De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Padre Manuel Bonfim da Conceição, final dos anos 1990

Pankaru

Autodenominação
Onde estão Quantos são
BA 123 (Siasi/Sesai, 2020)
Família linguística
The printable version is no longer supported and may have rendering errors. Please update your browser bookmarks and please use the default browser print function instead.

Como muitos outros grupos na região Nordeste do Brasil, os Pankaru tiveram sua identidade indígena reconhecida pelo Estado, bem como a homologação de suas terras apenas no início dos anos 90. Sua trajetória foi pontuada por uma sucessão de conflitos fundiários com grileiros e posseiros, que ainda não foram totalmente resolvidos. Além de um histórico de opressão e marginalização pela sociedade não-indígena, os Pankaru têm em comum com os demais grupos indígenas chamados "emergentes" o ritual secreto do "Toré", marca de identidade e resistência cultural.

Nome

Edmilson da Silva. Foto cedida por Ivone Gomes, final da década de 1990.
Edmilson da Silva. Foto cedida por Ivone Gomes, final da década de 1990.

Antes de se auto-denominarem Pankaru, os indígenas da Aldeia Vargem Alegre, localizada na Agrovila 19 (criada pelo INCRA), município baiano de Serra do Ramalho, eram conhecidos como Pankararu-Salambaia. Em fins de 1980, resolveram mudar de nome para diferenciar-se dos Pankararu que habitam no lado pernambucano do Vale do Baixo-Médio São Francisco (Petrolândia, Itacaratu). Segundo o cacique Alfredo José da Silva Pankaru, a mudança se fez necessária porque os órgãos governamentais confundiam as duas comunidades. Desse modo, as melhorias solicitadas pela comunidade da Agrovila 19 eram, muitas vezes, encaminhadas para os Pankararu de Pernambuco, há muito tempo reconhecidos pelas autoridades constituídas.

Língua

Cacique Alfredo José Pankaru e Lourdes Pankaru. Foto: Ely Souza Estrela, 1999.
Cacique Alfredo José Pankaru e Lourdes Pankaru. Foto: Ely Souza Estrela, 1999.

Como todos os indígenas do Nordeste, à exceção dos Fulni-ô, os Pankaru atualmente falam unicamente o Português. Somente o velho patriarca Apolônio Kinane falava a língua dos Pankararu, mas não a ensinou aos filhos. Entretanto, segundo o cacique Alfredo José da Silva Pankaru, durante o toré, "praticado nas matas", alguns vocábulos da língua ancestral são pronunciados no entremeio das cantorias.

Localização

Em 2003, a pequena comunidade pankaru compreendia um conjunto de 14 famílias que se dividia entre a Agrovila 19 e a Aldeia Vargem Alegre, transferida do "centro" para a "boca" da mata de Serra do Ramalho, distante aproximadamente 2 Km da citada agrovila. O município de Serra do Ramalho, emancipado de Bom Jesus da Lapa em 1989, fica localizado no oeste baiano, em região semi-árida à margem esquerda do Rio São Francisco, região que no passado era denominada de Além São Francisco.

A sede do município de Serra do Ramalho dista de Salvador 845 Km e 40 Km de Bom Jesus da Lapa. A Agrovila 19, onde se encontra a Aldeia Vargem Alegre, está distante da sede municipal (Agrovila 9) 22 Km e do Rio São Francisco aproximadamente 30 Km.

Antes da criação e implementação do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho (com o qual o Incra criou as Agrovilas), a região era praticamente toda ocupada por uma mata complexa e virgem (Mata Caatingada, Cerrado e Vegetação Hidrófila), possuindo uma grande mancha formada de espécies nobres, tais como o ipê, o cedro, a aroeira, a baraúna etc. A terra era fértil para lavoura e com pastos para o gado. Além dos rios perenes - São Francisco, Carinhanha, Formoso e Corrente -, na encosta da Serra corriam riachos e córregos intermitentes.

