waichannha, a SEDUUME promoveu uma oficina, com apoio do ISA e parceria do Instituto ATÁ, para que o chocolatier César de Mendes mostrasse aos indígenas de diferentes comunidades da região as técnicas de colheita e processamento dos frutos do cacau para produção da matéria-prima para chocolates finos. Naquela ocasião, foi produzida a primeira barra de chocolate da história da Terra Indígena Yanomami. Em 2019, o primeiro lote do Chocolate Yanomami, produzido com cacau nativo beneficiado na comunidade Waichannha e transformado em 1.000 barras de 50g por Mendes, foi apresentado ao público em São Paulo.
Entre 2017 e 2020, a SEDUUME esteve engajada na realização de uma parceria com o Museu do Índio/Funai, no âmbito do Programa de Documentação de Culturas e Línguas Indígenas. Fruto de uma colaboração entre pesquisadores não-indígenas, pesquisadores ye’kwana e a associação, o projeto Aaseesewaadi: documentação de cantos do povo Ye’kwana teve como objetivo principal documentar cantos tradicionais do povo Ye'kwana, um dos pilares de seu modo de vida.
Situação socioambiental de Auaris
Antigamente, os povos Ye’kwana e Sanöma mudavam suas comunidades de lugar depois de um certo tempo. Os motivos para a mudança eram diversos. Muitas vezes, quando os recursos ambientais davam sinais de alguma escassez, iam viver em outro lugar, onde havia áreas mais férteis para o plantio e com maior disponibilidade de caça, peixes etc.
Com a intensificação do contato com os não indígenas, esse padrão de mobilidade sofreu uma grande transformação. Os Ye’kwana, e muitos grupos sanöma, param de se deslocar no território e fixaram suas aldeias em locais próximos da pista de pouso, de onde partem os aviões que vem e vão à Boa Vista e onde têm acesso a diferentes coisas vindas da cidade.
Décadas atrás, contam os Ye’kwana, seus pais e avós iam de canoa até Boa Vista e Manaus e, no caminho, trocavam objetos com outros povos. Nessa época, conheceram alguns brancos que disseram ser perigoso descer o rio de canoa devido à grande quantidade de cachoeiras e os convenceram a construir uma pista em Auaris para facilitar o acesso a vacinas, remédios e objetos e diminuir o tempo de deslocamento até a cidade (a distância entre Boa Vista, capital de Roraima, e Fuduuwaadunnha é de aproximadamente 440 quilômetros, e a viagem em avião monomotor tem duração de duas horas).
Do alto de um avião, jogaram todo o material necessário para abrir a clareira e foi assim que os Ye’kwana ajudaram a construir a pista. Antigamente, moravam onde hoje estão as comunidades dos Sanöma. Quando eles chegaram nessa região, fizeram suas aldeias na margem direita do rio Auaris e, logo, começaram a se aproximar dos Ye’kwana.
A presença da MEVA atraiu os Sanöma para a região, especialmente, por causa dos remédios e objetos trazidos pelos missionários. Depois, chegou o atendimento de saúde.
O que é doce, o que atrai as pessoas para Auaris é a pista de pouso e o posto de atendimento à saúde e por isso estamos vivendo nessa área há mais de 50 anos.
A população indígena na região aumentou muito e hoje vivem uma situação muito difícil. Sofrem com o esgotamento ou a pouca disponibilidade de recursos que são muito importantes para os seus modos de vida, como as palhas e madeiras usadas na construção das casas e na fabricação de canoas, remos, ralos, bancos etc. As pessoas precisam andar cada vez mais longe para buscar esses recursos. Também há baixa disponibilidade de animais que costumam caçar e pescar na região de Auaris.
Suas roças também estão enfraquecidas, pois não há áreas de mata primária (iyeejano) perto das comunidades e, então, fazem os plantios em áreas de capoeira, já desgastadas, porque são mais próximas. As áreas de floresta estão distantes, próximas da Serra Kayeenama. A variedade de plantas cultivadas nesses locais é sempre maior se comparada com uma roça feita em capoeira.