No passado, a região era vista pelas populações sertanejas como uma espécie de oásis, ao qual recorria grande parte dos flagelados das constantes secas que acometem o Nordeste, sobretudo aqueles vindos da Serra Geral e da Chapada Diamantina, sendo considerada como menos árida, recoberta por matas frondosas e ricas em espécies animais.

Além das famílias de Serra do Ramalho, outras famílias pankaru vivem em Jandira, município da Grande São Paulo; uma família vive em Goiás; sete famílias vivem em Muquém do São Francisco -BA, município localizado também à margem esquerda do Rio São Francisco [dados de 2003].

População

Edmilson da Silva e filhos. Foto cedida por Ivone Gomes, final da década de 1990.
Edmilson da Silva e filhos. Foto cedida por Ivone Gomes, final da década de 1990.

A comunidade Pankaru é pouco numerosa. Em 2003 estimava-se que viviam, em Serra do Ramalho, 14 famílias, aproximadamente 87 pessoas. Serra do Ramalho apresenta um dos mais baixos IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) entre os municípios baianos, com taxas de natalidade e mortalidade bastante altas.

O longo histórico de contatos dos Pankaru, bem como o reduzido número de famílias da comunidade, estimularam as relações interétnicas, inclusive com membros da sociedade não-indígena. Depois da implantação do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho e do reconhecimento da comunidade indígena, a rede de contatos dos Pankaru foi ampliada e, além dos "irmãos Pankararu", mantiveram estreitos laços com os Kiriri da Passagem (habitantes de Muquém do São Francisco, na Bahia), com os Tuxá (município de Ibotirama, na Bahia) e com os Atikum (Pernambuco). Os descendentes do pajé Apolônio buscaram nos membros desses grupos étnicos os parceiros ideais para o namoro e o matrimônio.

Histórico do contato

Remontar os primeiros contatos dos atuais Pankaru com membros da sociedade não-indígena é tarefa das mais difíceis, sobretudo quando não se sabe sequer a qual tronco lingüístico eram filiados. Grupo étnico recentemente diferenciado, os Pankaru ainda não contam com estudos etnográficos e documentos históricos versando sobre aspectos da história do grupo são desconhecidos. É provável que a família do ex-pajé Apolônio Kinane seja remanescente dos aldeamentos indígenas patrocinados pelas sucessivas missões religiosas instaladas no Vale do Baixo e Médio São Francisco, entre os séculos XVII e XVIII.

A região de Serra do Ramalho teve seu povoamento ligado à expansão bandeirante. Os bandeirantes empreenderam feroz caçada aos índios na região e dali partiram em direção às Minas Gerais para a chamada Guerra dos Emboabas. A área estava ligada à produção da pecuária extensiva e atividades mineradoras.

Hoje, a população regional é predominantemente mestiça, sobressaindo os "caboclos" e os remanescentes de quilombolas. Mas a história oral também aponta a presença de indígenas, como atesta o depoimento coletado pelo padre João Evangelista de Souza (s/d, 52-53): "Aqui tinha muito índio também; na serra, até hoje, tem muito escrito de índio; nós já achou panela, pote, prato, cachimbo, tudo de barro cozido, enterrado nesses matos. Os índios moravam qui, depois eles sumiram pro alto da serra. Eu vi uma panela toda pinicadinha de unha, muito bonita: era uma aldeia deles; a gente encontra escritos e desenhos nas pedras das grunas. Ali pro lado do Morro Redondo, tem uma gruna com a porta fechada com uma parede de barro; cheia de escritos nessa porta; ninguém nunca conseguiu quebrar pra ver. Deve ter muita coisa de índio escondido lá dentro. Os índios povoaram aqui e, depois, foram sumindo pra fora. No meio da rua, Olímpio, quando foi fazer a casa, tirou um pote de terra, cheio de ossos de gente: os índios enterravam os seus mortos assim: separavam as juntas todas e entulhavam dentro de um pote. Esses sarcófagos e esses ossos a gente ainda encontra enterrado por aí, é só caçar".

Embora dêem destaque aos resquícios da presença indígena na região de Serra do Ramalho e Carinhanha, as publicações do Pe. João Evangelista de Souza não registram a presença dos Pankaru no local. É difícil precisar os grupos indígenas que viviam na área que hoje compreende o município de Serra do Ramalho. Tudo indica que eram do tronco Macro-jê e, com certeza, foram exterminados e ou afugentados, à medida que a pecuária se expandia pelo Vale do Rio São Francisco.

Trajetória do líder pankaru

Também não é tarefa fácil resgatar a etnogênese - processo de diferenciação étnica – dos Pankaru ou sua história recente. A representação da história contemporânea dos Pankaru é marcada por descontinuidades, elaborações e reelaborações empreendidas pelo pajé Apolônio e sua família, visando atender os interesses e as conveniências do grupo.

Na representação dos Pankaru, os constantes deslocamentos do patriarca marcaram a resistência e a luta pela territorialização, forjando a identidade familiar e grupal. Assim, a etnogênese da comunidade Pankaru está fortemente entrelaçada à saga do patriarca e pajé Apolônio, recentemente falecido.

Segundo depoimento do cacique José Alfredo da Silva Pankaru, a saga do pajé Apolônio teria começado muito cedo. Na primeira década do século XX, adolescente, deixou o Lero - povoado onde teria nascido -, localizado a seis léguas de Salambaia, região do agreste pernambucano. Depois de perambular por vários municípios de diferentes estados do Nordeste, travou contato com os Pankararu da Aldeia de Brejos dos Padres, município de Tacaratu (PE). De acordo com o antropólogo José Augusto Laranjeira Sampaio (1992/3:9), "Já casado com D. Maria, uma alagoana que conhecera na Paraíba, decidiu fixar residência nas proximidades da área indígena onde deixava a família enquanto prosseguia suas viagens. De inequívoca origem indígena, eram aceitos como 'parentes' pelos índios locais". Alguns anos mais tarde, segundo Alfredo José Pankaru, desentendeu-se com o cacique e partiu em direção a Paulo Afonso - Bahia.

Na localidade, Apolônio trabalhou, em princípios de 1950, nas obras da Usina Hidrelétrica construída pela CHESF. Em seguida, partiu para trabalhar na Usina Hidrelétrica de Correntina-Bahia, como vigilante. Encantado com existência de mata fechada na região da Serra do Ramalho, visando ali se estabelecer, retornou, imediatamente, a Paulo Afonso para buscar a família. Segundo a filha Rosália, a viagem de Paulo Afonso à Serra do Ramalho foi penosa e durou vários meses.

Na representação Pankaru, Apolônio Kinane adentrou a mata à procura de uma comunidade indígena denominada Morubeca que sabia viver nas proximidades da Serra do Ramalho, município de Bom Jesus da Lapa-BA, com a qual acreditava ter laços de parentesco. Quando chegaram à região, os indígenas procurados já não mais se encontravam no local. Haviam sido expulsos por grileiros, ganhando as picadas e se estabelecendo, segundo o informante, em território goiano.

A chegada dos Pankaru à Serra do Ramalho coincidiu com a exploração de minérios na região. Na representação indígena, foi o patriarca Apolônio quem descobriu minério na Serra Solta (florita), em fins dos anos 50, recebendo em recompensa do prefeito municipal de Bom Jesus da Lapa, Antônio Cordeiro, área na qual havia se estabelecido.

Em princípios de 1970, o extremo sudoeste da Bahia tornar-se-ia palco da ação de inúmeros grileiros. Um decreto presidencial, publicado em 1973, declarava a região do Médio São Francisco prioritária para desapropriação. A medida se fazia necessária por causa da desapropriação não só da área da Barragem de Sobradinho, mas também da área onde seria reassentada a população desabrigada. Diante da possibilidade de serem indenizados, os grileiros começaram a atuar na região, tentando expulsar a população local desprovida de título de propriedade.