Os mais velhos contam que existem locais certos para fazer a roça e, para reconhecê-los, é preciso conhecer certas plantas que são “indicadores” de área de plantio. Mas, hoje, as pessoas fazem roça sem levar em conta esse conhecimento. Antigamente, deixavam uma capoeira (wöijhä’jä) descansar por cerca de 10 anos, mas nas últimas décadas estão derrubando áreas com somente dois ou três anos de descanso. Para as mulheres, é muito complicado fazer roças em locais afastados, pois, além de trabalharem ali diariamente, também trazem os alimentos para casa em cestos wöwa, os quais chegam a pesar mais de 50 quilos.
Outra consequência da sedentarização das comunidades na região é a degradação de locais chamados de shini’jhä. Ali, as samambaias não deixam nenhuma outra planta crescer. Muitas vezes, ateiam fogo, mas logo as samambaias voltam a crescer. Os Ye’kwana percebem a necessidade de criar estratégias para revitalizar esses lugares, plantando alimento e reflorestando.
A concentração da população em uma mesma área, o crescimento populacional, especialmente dos Sanöma, a escassez de áreas boas para o cultivo e a baixa disponibilidade de caça e pesca têm provocado muitos problemas. Um deles são os roubos de produtos das roças por parte dos Sanöma, população que apresenta altos índices de desnutrição e mortalidade infantil na TI Yanomami.
As comunidades ye’kwana e sanöma próximas da pista de pouso, apesar de lidarem com questões parecidas como a falta de caça, pesca e de locais adequados para a roça, vivem situações bem diferentes. Os Sanöma sofrem com a desnutrição infantil e doenças relacionadas a esse quadro crônico de saúde e têm pouco acesso a bens básicos como facão, machado, calção, chinelo e bens alimentícios.
Em Fuduuwaadunnha, mesmo com o enfraquecimento dos solos, as mais de 60 roças existentes hoje continuam produzindo muito alimento. Nelas, são cultivadas mais de 50 variedades tradicionais que são a principal fonte de alimento dos moradores e também um importante complemento para quem se encontra na cidade. As mulheres ye’kwana procuram sempre que podem enviar nos voos de rotina da Sesai sacos de beiju, farinha de mandioca etc. para seus parentes que estão em Boa Vista. Para os Ye’kwana, uma boa refeição deve ser sempre acompanhada de beiju e chibé.
Notas sobre as fontes
Existe uma vasta literatura etnológica sobre os Ye'kwana. Os principais estudos realizados no século 20 sobre esse povo são: Barandiarán, Coppen, Arvelo-Jiménez, Civrieux e Guss. Entre os estudos mais recentes sobre os Ye’kwana na Venezuela, destacam-se as teses de doutorado de Monterrey-Silva (2007) e Lauer (2005). É importante observar que há uma vasta documentação etnográfica sobre os Ye’kwana encontrada em relatos (e nos acervos) das expedições realizadas por viajantes europeus como Schomburgk, Chaffanjon, Koch-Grünberg, Gheerbrant e Grelier.
Até o final dos anos 1990 nenhum estudo etnográfico havia sido feito entre os Ye’kwana no Brasil. Desde então, três teses de doutorado foram produzidas por antropólogas cujas pesquisas foram realizadas em Fuduuwaadunnha, comunidade mais populosa situada às margens do igarapé Fuduuwaadu, na região do alto Auaris (Andrade, 2007; Moreira, 2012 e Gongora, 2017). Há também as dissertações de mestrado de Diniz (2006) sobre a mitologia ye’kwana e de Ferreira (2015) sobre a cestaria e a estética ye'kwana e Cury (2019) sobre os cuidados com as imagens e sua repercussão na produção fílmica entre os Ye'kwana. Antes desses estudos, Alcida Ramos (1980, 1990, 1991 e 1996) era a referência principal, pois trabalhou na região de Auaris com os Sanöma, um grupo yanomami, e publicou diversos estudos sobre a dinâmica relacional Sanöma/Ye’kwana.