As terras devolutas ocupadas pela família do patriarca Apolônio passaram a ser reivindicadas por um fazendeiro originário de Permanbuco, atormentando o indígena e sua família, bem como os poucos posseiros que viviam na área. Instalou-se em Serra do Ramalho um clima de terror, pois, visando expulsar os posseiros, o grileiro ameaçava derrubar e queimar suas benfeitorias, contando com a conivência das autoridades de Bom Jesus da Lapa.

Alguns anos depois, o grileiro "vendeu a questão" (o litígio), ou seja, passou as terras para um fazendeiro da região sul da Bahia. Articulado com as autoridades de Bom Jesus da Lapa, o fazendeiro utilizou a polícia militar da bahiana para expulsar os indígenas. Depois de assaltarem a casa da família Kinane, levaram presos o patriarca Apolônio, um filho e dois genros para a delegacia de Bom Jesus da Lapa. De acordo com Rosália - filha do velho pajé -, no meio do caminho, os prisioneiros foram levados para a sede da fazenda e torturados pelos seus capangas com a complacência dos policiais.

Diante de tamanha violência, os indígenas resolveram partir para Brasília a procura da FUNAI. O contato com o órgão, segundo Alfredo José da Silva Pankaru, mudou a perspectiva de vida de seu povo. Informados de seus direitos em relação às terras de seus ancestrais, retornaram à região de Serra do Ramalho, visando enfrentar o grileiro. Novas hostilidades foram registradas.

A Terra Pankaru e as Agrovilas do INCRA

Em meados de 1970, os Pankaru foram surpreendidos com a notícia de que a região de Serra do Ramalho fora escolhida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para abrigar o Projeto Especial de Colonização (PEC), cuja finalidade era o assentamento dos desabrigados da Barragem de Sobradinho.

Assim, um sem número de fazendas foram desapropriadas e, de lá para cá, foram criadas 23 agrovilas, ocupando área de pouco mais de 256 mil hectares nos municípios de Serra do Ramalho e Carinhanha.

As agrovilas foram criadas para abrigar quatro mil famílias, obedecendo a um plano de engenharia rural que convém ser explicitado. A área foi dividida de acordo com o módulo regional. Assim, cada família recebeu um lote de 20 hectares (os contemplados com terrenos irregulares receberam um pouco mais) e uma casa na agrovila situada mais próxima de seu lote. Às margens do Rio São Francisco, foi ainda reservada uma faixa de 70 km para o cultivo irrigado. Além disso, foram criadas duas reservas denominadas extrativistas, cabendo a cada colono cinco hectares.

No plano de construção, cada agrovila funcionaria como um bairro rural que, além de concentrar os proprietários dos lotes, abrigaria o comércio, os serviços públicos e religiosos. Dentre as agrovilas, somente a Agrovila 9 concentrou todos esses serviços. Mais tarde, esta agrovila se tornaria sede do município de Serra do Ramalho, que foi desmembrado de Bom Jesus da Lapa.

Firme no propósito de ceder apenas 20 hectares a cada família assentada, o INCRA sugeriu à FUNAI "a remoção dos índios ou a sua emancipação para que tenham direito ao assentamento de acordo com o disposto no Estatuto da Terra" ("Relatos dos pankaru ontem e hoje", s/d: 01). Os índios resistiram e, depois de idas e vindas, seus direitos foram reconhecidos. Porém, não receberam a área reivindicada. Coube-lhes apenas uma área de aproximadamente mil hectares, homologada em 1991, e um lote urbano de três hectares localizado na Agrovila 19, onde foram construídas 50 casas reservadas aos indígenas. Como os Pankaru resistiram à fixação na Agrovila 19, algumas casas ficaram por algum tempo desocupadas. Então, Sem-terras provenientes de vários pontos da Bahia tentaram invadi-las. Os Pankaru exigiram a intervenção do INCRA. Entretanto, o órgão não foi capaz de impedir que os "colonos" destruíssem as casas, levando consigo telhas e blocos. Ainda hoje a área é disputada pelos indígenas e um não-índio que afirma ter o título de propriedade do lote.