Os trabalhos de Karenina Andrade, Elaine Moreira e Majoí Gongora abarcam vários temas, a saber: as redes comerciais nas quais os Ye'kwana estão inseridos; trajetórias ye’kwana no processo de escolarização e questões relacionadas às profissões que surgiram a partir da implementação de políticas públicas na Terra Indígena Yanomami; as histórias das origens (wätunnä); o xamanismo; a chefia; os cantos acchudi e ädeemi; cadernos de canto; noção de pessoa (duplos); regimes de circulação e transmissão dos cantos; as relações com grupos missionários e questões ligadas à recusa de conversão; a intensificação das relações com os não indígenas e diagnósticos nativos sobre o enfraquecimento da pessoa e da ‘cultura ye’kwana’; escatologia e cosmologia etc.
É importante destacar, ainda, a produção acadêmica realizada por pesquisadores ye’kwana que se formaram no âmbito dos cursos oferecidos aos povos indígenas pelo Instituto Insikiran– UFRR (Rocha, Raul 2008; Rocha, Reinaldo 2008; Gimenes, M. 2009; Gimenes, H. 2009; Rodrigues, 2014; Silva, C. 2014) e no âmbito de programas de graduação (Velázquez, 2015) e em programas de pós graduação que contam com ações afirmativas. Castro Costa da Silva (2017) e Osmar Carlos da Silva (2017) foram primeiros Ye’kwana a obter o título de mestre, o primeiro em geografia pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e o segundo, em antropologia pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Os estudos sobre a língua Ye’kwana ganharam um impulso com a publicação de Grammaire Fonctionnelle-Typologique du Ye'kwana de Cáceres (2011), principal referência sobre a língua. No Brasil, há a pesquisa de Costa (2013 e 2018) junto aos Ye’kwana de Auaris sobre a categoria gramatical de número e quantificação.
Com relação aos cantos acchudi e ädeemi, a questão da sua centralidade na vida dos Ye’kwana já aparece nos trabalhos pioneiros de Barandiarán, Arvelo-Jiménez, Civrieux e Guss. Nestes estudos, considerados ‘clássicos’ da literatura sobre os Ye’kwana, há referências sobre os cantos como saberes altamente valorizados e sobre o fato de o domínio de seus repertórios ser uma qualidade de poucas pessoas, conhecidas como ‘donos de canto’ (achudi edhaamo ou ädeemi edhaamo).
Arvelo-Jiménez, autora da primeira etnografia sobre os Ye’kwana, ressalta que a vida de uma comunidade ye’kwana é permeada por rituais que se constituem como um espaço privilegiado de comunicação com entes invisíveis e também como uma técnica de controle de forças perigosas oriundas de diferentes domínios cósmicos. E os rituais dependem basicamente da execução de cantos, pois são eles que agem sobre o mundo, transformando. É através dos cantos que a agência agressiva de subjetividades não humanas é controlada, apaziguada e/ou afugentada e os xamãs - o föwai (xamã/pajé) e o acchudi edhaajä ou ädeemi edhaajä (dono de canto’ - desempenham um papel central.
Há nos trabalhos de Barandiarán (1962b, 1979a), Arvelo-Jiménez (1971) e Guss (1989) uma percepção comum de que o föwai seria o “xamã clássico” e que o dono de canto se ocuparia de outras práticas rituais, não menos importantes, como as ações propiciatórias, terapêuticas, de desintoxicação e afugentamento. Guss (1989) descreve as ações levadas a cabo pelo pajé como um “sistema emergencial” e os rituais conduzidos pelos donos de canto como um “sistema de controle diário” que é acompanhado de outras ações protetivas como, por exemplo, o uso de pinturas corporais e a manipulação de plantas mada que protegem os humanos dos ataques dos odo’shankomo (noção que abarca uma infinidade de inimigos não humanos, subjetividades invisíveis de natureza predatória).
David Guss (1989) é a principal referência para os estudos das formas de expressão ye’kwana (cantos e arte gráfica, particularmente) e a sua forte imbricação com as narrativas míticas desse povo (wätunnä). Foi a campo com intuito de estudar a mitologia, mas diante da complexidade do tema e do interesse dos homens em falar sobre cestaria e produzi-la, mudou o seu ponto de partida. Segundo o autor (1989), os grandes conhecedores das narrativas eram também aqueles que dominavam a arte de trançar, atividade realizada cotidianamente, especialmente durante as conversas dos homens. Guss ouviu inúmeras narrativas míticas enquanto aprendia a fazer trançados e a diferenciar seus padrões gráficos. A partir dessa imersão, foi tecendo relações entre essa arte e as ações por ela mobilizadas – evidentemente, os cantos também desempenham aí um papel central.
Posteriormente, a maior parte dos estudos realizados trazia caracterizações gerais sobre os cantos ye’kwana baseadas nas primeiras etnografias sobre este povo, mas careciam de uma análise mais sistemática e aprofundada do tema. Só mais recentemente que estudos sobre os cantos acchudi e ädeemi ganharam um novo fôlego com as teses de doutorado de Moreira (2012) e de Gongora (2017) e a dissertação de mestrado de Osmar Carlos da Silva (2017).
Moreira dedicou-se, entre outras coisas, ao estudo dos cadernos de canto (manuscritos das letras dos cantos) que começaram a ser usados pelos Ye’kwana há algumas décadas como suporte mnemotécnico e se difundiram entre os cantadores da região de Auaris e alhures. Moreira relaciona a questão do “enfraquecimento dos corpos” e a dificuldade de as pessoas aprenderem a cantar de cor. Os cadernos de canto emergem nesse contexto como uma alternativa para os cantadores e aprendizes executarem os cantos integralmente. A autora traz descrições etnográficas sobre importantes rituais ye’kwana e sobre as relações entre mestre e aprendiz no contexto de transmissão dos cantos acchudi e ädeemi, destacando-se aí a noção de ‘pagamento’ (ejeemadö). O ‘pagamento’ se dá através de miçangas (mayuudu), objetos que materializam o vínculo que existe entre o mestre e o aprendiz, ativando a potência agentiva dos cantos. Se o pagamento não for efetuado pelo aprendiz, o canto aprendido não terá eficácia durante o ritual.
Gongora (2017), por sua vez, buscou compreender a centralidade dos cantos na vida ye’kwana. Sua tese combina a análise de cantos e seus contextos enunciativos com uma investigação detalhada da cosmologia e da noção de pessoa entre os Ye’kwana, aspectos pouco explorados na literatura sobre esse povo. Transcrições e traduções de cantos achudi, narrativas míticas, exegeses e descrições etnográficas são os recursos usados pela autora para evidenciar o lugar de destaque que os cantos ocupam na ontologia nativa e analisar a noção de replicação, marcante na cosmopraxis ye’kwana. Gongora também descreve os regimes de circulação e transmissão dos cantos e os processos de transferências de substâncias, afecções, qualidades e cristais de canto que marcam a relação mestre-aprendiz e analisa noções importantes como widiiki (‘cristal’) e sejje (‘sabedoria’, ‘inteligência’). Também incorpora em sua reflexão os impasses contemporâneos relacionados à transmissão dos cantos às novas gerações, com ênfase nas percepções dos mais velhos.
Osmar Carlos da Silva – o primeiro ye’kwana a se tornar antropólogo – em sua dissertação de mestrado (2017), defendida recentemente no Museu Nacional-UFRJ, aborda o rico universo dos cantos acchudi e ädeemi. Dedica-se à transcrição, tradução e análise de três conjuntos de cantos que compõem o extenso repertório do canto ädeemi conhecido por mma edeemi’jödö, realizado na ocasião da construção e da inauguração de uma casa (mma). Além disso, apresenta importantes relatos de sábios ye’kwana sobre essas artes verbais e as histórias das origens (wätunnä) e traz depoimentos pessoais sobre a preocupação dos Ye’kwana com relação ao número reduzido de ‘donos de canto’ e ao desinteresse das novas gerações em aprender a cantar acchudi e ädeemi. Silva (2017) afirma que a escolha de seu objeto de estudo deve-se ao pouco conhecimento que tinha sobre os cantos e a seu interesse em aprender a cantar ädeemi. O autor conta que “o tema foi escolhido para valorizar os cantos tradicionais para novas gerações, principalmente para aprendizagem de nossos filhos e filhas, de nossos netos e netas, que estão deixando o nosso conhecimento, os modos de ensinamento da cultura de seus antepassados”.
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