Pouco tempo depois, os indígenas alegaram que a aldeia encontrava-se infestada de barbeiros, pondo em risco a sobrevivência de seus membros, razão pela qual fixaram-se na Agrovila 19, sendo obrigados a recorrer ao INCRA para obtenção de novas moradias; alguns indígenas, diante da negativa do órgão às solicitações, compraram casas em mãos de terceiros.

Aspectos ecológicos e econômicos

Quando se fixaram em Serra do Ramalho, além da agricultura para consumo próprio, os índios praticavam o extrativismo e a caça nas frondosas matas que recobriam a Serra. O patriarca fabricava o rapé e as "garrafadas de remédio do mato"; as mulheres fabricavam produtos artesanais - feitos de fibras e argila. Estes produtos eram vendidos nas feiras de Taquaril, Bom Jesus da Lapa, Santa Maria da Vitória e, inclusive, Brasília, auxiliando a sobrevivência do grupo familiar.

Hoje, a pequena comunidade Pankaru vive da agricultura de "sequeiro" - dependente das chuvas - praticada na Aldeia Vargem Alegre, da aposentadoria rural e da venda da mão-de-obra nas fazendas e nos projetos de agricultura irrigada, instalados na região pela CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco).

O milho, a mandioca, o feijão - em duas variedades: o "catador" e o de "arranca", bem como o algodão são cultivados em pequenos lotes individuais, cujas safras mal suprem as necessidades nos dois meses subseqüentes. Além da agricultura, alguns membros criam umas poucas cabeças de gado bovino. O lote de 14 cabeças adquirido, através de projeto financiado pelo Banco do Nordeste com a intermediação da Funai, foi abatido ou vendido pelos seus proprietários nos momentos de dificuldade financeira.

De acordo com o cacique Alfredo Pankaru, a comunidade pensava em desenvolver um projeto de criação de cabras, mas esbarrava na oposição do Patriarca Apolônio: "O pajé velho, meu pai, não quer saber de cabra. Diz que cabra dá trabaio, de que cabra vai pra roça dos outros e que não sei o quê... Ele tem um carrancismo danado. Não gosta de cabra".

Após a implantação do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, a rica e variada vegetação, com exceção de parte da área da Aldeia Vargem Alegre, foi toda derrubada pelos colonos do Incra, expropriando dos índios sua complementação alimentar.

Nos últimos anos, as secas na região têm sido constantes e os indígenas reclamam dos seus efeitos devastadores, reivindicando aos órgãos governamentais a irrigação prometida pelo Incra quando da implementação do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho.

Organização social e política

Comunidade Pankaru. Foto: Padre Manuel Bonfim da Conceição, final da década de 1990.
Comunidade Pankaru. Foto: Padre Manuel Bonfim da Conceição, final da década de 1990.

No tocante à organização social, os Pankaru apresentam pouca diferenciação em relação à população regional. De modo geral, os núcleos domésticos são autônomos e cooperam economicamente entre si. Tal qual a maioria das comunidades tradicionais, os casamentos entre primos de graus variados são muito comuns.

Quanto à organização política, seguem os passos dos demais indígenas do Nordeste, destacando-se as figuras líderes do cacique e do pajé. O papel de chefia, exercido pelo cacique, é válido para os assuntos que se referem aos interesses coletivos, mas não têm importância no âmbito doméstico. Desse modo, ele atua como um representante externo, exercendo o papel de articulador da mobilização coletiva.

Alfredo José Pankaru. Foto: Ely Souza Estrela, 1999
Alfredo José Pankaru. Foto: Ely Souza Estrela, 1999

Por muitos anos, o patriarca Apolônio acumulou as funções de cacique e pajé. Em meados de 1980, sentido-se "velho", resolveu "entregar" a função de chefia a um indígena de origem Atikum que vivia na Aldeia Vargem Alegre. Pouco depois, os Atikum voltaram a Pernambuco e Isaura, filha do pajé, reivindicou a chefia. A reivindicação de Isaura foi questionada pelo irmão Alfredo. "Ele dizia que tinha que ser homem; que ele tinha direito porque era o filho mais velho" (entrevista de Rosália, março de 2003). O desejo de Alfredo acabou prevalecendo e a irmã, Isaura, foi viver em Goiás, migrando, em seguida, para Muquém do São Francisco.

Embora acreditasse que as brigas com os brancos provocaram o enfraquecimento de sua "ciência", o velho Apolônio, até sua morte, em 2002, era visto e reverenciado como pajé. Seu filho Aldredo o substituiu no papel de cacique, mas ainda não foi identificado um novo pajé.

Ritual

Dança do Toré. Foto: Padre Manuel Bonfim da Conceição, final da década de 1990.
Dança do Toré. Foto: Padre Manuel Bonfim da Conceição, final da década de 1990.

A pequena comunidade Pankaru pratica o toré. O ritual apresenta duas modalidades que se diferenciam pela funcionalidade/finalidade. Uma é a "dança do toré", ritual praticado como demonstração da diferenciação étnica, apresentado, em geral, nos dias de festa e comemoração, como o dia do Índio, por exemplo. De caráter lúdico, nela os indígenas cantam e dançam, mas não sorvem a "jurema" - bebida que chama os "encantados" - nem permitem a manifestação de nenhuma entidade sobrenatural. A outra modalidade é o "toré dos encantados", ritual no qual os indígenas manifestam com toda potencialidade o conteúdo da diferenciação étnica. Este ritual é praticado nas matas e, além de sorverem a "jurema", os indígenas recebem entidades e encantos. Há várias linhas de toré.

A raiz da "jurema preta" (Pithecolobium diversifolium; Mimosa artemisiana), somente encontrada na beira do Rio São Francisco, é colocada em infusão dentro de "um cocho de madeira". Às vezes, à raiz são adicionadas toras de cobra cascavel. "Quando a gente quer fazer um negócio bem feito, mesmo, bota cobra dentro". O cacique Alfredo explica: "tira a frente, tira atrás; parte a bicha e bota o toro no cocho pra fermentar. Deixa no sol. Quando aquilo espuma, tira. Tá pronto". Após uma semana, a bebida fica no ponto para ser sorvida. "A bebida é boa, mas é forte demais. Se caboclo beber demais vai pro chão. Branco não agüenta, não. Para os Pankaru, o ritual do toré serve para clarear a mente, para dar força e unir a aldeia. Por isso, durante o toré praticado nas matas não é permitida a presença de não-índios. "Segredo do índio, o branco não pode saber".

Aspectos contemporâneos

Severino Matias de Oliveira e Rosália Pankaru. Foto: Ely Souza Estrela, 1999.
Severino Matias de Oliveira e Rosália Pankaru. Foto: Ely Souza Estrela, 1999.

A Agrovila 19 é a mais pobre dentre todas as agrovilas desse antigo projeto de assentamento totalmente fracassado. É também a que menos dispõe de equipamentos urbanos. Ela não é servida de Posto de Saúde, de escola de ensino médio nem de transporte regular. O fornecimento de água é precário e as estradas vicinais no período das chuvas (outubro/novembro a fevereiro/março) tornam-se intransitáveis. Na antiga aldeia, distante aproximadamente seis km da Agrovila 19, as condições de vida eram ainda mais precárias: as casas eram de pau-a-pique e não havia escolas.

Igreja da Aldeia Vargem Alegre. Foto cedida por Ivone Gomes, final da década de 1990.
Igreja da Aldeia Vargem Alegre. Foto cedida por Ivone Gomes, final da década de 1990.

Acatando reivindicação dos índios, que sempre rejeitaram a vida na Agrovila, em 1999 a FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) construiu um conjunto de casas em área localizada "na boca da mata". As casas são de alvenaria e têm três cômodos. Além delas, foram construídas uma pequena Igreja e um Posto de Saúde. A escola para os primeiros ciclos do ensino fundamental se encontra em fase de construção. No entanto, os índios continuam vivendo entre a nova aldeia e a Agrovila 19, pois a Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia, em que pese as inúmeras solicitações da Associação da Aldeia Vargem Alegre, até 2003 não tinha instalado energia elétrica nas casas.

Notas sobre as fontes

Em 2000, a autora deste verbete publicou um pequeno artigo na Revista Travessia, do Centro de Estudos Migratórios da Pastoral do Migrante, intitulado "Assentamentos Indígenas no Médio São Francisco: o caso dos Tuxá e Pankaru", enfatizando o deslocamento compulsório que vitimou a comunidade Tuxá de Rodelas e os deslocamentos/territorialização dos Pankaru.

De modo geral, a reconstituição de alguns dos aspectos contemporâneos da comunidade Pankaru só pode ser feita mediante consulta aos jornais e às esparsas publicações da Associação Nacional de Apoio ao Índio-Bahia. Duas publicações da ANAI-BA deram suporte a este trabalho. O folheto intitulado "Relatos dos pankarú ontem e hoje" reconstitui, de certo modo, aspectos da história dos Pankaru, enfatizando a resistência e os conflitos com os grileiros. O artigo "Seu Apolônio, o velho patriarca pankaru", de José Augusto Laranjeiras Sampaio, reconstitui a saga do patriarca, registrando também o processo de diferenciação étnica levada a efeito, a partir da luta contra os grileiros.

Além da consulta a esse escasso material, o presente trabalho foi realizado a partir de entrevistas realizadas com membros da comunidade Pankaru (Alfredo José, Rosália, Severino e Ivone) e do funcionário do Posto Indígena, Josias Adelício Ramos, membro da comunidade Tuxá de Rodelas. As entrevistas foram tomadas em dois momentos diferentes: em 1999 e em 2003. Em ambas não foi possível entrevistar o pajé Apolônio. Na primeira entrevista, ele se encontrava em visita à comunidade Tuxá de Ibotirama, seguindo dias depois para Brasília. Na Segunda, ele já havia falecido.

Fontes de informação

  • ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE APOIO AO ÍNDIO. Relatos dos pankaru ontem e hoje. Salvador : Anai, s.d. (folheto)
  • ESTRELA, Ely Souza. Assentamentos indígenas no Médio São Francisco : o caso dos Tuxá e Pankaru. Travessia, São Paulo : Centro de Estudos Migratórios, n. 39, jan./abr. 2001.
  • SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. Seu Apolônio, o velho patriarca Pankaru. Boletim Anai–BA, Salvador : Anai-BA, n. 9, p.6-7, dez.1992/jan. 1993.
  • SOUZA, José Evangelista de. Do São Francisco a Serra do Ramalho. Belo Horizonte : Precisa Editora, 1991.

. De Carinhanha a Serra do Ramalho. Belo Horizonte : Precisa Editora, s.d.
; ALMEIDA, José Carlos D. Comunidades rurais negras : Rio das Rãs – Bahia. Brasília : Arte e Movimento, s.d. (mimeo)
. O mucambo do Rio das Rãs : Um modelo de resistência negra. Brasília : Arte e Movimento, 1994. (mimeo).
  • SOUZA, João Evangelista; CERQUEIRA, Paulo Cézar Lisboa. Presença negra no Médio São Francisco. Caderno do CEAS, Salvador : Ceas, n. 106, nov./dez. 1986.